Anexo:Imprimir/Contos sem Pretensão

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Índice

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A alma do outro mundo

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O Último Concerto

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O homem e o cão

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Estamos no Jordão. O Jordão dista do Recife, capital de Pernambuco, quatro léguas, pouco mais ou menos meia hora de vagão... que não desencarrilhe antes de lá chegar; está visto.

É um lugarejo pobre e formoso como as feiticeiras matutas do norte, que fazem brilhar, através do tosco lenço, a alvura de um seio adorável, e metem em brutais tamancos um par de pés, dignos de herdar o sapatinho da Borralheira.

O nome não é propriamente do lugar: é do pequeno rio que o atravessa em parte, um rio cheio de sombras, quietação e aromas selvagens, como aquele de que o louro S. João tirou as gotas santas com que batizou o Divino Cordeiro.

As casas do Jordão são quase todas humildes, raquíticas, esboroadas; mas em todas elas a doce miséria espalha um sereno ar de meiguice e pureza, através do qual a indigência parece resplandecer melhor que o luxo nos salões da cidade opulenta.

Durante a tarde, as poucas famílias do lugar dirigem-se em graciosas turmas à beira do rio, e aí esperam os primeiros clarões da estrela, rindo, conversando, e, nas noites de lua, acordando o sonolento eco ao ruído dos pandeiros, das guitarras e das vozes felizes que se entrelaçam na pálida e cheirosa atmosfera!

Nada perturba o proverbial sossego daquelas abençoadas terras. De vez em quando ronca pelas estradas solitárias o monstro do trem de ferro; o penacho flutuante do vapor enrosca-se no ar; mas, momentos depois, tudo volta ao primitivo silêncio.

Os habitantes do Jordão assemelham-se aos antigos apóstolos de Jesus. No meio da sua pobreza, boa e venturosa gente! no meio da sua imensa pobreza eles conseguem revelar ao mundo, que por acaso os surpreende, o meio de ser feliz nos mais amargos transes da vida.

Como são formosas aquelas alvas noites à margem do rio, em cuja água, de uma limpidez fenomenal, cintila o manto erradio das estrelas e a piedosa face da lua, coroada de névoas e de raios!

As cantigas em desafio amiúdam-se com a rapidez das contas do rosário em mãos devotas, e, por vezes, o sabiá da mata, escondido na penumbra das árvores, exala um choroso trilo cuidando que é dia e que o som agudo da guitarra é a voz penetrante do condiz que saúda a vinda da madrugada!

Belas, belas noites inocentes e puras! Vós sois o consolo, oh, doces amigas! O consolo dos pobres e a riqueza dos infelizes!

Nas fímbrias de vossos mantos ideais enxugam-se as mais acerbas lágrimas da existência, e a alma atribulada esquece as mágoas que a torturam, embebendo-se como um mergulhador invisível, nas ondas estreladas do firmamento!

Oh! Doces amigas! Vós sois a revelação sublime da meiga e imponente majestade do Senhor!

O dia é cruel, é ardente, é real como o tormento e como a voluptuosidade! Vós, não! Vós sois a poesia! Sois a cisma, sois a saudade, sois a serenata, sois o luar sois a tranqüilidade; vós sois a ternura, e o amor!

No Jordão os amores correm com a placidez e a castidade dos santos amores da égloga... Há por lá raparigas lindas, feições artísticas e portes corretos, que recordam o perfil grego, as grandes figuras — modelos da formosura e das vitórias da arte suprema!

O meu conto é simples como a narração pastoril das aventuras do bom tempo, em que a virtude valia mais do que o dinheiro, e a beleza não era ainda monopólio dos ricos!

Passou-se no Jordão esta história e começa em uma noite de imenso luar, noite em que, contra o costume da povoação, as margens do rio ficaram desertas, sombrias, fúnebres até romper o dia.

As casas fechadas e escuras figuravam túmulos.

Apenas em uma, um pouco afastada, um vulto de mulher, destacando-se da janela meio aberta, parecia interrogar alguma coisa na escuridão da mata.

Soavam nesse momento as 12 pancadas da meia-noite no longínquo campanário da capelinha de S. Gonçalo.

Rosinha ia fazer nessa época 22 anos. Estava na plena aurora da sua beleza e da sua mocidade. Não era das moças frágeis e pálidas dos nossos salões, que exprimem no sorriso magoado e na fronte abatida o cansaço proveniente das festas ruidosas em que o viço da mulher mais rápido foge do que o aroma das flores e a polpa do fruto abandonado.

Rosinha era forte, robusta, formosa, como uma verde floresta em todo o vigor da primavera.

Os seus olhos, de um negro magnífico, derramavam no mais simples movimento ondas de luz, e de sua boca, rubra como a pevide da romã, o sorriso fugia mais meigo e puro do que a espiral do incenso transparente.

Tudo nela valia um tesouro, um tesouro de lei, um tesouro virgem e copioso.

Era alva como o dia, e terna como os hálitos da noite.

Os rapazes do lugar andavam todos às tontas por causa da filha de José Paz.

Ela, porém, meneava a eloqüente cabeça e com um sorriso entre a ironia e o gracejo, despedia, um por um, os suspiros dos seus inúmeros namorados.

José Paz dissera-lhe um dia:

— Que tal achas o Manuel dos Afogados, hein?

Rosinha fitou os olhos rasgados e úmidos na boca entreaberta do rotundo autor de seus dias.

— Por quê?

— Responde direito, pequena. Isso não é responder ao que te disse!

— Por que me pergunta, meu pai? — repetiu ela tornando-se séria e pensativa.

José Paz era bronco, ótimo homem excelentíssimo cidadão, respeitador do próximo... mas bronco. Tem paciência, meu velho! Tu eras redondamente bronco!

Não compreendeu a intenção da filha e quis fazer valer os seus direitos paternais, sufocando na nédia perna duas volumosas palmadas.

A moça quebrou entre os dedos frenéticos as pétalas de um bogarim, e:

— Faça-se um favor, meu paizinho, um grande favor. Olhe: nunca me fale em casamento!

— E quem te disse que se tratava de casamento?

— Nada mais simples. O Manuel escreveu-me...

— Oh?!

— É verdade, escreveu-me!

— E o que rezava a carta?

Os olhos de José Paz faiscavam de curiosidade e de cólera.

— Pedia-me permissão para lhe falar nas suas idéias a meu respeito. Respondi-lhe que não lha dava e acabou-se!

— Toma uma beijoca! Toma!

Rosinha, sorrindo entregou as faces ao pai, que as expôs a um dilúvio de beijos tempestuosos.

O Manuel dos Afogados recebeu à noite um robusto desengano da boca de José Paz.

As amigas às vezes falavam-lhe em casamento. Rosinha erguia desdenhosamente os ombros e olhava com tristeza para o céu.

— Tens alguém de olho, hein! O Chico do Silva? O Clarindo da Eusébia? O Clarindo! Não se me dá de apostar em como é o Clarindo!

— Nem um, nem outro. o homem que eu hei de estimar um dia...

— Acaba!

— Ainda não nasceu, tola!

E terminava a sessão entre gargalhadas e motejos gerais.

A alma de Rosinha era semelhante a esses jardins agrestes que brotam no meio das florestas, cheios de plantas e de flores, mas sem o menor cultivo.

Faltava a tesoura do sagaz jardineiro para alinhar os graciosos canteiros e os selvagens pendões; essa tesoura era o amor que, mais dias menos dias, nos ataca nas encruzilhadas, altivo e irresistível como os bandidos espanhóis.

O amor, para Rosinha, valia o que vale uma folha seca no mais copado arvoredo da mata, um fruto mirrado no galho das mangueiras abundantes. Ela ria-se à idéia de poder amar um dia, o seu espírito brilhante arrufava-se ao simples pensamento de entregar aquela mão branca e acetinada às mãos absurdas dos habituais namorados do Jordão.

José Paz era homem de faca e calhau, como se dizia no tempo das frases sinceras. Adorava a filha e tinha horror aos janotas do Recife.

O caso passou-se da seguinte forma.

A madrinha de Rosinha, senhora de altos haveres e elegante posição habitava um custoso palacete na capital de Pernambuco. José Paz, que a conhecera no tempo em que a troca de alguns produtos agrícolas haviam-no conduzido à cidade convidou-a a ser madrinha da pequena. A mãe da menina morrera no ato de dar à luz a filha. José Paz, bronco mas prudente, pusera na pessoa da comadre todas as suas grandes esperanças para os dias das provações e das desventuras.

— Eu sou pobre — dissera ele -, porém sou arreconhecido. Vossa mercê verá. E, depois, a pequenina é uma mangabazinha! É bonita e jeitosa como os passarinhos do céu!

A ricaça sorrindo respondera à esquisita fraseologia do matuto com a mais fina e generosa cordialidade.

— Quer fazer o batizado aqui no Recife, ou prefere que eu vá ao Jordão? Estou pronta.

— Muito agradecido a senhora! — acudira o pai vermelho de gratidão e de calor. O batizado há de ser aqui mesmo. Eu trago a filhinha! Não me custa um fio de cabelo da cabeça!

Realizou-se, pois o batizado de Rosinha no Recife, com todo o aparato e pompa.

José Paz abria enormes olhos e desprendia uns suspiros capazes de, em colaboração com a trombeta de Jericó, abalar os alicerces do mundo.

A esplêndida comadre chamou-o à parte, à noite, e:

— Saiba de uma coisa, meu caro senhor — disse ela sorrindo meigamente. — Esta menina, de hoje em diante, considero-a filha minha!

José Paz cortejou três vezes, puxando os manguitos do casaco.

— Portanto, compadre, hei de ir mais de uma vez vê-los no Jordão, lugar que adoro, e outras vezes Rosinha virá passar comigo...

— Pouco tempo, sim, comadre? Pouco tempo. Esta menina é a coisa melhor que eu tenho no mundo e repare! Repare! Nos seus olhinhos parece que eu vejo rir para mim a alma da defunta!

O pobre do homem idolatrava a criança, como um náufrago o frágil remo que o ampara do choque horrendo das ondas.

Rosinha cresceu à sombra dos cuidados paternos e dos carinhos de sua ilustre madrinha. A comadre de José Paz ia de longe em longe ao Jordão, e era sinal de festa a presença da milionária entre os habitantes do lugarejo.

No tempo em que Rosinha contou 21 anos, a madrinha foi ao Jordão buscá-la com o maior alvoroço.

— Mas no dia dos anos dela! — murmurou José Paz, enfiado com a exigência da comadre.

— É por isso mesmo, compadre. Hoje à noite dou uma soirée...

O honradíssimo matuto abriu os olhos prodigiosamente.

— Soirée! — articulou ele, trôpego e pasmo.

— Não é caso de morte, não, meu amigo. Uma soirée é uma reunião alegre, galante com muita música, muitas moças, muitos rapazes distintos.

José Paz escapou de engasgar-se engolindo a frase dos rapazes distintos.

— Minha afilhada é moça de mais ou menos sociedade, e eu quero dá-la por pronta em pouco tempo.

— Pronta para quê, comadre?

— Santo Deus! O senhor está hoje com a bílis horrivelmente excitada, compadre! Diga-me uma coisa. Acha que eu estimo sua filha?

— Oh! Muito!

— Bravo; nesse caso deixe-me ser sempre guiá-la no mundo.

— Mas — gaguejou José Paz, esfregando um botão do colete a ponto de arrancá-lo — a Rosinha pouco pode ser, por mais que vossa mercê deseje! A pobreza...

— Quem lhe lembrou agora a pobreza, homem?

— Isso não precisa lembrar, comadre — atalhou José Paz com o sorriso triste; — é o meu pão nosso de cada dia!

— Espero em Deus proteger sua filha sempre — prosseguiu a milionária, ferindo o chão impacientemente.

José Paz meteu a viola no saco, e pôs-se a contar as tábuas do assoalho.

— Levo-a hoje; o trem de ferro não tarda. Rosinha! -chamou ela com a voz vibrante e imperiosa.

A menina veio abraçar a madrinha e receber-lhe a bênção, envolta em ondas de alegria.

A ricaça bateu nas faces da afilhada com um certo ar de importância materna que lhe ia às mil maravilhas.

— Veste-te depressa, anda.

— Aonde vou eu? — perguntou a menina, fitando os olhos luminosos no rosto carrancudo do pai.

— Vais ao Recife, vais à minha casa, vais a um baile!

— Vossa mercê — interrompeu José Paz, trêmulo — disse ainda agora que era uma... uma...

— Soirée ou baile vem a ser o mesmo, compadre. Uma soirée soberba, Rosinha! Hás de te recordar ainda dos lanceiros de que tanto gostavas? ... Tra, la, la, la, la, le, li, la, la!

José Paz estava em brasas; o suor corria-lhe da testa à barba com a rapidez das enxurradas nas grandes cheias.

A milionária acompanhou Rosinha ao quarto da menina, e enquanto auxiliava-a na simples e graciosa toalete:

— Prepara-te, meu bem que nunca te divertirás como hoje à noite!

— Hoje é o dia dos meus anos — volveu Rosinha enfiando o corpete de lã salpicada.

— Pois festejaremos o dia dos teus anos às direitas! Toma, toma o alfinete.

— E espera muita gente, minha madrinha?

— Alguma; gente escolhida, já se vê. Amanhã iremos passar o dia em Caxangá!

— Oh! Eu não volto de manhã cedinho?

— Qual!

— Papai maça-se deveras!

— Teu pai é um grosseirão de lei. Se não fosse teu pai e meu compadre, eu o trataria hoje como merece!

— Por que, Virgem do céu?

— Imagina que lhe falei na soirée, e o pobre do homem franziu o nariz, como se eu te fosse levar à tua perdição e ao teu mal!

— Ah! Ele franziu o nariz?

E Rosinha mirou-se ao espelho, parando por um instante os olhos inteligentes na sua imagem um pouco desmaiada e pensativa. As mãos que acolchetavam o vestido caíram frias ao longo do corpo.

As lufadas do vento norte traziam o longínquo uivo do vagão que se aproximava.


Rosinha entrou, às oito horas da noite, no salão festivo, pela mão de sua madrinha, agitou-se entre damas e cavalheiros um murmúrio de admiração.

A filha de José Paz estava bela como o amor e irradiante como a estrela da manhã. Já não trazia sobre o corpo o vestido com que viera do Jordão mas um fino, um transparente tule, através do qual os nítidos contornos debuxavam-se com uma riqueza oriental. Seus longos cabelos negros, enroscados pela artística mão de um cabeleireiro francês, emolduravam-lhe, mais brilhantes que um diadema, a expressiva e sentimental cabeça.

De seus olhos, surpresos pela luz e pela harmonia vibrante da orquestra, escapavam-se doridos e tênues lampejos.

O vestido roçava dois palmos o tapete do salão; e em seu colo abundante, largo e nu, um fio de pérolas ofegava ao movimento precipite da respiração opressa.

A ricaça apresentou a afilhada a todos os seus convidados.

Cada qual admirava com maior entusiasmo os preciosos dotes da recém-chegada, cabendo às mulheres a parte da inveja na colheita geral de aplausos.

Rosinha nem estava triste, nem satisfeita. Faziam-lhe mal aquelas arandelas fulminantes, a cujo reflexo era o seu perfil representado na limpidez de 20 espelhos enormes. Por vezes cuidava escorregar na pérfida lanugem do tapete espesso.

Quando a orquestra atacou com brio e delirantes adejos uma valsa de Schuloff, então muito em moda nos primeiros salões de Pernambuco, a alma da criatura, habituada a ouvir apenas o sussurro dos rios e a cantiga magoada dos pássaros, sobressaltou-se e deixou-se voar na correnteza daquelas novas harmonias, como uma pétala solta é arrebatada na torrente impetuosa da chuva.

O que era aquilo, santo lenho de Cristo? Aquilo que a enleava, que a perturbava, que a consumia, e ao mesmo tempo fazia derramar ondas de perfume e de ignotos desejos no seu coração extático?

A valsa reboava, tremenda e voluptuosa confundindo os pares e dobrando a cabeça das elegantes sobre o ombro trêmulo dos cavalheiros.

Rosinha seguia todo aquele panorama vertiginoso com essa espécie de terror e de alegria que se experimenta quando se engole um bocado de haxixe. O leque fechado estremecia no seu regaço, torcido pelos dedos febris e impacientes. Com a pele úmida, a boca entreaberta, o seio convulso, ela acompanhava os compassos delirantes da valsa, agitando sob a fímbria da cambraia o pé sufocado nas dobras do cetim branco.

Terminada a valsa, a milionária acenou-lhe que se aproximasse. A filha de José Paz caminhou até o divã em que estava a madrinha, aterrorizada e pálida, como se houvesse cometido um crime.

— Que tens tu?

— Por que, minha madrinha?

— Vejo-te branca que me pareces uma defunta!

— É verdade — acudiu uma senhora presente; — talvez o calor da sala lhe faça mal!

— Não, não tenho nada respondeu a menina.

