PERSONAGEM (ser ficcional: estrutura e evolução)

O étimo latino persona, sugere a composição da preposição per (através de) + sona (acusativo plural do substantivo neutro sonum = som). Persona, literalmente, significaria "através do som", porque os atores do teatro greco-romano , ao interpretarem personagens, eram identificados pelo público apenas pelo tom da voz, pois usavam máscaras, vestimentas, perucas e sapatos adequados a cada figura representada. O termo persona passou a indicar a "máscara" que conferia identidade à personagem e, posteriormente, também ao ser do mundo da realidade ("pessoa", em português, com seus correlatos: personalidade, pessoal, personificação etc.). Do Teatro, o conceito de personagem se estendeu pelo mundo todo da arte, abrangendo Literatura, Cinema, Pintura, Escultura, além da ciência da Psicologia (→ Psiquê). As personagens constituem os suportes vivos das ações e os veículos de idéias e sentimentos que povoam representações dramáticas, narrativas, quadros, estátuas, novelas radiofônicas e televisivas. O estudo da personagem de ficção pode ser feito a partir da sua estrutura ou da sua evolução:

A estrutura da personagem

O primeiro grande estudioso do gênero narrativo, Vladimir Propp, após relevar os núcleos das ações constitutivas do arcabouço do conto popular (→ MitoFunção), dedicou vários capítulos de sua obra Morfologia do Conto à análise das personagens. Também nesse caso, ele se preocupou em distinguir os elementos invariáveis, comuns a toda narrativa, dos elementos variáveis, específicos de cada obra. Os elementos variáveis são constituídos pelo nome das personagens, sexo, idade, atributos, enfim, pelo conjunto de suas qualidades externas e suas caracterizações psicológicas. Já os elementos invariáveis seriam os sujeito-tipos das funções da narrativa, que Propp agrupa em "sete esferas de ações das personagens": o herói, a moça, o vilão etc. Devemos convir, porém, que o formalista russo não dedicou ao estudo da personagem o mesmo afinco e a mesma precisão com que abordou as ações. O problema foi retomado pelo semioticista francês A.J.Greimas (Semântica estrutural e Sobre o sentido, entre outras obras) que, tendo como ponto de partida as sete esferas de ações do conto popular e as seis funções dramáticas inventariadas por E. Souriau, chegou à formulação de um "modelo actancial" da personagem de ficção. Em primeiro lugar, é preciso reparar na distinção entre ator e actante. O "ator" greimasiano, diferentemente da pessoa física que representa um papel dramático, corresponde, grosso modo, ao que geralmente se chama de personagem: um ser humano ou antropomorfizado, investido de atributos, que pode ser identificado numa narrativa-ocorrência.

Os atores são elementos variáveis, em número ilimitado, que povoam as obras literárias e se encontram na estrutura de manifestação. Já o "actante" é uma classe de atores que exercem funções idênticas. Os actantes são, portanto, conceitos abstratos, categorias metalingüísticas, que só podem ser encontrados numa estrutura profunda ou imanente, ao nível sintático e não lexemático. Chamamos de actantes às relações funcionais que existem entre os atores de uma narrativa. Por isso, são elementos invariáveis, de número reduzido. A estrutura actancial repousa sobre a principal relação sintática do discurso, que opõe um sujeito a um objeto. Do ponto de vista semântico, esse eixo sintático indica o "querer", o desejo que leva à procura: o sujeito de uma ação é quem sente falta de algo e inicia um processo de transformação para possuir o objeto desejado; o objeto, por sua vez, é a coisa desejada, o valor de que se sente falta. Ao lado desses dois actantes principais, "sujeito vs objeto", podemos encontrar mais duas duplas de actantes secundários, que participam circunstancialmente das ações. O actante sujeito pode formar um eixo em que se instala a dupla "ajudante vs oponente". O sujeito, em sua caminhada rumo à posse do objeto-valor, geralmente precisa do auxílio de outro actante: o herói, no começo de uma narrativa popular, normalmente possui apenas o "querer", faltando-lhe o "saber" e o "poder". Essas qualificações lhe são fornecidas pelo actante "ajudante", que pode ser o doador ou outro ator que tem a incumbência de auxiliar o herói. Como também, de outro lado, o herói pode encontrar obstáculos no seu caminho: é a função do actante "oponente", exercida pelo vilão ou um seu comparsa. A significação do eixo "ajudante → sujeito → oponente" prende-se, do ponto de vista cósmico, aos elementos protetores ou eufóricos da natureza, as forças do bem (simbolizadas pelo papel do ajudante), em contraste com os elementos do mal (encarnados pelo oponente) e, do ponto de vista psíquico, à vontade de possuir o objeto do desejo, em contraste com o medo do fracasso perante os virtuais obstáculos. Nesse caso, evidentemente, trata-se de uma narrativa de fundo psicológico. O objeto, por sua vez, pode também ser o centro de um eixo sintático-semântico, dando vida a outra dupla actancial: "destinador vs destinatário". Isso acontece quando numa narrativa existe um ator que funciona como mandante ou destinador do objeto e outro ator a quem esse objeto-valor se destina, o destinatário. É o caso, por exemplo, de uma narrativa popular em que se estabeleça um contrato entre o Rei e o Herói: o Rei (= destinador) determina que a Princesa (= objeto-valor) será dada em casamento ao Herói (= destinatário), se este a libertar das mãos do inimigo. Como se pode observar, nesse caso, as funções do actante sujeito da ação e do actante destinatário do objeto são executadas pelo mesmo ator, o herói. Trata-se, portanto, de um sincretismo atorial que, no limite, admite a possibilidade da existência de um único ator para exercer todas as funções actanciais (narrativa de uma grande dramaticidade interior). O caso inverso acontece quando há dois ou mais atores para exercer a mesma função actancial.