E por acaso viu-se retratada no primeiro espelho, sombria e lívida de causar espanto a si própria.

— Vamos lá dentro. Vem, Rosinha!

A menina aceitou o braço da ricaça, e punha o pé no rendado capacho do corredor que ia ter à sala do refeitório quando a orquestra deu o sinal de uma quadrilha francesa.

— Por que tremes Rosinha? Tens alguma coisa por força!

— Tenho medo da música, minha madrinha — volveu ela, abrindo a boca em um sorriso melancólico.

— Queres dançar esta quadrilha?

— Não.

— Ora!

— Nem sei o que sinto, parece mesmo que não estou boa!

— É o terror pela admiração que causas hoje aqui, faceira!

Rosinha abriu o leque e volveu os olhos para a sala. Os pares da quadrilha tomavam posição com a disciplina imprescindível que a elegância impõe aos seus adeptos. Havia falta de uma contrafigura.

Rosinha, silenciosa, deixava o leque pairar sobre o seu seio alvo, como a asa da borboleta que refresca o cálice de uma rosa.

Um cavalheiro aproximou-se às duas senhoras. Era um rapaz de 25 a 26 anos, de olhar penetrante e semblante enérgico. Dirigiu-se à milionária, beijando-lhe antes de tudo a mão enluvada, com um aprumo digno de figurar na galeria da regência francesa.

— Serei tão feliz que minha tia me aceite para par desta quadrilha? O Couto está furioso; não tem vis-à-vis. Olhe!

— Ah! só por isso que você me convida?

— Que idéia, minha tia! Desde o princípio da soirée só pensei em ser seu par em duas quadrilhas, uma polca e três valsas inglesas.

— Tá, tá, tá!... Pois agradeço-lhe muito a fineza senhor meu sobrinho!

— Não aceita!

— Propriamente não; mas resgato a minha recusa oferecendo-lhe coisa melhor.

Por um naturalíssimo movimento encontraram-se os olhos do moço e os olhos da filha de José Paz.

O cavalheiro saudou-a. Rosinha correspondeu ao cumprimento enleada e confusa.

— Meu sobrinho Adriano Carvalhal! Minha afilhada Rosinha!

Foi a apresentação feita com a mais gentil graça pela dona da casa.

A orquestra deu princípio à quadrilha. O Couto impacientava-se no meio de uns colarinhos altíssimos, Adriano arqueou cortesmente o braço, onde a mão da menina descansou timorata como o pé de um pássaro no poleiro de uma armadilha.

Rosinha pouco entendia dos hábitos excepcionais do mundo elegante, o grande mundo, assim chamado para distinguir-se do... pequeno, talvez. Ela freqüentara algum tempo as aulas de um bom e austero colégio de irmãs de caridade no Recife, bairro da Boa Vista, onde aprendera com extrema finura de espírito os simples rudimentos da educação feminina. José Paz tanto resmungou, tanto gesticulou, tantas revoluções proporcionou aos ouvidos e aos olhos da comadre, que a menina saiu do colégio, e foi esconder a sua formosura nas frescas paisagens do torrão natal. Ali a vê-la a madrinha; e daí vinha ela raras vezes ao Recife, acompanhada sempre pelas despedidas casmurras do pai.

— Agora veja lá, comadre, se a acostuma na lordeza um ano inteiro!

— Que quer dizer com isso, compadre?

— Quero dizer, com perdão de V. Mcê., que a pequena nasceu debaixo da palha, e que a vista da riqueza dos grandes pode tontear-lhe a cabeça!

— Ora, não diga asneiras.

Quando Rosinha estendeu a mão ao cavalheiro na primeira figura da contradança, sentiu um suor frio orvalhar-lhe a espádua ardente. Há que tempo não dançava ela!

Muitos meses antes, no Jordão, um tal Chico valente (perdoa-me, valente, se não te escrevo o apelido com letra maiúscula!) arranjara um baile em casa, para comemorar não sei que fausto aniversário, que terminou por um rasgadíssimo samba. Dançou-se quadrilha nessa ocasião. Quadrilha acompanhada a guitarra, a maracá, a violão e a clarineta! Uma clarineta que teve o estupendo poder de inventar uma porção de notas desconhecidas, na música, até hoje!

Mas a mulher sabe por instinto dançar, como a ave sabe voar, e o peixe cerzir a água com as ariscas barbatanas!

Quando o poder criador arrancou da entranha da terra o diamante, ordenou-lhe "Brilha!" À flor: "Perfuma!1' Formando o homem, disse-lhe: "Ama!" Criando a mulher, exclamou: "Dança!"

Rosinha deu por terminado o intróito da quadrilha, respirando sofregamente como alguém que escapou de afogar-se, e que volta à tona da água. No entanto dançava com a mesma ternura e mimo com que o cisne retalha a onda tranqüila, e um casal de andorinhas procura-se, espreita-se, persegue-se, e beija-se no éter transparente.

Um jornalista que estava a um canto da sala tomando notas traçou a seguinte, esmerando-se no corte da letra:

"Toalete branca de tule; pérolas ao pescoço e nos braços; olhos profundos como a noite, graça de Vênus na dança; movendo o talhe e derreando meigamente a eloqüente cabeça".

Salvo o estilo, o jornalista saiu-se perfeitamente no retrato da princesa do baile. É a frase habitual.

Adriano bebia os perfumes daquela basta e escura cabeleira, estremecendo e aspirando.

Era um rapaz de espírito; falava pelos cotovelos, e tinha uma maneira especial e atraente de interpelar as damas em geral. Ao pé de Rosinha, Adriano ficou mudo como as esfinges de faraó!

A filha de José Paz pedia aos santos de sua devoção que fizessem o milagre de encurtar-lhe o suplício da quadrilha. Toda vez que a música forçava-a a sujeitar-se às regras geométricas da dança, a menina cobria-se de uma fugitiva palidez, substituída imediatamente pelas chamas carmíneas do enleio virginal.

As senhoras que formavam o quadro da quadrilha devoravam-na com olhos de Juno encolerizada. Nem as via sequer a filha de José Paz!

Afinal Adriano Carvalhal, depois de uma tremenda luta com a consciência, que o acusava de imbecil, dirigiu a palavra ao seu formoso par:

— É a primeira vez que a vejo aqui — murmurou ele, como um colegial medroso.

— Em soirée — articulou Rosinha, apalpando uma por uma as palavras indecisas — é a primeira vez que eu venho à casa de minha madrinha. Estive aqui, há dez meses, pouco mais ou menos, no dia em que se casou d. Florinda; mas não se dançou nessa noite.

— Ah! No dia do casamento de minha tia? Eu também estava longe por esse tempo. Hoje é que lamento a minha involuntária ausência!

A filha de José Paz aventurou por sua conta e risco algumas perguntas vagas:

— O senhor foi o sobrinho de minha madrinha que fez uma viagem...?

— Ao Ceará? Justamente. Mas por mais que percorresse aquela formosa província, não me lembra de ter encontrado olhos iguais aos que me deslumbram hoje!

A filha de José Paz, sem compreender o sentido daquelas artificiosas palavras, olhou profundamente para Adriano.

O turista mordeu a ponta do bigode, e abaixou os olhos, confuso.

Estava acabada a quadrilha. Rosinha aceitou o braço do cavalheiro e ambos cruzaram por algum tempo o iluminado salão.

Deram de rosto com a milionária que discutia modas com uma professora das irmãs de caridade.

— Então? — exclamou a tia de Adriano, sorrindo à afilhada. — Como te sentes agora, má?

Adriano acudiu imediatamente:

Rosinha estremeceu, e respirando com uma doçura encantadora:

— Incomodada, não; mas não me sentia bem nesta sala. Parecia-me que a luz incendiava-me, e as flores me sufocavam!

— Oh! Mocidade! — interrompeu a milionária, batendo com o leque no ombro nu da afilhada. — Caprichos que passam!

— Realmente — volveu Adriano Carvalhal -, faz nesta sala um calor insuportável. Não será possível, minha tia, darmos um passeio pelo terraço?

— Tanto é possível, que quase todas as senhoras lá estão. Leve a Rosinha; leve-a. Vá, minha flor! Reparem no efeito das arandelas de cor sobre o jardim!

— A senhora é uma fada, minha tia!

— E tu és um lisonjeiro, meu sobrinho. Que queres? É o privilégio da velhice: encantar por intermédio de fantasmagorias, já que a realidade afasta do rosto o encanto verdadeiro!

— Queixa-se por ter hoje 20 minutos mais de idade?

— Bom, bom, deixemo-nos de denguices. Mal sabe você que o elegante par que lhe dei conta na presente hora... Oh! Acertei: são dez horas e meia, justamente a hora em que ela nasceu!

— Minha madrinha! — exclamou a menina, acesa em rubores.

Adriano Carvalhal embebeu a vista ansiosa nos olhos trêmulos de Rosinha. Estava formosa a filha de José Paz, formosa e suave, como um raio de lua no seio de uma rosa.

Foram ao terraço. O terraço dava sobre o sítio, em cujas árvores ondulavam aos afagos do vento noturno miríades de lampiões furta-cores. O céu, recamado de estrelas, estendia-se como um tapete ideal aos soberanos passos da lua serena e melancólica.

Várias senhoras e cavalheiros, de bruços no encosto de pedra, conversavam entre risos, adejos de leques e momos graciosos.

Adriano Carvalhal conduziu Rosinha a uma parte mais solada do terraço, e aí ficaram ambos por alguns momentos a contemplar as irradiações da noite.

Adriano sentia-se fascinado. O poder daquela ingênua formosura, meio selvagem e meio civilizada, saqueava-o por todos os lados.

Onde estava o dândi dos salões, o elegante dos passeios, o turista corajoso e insaciável! Chegara a sua vez de compreender o símbolo de Hércules fiando aos pés tentadores de Onfália.

A noite entornava entre ambos o seu tesouro de harmonias, de provocações, de delírios magos e insensatos. Ouvia-se perto do terraço suspirar a água do repuxo, e na escuridão das moitas os grilos chilreavam monótonos e tristes. Rosinha lembrou-se do Jordão, de seu pai, do seu quartinho alvo e pobre, de suas camaradas da margem do rio, e debruçando-se no paredão, embebeu os olhos aclarados pela lua no mistério que cercava os tranqüilos arvoredos.

— Que bela noite! — dizia Adriano com a voz lenta e inspirada. — Noite da poesia! Noite do amor! Noite da mocidade! Dir-se-ia que as almas dos que amaram em vida transformaram-se em raios de estrelas e raios de lua, para ensinarem aos que vivem o sagrado romance do amor!

Rosinha pendeu para o lado de Adriano Carvalhal o ouvido atencioso, e começou a embalar-se, como uma garça, nas vagas melodiosas das palavras dele. O moço prosseguiu:

— Não sei se todos sentem o que eu sinto nestas noites tranqüilas e luminosas. A noite é para mim um livro encantado, onde minha alma aprende a ler os mistérios do mundo desconhecido. Que voz humana reproduz os sons magoados do vento nas ramas espalmadas do arvoredo? E o murmúrio da água? Não se assemelha ao rumor indizível de palavras celestes, que nos convidam a amar e crer na ventura, embora fugitiva, da existência?

Os olhos de Rosinha banharam-se em clarões ideais; todo o seu ser tremia subjugado por um peso doloroso e doce ao mesmo tempo. A lua derramava ondas de leite e de luz no regaço da noite amorosa.

Ressoou no salão da festa o clamor apaixonado de uma valsa.

Rosinha ergueu a fronte, como se fora livre de um pesadelo cruel! Estava pálida, e de sua pupila negra jorravam deslumbrantes raios.

— Não valsa? — perguntou ela a Adriano.

— Impacienta-a a minha companhia?

— Oh! Não! Não é por isso!

— Gosta da valsa?

— Eu? Muito; mas não sei valsar.

— Impossível!

— Pergunte a minha madrinha. Se o senhor soubesse o que eu senti, assim que ouvi tocar aquela música, ainda agora!

— Diga-me!

— Nem eu sei explicar a mim mesma! Parece que criei outra vida, e que ao mesmo tempo a morte agarrou em minhas mãos. Veja.

Adriano Carvalhal escondeu entre as suas a mãozinha da menina, palpitante e fria como o gelo.

— Que bonita noite! — acrescentou ela afastando as mãos e voltando-se para o céu.

— Noite para o amor

— Noite para a saudade!

— Tem saudades?

— Que quer que lhe responda, Deus de misericórdia, se eu mesma pergunto ao meu coração o que isto é!

E ocultou o rosto na seda entreaberta do leque.

A milionária entrou no terraço nesse momento

Rosinha mudou bruscamente de posição, sentindo no ombro a mão de sua madrinha.

— Que tens, Rosinha?

— Dores de cabeça minha madrinha, Más isto passa!

E estremeceu, recebendo o choque elétrico da vista de Adriano Carvalhal.

— Venham para a sala. Não tarda a ser servido o chá.

Adriano disse a Rosinha perto da sala:

— Volta amanhã para o Jordão?

— Volto.

— De manhã ou à tarde?

A dona da casa acudiu a estas últimas palavras:

— Que é lá isso, minha rica? Amanhã passamos juntas o dia em Caxangá!

Adriano teve um lampejo de alegria.

— E papai, minha madrinha?

— Pois eu não o preveni? Só no trem das oito horas, depois de amanhã, é que partes. Irei contigo.

Durante o resto da noite, Rosinha não dançou mais uma quadrilha. Adriano Carvalhal imitou-a, apesar dos rogos e das maliciosas ameaças da tia.

No dia seguinte, em Caxangá, correu tudo às mil maravilhas. Rosinha, porém conservou-se triste, sem saber por quê, triste como se o luto houvesse invadido os límpidos domínios de sua alma.

A madrinha indagou curiosa da causa daquela tristeza.

A menina sorriu melancolicamente, e respondeu ao acaso:

— Lembranças do Jordão! A noite, igual à da véspera, desceu cheia de aromas, de estrelas e de encantadores mistérios.

Adriano Carvalhal perguntou-lhe se estava arrependida de ter vindo ao Recife.

— Estou.

O moço contemplou-a surpreendido.

— A sua história de ontem me fez mal. A história das almas que voltam para ensinarem a gente a amar e a crer na felicidade!

Quando Rosinha chegou ao Jordão, José Paz já ardia de impaciência. Recebeu a comadre e a filha com ar carrancudo e porte brutal.

— Aqui lha trago. Fez figurão!

— Faço idéia!

— Dançamos toda a noite!

— Pois tu também dançaste?!

— Uma quadrilha só, meu pai, para fazer a vontade a minha madrinha,

A fronte de José Paz desenrugou-se um pouco, e das narinas empoladas saiu-lhe a respiração ofegante e larga.

A tarde a milionária despediu-se da afilhada e do compadre:

— Adeus, Rosinha. Adeus, compadre!

— Até, comadre, até!

— Até breve, se Deus quiser!

— Com a ajuda de Maria Santíssima!

Quando o comboio partiu era ave-maria. O céu argenteava-se aos primeiros clarões da lua.

Rosinha estava pensativa e muda, José Paz olhou-a entre as duas pupilas, e:

— Tiveste uma saudadezinha do teu velho, lá naquelas festanças da cidade, minha filha?

Rosinha abriu-lhe os braços, e atirou-se-lhe ao peito chorando convulsivamente.

José Paz, admirado, levantou a cabeça da filha e quis certificar-se de que realmente eram lágrimas que lhe banhavam o rosto.

— Mas tu nunca choraste assim, menina! Que diabo de feitiço é este?!

Os soluços e as lágrimas redobraram de intensidade. José Paz carregou o sobrolho e dirigindo os olhos para as bandas do Recife:

— Ah! Senhora comadre! — disse ele consigo. — Parece-me que você já está me começando a perder a pequena!

A alma de Rosinha sobressaltou-se daí por diante, mais de uma vez, com a lembrança da noite da festa. Os rumores da música, o cheiro das flores e o cheiro das cambraias roçagantes, o fulgor vertiginoso das luzes, todo o romance provocador do baile e dos salões abria-se de par em par ante os olhos estáticos do seu coração virginal.

No recato sossego do humilde quarto do Jordão ela procurava debalde sufocar os gritos da recordação pungente e deliciosa que a atormentava sem cessar. Era uma luta tremenda em que o seu espírito estorcia-se ofegante.

Os luminosos fantasmas daquela noite do delírio e do prazer vinham reclamar à cabeceira da menina uma lágrima ou um sorriso de sincera reminiscência.

Ela abria a janela da alcova, debruçava-se febril, como se quisesse atirar-se à estrada deserta, e embebia os olhos abrasados nos nevoeiros esparsos.

— Meu Deus! — exclamava, unindo ao seio as mãos palpitantes. Isto não acabará nunca?

José Paz recebeu em sua alma, como um choque imediato, a melancolia da filha. Ficou sombrio, mudo, intratável, ele que era a tagarelice em carne e osso!

Foi aos Prazeres onde tinha negócio a tratar, e quando passava em frente à capela, viu no adro o vigário da freguesia.