Quanto ao estudo dos atores, este será mais profícuo ao nível da estrutura de manifestação, tendo presente uma narrativa-ocorrência. Todavia. algumas considerações de caráter geral não são desnecessárias. Entendemos por ator a personagem que, numa dada narrativa, exerce uma ou mais funções actanciais. O ator pode ser figurativo (seres divinos ou humanos, animais, objetos) ou noológico (= conceito: amor, ódio, virtude etc.). Por incluir essa segunda classe é que o conceito de "ator" é mais amplo do que o de "personagem". O ator pode ser portador de um valor. Assim, por exemplo, uma rosa (= plano da expressão) pode ter como valor correspondente o amor (= plano do conteúdo). De acordo com uma das funções actanciais que exerce, o ator é investido de um papel temático, isto é, tem uma missão a executar. O ator pode ser qualificado desde o começo da narrativa para a sua função ou pode receber as qualificações necessárias gradativamente. No primeiro caso, temos o tipo de personagem, que a crítica tradicional chama de costume ou "plana", marcada de início e para sempre com traços identificadores. Exemplos: o herói = o defensor dos valores sociais; o vilão = o rebelde; o conselheiro = aquele que sabe; o pescador = quem sabe pescar etc. Todos esses atores possuem uma competência interiorizada. No segundo caso, a narrativa apresenta o personagem inicialmente como um assemantema ou zero semântico, sem nenhuma qualificação: é a personagem de natureza ou "esférica", que será modelada aos poucos, holofrasticamente. Exemplo: o tipo de herói problemático do romance contemporâneo, indeciso e complexo, inadaptado ao meio, que não sabe o que quer nem para onde ir. O ator, seja ele caracterizado por uma qualificação típica ou posicionalmente, para que efetue a sua performance, isto é, para que possa ser o sujeito de ações dinâmicas, deve previamente adquirir a competência específica. Essa competência lhe é conferida através de três modalidades: a modalidade do querer (o sujeito, antes de tudo, deve ser consciente daquilo que realmente deseja e demonstrar a vontade de conseguir o objeto-valor); a modalidade do saber (ele deve saber onde se encontra o objeto desejado e o que fazer para alcançá-lo); a modalidade do poder (o sujeito da ação deve possuir os meios adequados para conseguir apossar-se do objeto-valor). O esquema seguinte mostra o modo do preenchimento progressivo das qualificações de uma personagem:

Querer + Saber + Poder = Competência → Performance, evidenciando a passagem do "ser" ao "fazer".

Cabe ao analista do texto literário individualizar e captar o significado dos personagens-atores humanos (ou não), sujeitos ou objetos (agentes ou pacientes) das estruturas predicativas verbais que descrevem ações (matar, roubar, lutar, aconselhar etc.), realizadas ou em vias de realizar-se, ou qualificações (sábio, ignorante, corajoso, covarde, bom, mau etc.). Essas ações e essas qualificações são pormenorizadas no texto: assim, o tipo e o modo de um homicídio, seu lugar e ocasião encontram-se explicitados nas estruturas frasais.

A evolução da personagem de ficção

Um olhar diacrônico sobre a tipologia da personagem revela como ela adquiriu diferentes configurações e representações ideológicas no decorrer da história da ficção literária e artística em geral. Um longo caminho separa o herói clássico da personagem anônima de Kafka. A literatura greco-romana dava tão grande importância à personagem a ponto de distinguir os gêneros literários pelos caracteres dos protagonistas. Assim, Aristóteles, conforme sua conceituação do poético como imitação da realidade, diferenciava as obras de mimese superior das de mimese inferior. As primeiras têm por protagonistas seres superiores à média humana: os heróis da épica e da tragédia são deuses, príncipes ou gente superdotada. Já as personagens de mimese inferior têm como agentes ou pacientes seres iguais ou inferiores a nós: é o caso dos protagonistas da poesia cômica, satírica e lírica. Divisamos aqui a primeira grande dicotomia no estatuto da personagem de ficção: de um lado, o herói "apolíneo" (→ Apolo), qualificado para uma nobre missão e investido de atributos eufóricos (beleza, valor, nobreza de sentimentos etc.), que tem a função de expressar o triunfo dos valores sociais, de estabelecer ordem no cosmos, de desvendar os mistérios da vida, de apaziguar o homem consigo mesmo, com a sociedade e com a divindade; de outro lado, o herói "dionisíaco" (→ Dionísio), caracterizado por semas disfóricos (fraco, súcubo de paixões), que luta pela afirmação de sua axiologia, ou seja, o critério de valores individuais, com base na vida vivida segundo o instinto e na visão carnavalesca do mundo. Essa dicotomia pode ser percebida nas duas primeiras formas de narrativa ficcional da literatura ocidental: no Romance grego de amor e de aventura, de Heliodoro de Émeso (Teágenes e Cariclea) ou de Longo (Dáfnis e Cloe) e nas narrativas latinas satírico-picarescas de Petrônio (Satiricon) ou de Apuleio (O Asno de Ouro → Metamorfoses), que deram origem, respectivamente, aos dois grandes filões da narrativa romanesca e da narrativa picaresca. A mesma dicotomia pode ser rastejada na literatura medieval e renascentista: ao herói do romance de cavalaria e da poesia épica, símbolo dos valores nacionais (Amadis, Cid, Vasco da Gama, Roland, Sigfrido), se opõe o anti-herói das novelas divertidas e picantes (Decameron, de Boccaccio; Gargantua e Pantagruel, de Rabelais), onde está evidente a sátira dos valores religiosos, sociais e morais. Com o protagonista do romance propriamente picaresco, da literatura espanhola, (Lazarillo, Guzmán, Buscón), já no período do Barroco, a personagem dionisíaca adquire um estatuto artístico particular, como expressão da rebeldia dos valores individuais contra as opressões e as hipocrisias da vida socializada. A literatura barroca espanhola é uma tentativa de síntese do apolíneo e do dionisíaco. Veja-se, por exemplo, a conjunção da extrema beleza com a extrema feiúra nos protagonistas da fábula Polifemo y Galatea, de Luis de Góngora, ou a superação da antinomia sonho-realidade no Dom Quixote, de Cervantes.

A ruptura volta com a oposição herói do Classicismo x herói do Romantismo. O neoclassicismo francês, na tentativa de reafirmar o conceito de beleza como harmonia de formas, questionado pela estética barroca, codifica a estética clássica, estabelecendo uma série de normas imperativas: a lei da imitação da natureza e dos autores consagrados, a lei da verossimilhança e da conveniência, a lei da coerência interna, fundada nas três unidades (de ação, de tempo e de lugar) etc. Essa estética, teorizada pelo poeta francês Boileau, que tem como base filosófica o racionalismo cartesiano e como fundamento sociológico a burguesia ilustrada, leva à concepção de um herói que encarne os ideais sociais, baseados na crença de que o homem, pela luz da razão e pela força da vontade, consegue vencer todos os obstáculos e alcançar honra e glória (o herói de Corneille) ou, vítima da fatalidade, sucumbe às suas paixões (o herói de Racine). Em qualquer caso, trata-se sempre de uma personagem nobre que persegue um objeto dotado de um valor ideológico (poder, fama, amor invulgar etc.). O herói romântico, pelo contrário, expressa a revolta do indivíduo contra os valores institucionalizados pela religião oficial, pelo Estado e pelos costumes sociais. O Caim e o Dom Juan de Byron, o Prometeu de Shelley, o Fausto e o Werther de Goethe são todos heróis titânicos, personificações do desejo de liberdade, em oposição ao condicionamento socio-moral. O fundamento filosófico dessa nova concepção de herói é o idealismo germânico (Kant, Fichte, Schelling, Hegel), especialmente a teoria fichtiana do eu, entendido como realidade primordial e absoluta, em contraste com o não-eu da realidade exterior. A exploração da psicologia da personagem e a análise em profundidade das paixões tornam-se, então, o objetivo primordial do romancista, como se pode verificar especialmente na obra do mestre russo Dostoievski.