José Paz cortejou-o humildemente.

— Por aqui, sr. José? Isto é volta de negócio, hein?

— É verdade, sr. vigário. Vendo falar com o Manuel do Ó a respeito de umas tábuas de pinho que me encomendaram dos Duros.

— Chegue-se, homem, chegue-se. Que cara é essa? Pareces-me assombrado! Tem te ido mal a vida?

O vigário era um homem repolhudo, sincero e de excelentes qualidades intelectuais. O povo dos arredores e da freguesia adorava-o e recebia-lhe as palavras como bálsamo para todas as dores.

É fora das cidades que ainda se pode encontrar hoje o verdadeiro culto e o sagrado respeito que o povo consagra aos sacerdotes de Cristo.

Em abono da verdade, declare-se já que o padre da roça, ou cingindo-nos à gíria do norte, o padre do mato, com dificuldade poderá conseguir ser mau entre as ovelhas do seu rebanho. Dir-se-ia que a solidão e os costumes inocentes desses lugarejos são incentivo profundo para a religião e para o comércio espiritual dos pastores da Igreja com os sentimentos de caridade, pobreza e santidade, impostos pela doutrina de Jesus.

Fiéis vivem ali em face da natureza brutal, virgem, robusta, cheia de divinos murmúrios e lampejos misteriosos, como os primitivos anacoretas no oásis do seu deserto, com a alma aberta às irradiações do céu e aos saborosos favos da meditação.

O crime refugiado nos centros das faustosas capitais deixou em invulnerável tranqüilidade o campo, onde se manifesta a plena luz a onipotência da virtude e a virtude da religião.

E, depois, tudo por lá explica a harmonia desse calmo poder, que faz girar a Terra tumultuosa, que acende o facho eterno dos astros, e derrama no cálice das flores a gota de orvalho e a gota de ambrosia.

Crescem as árvores sem tropeços nem estufas, salta do botão a rosa livre do monstruoso enxerto, deslizam as fontes, à vontade, entre as gramas verdes e por baixo das lianas virgens que se entrelaçam, jorram as cachoeiras, espalmam-se as ramas, suspiram as aves e cruzam-se no ar as borboletas de ouro, sem que a mão do botânico, a sanha do naturalista assassino, estorve-lhes o caminho, mude-lhes o rumo, corte-lhes as raízes, arranque-lhes as penas e cosa-lhes as asas independentes!

Como não ser religioso, não ser bom, não ser puro e nobre, cercado de tanta pureza e de tanta liberdade?

José Paz aproximou-se ao vigário, descobrindo-se com o mais infantil respeito.

— Então? Não me respondes, homem? Estás com a cara amarrotada hoje!

— Nem sempre a gente é feliz, sr. vigário!

— Conta-me lá as tuas infelicidades, anda. Senta-te aqui.

Acondicionou-se o padre sobre o musgoso paredão que rodeava o adro, e acenou a José Paz que fizesse o mesmo.

— Obrigado a Vossa Reverendíssima. Eu pouco me posso demorar. Ainda quero voltar com dia ao Jordão.

— A propósito, e tua filha?

José Paz devorou um retumbante suspiro.

— Vai de boa saúde, graças a Maria Santíssima.

O padre fitou lentamente o semblante carrancudo do matuto.

— Ora vamos, sr. José; você alguma tem que me esconde.

— Eu!

— Sim, você. Suspirou falando em sua filha de maneira a fazer-me acreditar em alguma coisa má que lhe tenha acontecido.

— Pois aí vai, sr. vigário. Pão, pão, queijo, queijo.

— Desembucha, homem!

— A pequena foi há poucos dias a uma... uma, não sei o que, um baile, parece-me que se chama também baile, no Recife, em casa da madrinha.

— A tal senhora rica?

— Isso mesmo. Eu teimei em não deixá-la arredar pé de minha companhia; mas Deus quer, Deus manda, o depois eu devo favores a comadre!

— Sê grato que o céu te agradecerá.

— Foi-se ao tal baile a menina, e voltou-me triste, que é mesmo de espantar a gente. Leva as tardes inteiras sem tugir nem mugir, ora lendo em um livro, ora revirando os olhos para o céu.

— Que lê ela com tanto interesse?

— Disso não entendo eu, sr. vigário. Mas a pequena foi sempre amiga de livros, e me parece a mim...

— Parece-te a ti, toleirão, que deverias ter proibido essas leituras, que nunca trazem ventura aos espíritos fracos e às almas vacilantes. Queima-lhe todos os livros.

— Oh! Sr. vigário!

— Queima-lhe os livros; é o primeiro passo para a salvação dela, e em seguida... mas tu não o farás!

— O quê?

— Não a deixes passear muito pelo Recife, nem figurar em casa de gente rica. A moça pobre, José, só possui a sua virtude que é o seu dote e a sua salvaguarda. Os bailes quase sempre são os inimigos da virtude!

José Paz deu um salto mortal, e fez-se da cor da cera.

— Não me compreendeste, homem. Tua filha é menina inteligente sagaz e delicada; conheço-a perfeitamente, e mais de uma vez lhe ministrei com as minhas mãos o doce corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se ela fosse uma brutinha, eu nada te diria; porém as relações com a madrinha, o tempo de colégio, e mais do que tudo, a sua finura de inteligência, ser-lhe-ão de pouco amparo, desde a hora em que o inimigo começar a fazer das suas!

— Vou queimar os livros todos!

— Estas tristezas dela têm por origem a idade e o melindre de sua natureza especial.

— Oh!

— Que é lá?

José Paz ia dar saída à palavra, e estacou de súbito.

— Fale! Fale, sr. José Paz, que fala com um amigo.

O matuto abaixou a voz:

— Rosinha trouxe uns vestidos, que a madrinha lhe deu, e umas bugigangas esquisitas.

— Incomoda-te isso?

Os olhos de José Paz fulguraram como as asas de um vaga-lume.

— Vou queimar tudo! exclamou ele vitoriosamente.

— Nada de bestidades, José!

— Nem bestidade, nem meia bestidade, sr. vigário! Ainda ontem estava a pequena a botar uns olhos tristes por cima do vestido estendido na cama, que fazia dó, O tal vestido cheio de requififes e trapalhadas com que ela foi ao baile da madrinha!

— Isso é próprio da idade, homem! Deixa a pequena. Em se tirando à mulher o vestido, é o mesmo que aparar as asas de um curió! O vestido é a asa dela!

— Por isso — replicou José Paz sentenciosamente — não é preciso que ela voe!

O vigário riu-se da saída do matuto, e pondo os olhos no horizonte, onde se aglomeravam com instantânea rapidez nuvens sobre nuvens:

— Vá tratar dos seus negócios, vá, José, que não tarda por aí algum chuvisco forte. Deus o guarde, e também à pequena.

— Amém, sr. vigário, e a Vossa Reverendíssima por muitos anos.

José Paz despediu-se do padre e já distava uns 20 passos do adro, quando o vigário o chamou de novo.

— Não faça asneiras José! Com bons conselhos e carinhos é que se levam as almas delicadas. Se tu entornas o caldo!

— Vossa Reverendíssima sabe quanto eu quero àquela filha; é a menina dos meus olhos e o sangue de minhas veias. Mas...

— Mas o quê? Acaba!

— Mas queimo-lhe os vestidos! Lá isso queimo!

E dobrou a encruzilhada que o conduzia à casa do Manuel do Ó.

O vigário gastou alguns momentos a contemplar a viagem ondulante das nuvens, que corriam para o poente.

José Paz chegou ao Jordão pela volta das sete horas; era noite fechada e a tempestade, que de todo havia desaparecido, fora substituída pelos meigos suspiros da aragem noturna e pelo revérbero dos astros no firmamento tranqüilo.

Rosinha estava à janela do seu quarto quando o pai bateu à porta.

José Paz entrou pensativo na pequena e pobre casa de sua residência. Deu a mão a beijar à filha e sentou-se com estrondo em um velho banco, que gemeu amedrontado.

— Falou com o Manuel?

— Falei, mas não se arranjou nada. Ando agora na maré das caiporas!

— Por que diz assim meu paizinho?

A menina enrolou os braços no pescoço do matuto, e encostou-lhe à barba hirsuta o rosto perfumado.

José Paz estremeceu, vítima de um ataque de ternura e com a mão livre acariciou a onda dos cabelos negros da menina, desmanchados sobre as costas virginais.

Imediatamente, porém como se fora mordido por uma cobra traidora, ele afastou de si Rosinha, e levantando-se de repente:

— Tu me queres fazer uma coisa que vou pedir?

A menina contemplou-o pasma.

— O que é?

— Está uma noite que faz gosto, e na porta do Chico há gente muita. Eu vou lá dizer que te venham buscar para um passeio.

— Mas meu pai..

— Vives aqui metida agora, que é um agouro tal e qual! É bom saíres, tomar ar, respirar à farta. o próprio sr. vigário...

— Que tem o sr. vigário? — acudiu Rosinha de minuto em minuto mais admirada.

— Nada; com o sr. vigário a coisa é outra. Fazes-me a vontade, não fazes?

— E vosmicê também vem?

José Paz recuou dois passos como se o apanhassem em flagrante delito.

— Eu não! Eu fico! Preciso ficar mesmo!

— Para quê?

— Ai! Ai! Isto é muito perguntar, minha dona.

— Só, não o deixo.

— Para ir ao Recife com tua madrinha me deixaste!

— Papai!

— Para ir ao baile da madrinha também me deixaste!

— Mas...

— Para dançar com o diabo também me deixaste!

— Não fale assim, meu Deus!

José Paz estremecia vivamente e o suor gotejava-lhe da cabeça descoberta.

— Portanto — terminou ele com voz firme e as sobrancelhas torcidas -, hás de fazer-me o favor de me deixar agora também!

E saiu arrebatadamente de casa.

Duas ou três raparigas do lugar, que estavam à porta do Chico valente, vieram buscar Rosinha.

A menina envolvera-se em um xale e esperava o resultado das extravagâncias paternas. O que seria aquilo? Por que motivo José Paz teimava em ficar só em casa naquela noite? Rosinha perdia-se em um dédalo de suposições impossíveis. Quando ela saía no grupo das raparigas, José Paz entrava em casa e fechava-se hermeticamente por dentro.

O matuto não dava para ladrão, decididamente.

Ao penetrar no quarto da filha as pernas oscilavam-lhe, como um mato de bambus fustigados pelo vento norte. Os olhos mexiam-se-lhe nas órbitas, à semelhança de duas quase extintas brasas, que de vez em quando desprendem um fugitivo clarão sanguinolento. Parou, prestando ouvido aos rumores suspeitos. Mas apenas a aragem nas árvores e o som flébil das vozes afastadas turbavam o repouso da noite. José Paz criou coragem, e abriu com a mão febril o baú da filha.

O quarto estava às escuras; por precaução o matuto apagara o candeeiro e o velho lampião, únicas luminárias dos seus domínios. Foi pelo tato que ele se aventurou entre as cassas, crivos e chitas do pobre guarda-roupa da menina. Apalpou nos cantos do baú, e seus dedos curvos arranharam a capa de cinco ou seis livros. Era a biblioteca de Rosinha: o Simão de Nantua, o Tesouro de Meninas, Paulo e Virgínia e outras produções da musa inocente e simples. O larápio, que descobre um saco de moedas, não exala suspiro de maior satisfação do que o que rugiu nas cavernas do peito de José Paz. Apertou nas mãos frenéticas os livros e uniu-os ao seio úmido e agitado.

Com a outra mão pôs-se a reconhecer de um a um os vestidos da filha.

O primeiro que caiu-lhe nas garras foi o da soirée do Recife. Era ele, era ele com toda a certeza! Aquela doçura da cambraia, as rendas e o perfume, até o perfume guardado nas flácidas dobras, como uma pura recordação!...

Os dedos nervosos fizeram do vestido uma trouxa brutal e o arrancaram do baú violentamente, enquanto um grito de prazer voava da garganta de José Paz. Depois do vestido, o lenço bordado, os laços da cintura e dos ombros, as botinas de cetim e o leque tiveram o mesmo destino impiedoso.

José Paz fechou cautelosamente o baú, e dirigiu os passos trôpegos para fora do quarto. O latido de um cão na vizinhança fê-lo parar trêmulo no limiar como um malfeitor surpreendido A respiração assoviava-lhe através das úmidas narinas.

Carregado com o leve fardo, chegou à pequena cozinha e tirou da janela uma acha de lenha inflamada. Sacudiu-a no ar, e as chamas estalando com a resina do graveto aclararam o compartimento. A porta da cozinha dava para uma espécie de quintal, um terreiro despido de árvores, em cujo fundo corria uma parte da mata espessa.

Lançando ao meio do terreiro os vestidos e os livros José Paz tornou à cozinha e arrebanhou uma multidão de galhos secos e rolhas de cajueiro. Voltou de novo ao lugar onde deixara a pilhagem e, ajuntando em um molho compacto os galhos e as folhas, aproximou-lhes a chama do graveto. Repentinamente as labaredas da fogueira contorceram-se na pálida escuridão.

De joelhos, defronte das chamas, José Paz quis saborear por partes distintas, como um bom bebedor, gole a gole, a sua vingança e os resultados agradáveis de sua desafronta paternal. Lançou nesse novo auto-de-fé os livros em primeiro lugar, um por um, rasgando-os as folhas purificadas pelos olhos da ingênua leitora.

Quando se faziam em cinzas os volumes do Tesouro de Meninas, ele exclamava, batendo palmas e soltando uns uivos de alegria lupina:

— Queima-te, diabo! Queima-te, cão! Arde p'raí, tinhoso de uma figa!

Sucedeu ao Tesouro de Meninas o proverbial Simão de Nantua, a este o mimo de Bernardino de Saint-Pierre, e assim por diante. José Paz saboreava o estrago com o entusiasmo dos inquisidores espanhóis nas suas piedosas vinganças,

Chegou a vez do vestido e das restantes vítimas.

O leque abriu o caminho. As elegantes varetas de sândalo racharam-se ao primeiro contato do fogo.

Um meigo perfume elevou-se em espiral da chama azulada, como o incenso da formosura, o incenso do amor, o incenso da mocidade!

As botinas arderam com uma velocidade espantosa, José Paz, alegríssimo, alegríssimo e rubicundo, ia lançar à fogueira o vestido quando bateram repetidas vezes à porta da casa.

A mão erguida continuou a sustentar longe da chama a alva túnica, que o vento afagava como afaga a nuvem e as espumas.

As pancadas na porta reproduziram-se com mais vivacidade. José Paz, atordoado e confuso lançou à fogueira o vestido e correu à casa, Sem pensar sequer em desmanchar os vestígios do seu crime, o matuto puxou os ferrolhos da porta.

Era Rosinha.

— Que escuridão! — disse ela.

José Paz conservava-se calado.

Nesse momento abriu-se na fogueira mais larga labareda que refletiu até a estrada.

— Que luz é esta?! — exclamou Rosinha admirada. — Que vem a ser este fogo?

E correu à cozinha. José Paz seguiu-a como o perdigueiro segue as pistas do caçador precipitado.

Rosinha viu a fogueira no terreiro e dirigiu-se para lá. Voavam lutando com o incêndio alguns pedaços da cambraia e das rendas. Duas ou três capas de livros, torcidas e negras, feriram os olhos da menina que duvidou do que via.

— O que é isto, meu pai?

— Queimei tudo! Tudo! — bradou José Paz, com um grito de entusiasmo... — O teu vestido, a ventarola, os livros, os sapatos, tudo o que te estava tirando o sono e fazendo-te ficar triste à toa!

— Mas está doido, Deus do céu!

José Paz ria-se freneticamente e agarrando nas mãos geladas da filha:

— Já o demônio não te há de tentar mais, nunca mais, nunca mais! Foi o vigário quem me ensinou o remédio!

Os negros olhos de Rosinha acompanharam os derradeiros fragmentos de cambraia, que a aragem roubava ao fogo e perdiam-se na escuridão da noite.

A milionária não pôde suportar por muito tempo a ausência da afilhada. Grande amor que lhe tinha? Sinceros desejos de fazer venturosa aquela gentil menina, tão digna de pisar as sodas da opulência e sentar-se aos fartos banquetes da felicidade?

Não sei, nem é da minha competência entrar nesses labirintos femininos de onde raramente consegue o curioso salvar-se com munições e bagagens. A alma humana é enigmática, e a alma da mulher é incompreensível. Um capricho, um simples capricho, às vezes, decide do futuro dessas criaturas adoráveis e adoradas, a cujos pés espalhamos com o mesmo sorriso, a mesma crença, as mesmas aspirações, as flores da mocidade e os tesouros da velhice.

A comadre de José Paz já não pertencia à elegante falange das rainhas da sociedade, cujo leque tem mais força e soberania do que os cetros reais.

Ela ia declinando como um belo dia de verão, e por seu rosto, outrora encantador, estendiam-se lugubremente as névoas do crepúsculo e o frio da noite.

Passara essa senhora a sua mocidade derramando com prodigalidade espantosa pelos salões e pelas festas inebriantes todos os momos da faceirice e todas as gentilezas da mais tentadora filha de Eva.

No Recife era altamente considerada, e o seu nome ocupava um dos primeiros lugares nos arquivos da sociedade do fino tom.

Ninguém melhor do que ela passeava sobre o tapete das salas as deslumbrantes toaletes, e Celimena invejar-lhe-ia o manejo do leque palpitante.

Foi a dama, a princesa. a leoa dos bailes pernambucanos. Reservo o seu nome na mais secreta página da minha carteira, por não me ser dado estampá-lo em um escrito que será lido com certeza por... 15 a 16 pessoas!

A milionária amava Rosinha. Por impulso espontâneo de coração, por originalidade, por excentricidade, por extravagância mesmo, se admitirmos a palavra, mas amava sobejamente a formosa filha de José Paz.

Rosinha fazia-lhe o efeito das flores franzinas e débeis que crescem à sombra da árvore protetora.

Ela sentia um certo orgulho, uma louvável vaidade em amparar aquele meigo fruto do mato, que veio por acaso medrar à sombra de sua fortuna. Não era unicamente a amizade que a impelia aos braços de Rosinha; era, mais do que tudo, o desvanecimento, o entusiasmo promovido pela prática das ações generosas.

Este é o segredo da alma da mulher; a mulher ama ou odeia; não há meio termo. Dentro desses dois sentimentos transparece por vezes a vaidade, espécie da meia tinta, meio clarão e meia sombra para a harmonia do quadro.

Rosinha tornou-se necessária à existência da milionária, como o cold-cream, o pó de arroz à la maréchale, a pedra transparente e o perfume do frangipane e do feno.

Era um fragmento de sua vida, de seus gozos, de seus devaneios, de sua personalidade até. Se lhe faltasse, a ela, à opulenta dama, aquele meio de expandir os seus recursos morais e monetários, morreria decerto.

Contam por aí as crônicas galantes a delirante afeição de senhoras de elevado merecimento social por coisas de pouco apreço. Uma expira vendo agonizar o seu king-charles predileto; outra encerra-se na mais profunda hipocondria pelo simples fato de ter o seu namorado extraído do rosto um par de suíças flamejantes; outra perde-se, porque através de sua vida futura distinguiu as fímbrias felpudas de um xale de casimira inglesa; outra, finalmente, engole duas colheradas de arsênico porque, no último baile a que esteve presente, sua rival granjeou maiores ovações do que ela, e foi geralmente considerada senhora de mais apurado gosto na toalete.

Era naturalíssimo, portanto, o amor da milionária pela afilhada; pelo menos mais simpático e honesto aos olhos do mundo superior.

Depois da soirée, várias amigas da ricaça perguntaram-lhe pela menina do Jordão.

— É bem bonita! — dizia uma.

— Não parece do mato! Tem um dégagé!

— Ela aproveitou-se um pouco das minhas lições — acudia a milionária orgulhosamente. — O que lhe posso garantir é que Rosinha é um anjo!

— Ou um demônio!

— Que diz?

— E então, minha amiga? As mulheres formosas são em geral a tentação da humanidade. Não me consta que os serafins tentem ninguém!

— Deixe-se de graças!

— Onde mora ela, mesmo? Em um arrabalde, não?

— Meia hora de viagem pela estrada de ferro. Sabe onde é os Prazeres?

— Seja onde for. É perto daí a casa de sua afilhada?

— É. Mora no Jordão.

— Bonito lugar?

— Qual! Uma miséria! Lugar de pobres!

— Logo, a sua Rosinha é a feiticeira do Jordão?

— Justamente, é uma feiticeira virtuosa, o que vem a ser raro. A senhora nunca foi por aqueles lados?

— Nunca. De Pernambuco só conheço o Recife, Olinda, e um ou outro arrabalde!

— Para uma elegante é quanto basta.

— Quando veremos de novo a sua afilhada?

— A todo momento. O pai é uma onça. Espuma de cólera quando lhe roubo por algumas horas a menina. Mas jurei aos meus santos fazer de Rosinha uma perfeita moça!

— Com tal mestra, nada é impossível.

— Ao menos no futuro dirão que eu servi para alguma coisa!

E a milionária sorriu com os seus 32 dentes cintilantes.

Era, pois, Rosinha, tema de diálogos espirituosos em plena capital. Ela, a flor do mato, o lírio escuso e recatado, a branda açucena do sertão, sujeita às analises picantes de um mundo artificial e hipócrita! Mas, desde a hora em que o pé da moça calca o tapete de um baile e volteia aos pérfidos afagos da orquestra, a sociedade apodera-se dela como a multidão de um livro impresso, que, embora traçado entre lágrimas, serve de tema, tanto ao estudo dos sábios como ao idiotismo dos imbecis.

Às nove e meia horas da manhã, a milionária chegava à porta da casa de José Paz. O matuto estava fora; Rosinha, que nessas ocasiões ficava sempre em companhia de uma velha mulher da vizinhança, correu a abrir a porta, conhecendo as pancadas, como o maçom as simbólicas palmas do templo.

A ricaça, rubra e abrasada, gotejava por todos os poros. A seda roçagante do seu vestido amoldava-se ao corpo em vastas nódoas, produzidas pelo suor e pelo cansaço.

Atravessou como uma avalancha o limiar da casa da afilhada, e caiu, antes deitada que sentada, em uma espécie de sofá ou jirau que havia na saleta.

— Minha madrinha!

— Ah! minha filha! Ah! minha filha! Que sacrifício! Que horror! Que calor desesperado! Eu morro!

— Venha para o meu quarto.

— Não; espera um pouco. Deixa-me respirar o ar fresco. Decididamente, se eu andasse um quarto de hora mais, morria!

— Que prazer me deu em vir cá! Tenho estado tão aborrecida!

— Vamos para o Recife. Queres?

Rosinha sorriu com ternura:

— Se eu pudesse!

— Ora essa! Quem te proíbe?

— Papai!

— Sempre queria ver isso!

— Olhe, minha madrinha — replicou Rosinha abaixando a voz -, há coisas que a gente custa a acreditar, mas... acontecem.

— Por exemplo?

— Meu pai ficou furioso desde o dia em que eu vim do Recife.

— Hei de perguntar-lhe! Deixa estar!

— Pelo amor de Deus, nada lhe diga. Aí está dindinha Paula que é capaz de contar tudo, quando ele chegar. Fale baixo!

— Vamos ao teu quarto então. Sinto-me mais aliviada. Safa! Que calor!

A distância da estação da Boa-Viagem ao Jordão é sofrível; uns 20 minutos de passo regular.

Habitualmente a milionária tomava um cavalo na estação, ou fazia o itinerário a pé com a fresca da tarde.

Naquele dia o ar abrasado acometera-a com toda a arrogância, e ela por infelicidade não pôde encontrar condução possível até a casa de José Paz. Por um capricho naturalíssimo afrontando o sol, a poeira e a fadiga, a milionária atravessara o espaço que a separava do Jordão, como se estivesse na Boa-Vista saboreando o panorama que da rua da Aurora se desenrola sobre o rio e sobre o mar.

Rosinha conduziu-a ao seu quarto, nu dos ornatos e galanterias, que formam o bem-estar das alcovas das moças em geral. Apenas na parede, mal caiada, viam-se duas imagens emolduradas toscamente: Maria Madalena e o Nascimento de Jesus.

Os lençóis da cama da menina é que luziam como corolas de lírio ou pendões de jasmins.

Um brando aroma de inocência, de malvas e de boninas enchia o compartimento. Sobre o lustroso tijolo do assoalho espalhavam-se pétalas de uma flor dourada.

— Andaste despencando flores, menina?

Rosinha sorriu docemente, cobrindo-se de um rubor ideal.

— Foi uma malmequer — disse ela, desviando os olhos. — Eu quis saber se seria feliz neste mundo!

— E então? — continuou a milionária excitando com delícias o enleio da gentil criança.

— Não hei de ser, não, minha madrinha. A última folha disse que não.

— Vem cá. Abraça-me. Quero-te cada vez mais e, com toda a certeza, hás de ser alguma coisa para o futuro!

Rosinha beijou a mão da milionária, e pendeu o ouvido para a janela escancarada do quarto. Chorava sobre uma pitombeira um sabiá da serra.

A menina pôs o dedo sobre o lábio, reclamando silêncio. Depois, cravou os risonhos olhos nos olhos da madrinha, e:

— Aquele sabiá — disse ela — cantava esta manhã quando eu desfolhei o malmequer, pensando em minha vida.

— Bom agouro então! Repara como ele dobra O canto! Olha! Olha! Bravo! Parece que estão derramando moedas de ouro dentro de um prato!

O sabiá terminou o melodioso gorjeio por uns trilos penosos e ternos.

— E agora! Veja, minha madrinha, veja agora! Este choro tão triste não será a imagem do meu futuro?

O sabiá abriu as asas e perdeu-se entre os galhos da mata obscura.

A milionária falou em teatros, bailes, toucados, e outras banalidades graciosas de seu mundo oficial. Rosinha escutava-a como um pássaro escuta as variações do Carnaval de Veneza em uma flauta saltitante. Eram harmonias novas para o seu coração ainda puro e ignorante; segredos e mistérios encantadores que a assaltavam, sem turbarem sequer o remanso angélico de sua alma peregrina!

O nome de Adriano Carvalhal entrou no diálogo.

— Ele fala-me de ti 24 vezes por dia.

— É um moço simpático — disse Rosinha, corando de leve -, o único — prosseguiu ela, para disfarçar o seu enleio — que eu conheci naquela noite.

— Posso-te garantir que é um rapaz distinto na extensão da palavra — volveu a milionária. — A propósito: o que dirá teu pai se ele cá vier?

— Aqui, ao Jordão?

— Sim.

— Oh! Minha madrinha, não caçoe!

— Por quê? Achas que isto é pior que a fortaleza das Cinco Pontas?

— Não, mas um moço do Recife pisar a cabana de um pobre! Nossa Senhora nos defenda!

— Pois ele pediu-me que eu o trouxesse. Até quis vir hoje mesmo!

— Oh!

— Pareces-me tola, Rosinha! Deixa as outras serem matutas; faz-te uma moça da cidade, que para isso te eduquei eu! Ora, não se viram! Esta senhora com vergonha de receber em sua casa um moço com quem dançou toda a noite! É falta de delicadeza, minha filha.

— Minha madrinha está me experimentando!

— Estou sim! Tens razão, estou te experimentando. Preciso indagar do que se passa por aqui, e eis o motivo por que falei em Adriano. Nem ele me disse nada!

Rosinha mordeu levemente o lábio.

— Ah! Não disse nada?

— Nada.

— Melhor. Que vergonha, meu Deus! Se seu sobrinho entrasse nesta casa!

— As melhores flores, meu bem, nascem nos mais rudes canteiros. Tu, Rosinha, és o bogarim do mato!

— Pobre de mim!

— Hei de trazer o Adriano um dia, ao Jordão!

— Pelo amor de Deus, minha madrinha!

— Ele é poeta e gosta dessas paisagens agrestes! Tu lhe aparecerás tal qual como estás agora; de cabelo solto e vestidinho de chita azul! A propósito: e o vestido que te dei?

Rosinha perturbou-se e volveu os olhos em redor de si. Tinha medo de mentir, a pobre rapariga! E ao mesmo tempo medo de denunciar as horrorosas sanhas de seu pai.

— Dei, minha madrinha.

— Hein?!

— Perdoa-me, sim? — acrescentou a menina beijando as duas mãos da velha elegante. — Foi um caso de esmola!

— De esmola!

— Uma menina dos Duros com quem me dou muito casou-se antes de ontem, e não tinha enxoval... A senhora não faria o mesmo?

— Tu és um anjo, mas um anjo que não deve viver no meio deste horroroso mato... Eu não dormiria descansada uma noite aqui!

— Com efeito!

Ouviram-se vozes na estrada. Rosinha reconheceu a de José Paz.

— Aí vem papai. Trate-o bem, sim, minha madrinha?

— Por que me pedes isso? Há alguma coisa contra mim?

— Esquisitices dele! Diz que minha madrinha só quer tirar-me de sua companhia!

— Toleirão!

— Quem lhe pede sou eu!

— Está bem. Não há remédio! O teu sorriso e os teus olhos, feiticeira, conquistam tudo!

José Paz não sentiu grande entusiasmo com a presença da comadre. Quando soube que ela viera apenas vê-lo e não roubar-lhe a filha, o matuto desenrugou a testa e desfranziu o sobrolho.

À tarde a milionária despediu-se, e foi, acompanhada por José Paz, esperar na estação a passagem do trem.

— Só muito amor por sua filha, compadre, me faz dar estes passeios!

— Eu sou um homem arreconhecido, comadre.

Chegando a casa, o matuto perguntou ansiosamente à filha se se tratara do vestido, do leque, e dos livros queimados.

— Eu disse — respondeu Rosinha, com certa impaciência — que tinha dado o vestido a uma noiva da minha amizade.

— Fizeste bem, filhinha. Dá cá um abraço!

As impertinências do matuto já atormentavam a menina. Mais de uma vez ela recebera o grunhido paterno com uma espécie de aborrecimento visível. Olhava para o céu e perguntava a Deus o motivo por que ele havia semeado tanta formosura e tanta pobreza, tanta falsidade e tanta fortuna no mundo.

Um dia recebeu Rosinha das mãos do criado da madrinha uma carta, em cujo sobrescrito lera o seu nome traçado por pena desconhecida.

O crioulo retirou-se, anunciando-lhe que viria buscar a resposta meia hora depois.

José Paz não estava em casa, e a velha companheira, a dindinha Paula, aproximou-se cambaleando.

— É uma carta de minha madrinha. Quer que eu vá ao Recife, mas vou responder-lhe que não posso!

Ela mentia a si própria, e o coração acusava-a pela primeira vez na sua vida, pulsando vivamente, a ponto de atordoá-la. Correu ao quarto; fechou a porta e abriu com as mãos vacilantes e geladas a carta misteriosa. Assinava-a o nome de Adriano Carvalhal.

“Tremo, escrevendo-lhe esta carta. Desde aquela noite da soirée, Rosinha (perdoe-me tratá-la assim), sua imagem me segue como a luz, como o ar, como o sangue, como a existência. Amo-a de toda minha alma; idolatro-a com todas as minhas crenças de mocidade.
Nunca mais se lembrou, não é verdade? Nunca mais se lembrou daqueles momentos venturosos que o céu me concedeu com uma prodigalidade indigna de mim.
As minhas palavras, o meu sentimento, as minhas aspirações, doce criança, correram sobre o seu coração límpido como as asas negras de um agouro, ou as negras asas de um crime.
Recorda-se da música, recorda-se dos vestidos, dos perfumes, das estrelas daquela noite, mas de mim? De mim é impossível que conserve uma lembrança, anjo da beleza e da virtude!
Mas eu adoro-te, Rosinha! Rosinha, eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!
Rosinha! Desfolho o teu nome na minha boca, e, sílaba por sílaba, o decoro como o faminto ou o sequioso de morte.
Quero ir lá vê-la um momento, um minuto, um segundo, um pensamento.
Responda-me uma palavra: diga-me: 'sim' e far-me-á feliz como se pode ser debaixo da misericórdia de Deus. Se não me escrever pronuncie a palavra, faça um simples aceno ao portador, e isso me bastará.
Creia que eu a amo, amo! Nem sei o que escrevo! Onde está a eloquência do amor, senão no fogo dos seus olhos, Rosinha, e na perturbação invencível de meu espírito?
Responda-me, alivie-me, salve-me! Eu aqui fico, trêmulo e assustado, como um malfeitor que espera a sua condenação ou a sua liberdade. Seja boa, tanto quanto é formosa.
De joelhos lhe peço: ampare-me e creia no meu amor.

Adriano Carvalhal.

”

O portador veio pedir a resposta. A menina lutou por alguns momentos, mas, enchendo-se de uma força heróica, exclamou:

— Resposta! Não tem resposta esta carta!

E; fechando-se no seu quarto, desatou em prantos e soluços com o rosto afogado nos travesseiros.

Adriano Carvalhal amava a filha de José Paz.

Era amor profundo o que ele sentia? Amor capaz de todos os sacrifícios, de todos os martírios e de todas as lágrimas de sua vida?

Adriano percorria nessa época a encantada floresta dos 25 anos, de cujas árvores transparentes rolam os pomos de ouro, e em cujos bosques sombrios e suaves a brisa desperta as notas da esplêndida sinfonia do amor.

A mulher começa a fruir os primeiros delírios da existência aos 15 anos; o homem aos 25. Balzac, que entendia catedraticamente dessas coisas, deu ao homem até a idade de Cristo os sabores da primeira mocidade, simples esboço do quadro futuro que representa a vida, e que não é mais do que o sintoma de uma vida posterior, denominada a experiência!