Na época do Realismo, o Determinismo de Taine e o Positivismo de Comte, motivados pelo desenvolvimento das ciências físicas e biológicas, vieram ensinar o respeito aos fatos e a crença na possibilidade de o homem descobrir, pela análise e pela experimentação, as leis subjacentes ao comportamento humano. A psicologia adquire fundamento científico na fisiologia humana, que pode ser explicada pela tríplice ação do meio, da raça e do momento histórico. Surge, assim, a estética do Realismo, em oposição à alienação dos ultra-românticos. A ficção é considerada um documento humano e tem a incumbência de descrever fielmente a realidade, dando-nos uma imagem exata das falas, das situações e das ações dos homens, que vivem num tempo e num espaço delimitados. Balzac, com a série de narrativas que compõem a Comédia humana, tem a pretensão de descrever as várias categorias sociais e fixar tipos humanos como se fossem espécies zoológicas. O herói do realismo e, mais tarde, do naturalismo e do "verismo" italiano, não é um ser superior à média humana nem por nascimento nem por destino (como o herói clássico), nem superior por rebeldia ou por complexidade psicológica (como o herói romântico), mas um homem qualquer, que carrega o peso das misérias biopsíquicas e das injustiças sociais.

Mais do que herói, portanto, o protagonista do romance, a partir do realismo, deve ser considerado apenas um "sujeito" agente ou paciente de ações. Tanto mais porque o protagonista romanesco não é necessariamente um indivíduo, pois pode ser um grupo social (Vidas secas, de Graciliano Ramos), uma cidade (Notre Dame de Paris, de Victor Hugo), uma realidade sociológica (O cortiço, de Aluísio Azevedo), um elemento natural (O iniciado do vento, de Aníbal Machado), um ator noológico (Angústia, de Graciliano Ramos). A degradação da figura do herói romanesco, iniciada com o romantismo (Os miseráveis, de Victor Hugo), continuada pelo realismo (Germinal, de Émile Zola), chega ao ponto máximo no Modernismo quando, pela ação convergente de fatores filosóficos (Intuicionismo de Bergson e Existencialismo de Kierkegaard), científicos (as várias correntes psicanalíticas e a teoria da relatividade), sociais (a tecnoburocratização, que desumaniza o homem) e morais (a ética hippie), o conceito de indivíduo, de pessoa una e indivisível, entra em crise, pulverizado pelas leis do inconsciente. Na arte literária, essa concepção do espírito humano, como um pseudo-simplex, é expressa pelo fenômeno do desdobramento da personalidade: os "heterônimos", de Fernando Pessoa; as personagens que têm vida independente de seu autor, no drama de Pirandello; os poetas apócrifos de Antonio Machado; as sub-individualidades do Teatro da Alma de Evreinoff. Em Kafka, o protagonista da narrativa, perdido como está num mundo caótico e absurdo, não tem consistência individual e social, sendo denominado não por um nome, que lhe indique a ascendência familiar, mas apenas por uma letra. Mas essa tendência de abolir completamente o protagonista e de dar pouca importância às personagens, evidenciada especialmente na corrente literária francesa, chamada de "novo romance", não teve muito sucesso, ficando apenas restrita no âmbito de uma elite intelectual da Vanguarda européia . A literatura de massa, escrita, filmada ou televisionada, pelo contrário, ainda gosta de uma bela história protagonizada por um herói no sentido tradicional, embora o vista com uma roupagem mais moderna. Uma parte cada vez mais considerável de romances e filmes policiais, de suspense ou de ficção científica apresenta o herói não mais com capa e espada, revólver ou socos, mas com mísseis, carros superequipados, microscópios e sofisticados aparelhos de balística, deslumbrantes astronaves. O herói não deixou de existir, apenas se modernizou!