Adriano estava, portanto, na primeira mocidade: respirava a plenos pulmões o ar doidejante das quimeras e das ilusões robustas, em cujos braços fascinadores o espírito embala-se contente, e o coração adormece feliz como as gaivotas no selo esmeraldino das ondas.

Oh! Doce quartel da vida! Oh! Como tu passas ligeiro, ligeiro, deixando-nos apenas por lembrança as rolhas inúteis de alguma ilusão desfolhada! Com pouco satisfaz-se a alma aos 20 anos! Um olhar, um sorriso, uma promessa, e eis repleta a bagagem do coração viajante! A ventura nesse tempo cifra-se em se receber um perfume em troca de um desejo! Um juramento por uma lágrima! Uma lágrima por um sorriso! Um beijo, rápido e misterioso, por 20 horas de perigos, de tentações e de loucuras! Oh! Doce quartel da vida! Como tu passas!

Quando Adriano sentiu espelhar-se a princípio a imagem de Rosinha em sua alma, cuidou que aquilo era unicamente a recordação da formosura, leve e sutil como o reflexo dos astros e a facha do relâmpago! Meteu-se no turbilhão elegante e procurou desvanecer as torturas da sua memória, atordoando-se com o rumor das danças e a provocação das belezas.

Por toda a parte, porém, seguia-o, fiel como uma sombra, a deslumbrante imagem da menina, e dentro do seu coração turbado os olhos negros de Rosinha fulguravam como duas estrelas fatais!

Pediu uma vez à tia noticias da afilhada.

— Interessa-te muito, pelo que vejo! — disse a milionária deixando cintilar no sorriso a cauda serpentina da malícia.

Adriano perturbou-se um pouco.

— Interessa-me decerto. É uma menina graciosa na extensão da palavra.

— Sim! Só por isso?

— Ora, minha tia! Que pergunta!

— Nada mais natural, meu caro. Vocês são poetas, e os poetas não perdem o tempo em explorações...

— Termine a frase!

— Científicas. Tu ainda és poeta, parece-me! Li ontem no Diário uns versos assinados por teu nome. E diga-se logo: — que de uma paixão!...

Adriano sacrificou-se ao gracejo, manejando entre os dedos impacientes o castão de sua flexível bengala.

A milionária não dava tréguas nem quartel ao inimigo.

— É um anjo a Rosinha — começou ela, cravando os olhos em Adriano. — Se eu pudesse arrancá-la do seu maldito Jordão!

— Faça isso, minha tia — exclamou Adriano sem poder sufocar um ímpeto de prazer.

— Bravo, sim, senhor, muito bem! Estou vendo que a matutinha encheu-lhe o olho!

— Não torça os meus sentimentos, minha tiazinha. É a coisa mais natural do mundo simpatizar-se com aquela criatura tímida e deslumbrante como o raio do sol!

— Poeta! Poeta!

— E cabe à senhora, grande parte nos sucessos que sua afilhada adquiriu durante a noite! Só estas mágicas mãos, minha tia, transformariam a flor agreste em peregrina rosa!

— Com que trabalho, Adriano! — acudiu a milionária banhando-se nos êxtases da sua vaidade satisfeita. — Não imaginas sequer a luta que tenho travado com o Paz! É um homem de bons instintos, mas estúpido como um abacaxi! Adora a filha como o negro Otelo adorava a pobre Desdêmona. Amor furioso, cheio de ciúmes e de cóleras horríveis! A menina é um serafim do Senhor! Aquilo dobra-se a tudo, para tudo tem um sorriso e uma alegria. Suporta as sanhas do pai sem se queixar nem revelar no rosto o menor sinal de tristeza!

— O tal Paz é um monstro, pouco mais ou menos?

— É um esquisitão apenas. Cria aquela filha como o hortelão cria a couve-manteiga; o que ele deseja acima de tudo, é que não transformem o seu legume em flor delicada. Cada vez que Rosinha vem ao Recife, entra-lhe um espinho no coração. Ora vê lá como tenho sofrido — eu que sou essencialmente nervosa — com as extravagâncias desse lorpa!

— Infeliz menina! Tão digna de ser admirada pelo grande mundo!

— E nota uma coisa, meu sobrinho: Rosinha tem uma inteligência prodigiosa e um espírito raro!

— Infeliz menina!

— Sabes o que deves fazer em vez de estares ai a lastimar a sorte de minha afilhada como um novo Jeremias? Acompanhar-me ao Jordão!

— Pronto, minha tia! — exclamou Adriano imediatamente.

— Deixa-me primeiro sondar o terreno, meu caro. Pelo menos livrar-te de alguma carga de chumbo com que te pretenda mimosear o homem!

— Que idéia! — volveu Adriano Carvalhal, desprendendo uma estrepitosa gargalhada.

No dia em que a milionária apresentou-se no Jordão, em companhia de Adriano, já a menina havia lido e relido as frases apaixonadas daquela carta que não merecera resposta. Rosinha, dando com os olhos no moço, fez-se vermelha como uma papoula e em seguida de uma palidez sepulcral.

Adriano apertou-lhe a mão fria, e teve implacáveis desejos de cobri-la de beijos, a essa mão aveludada como a pétala das boninas!

— Não me foi possível resistir por mais tempo disse a milionária mostrando o sobrinho; — creio que, se ele cá não viesse hoje, sacramentava-se amanhã!

Chegou a vez de Adriano envolver-se na nuvem do rubor, que, apesar do bigode, ia-lhe a pintar.

Rosinha riu-se entregando o rosto às carícias de sua madrinha.

Eram cinco horas da tarde; o dia mergulhava-se no ocidente, e as longas auras do crepúsculo sopravam, ébrias de perfumes. Adriano e Rosinha mal se viam; evitavam-se como dois cúmplices à barra do tribunal.

A milionária fez as despesas da conversação; falou de bailes, toaletes, poesia, versos, modistas e processos romanescos.

Pela janela aberta viam-se adejar bandos e bandos de andorinhas; as mangabeiras suspiravam com o vento, e o canavial movia ao longe os penachos flutuantes.

Quando José Paz chegou, esteve a ponto de desmaiar, descobrindo um estranho em sua casa, um estranho! Um moço de bigode luzidio e atitude pretensiosa!

A milionária incumbiu-se da apresentação.

O matuto abaixou a cabeça, tanto por delicadeza como por impotência; também o elefante suporta o selim e o boi a canga, sem exalarem um gemido.

Adriano Carvalhal conseguiu ter espírito, apesar de sofrer as torturas do supliciado junto ao cepo fatal.

À espera do trem, vieram todos para a estrada quase deserta. Pouco distante havia uma tasca coberta de sapé, e uma grande cerca onde pousavam os anus desprendendo uns pios prolongados e tristes.

No céu azul cruzavam-se as aves, que fugiam da noite.

Adriano cravou os olhos em Rosinha; Rosinha por acaso olhou, e deixou-se ir naquele embriagante êxtase, incompreensível para a sua alma ignorante e pura.

José Paz não arredava a vista dos dois. Mas o matuto esquecia-se de que o amor fala mais alto no silêncio do que no ruído. Os olhos são os lábios da criatura que ama.

José Paz não dormiu a noite inteira, lembrando-se da nova visita. Despertou rubro e terrível como o símbolo da vingança.

Rosinha até romper o dia pensou em Adriano, e, quando beijou a mão do pai, ao erguer-se da cama, estava bela e sombria como a estátua do amor.

A milionária, durante a viagem, perguntara ao sobrinho;

— Gostaste?

— Muito.

— E voltarás?

— Nunca!

— Oh!

— Não se admire, minha tia. A felicidade é um mar de diamantes que afoga quem mergulha nele!

A milionária admirou-se da resposta. Adriano não deu por isso; seguia, através da vidraça do vagão, as rápidas nuvens do vapor, que obscureciam o ar.

Dois dias depois, o criado da ricaça foi ao Jordão com um recado da senhora.

À noite, Adriano Carvalhal esteve em casa da tia, jovial, bulhento, espirituoso, insuportável.

— Nunca te vi assim! — observou-lhe a milionária.

— Que quer, minha tia, a alma humana é uma charada que ninguém compreende!

— Faço idéia! Teus olhos estão te atraiçoando, meu filho!

O mistério era de facílima decifração. Adriano Carvalhal recebera do Jordão um bilhete, banhado em perfumes e talvez em lágrimas, quase roto, dobrado, torcido, amarrotado, contendo esta única palavra: "Sim."

Havia festa no Jordâo. Era domingo.

O dia amanhecera risonho, azul, resplandecente e tentador como as primeiras alvoradas do paraíso perdido. As jandaias em grupos compactos voavam sobre a estrada e perdiam-se pelas matas sussurrantes, desprendendo gritos de felicidade e de alegria!

O sol dardejava raios de fogo, e as patativas, entre os ramos floridos do cajueiro, desfiavam o seu rosário de melodias fugazes e pérolas cristalinas!

O domingo em todas as aldeias do mundo é o dia por excelência, o grande dia, o dia da roupa nova é das gargalhadas expansivas! Os braços, habituados ao rude trabalho, descansam em redor da franzina cintura de um filhinho que sorri, e enquanto o lavrador desenrola ao companheiro o rol das suas íntimas esperanças, com o rosto alegre e os olhos cheios de saúde e de fé, as raparigas de vestidinho enfeitado espiam o janota da aldeia que passa orgulhoso à sombra de um chapéu cor de cinza, o chapéu dos domingos, o chapéu falado! Ou escutam embebidas em casto arroubo, a melancólica toada da viola que parece desfazer-se no ar em rios de lágrimas!

Santo dia do domingo! O roceiro adora-te como a elegante a noite do baile, e o político a desejada hora das eleições! Em cada murmúrio das tuas brisas, oh! Mimo da primavera! Em cada uma das tuas brisas ondula a nota celeste de uma canção desconhecida, e o sol que te anuncia encontra sempre abertos, para recebê-lo, o cálice palpitante das flores, os lábios vermelhos da infância e o coração enternecido dos pobres!

Quase à beira do rio estavam os habitantes do lugar empenhados em levantar um alpendre, largo, coberto de folhas secas, e sustentado por umas enormes estacas adornadas de folhas e ramas frescas! As pilhérias, as farsolas, as graças trocavam-se vivamente entre os trabalhadores folgazões com uma prodigalidade excessiva. Que seria aquilo? Alta novidade! Alta novidade no Jordão! O Pedro Cambraia tirara em um quarto da loteria a sorte grande! Nada mais, nem menos do que um conto e não sei quantos mil-réis!

O Pedro Cambraia era um sujeito de 42 anos, baixinho, nédio, luzidio como uma moeda de cobre novo! Não era nem feio nem bonito, engraçado nem tolo; mas possuía uns olhos esverdeados de faiscantes malícias, e dançava o samba com tal método e brilhantismo, que fazia dizer aos companheiros:

— Cambraia, esse, antes de nascer, já sabia o passo do caranguejo! — (O caranguejo é uma das variantes mais distintas do samba do norte.)

Veio-lhe o apelido de Cambraia por um fato excêntrico que se deu em sua vida. Pedro Gonçalo, que assim se chamava o sambista, em se lhe devendo alguma coisa, tornava-se uma legítima praga em couro e cabelo! Atormentava o devedor, perseguia-o, achincalhava, atordoava, e chegava até a provocá-lo às vezes. Como atestado de seu caráter bulhento, a ponta de uma faca inimiga deixara-lhe no meio do rosto um valente talho, que se transformara em eterna cicatriz. Havia um único meio de se não brigar com o Cambraia: era não lhe dever nada.

Maria Escolástica, uma donzela do lugar, pedira-lhe emprestada certa quantia para comprar nas mãos de um mascate aventureiro um corte de cambraia.

Dizia a pobre da rapariga que aquela fazenda havia de servir-lhe no dia do noivado. Pedro Gonçalo emprestou o dinheiro com pequeno prazo e... sem juros! Mas desse momento por diante, a incauta Escolástica ficou hipotecada ao insaciável credor.

Cansado de esperar, Pedro dirigiu-se sem mais cerimônia à rapariga. Maria Escolástica tremeu quando pôs os olhos na cara do Cambraia. A cicatriz rubra e coruscante saltava-lhe à flor do rosto. Era esse o prenúncio de tempestade iminente!

— Maria Escolástica, você paga ou não paga o cobre?

— Ouve cá, Pedro.

— Já há um mês e 18 dias que me andas prometendo, e nada, minha dona! Isso não tem cabimento. Você me conhece! Você sabe quem eu sou, Maria Escolástica!

Pedro Cambraia estalou com a língua e arqueou o braço, firmando os dedos na cintura.

— Mas, se eu não tenho dinheiro, filho de Deus!

— Por que pediu emprestado, então? É botar já para aqui os cobrinhos, minha tafulona, que eu hoje não estou bom!

A Maria Escolástica via-se em apuros, e, por mais tratos que desse ao juízo, não achava meio de desvencilhar-se da teia.

Pedro Gonçalo repetiu três ou quatro frases mais, carrancudo e mastigando as palavras surdamente.

— Ah! Não me pagas? Não me pagas? Pois passe-me o corte de cambraia!

— Quê!

— Dá cá a cambraia, Maria Escolástica! Vou mandar fazer roupa para mim!

— Você anda mal da bola!

— Dá cá a cambraia, mulher!

A rapariga, atemorizada por um gesto furibundo do implacável credor, entregou-lhe a fazenda que compunha as delícias de uma velha caixa de pinho.

No primeiro dia de festa, Pedro Gonçalo apareceu à porta de casa com um largo chambre de cambraia, através do qual viam-se-lhe os suspensórios flamejantes como dois raios cruzados!

Os habitantes do lugarejo, prevenidos por Maria Escolástica, receberam o vestuário original do sambista com uma homérica risada e uma palmaria digna da claque do mais turbulento teatro.

Desse dia em diante, Pedro Gonçalo ficou sendo Pedro Cambraia para os amigos e desconhecidos.

O apelido agarrou-se-lhe à pele como uma nova túnica de Nessus.

Às duas horas da tarde deu-se por pronto o alpendre, subindo ao ar uma ruidosa girândola no meio de gritos, ovações e vivas entusiásticos. O Pedro Cambraia não estava em si de contente; esfregava as mãos, esfregava os pés, esfregava o nariz com crescentes sinais de incomparável prazer.

José Paz aproximou-se ao grupo.

— Olá, Sr. Paz! Veja se falta logo com a Rosinha! — bradou o Cambraia.

— Nem pensar nisso é bom. A Rosinha diz que está um bocadinho incomodada, mas vem para a festa!

Várias vozes interpelaram o anfitrião:

— Você não deve se esquecer da gente dos Duros, Cambraia! Se a Rosinha viesse, o negócio cheirava melhor!

— Há de vir; por que não? Daqui a pouco vou convidar o Cosme Ribeirão.

— De Olinda, quem vem?

— O Teto...

— Viva! Ferve o samba hoje!

— Eustáquio, o Leopoldo, a Rita dos Prazeres.

— E a Justina miudinha?

— Diabo! Eu não posso me partir em cinco pedaços! Quem quer ir em um pulo aos Prazeres chamar o Manuel do Ó?

— Eu vou, so Cambraia!

— Assim, rapaz; serve para alguma coisa.

— A Fortuna disse-me que não faltava!

Chegava azafamado neste momento o Chico valente.

— O homem do violão já está falado, so Pedro! — disse ele sacudindo a cabeça donde jorrava o suor em bicas. — As duas guitarras também vêem; eu cá por mim já afinei as cordas e comprei outras no Ramos dos Duros! Flauta, nicles!

— Não faz mal. Em havendo guitarras, violão, maracás e botija. O filho do Neco toca botija!

O pequeno aludido conchegou-se ao bando, luzindo de felicidade. Um foguete esquecido subiu aos ares, estrondando majestosamente.

— Viva o Pedro Cambraia!

— Viva o Pedro Cambraia!

— Viva, minha gente, e viva Nosso Senhor Jesus Cristo também, que não se esquece dos pobres.

— Amém!

Rosinha, sentada na humilde cama, onde à noite invocara debalde as sombras protetoras do sono, deixava-se ir na torrente insondável dos seus desejos, das suas lembranças e das suas virgens aspirações, como um pássaro que abandona à correnteza da água as penas, uma por uma. A imagem de Adriano erguia-se adiante dela e abria-lhe os braços apaixonados; as últimas palavras dele soavam-lhe ainda aos ouvidos como os ecos de uma música terrível e meiga.

Estava jogada a principal carta de sua vida! Ela amava, a pobre rapariga! Amava com todos os sonhos e todas as ilusões de sua alma deslumbrada!

O ruído da bomba e os gritos festivos em honra a Pedro Cambraia despertaram-na de súbito e a conduziram à porta de casa. José Paz, de volta, dirigiu-se-lhe com um enorme sorriso na boca colossal.

— O Cambraia não quer razões, nem meias razões. Tu hás de ir à noite!

— Mas, meu paizinho...

— Está uma festa arrojada que faz gosto. Gente muita, e o Teto vem para o sanha. Ora, o Cambraia! Sempre acontecem coisas que fazem pasmar um homem!

Quem lhe diria a ele, que havia de tirar a sorte!

— Não é essa a felicidade! — murmurou Rosinha, como se repetisse as palavras de uma voz íntima e misteriosa.

Ouviam-se em repiques vibrantes os sinos da capela dos Prazeres.

— Sabes que há hoje um casamento nos Prazeres?

— Ah!

— A filha do Cândido ferrador com o José grande. Aquela há de ser sempre uma pequena de boa cabeça. O pai quis o casamento e ela zás! Não disse nem que sim nem que não!

Os olhos de Rosinha seguiram docemente o vôo dos coleiros, que se beijavam entre as louras espigas de milho, através da cerca.

Os repiques sucediam-se sem tréguas, e com uma energia miraculosa da parte do sacristão.

— A filha do Cândido nunca pôs pé no Recife, graças a Deus! — continuou José Paz, mirando de esguelha a filha. — O pai dela teve juízo, fazendo Nossa Senhora madrinha da moça! Por isso é que ela há de ser sempre abençoada pelo céu!

Rosinha ergueu os olhos úmidos e sorriu com a mesma dor com que os outros costumam chorar.

O matuto arrependeu-se e prendendo entre as suas a mão alva da menina,

— Estas tristezas todas hão de acabar um dia; não hão de, minha filha? Eu, palavra de honra, dava metade da perna direita só para não te ver mais aborrecida como andas!

— É meu gênio!

— Não é teu gênio, não! Foi aquela maldita!

E José Paz fechou a boca com a mão, sufocando o resto da frase imprudente.

— Sabes — prosseguiu ele — qual é o meio de te fazer alegre?

Rosinha olhou-o serena e terna-

— É seguires o caminho da filha do Cândido. Ainda ontem me disseram que as meninas tristes em solteiras mudam logo quando se casam.

A afilhada da milionária ergueu quase imperceptivelmente os ombros.

José Paz deu largas ao seu honesto pensamento:

— Eu cá por mim não era capaz de ir contra os teus gostos. Um rapaz trabalhador, honrado e bom que te pedisse...

— Deixe-se disso, meu paizinho.

— Era melhor — acudiu José Paz, ferindo intencionalmente as palavras — do que esses pelintras da cidade que procuram as moças pobres para desonrá-las e atirar com elas depois na estrada como um cachorro morto!

Rosinha cobriu-se de uma lividez mortuária e apoiou-se, para não cair, ao peitoril da janela.

Às sete horas da noite estava o alpendre ornado de lanternas de papel multicores e cheio de povo: velhos, velhas, rapazes, raparigas e meninos de toda a idade e feitio.

Afinavam-se as guitarras, afinavam-se os violões, as violas, as vozes e os pandeiros. Quatro ou cinco pequenos de botija em punho e faca erguida esperavam o sinal para acompanhar o fado.

O samba no norte é uma coisa digna de se ver. As toadas das cantigas em desafio prendem a alma e provocam os sentidos. Há certa poesia irresistível naquelas danças características entrecortadas de modas e trovas, que revela exuberantemente o mundo de sentimento da alma rude e ingênua do povo!

Minha gente venham ver
Minha prima o que me fez;
Trazia dois enganados
Comigo faziam três.

A pombinha vai voando
Com penas que Deus lhe deu:
Contando pena por pena
Mais penas padeço eu.

E lá vem, de vez em quando, uma quadra meter-se na harmonia geral como Pilatos no credo:

Plantei o roxo n'água
O encarnado na areia,
O amor que não é firme
Com qualquer coisa vareia.

Pedro Cambraia repartia-se pelos convidados com uma verdadeira elegância grotesca. Era para este um copinho de aguardente, para aquele um gole de zurrapa, para aqui um aperto de mão, um abraço para acolá etc. etc.

— Teto! Teto! — gritaram várias vozes enternecidas com a tintura da cana nacional.

— Ferva o samba, minha gente! Entra na roda, Teto!

Tertuliano ou Teto era um rapaz magro amorenado, como por lá diziam, de olhos vivos e cintura delgada. Morava em Olinda; mas na redondeza de 40 léguas não se começava um samba sem ele chegar. Dançava como um corisco, e pulava como uma cobra.

— Corta jaca, Teto!

— O passo da tesoura! O passo da tesoura!

— O caranguejo!

Teto entrou e lançou ao chão com uma agilidade graciosa e chapelinho de palha. Estava em mangas de camisa e trazia uma gravata de seda vermelha, que ondulava-lhe ao pescoço, como a bandeira inglesa no mastro grande de uma fragata! As guitarras gemeram; as facas atacaram as botijas, os violões e as violas uniram-se ao ruidoso concerto com as suas longas e plangentes notas:

Batam bem nessa viola,
Deixem as cordas quebrar
Que eu quero espalhar saudades
Quero penas espalhar!

— Canta, Justina miudinha!

A Justina fez um amuo, e um tenor de primo cartello, um tal Leopoldo, ofereceu o concurso de sua voz à empresa lírica:

Meu bem, não fujas de mim,
Repara bem que sou eu;
Eu sou aquele amorzinho
Por quem você já morreu!

— Justina! Justina miudinha!

Uma fresca voz de mulher respondeu ao Leopoldo:

Meu coração é fechado
Como a flor da mangabeira,
Ninguém conhece os segredos
Desta flor, desta trigueira.

— A parelha! A parelha, gente boa!

Formou-se a parelha em um abrir e fechar de olhos.

Quem perdeu o anel
Do dedo mindinho
Passe a mão pelo chão
Bem agachadinho.

Minha parelha é boa
Lá se vai!
Fecha o tempo, gente,
Deixa, vai!

José Paz perdera de vista a filha na confusão do povo. Os curiosos cercavam o alpendre de modo a tornar impossível qualquer movimento além da dança, para a qual se formara um circulo especial.

Rosinha abria em vão a alma àquela onda de harmonias selvagens, em que se embalaram felizes os seus primeiros anos. Nada a atraía já aos costumes de sua terra e às lembranças do seu inocente passado!

Os instrumentos calaram-se por alguns instantes. Pedro Cambraia bateu palmas e atirou-se à roda sapateando como um possesso.

— Bravo o Pedro!

— Viva Pedro Cambraia!

As guitarras, as botijas, os violões, os maracás e as violas começaram de novo com um ardor estupendo. Empenhou-se a dança em todas as fileiras; algumas raparigas gentis e formosas, convidadas urgentemente pelo anfitrião, moveram o talhe e amiudaram os passinhos como os jururutis na grama orvalhada do mato.

A noite estava tranqüila, estrelada e tépida que era um regalo. A lua derramava sobre os vales e sobre os campos o vasto lençol, úmido e transparente.

Os vaga-lumes abriam a asa na doce escuridão, e o vento bulia na copa frondosa das mangueiras, de cujas folhas curvas pingava, baga a baga o consolador orvalho da noite!

Pouco distante do alpendre, à sombra de uma copada aroeira, conversava duas criaturas: uma mulher e um homem, como criminosos que evitam a presença de alguém.

A voz do homem dizia tímida e apaixonada:

— E que me importa a mim, santa do meu coração, que me importa o mundo, a vida, o futuro longe de ti!

— Este amor há de perder-me! — suspirava ela.

— Este amor é o sangue do meu corpo e a luz do meu espírito. Olha para mim; assim. Como tu és bela Deus do céu! Parece que eu vejo nos teus olhos luzir a minha esperança tentadora e pura!

— Vai-te, vai-te! Podem ouvir-nos e encontrarem-te aqui!

— Não: ninguém me ouve, ninguém me vê, ninguém nos surpreenderá.

Cantava uma voz no samba:

Como correm sobre as águas
As penas do bem-te-vi,
Vôo minhas horas correndo,
Morena, por'mor de ti.

 
Este amor que me atormenta
Este amor que me consola,
Deixa cantá-lo meu bem,
Nas cordas desta viola.

Nas cordas desta viola
Hei de meu peito ferir,
Quando tu já não me amares
Posso deixar de existir.

— Deus me castigou no dia em que comecei a te amar. O que será de mim? O que será de mim, Virgem Santissíma, se tu me abandonares!

— Oh! Não fales assim, meu doce amor; o céu castiga se o repetires, porque é uma blasfêmia o que estás pensando! Eu nunca deixarei de te amar, e até, quem sabe se o destino me fará morrer a teus pés!

— Pelo amor de Deus, cala-te.

Este amor que me atormenta.
Este amor que me consola,
Deixa cantá-lo, meu bem,
Nas cordas desta viola.

A mais segura montanha,
Pode o tempo derribar,
Mas teu nome no meu peito
Não é capaz de apagar.

— Nunca farás isso! — murmurou a voz, suplicante e débil.

— Por quê? Encontras no mundo sacrifício maior que o teu amor?

— Mas é uma traição! Um crime contra meu pai, contra minha vida e contra Deus!

— E poderei suportar a ausência por tanto tempo? Ah! Mal compreendes os desesperos da minha saudade e os martírios do meu amor!

— Vem gente! — articulou ela, puxando-o vivamente para a sombra.

Não era ninguém; fora o ruído causado pelas asas de um bacurau medroso, que roçara na passagem os galhos da aroeira.

Ele prosseguiu dando à voz as modulações chorosas de um segredo ou de uma prece:

— Deixa-me, deixa-me ser feliz, um minuto, um segundo, um instante rápido como o pensamento ao menos! Não imaginas quanto minha alma precisa ser aliviada; como é digno de amparo este coração que agoniza por ti! Repara nas estrelas, na lua; bebe os aromas da noite amorosa e casta! Tudo ama, tudo crê, tudo espera, e tu fechas o ouvido à voz da minha paixão!

— Fala-me sempre! Sempre! Que esta boca perigosa e querida entre em toda a minha alma e mate-me enlouquecendo-me!

— Forma a roda, minha gente! — gritavam no samba. — lula, Teto! Eustáquio, então? Oh! Rita! Dindinha Rosa!

— Eu? — exclamou a velha assombrada. — Maiores são os poderes de Deus!

— Canta pr'aí, Fortuna! Raspa na botija, Catita! É lá, José Paz! Estás com cara de mal-assombrado!

— Rosinha! Rosinha!

Não te vás para tão longe,
Menina do meu pensar,
Que um cego de amor não pode
De tão longe te enxergar.

Respondeu a Justina miudinha:

Se para longe me vou,
É que vou atrás de alguém;
Vou seguindo a minha sombra,
Vou nos braços de meu bem.

— Rosinha! — chamava José Faz.

As raparigas procuravam-na arredando-se os grupos e apalpando-se todos os cantos.

— Ainda agora estava aqui! — observou uma delas.

Nesse momento apareceu a um lado, afastando a multidão, a pálida cabeça da filha de José Paz.

Os instrumentos atraíram de novo as danças e os cantos entusiásticos.

Os olhos de Rosinha febris volviam-se em torno de si.

Ao longe vibrava o surdo e fugitivo galope de um cavalo.

A voz de Leopoldo cantava:

Caiam flores uma a uma,
Seque o rio, acabe o mar,
Que eu não hei de te esquecer,
E nem deixar de te amar!

O galope do cavalo perdeu-se de todo, na distância.

Atasca era situada à beira da estrada e pertencia a uma Maricas Guandu, mulher de ventas arrebitadas e pulso vigoroso.

São talhadas pelo mesmo molde as vendolas, tendas e em geral as quitandas dos pobres lugarejos do norte; uma mesa de pinho trôpega e roída serve de balcão com os pés fisgados na terra esburacada.

Na parede sem cal, de cujas ripas entrelaçadas o barro cal aos bocados, e por onde entram com idêntica familiaridade a chuva, o vento e os raios do sol, estendem-se dois a três registros de santos, quase sempre Santo Antônio e o crucificado, ornados de folhas de mangueira, bogarins e rosas bravas. São as égides protetoras da casa, e, na inabalável opinião dos devotos, o infalível chamariz da freguesia.

A tasca da Maricas Guandu corria parelhas com as suas companheiras dos Douros, Prazeres, Boa-viagem e as demais povoações da vizinhança.

A tendeira era mulher da pele do diabo; atrevida, corajosa, de sobrolho carregado e fala grossa. Dizia o Chico valente que a Guandu já havia cumprido sentença na ilha de Fernando, em virtude de uns arranhões profundos, que em má hora de rixa ela esculpira no pescoço de um pobre imbecil com quem vivia.

O certo é que todos a respeitavam na povoação e fora dela.

Além disso constava que a mulher tinha dinheiro guardado, segundo uns, nos bancos do Recife; segundo outros, na cacimba do quintal.

Fosse por que fosse, para as altas questões da terra servia de campo de peleja a taberna da Maricas Guandu.

Uma semana depois do samba promovido pela rara ventura de Pedro Cambraia, soavam lentamente as badaladas do meio-dia em S. Gonçalo, e o Chico valente, o Brás, o próprio Cambraia e outros da povoação estavam ainda de conferência na tasca da Maricas Guandu.

Alguma poderosíssima causa os arredara do trabalho até essa hora, e um certo ar de mistério envolvia as suas palavras, que eram geralmente trocadas em voz baixa e surda.

A tendeira, com os cotovelos escuros cravados na mesa cheia de talhadas de melancia, cajus e jerimuns, entre os quais erguia-se o imponente vulto de uma velha botija de aguardente destapada, seguia a conversação de olhos fechados e em uma espécie de indiferentismo brutal e sonolento.

As moscas zumbiam em cardumes em redor das frutas e do aroma da botija. Os matutas sentados em terra, com as pernas nuas apostas ao sol e o cigarro no canto da orelha, fizeram pausa por um momento.

Soava meio-dia.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! — rosnou a tendeira sem mudar de posição e benzendo-se, depois de bocejar, como o ruído de uma chaminé de vapor.

— Para sempre! — repetiram os assistentes, descobrindo-se.

O sol abrasava; os pássaros emudeciam, abrigados do calor nas largas folhas do arvoredo que nem um hálito de brisa bafejava sequer.

As galinhas mariscavam defronte da venda, espojando-se na poeira ardente da estrada deserta.

Tomou a palavra o Pedro Cambraia:

— Pois é como se uma coisa feita tivesse-me entrado no Couro! Safa! Que se não fosse o que eu cá sei, já hoje não dormia no Jordão o filho de minha mãe!

— Vocês são todos uns mofinos! — disse a taverneira abrindo os olhos vermelhos como uma fornalha.

— Sempre lhe queria ver, sa Maricas — acudiu o Chico valente — , metida nesses assados para então falar!

— Ora, ora!

— Ora, ora? Pois, minha dona, aqui está o Cambraia que é homem direito e que viu com os seus próprios olhos que a terra há de comer!

— Mas o que viram vocês? — replicou a Maricas Guandu impaciente. — Conta outra vez a história, Cambraia!

— Ainda bem não falei, já me estou arrepiando como um frango molhado! — observou Pedro Cambraia, revirando os olhos a tremer.

A taberneira espreguiçou-se resmungando, e veio munida de um banco escalavrado tomar a presidência da assembléia.

Pedro Cambraia não se fez rogar.

— De anteontem para ontem — disse ele -, eu tinha de estar nos Apipucos para um negócio grande com o Zé Pinto, a respeito de umas trapalhadas que não vêm ao caso. Eu cá, só no dia da minha morte, é que hei de andar de carro, se não for de rede, que é mais infalive. Não preguei olho toda a noite; só pensando, só pensando, na viage. Bateu em S. Gonçalo meia-noite, e eu disse comigo: Ora, você não tem sono, so Pedro. A noite está fresquinha como uma garapa, e há tantas estrelas no céu como lojas de fazendas no Recife.

O Chico valente gostou da comparação e enfiou duas gargalhadas sonoras.

A Maricas Guandu fez um gesto de impaciência e atiçou pelo olhar sombrio a loquacidade do narrador.

— Enfiei as calças — prosseguiu o Cambraia -, o casaco, peguei no chapéu e... pernas para que te quero! Pus-me no andar da rua. Fazia um silêncio de se ouvir voar uma muriçoca! O diabo de uma coruja berrou mesmo no meu ouvido e foi voando para a banda do mato como um mau agouro! Tibi! Se eu tivesse, depois disso, entrado logo para casa e esperado a madrugadinha, não havia de passar pelo susto que rapei... Mas, enfim, quando Nosso Senhor acha que...

— Pior! Pior! Contas a coisa, ou levas a peraltear aí como um papagaio?

— Lá vai, senhora, lá vai, que Deus é grande! Assim que a danada da coruja deu o grito, eu fiquei meio cá, meio lá. Mas um home é um home.

— E a mulher é um bicho! interrompeu um rapazola, o Brás, saudando a idéia com duas monstruosas risadas.

A taberneira mostrou o punho ao pequeno, da mesma forma por que o cão de fila apresenta a cabeluda pata.

— Cala a boca, Brás! — ordenou Chico valente.

— Comecei a andar — prosseguiu Pedro Cambraia — apertando o passo para chegar mais cedo. Assim como assim, eu, já que saí de casa, quis me presentar so Recife a boa hora, para bater para os Apipucos. Estava escuro tudo que era mesmo de se quebrar o nariz sem trabalho! Não havia lua, e as estrelas alumiavam só a casa do Senhor, sem se importar com o que havia cá embaixo. Quando eu ia chegando ao pé do desvio pegado com a casa do José Paz...

A fulva pupila da Maricas Guandu faiscou de curiosidade e de cobiça.

— Que é que viste, que é que viste?

— Olhe lá, vosmicê é capaz de dizer que eu ando doido, e então é melhor parar aqui.

— Conta, Cambraia!

— Conta!

A taverneira impôs com um gesto silêncio, e enchendo até às bordas uma canequinha de aguardente, passou-a ao narrador.

— Molha primeiro a goela, e conta direito!

Pedro Cambraia saboreou gota a gota o néctar delicioso, e depois de ensaiar uma orquestra de pigarros em todos os tons:

— Meus olhos no escuro são tal qual como os olhos do gato. Foi por isso que eu pensei que tudo era uma mentira cá da cachola, quando a alma apareceu.

— A alma?!

A alma do outro mundo, sim senhor! Estaquei mesmo defronte da casa do Paz, que estava toda fechada e sem luz. Pudera! Meia-noite passada! Começaram a me dobrar as pernas; o frio coçou-me as costas e uma porção de candeias fuzilou na minha vista. Quis dar um passo para trás; qual fortuna! Os pés estavam pregados no chão que nem verruma em prancha nova!

— Anda sempre! Anda! — disse a Maricas Guandu, aproximando o banco, ébria de curiosidade.

Os beiços alongavam-se-lhe famintos como se estivessem defronte de um manjar apetitoso e abundante.

Os matutos bebiam sem perderem uma sílaba — perdão! Uma silabada — as palavras de Pedro Cambraia

— Eu não podia nem andar para a frente nem andar para trás.

— E a alma vinha sobre ti?

— Qual carapuças! Aí é que está o busílis! A alma corria diante de mim como paca que foge de chumbo!

— E está!

— Era uma figura branca, com umas mangas caídas até o chão e a caveira reluzindo que nem fogo de queimada! E ia, ia, que parecia nebrina de manhã de frio, quando começa a soprar vento, e o sol não tarda no céu. A alma parou e como que olhava para todos os lados. Imaginou lá sua vida à vontade, cismou bem, pensou, repensou, e depois desapareceu pelo mato adentro!

— Credo! Cruz! Nossa Senhora!

— Quando ela sumiu-se eu caí mesmo em cheio a fio comprido na estrada.

— E depois?

— Já encomendava-me a Nossa Senhora da Boa Viagem, que o medo era muito, quando me pareceu ouvir bulha na casa do José Paz, uma bulha assim de janela aberta. Oh! so José Paz — gritei eu reunindo todas as forças de minhas veias. Outra bulha de janela e mais nada. Cinco minutos depois...

O atencioso grupo apinhou-se em redor do orador. A Maricas Guandu tremia toda da cabeça aos tamancos.

— Cinco minutos depois, sai um cavalo e o diabo em cima dele, do mato adentro, embarafusta pela estrada como vento norte e voava por ali fora que nem a vista podia o acompanhar! Dismalhei de uma vez! Quando refrescou a manhã acordei, me levantei e o mais o Chico valente sabe...

— Aí anda coisa de patifaria — observou filosoficamente a tendeira, engolindo um trago de cana, para desfazer os restos do terror que lhe causara a história.

— Não fale assim, sa Maricas! — acudiu o Brás. — Então vosmicê não acredita em almas do outro mundo?

— Eu cá, por mim — interveio o Chico valente -, tenho medo de almas como do diabo. Inda me não saiu da cabeça o caso da Boa-Vista no Recife. Até a polícia andou atrapalhada.

— Mas aquilo era ou não era namoro?

— Às vezes é, outras vezes não é, sa Maricas — aventurou Pedro Cambraia. — O vigário diz que a alma da gente não morre, portanto pode voltar quando quiser para ver os outros que estão vivos.

— Se é a primeira vez que acontece uma coisa destas no Jordão!

Uma vez sempre é a primeira, minha senhora. Olhe o Califórnia da Gameleira, que ficou gira depois que viu a alma do outro?

— O que vocês devem fazer é esperar o bicho e dar-lhe uma boa surra!

— Deus me defenda! Santa Bárbara e São Jerônimo.

— Não se me dava a mim de ir, e sou uma mulher.

— Mas uma mulher de pulso! — observou o Brás, com certa ironia maliciosa.

— Para que não tratam uma súcia boa de gente decidida?

— Para tudo morrer de medo?

— Cala a boca, toleirão! Estou quase a jurar em como a alma do outro mundo é gente como vocês! Quem sabe, mesmo, algum conhecido!

— Quê, senhora! Aquilo é alguma missa que o defunto está pedindo!

— E se não fosse defunto?

— Sempre eu queria ver!

— Pois falem com o José Paz; mandem chamar o Teto, o Leopoldo, aquele furioso do Tibúrcio, que não é de graças, e façam uma tocaia!

— Só se for assim!

— Eu também entro no rancho! — exclamou a Maricas Guandu empunhando um cabo de vassoura.

— Está dito! — continuou Pedro Cambraia resolutamente. Vou limpar a espingarda!

— Nada de mortes!

— Uma cargazinha de sal basta se a alma é deste mundo. Se for do outro mesmo, Nossa Senhora tenha compaixão de nós!

— Deus é grande, Pedro Cambraia.

José Paz, uma hora depois, entrou na tasca da Maricas Guandu e engoliu uma dose de aguardente.

Já não havia ninguém na taverna senão o velho cão que ressonava ao sol, e a dona da casa grunhindo com a cabeça mergulhada nos braços colossais.

— Eh lá, sa Maricas! Tome os dois vinténs! — exclamou o pai de Rosinha despertando a mulher.

Mancas Guandu abriu a custo os pesados olhos e, à vista do recém-chegado, despertou de todo.

— Por que não veio mais cedo so José? Houve aqui o diabo!

— O diabo?

— Sim, contou-se coisas de fazer perder o sono ao tinhoso!

— Ora vamos!

— É o que lhe digo. Ainda não conversou com o Cambraia?

— Ah! É disso que se trata? O Cambraia está gira!

— Não diga tal! Ele jura que é verdade tudo, e que foi perto de sua casa!

José Faz ergueu os ombros com um sinal de visível enfado.

— O Cambraia que vá pentear macacos. Até inventou que eu tinha aberto uma janela; a que horas! Meia-noite! quando tudo roncava em casa.

— Não perguntou nada a sua filha?

— Pois eu quero lá meter medo à menina! Ora muito boas tardes, sa Maricas. Diga ao Pedro que vá trabalhar em vez de dar à língua!

E José Paz saiu da tasca sem reparar em uma careta que franziu a cara da hedionda taverneira.

Rosinha ficara mais pálida desde a noite da festa. Em compensação, porém, ria-se, brincava, conversava com o pai e com a velha, que a acompanhava às vezes; mas o seu sorriso era desses que só voam nos lábios e que não chegam ao coração!

José Paz pulava de satisfeito com a metamorfose operada na filha. Excelente e estúpido homem! Mal sabia ele que a menina ia definhando aos poucos e que aquela alegria não era senão o lampejo mentiroso do horizonte, quando se acumulam as borrascas e crescem a desolação e a morte iminentes! Na noite do dia em que se travou o animado diálogo na tasca de Maricas Guandu, Rosinha, só, no seu quarto, escrevia à luz vacilante de um enfumaçado lampião.

Através das frestas do teto e da janela penetravam até a cama da menina os tímidos e vaporosos clarões das estrelas. Estava calma a noite, e apenas o som de uma viola afastada turbava o religioso silêncio da natureza.

Rosinha escrevia à milionária. “... Devo-lhe tudo, minha madrinha”, dizia a última parte da carta, “tudo; a minha felicidade no passado, as minhas alegrias do presente e o que Deus na sua infinita misericórdia quiser dar-me no futuro.

Venha buscar-me pelo amor de sua mãe, pelas dores de Maria Santíssima. Alguma coisa me diz que está batendo a hora da minha desgraça... Não sei o que é, minha madrinha, mas tenho medo, medo!
Quero confessar-lhe o que se passa no meu coração; venha para eu abrir-lhe minha alma toda e pedir-lhe que me ampare.
O que é a felicidade sem o descanso, meu Deus? E eu não tenho mais descanso, não tenho: estou perdida.
A minha própria sombra faz-me terror agora. Parece que em redor de mim há uma porção de fantasmas que me acusam...
Meu pai ri-se feliz vendo-me contente. Contente! Ah! minha madrinha! Digo-lhe isto e as lágrimas saltam duas a duas de meus olhos!
Venha, venha, minha segunda mãe, venha socorrer a sua infeliz Rosinha. Não repare na letra: toda eu tremo como se fosse daqui a pouco morrer... Morrer! Às vezes a morte é melhor do que o desespero!
Vou rezar e vou dormir. São 11 horas e meia da noite. Tenho febre e sinto um frio de bater os dentes.
Adeus, minha madrinha. Deite a bênção em sua afilhada.

Rosinha

Ela terminou a carta ofegante, trêmula, assustada; dobrou-a a custo, pôs-lhe o sobrescrito e escondeu-a debaixo do travesseiro.

Seus olhos cercados de um círculo sombrio vagaram pelo quarto e foram até a janela donde recuaram transidos de espanto. Ela dirigiu-se pé ante pé á porta do quarto e colocou o ouvido à tábua.

Fazia um silêncio profundo no interior da casa.

Em seguida a menina veio de novo à mesa, rasgou com mão convulsa um pedaço de papel, e traçou estas palavras, mais aterrorizada, mais pálida do que sempre:

“Vá; fuja, se me tem um pouco de amor. Não tente a vingança de Deus. Pela memória de seu pai, e por mim, fuja, fuja, não se lembre mais, não pense, não desgrace quem pela última vez lhe escreve e invoca a sua generosidade! Se não me atender, mato-me!”

E bruscamente correu à janela, abriu-a, e dobrando o bilhete entre os dedos úmidos, colocou-o no peitoril, fechando a janela no mesmo instante.

Havia uma tranqüilidade inviolável no espaço.

A viola calara-se, e no campanário afastado vibrou a primeira pancada da meia-noite.

Rosinha encostou-se à janela, fechada por dentro, e, estendendo os braços angustiados, apoiou-se à parede para não cair. Estremecia-lhe violentamente o corpo; seus olhos escureciam-se, e um suor gelado percorria-lhe a testa abrasada.

Pouco adiante da casa de José Paz saíam de um grupo escondido entre as árvores palavras em surdina e constantes murmúrios. Eram os espiões capitaneados por Pedro Cambraia, à espera do fantasma que tanto horror causara entre os sabedores da aventura.

— Vocês vão ver — dizia o Tibúrcio, o valentão — que tudo foram maluquices da cabeça do Cambraia!

O homem estava com sono e viu almas por toda parte! A Maricas Guandu estava também na troça, embrulhada em uma saia de sarja, a título de capote.

— Não façam barulho, filhos de Deus! — observou ela. Está batendo meia-noite em S. Gonçalo.

Calaram-se todos e dez olhos curiosos seguiram a mesma direção pela estrada acima.

Nesse momento fechava Rosinha a janela, depois de deixar o bilhete, e encostava-se à parede, vacilante. Os latidos de um cão feriram-lhe os ouvidos, e, como se se arrependesse do que havia feito, tentou por um esforço extremo abrir de novo a janela.

Os espiões conchegaram-se uns aos outros apontando para um ponto ao longe.

Pedro Cambraia benzeu-se e o Tibúrcio esfregou as mãos para chamar coragem. A Maricas Guandu sentiu as pernas dançarem-lhe de medo e fechou espavorida os olhos.

De feito, uma sombra alva, uma grande túnica e dois braços estendidos para o céu desciam da mata silenciosa, e vinha aquela figura sinistra andando pela estrada, através da pálida luz das estrelas, devagar e sem ruído.

Os espiões tiritavam como condenados ao pé da forca. O Tibúrcio, que era o mais corajoso de todos, pedia ao céu que lhe fizesse nascer nas costas e nos pés dois pares de asas velozes.

Foi justamente nesse instante que Rosinha tentou abrir de novo a janela, e depois de lutar com a aflição que a sufocava, e com as névoas que lhe obscureciam a vista, estendeu agonizante os braços hirtos, e caiu sem sentidos no meio do quarto.

Eram quatro horas da madrugada quando tornou a si. As meigas aragens, precursoras da manhã, entravam pelas frestas, em serenos bafejos. A afilhada da milionária a custo moveu o corpo alquebrado de fadiga, de comoções e de febre, arrastando-se à janela e abrindo-a com uma rispidez nervosa e frenética. Na barra do horizonte as frouxas emanações do dia estendiam-se como um véu diáfano. As árvores meneavam a copa orvalhada, e os grilos amiudavam o cristalino canto, à proporção que a luz do céu ia anunciando a presença da alvorada. A atmosfera estava transparente e calma. Uma ou outra ave noturna, retardada, singrava com a asa silenciosa a onda etérea do crepúsculo matutino.

Rosinha apoiou os cotovelos nus na janela, e respirou com o desespero do moribundo os consoladores ares da natureza virgem. Pálida e angustiada, sorriu a todos os primores que seus olhos viam, exatamente como essas crianças desamparadas, que pela última vez saboreiam os encantos de um mundo esperançoso quase perdido para as suas ilusões, para os seus amores e para a sua existência inconsolável.

Batiam-lhe tumultuosamente as fontes e os seus olhos secos vagavam de um ponto a outro sem consciência, inquietos, assustados, abrasadores e fatais.

Depois, como se duvidasse do que se passara durante a noite, correu os dedos frios pelo peitoril da janela; o bilhete havia desaparecido. Cravou a vista no chão, supondo que o vento arrebatara o papel; na terra gretada e nua amontoavam-se apenas algumas folhas amarelas, que o sol e as brisas desprendiam das árvores.

A menina apertou ao peito agitado as mãos febricitantes e desatou a chorar. De longe em longe os galos correspondiam-se, saudando os róseos vapores da manhã, que esgarçavam-se no oriente.

Pobre criança. Para ela tudo estava já perdido, e nenhuma das santas harmonias da natureza achava eco em seu coração dilacerado! No meio das angústias, das lágrimas e do terror que a perseguiam, ela reportava-se ao passado e arrependia-se, embora tarde! De ter abandonado, atraída por um destino insensato, o verde ramo das palmeiras natais, onde estremecia vazio o seu ninho ainda perfumado e quente!

As adoradas visões da infância enchiam-lhe a alma desvairada e um fresco aroma de boninas e madressilvas, que desceu na asa do vento, despertou-lhe a lembrança de um mundo cheio de folguedos e castas aspirações, submergido no naufrágio de todas as suas esperanças!

As velhas árvores que a conheciam, e a cuja sombra em criança ela tantas vezes adormecera, pareciam apiedar-se das suas dores e diziam-lhe, murmurando com os bafejos da manhã:

“— Foi tua a culpa, Rosinha. Vivias tão bem aqui ao pé de nós, à nossa sombra, ouvindo o doce rumor que a aragem acorda entre as nossas folhas orvalhadas e verdes! Que foste fazer nesse outro mundo, pérfido e traiçoeiro, onde tudo é perigoso, o riso da criança, o olhar da inocência e as lágrimas incompletas? Abre de novo, abre o teu coração às místicas exalações da natureza que te viu nascer!
Chora, Rosinha! Chora! E consola-te também! Nunca é tarde para o arrependimento, e os remorsos são as escadas de espinhos por onde a alma sobe até os pés misericordiosos da Virgem!”

Do cálice das flores e do regaço das plantas começaram a sair, em caprichosos bandos, as borboletas, doidas pelo primeiro raio do dia!

A alada caravana roçava os cabelos desatados da menina, exclamando talvez na sua linguagem caprichosa e pura:

“— Também nós corremos sempre à procura do melhor mel e do melhor perfume, Rosinha! Mas sabemos distinguir a corola em que brilha a gota de ambrosia e o cálice onde dorme o veneno amaldiçoado! E tu, borboleta, borboleta! Por que tão depressa rasgaste as tuas asas e bebeste a longos tragos a loucura e a morte? Vem conosco, se queres, oh! chorosa irmã! Mostrar-te-emos os campos de esmeralda onde cantam os passarinhos felizes, e as encantadas grutas em que o vento suspira com mais doçura do que o orvalho quando escorre do leque dos coqueiros!”

O sino afastado chamava os fiéis à missa da madrugada. Despertavam os ninhos, e uma larga harmonia povoava a atmosfera transparente.

Rosinha levantou a cabeça e afastou do rosto, em um gesto arrebatado, os cabelos negros que se lhe colavam à pele enregelada.

Aquela noite valera um ano de sofrimentos para sua alma; estava lívida como um defunto, e em seus olhos já não brilhava a réstia aveludada mas sim um clarão negro e sinistro.

Voltou tremendo ao interior do quarto e ajoelhou-se; caiu ajoelhada à cabeceira da cama.

Entrelaçou as mãos, embebida na avidez dolorosa de uma oração intima, a oração do náufrago, quando vê partindo pelas ondas o destroçado lenho a que se agarra nos paroxismos da morte!

José Paz veio deitar-lhe a bênção, pronto para sair. Ia a negócio e só voltava tarde.

A menina escondeu a cabeça desorientada no seio do pai, e todo o seu corpo estremecia como ao contato das pilhas elétricas.

O matuto esbugalhou os olhos.

— Que é isto?

— Nada, não é nada, meu paizinho! — acudiu ela de pronto, tentando sorrir no meio de sua palidez mortal.

José Paz abanou melancolicamente a cabeça.

— Pois não saio mais — disse ele.

Mas Rosinha com um ímpeto nervoso tomou entre as suas as mãos calosas do velho:

— Saia! Vá, vá aos seus negócios, meu paizinho! Tinha que ver! Por minha causa, perder alguma coisa! O dia está bom, está fresco; repare. Há muito tempo que não faz um dia como o de hoje!

— Tu tens alguma, Rosinha, que não me queres contar!

Uma nuvem de rubor roçou as faces da menina.

— Eu? Nada sinto: já lhe disse. E o que foi, passou!

— O que é que passou?

— Um sonho mau — continuou ela com o olhar sombrio -, um sonho mau de fazer arrepiar as carnes!

— Ora, conta-me o sonho mau.

— Não, não! Para quê? Só em lembrar-me dele, cuido morrer!

— Ah! Rosinha! Rosinha! Parece que Nossa Senhora não tem mais pena da gente!

Cresceu uma lágrima nas pálpebras do velho que ele enrugou com a palma rugosa da mão.

Por um esforço heróico, a menina compôs o semblante e derramou em torno de si a alegria e a felicidade, pela luz dos seus sorrisos.

— Vá ao seu negócio, vá. Já me sinto inteiramente sossegada! E depois os sonhos mentem, meu paizinho. Se acontecesse tudo quanto se sonha!...

Quando ecoaram na estrada os passos lentos e pesados do matuto, Rosinha levou freneticamente à boca um bentinho que se lhe enroscava no seio, articulando com a voz sufocada em soluços:

— Minha Nossa Senhora das Dores! Protegei esta desgraçada!

E repetia cobrindo de beijos o adorado talismã:

— Pelo bendito sangue de vosso filho! Pelo bendito sangue de Jesus!

A velha dindinha Paula entrou no quarto já de rosário empunhado e os grossos beiços em ebulição beatífica.

— Muito bom dia, santinha!

— Bom dia, dindinha Paula! Bom dia!

— Que cara é essa, menina? Passou mal a noite?

— Muito, muito!

— Hein? O que foi?

— O que foi o quê?

— Que é que teve de noite?

— Nada. Dormi de um sono só até romper o dia!

Nem ela sabia o que dizer! A velha acocorou-se em um canto, apalpando a conta de um novo padre-nosso com uma nova ave-maria.

O sol apontava no horizonte e as aves selvagens em longos esquadrões voavam, pairando sobre as árvore cerradas da mata. Os curiós desafiavam nos sapotizeiros, e a rola gemia entre os troncos a sua eterna melopéia do amor e da saudade.

Os da banda de Pedro Cambraia relembravam na tasca da Maricas Guandu os pavorosos sucessos da véspera.

— Então? Agora é certa a coisa ou não é? — perguntou triunfalmente Pedro Cambraia.

— Tão certo — interrompeu a tendeira — como estar eu aqui olhando para vocês! Aquilo é desgraça que está para acontecer.

O valentão Tibúrcio entrou na tasca.

— Olá, Tibúrcio? Aposto em como não pregaste olho o resto da noite?!

— Já fui à Boa-Viagem e já vim — disse o recém-chegado.

— Fazer o quê?

— Convidar o Mariano para entrar com a gente logo de noite no rolo!

— Que rolo é esse? — perguntou a Maricas Guandu, contemplando em êxtase os seus enormes pulsos.

— A coisa há de se fazer de combinação — prosseguiu o Tibúrcio, abaixando a voz. — Vamos eu, Mariano, Pedro Cambraia, Teto, Basílio, que também vem logo, e...

— E eu! — exclamou a tendeira.

— Mau! Mulher sempre entorna o caldo!

— Ai, ai, que graça, meu sinhô moço! Se você quisesse fazer uma aposta!

— Vá lá!

— Eu fecho na palma da mão um vintenzínho xenxém, e se alguém for capaz de abrir...

— Ganha o vintém? Ora faça-me favor!

— Ganha cinco mil-réis! — bradou a tendeira, empregando na mesa um murro prodigioso.

— Safa! Estamos satisfeitos com a amostra! — observou o Brás arredando-se para a porta.

— Vou ou não vou? — perguntou a Maricas Guandu, cravando os olhos de jacaré na freguesia assustada.

— Vai sim, mulher, vão todos, vai o mundo inteiro que é melhor! Ora! Já não se viram!

— Você pensou em tudo como deve ser, Tibúrcio?

— Que dúvida! Eu, o Chico valente e qualquer outro, leva espingarda carregada de sal. Não há de ser preciso fazer fogo com toda a certeza, porque o patusco arreia de susto, assim que nós gritarmos.

— E se não se importar com os gritos, faz-se fogo?

— Pudera! Uma feridinha de sal é coisa que tem chupado muito menino bonito.

— E o inspetor?

— Conta-se tudo ao inspetor. Há testemunhas! Nós estamos no nosso direito!

— Lá isso é verdade! — disse Pedro Cambraia sentenciosamente.

— Dá licença para uma palavra? — indagou o valentão Tibúrcio.

— Tem toda.

— Eu acho melhor o seguinte: sa Maricas e um ou dois dos nossos ficam aqui na venda...

— Não, senhor; não, senhor!

— Ouçam, minha gente! Faz lua hoje, mas afinal de contas a noite é escura, quase sempre como fundo de cacimba. Arranja-se archotes com casca de cana e azeite, para, quando filar-se o meco, virem com luz e ver-se direito a cara dele.

— Assim como assim — observou a tendeira -, não é mal pensado, não. Pois está dito! Eu fico: eu, o Brás e o José Paz! Nada! O José Paz não serve!

— José Paz é home corajoso! — acudiu o Tibúrcio, com o orgulho do general que louva os atos de bravura de um subalterno.

— Esse há de vir com a gente tocaiar o bicho.

— Ele não acredita! Ainda onte, disse aqui que o Cambraia andava girando!

— Logo eu lhe amostro o que é gira, deixa estar! Ele é que parece não ter a cachola no seu lugar!

— Se o Paz souber da verdade, não põe dúvida em entrar na festa!

— Há de entrar com a ajuda de Deus!

— Sempre se vai ver quem é o diabo da alma!

— Credo! Não fala assim, Chico! Eu até achava melhor ir primeiro ao vigário antes de fazer nada. Pode ser o espírito de um pecador que faz penitência!

— Pois que vá fazê-la no inferno! — exclamou o valentão Tibúrcio esvaziando uma excelente quantidade de cana.

Brás, encolhido na soleira, seguia automaticamente os movimentos dos outros.

— E tu, Brás? Vens também de noite?

— Vote! Mais me valia cair de cabeça para baixo na estrada quando passasse o carro de ferro!

O Brás fica comigo para levarmos os archotes.

— Lá isso, bem. No fim da trapalhada toda, estou pronto!

— Mofino!

— É meu proveito se sou mofino! O Rodrigo ficou mal-assombrado e foi para o hospício de Olinda! Cá por mim inda quero comer muita farinha!

A capela dos Prazeres estava aberta na hora em que José Paz passava pela freguesia. O matuto entrou, ajoelhou-se e, com os olhos molhados fixos no altar da Santa, murmurou o nome da filha. O vigário vinha saindo da sacristia quando José Paz levantava-se e dirigia-se à porta da igreja.

— Oh! sr. José!

— Muito boa tarde, sr. vigário! — respondeu o matuto curvando-se até o chão. — Não quis ir-me embora sem pedir A Senhora Mãe de Deus pela minha Rosinha.

— Como vai ela? — perguntou o padre carinhosamente.

E ambos saíram para o adro da capela, cheio de fresco e de sombra. O sol derramava ondas de fogo, e a carroça de um engenho, atopetada de canas e mangas, rangia atravessando a estrada.

José Paz ergueu os olhos para o céu e suspirou duas vezes.

— Não vai bem, não, sr. vigário!

— Conta-me isso, homem!

— Alguns dias depois que queimei-lhe os livros e os vestidos, ela ria-se alegre, cosia cantando e não falava na madrinha.

— Bom, bom. Foste um pouco exagerado, meu velho, mas não faz mal!

— Depois começou a ficar outra vez aborrecida e triste como dantes! Ali anda mau-olhado!

— Ah! A propósito de mau-olhado, que história é essa de almas do outro mundo, não me dirás?

— São bestidades do Pedro Cambraia. Parece que o dinheiro da loteria tem lhe dado muito de beber, e o pobre home já não sabe nem o que vê, nem o que conta! Vosmicê acredita em almas do outro mundo?

O vigário sorriu paternalmente, e batendo no ombro do matuto:

— As almas não morrem, sr. José, mas também não voltam. Deus reserva-lhes na vida futura uma outra existência completamente diversa da que tiveram, quando arrastavam o corpo entre as misérias da vida.

— É o que eu digo; não voltam.

— Se algum mau espírito humano, José, usa desses meios fantásticos para amedrontar os ingênuos e praticar atos menos cristãos, merece um castigo tremendo!

— Então o sr. vigário cuida que...

— Não cuido nada, que nada vi. Homo sum. Ouvi estarem por aí a falar de uma figura branca que aparece no Jordão todas as noites, e que tem espalhado o pânico entre os pacíficos habitantes do lugar! Isso é um crime monstruoso e que não deve ficar impune.

— Pois cá no meu juízo, sr. vigário, tudo não passa de doidices do Pedro Cambraia!

— Vamos ao que serve. Por que não mudas de terra? A menina estimaria bastante talvez, e aquelas tristezas fugiriam com o sol de outros climas.

— No Jordão nasci eu; no Jordão nasceu ela, sr. vigário. Só para o cemitério é que a gente se mudará um dia!

— Deus os proteja então. Olha cá: traze-a domingo à missa aos Prazeres. É missa cantada que a baronesa manda dizer por promessa, e vem muita gente do Recife. Rosinha se distrairá um pouco.

— Até domingo, sr. vigário.

— Vens?

— Que dúvida! É preciso que Nossa Senhora veja aquela pobrezinha de quem se está esquecendo!

— Não blasfemes, José!

— Ah! sr. vigário! — exclamou o matuto com a expressão de um amor profundo. — Se vosmicê fosse pai!...

E engoliu um soluço que partiu-se-lhe na garganta agitada.

O padre estendeu-lhe a mão:

— Até a vista. Tenho uma caminhada agora e não posso demorar-me que se faz tarde. Adeus, e esperança na Mãe de Deus, bálsamo para todas as aflições.

— Olhe, sr. vigário — volveu José Paz com um sentimento de convicção inabalável -, alguma grande desgraça vai-me acontecer!

— Estás louco, homem!

— Enfim, a Deus me entrego. Se for assim, ele que tenha misericórdia de minha alma no outro mundo!

José Paz encontrou à entrada do Jordão três dos perseguidores do fantasma: Tibúrcio, Pedro Cambraia e Chico valente.

— Já lhe fomos procurar em casa, so Paz, mas a menina disse que você tinha ido não sei aonde.

— É nova festa, Pedro? Tiraste mais dinheiro na loteria? — perguntou José Paz gracejando.

— A coisa é mais séria do que um samba, so Paz — acudiu o valentão Tibúrcio. — Esta noite ...

— Ah! Ah! Temos histórias de almas?

Os quatro foram andando devagar, enquanto o Chico valente tomava a palavra:

— Não caçoe, so José. Agora não é só o Cambraia quem fala. Eu vi, viu o Tibúrcio, viu a Maricas Guandu.

— Mas o quê? O quê? que é que vocês viram?

José Paz estacou de repente, e aguardou a resposta dos outros.

Vimos pela volta da meia-noite uma sombra muito grande sair da mata e caminhar com os braços estendidos para a frente.

— Ora!

— Andou um pedaço, parou, olhou em redor assim a modo de quem vê se há gente no caminho, e...

José Paz desprendeu uma gostosa gargalhada.

— Acaba o resto! — disse ele ao Tibúrcio. — Quero me rir à vontade dessas asneiras! Pelo que vejo, tudo anda maluco por cá!

— A alma caminhou, caminhou e enfiou os passos para sua casa, so José!

José Paz deu um salto violento, como se pisasse as brasas de uma fogueira.

— Que é lá isso? — exclamou ele rubro e pálido, ao mesmo tempo com as pernas trêmulas e os punhos cerrados. — Olhe, so Tibúrcio, pela alma de minha mãe, que, se você não disse a verdade, meto-lhe no couro duas libras de chumbo grosso!

— Está dito, so José. Venha em nossa companhia hoje de noite, que vamos desencovar o bicho.

— Vou — respondeu José Paz, com a voz surda e vacilante; — leva-se alguma arma?

— Espingardas com carga de sal. Matar é crime grande, e, depois, se a alma é mesmo de defunto...

— As almas não voltam — interrompeu José Paz, lembrando as palavras do vigário. E murmurou entre os dentes contraídos:

— Eu levo a minha faca.

Rosinha tremeu reparando na fisionomia do pai quando ele entrou em casa.

— Estás melhor? perguntou-lhe o velho com uma duvidosa expressão de ternura e de cólera.

— Estou.

O matuto não buliu no jantar, e, ao sair da mesa, saiu também de casa. A menina correu ao seu quarto e deixou-se cair na cama, com os olhos desvairados e as mãos crispadas no travesseiro.

— Meu Deus! — gemeu ela — hoje é o último dia de minha vida!

Correu à janela, examinou de novo o peitoril, o chão do lado de fora, estendeu a vista mais além. Nada vendo do que procurava, respirou sofregamente e limpou o suor gelado que lhe escorria entre os cabelos soltos.

Não havia notícias da milionária, nem o criado viera, já há três dias, ao Jordão, de forma que aquela angustiosa carta, escrita na véspera, ainda não tinha seguido a seu destino.

Eram cinco horas da tarde. A porta da tasca dialogavam vivamente José Paz, Tibúrcio, Pedro Cambraia, a tendeira, e mais dois ou três sujeitos.

Um deles, um rapaz de 18 anos, robusto e cândido como um novilho, encostava-se negligentemente ao cano meio enferrujado de uma clavina. Chamava-se Mariano, e era o tal caçador da Boa-Viagem de quem falara pela manhã o valentão Tibúrcio.

— Às 11 horas — dizia José Paz -, estamos todos reunidos aqui para irmos tocaiar perto de minha casa.

— Quer a minha espingarda, so José? — perguntou o Brás.

Dois relâmpagos sanguinolentos cruzaram-se nos olhos de José Paz.

— Obrigado, rapaz. Eu tenho faca. E bateu no quadril.

— Cuidado com os tiros, se houver tiros, meu povo — observou a Maricas Guandu. — é bom a gente não ir parar na cadeia por uma coisa à-toa!

— Não há novidade — exclamou Pedro Cambraia. Tudo corre pelo melhor, sa Maricas. E você o que diz Mariano?

O rapaz da clavina, descansando a coronha da arma no chão:

— Eu vim só para ver — respondeu ele. — Se trouxe a Chica — era o nome da clavina -, é porque nunca ando sem ela. Mas para hoje não serve!

— Está carregada?

— E com chumbo de veado. Já tem mês e meio a carga, foi para a caçada do tal doutor, que gorou. Mas não faz mal; se for preciso trabalhar com o coice da arma, cá está o degas!

José Paz contemplava sua casa, através das árvores que a envolviam, com o olhar profundo e agoureiro.

Rosinha recebeu a bênção do pai à hora de se recolher; a mão do matuto estava gelada como uma lousa de mármore.

A menina não se despiu; começou a passear pelo quarto, ora rápida, ora vagarosa e trôpega, amparando-se às paredes e encostando o ouvido aterrorizado à tábua gretada da janela.

Estava quase a bater meia-noite. A lua, em toda a sua esplêndida doçura e majestade, contemplava, cercada de estrelas, a terra silenciosa. Um surdo ruído produzido de encontro à janela fez vacilar Rosinha; fora a asa de um morcego, animal sinistro que sempre anuncia desgraças, e que vinha talvez despertá-la para algum perigo iminente.

A infeliz teve ímpetos de abrir a janela, mas recuou defronte dessa ruim idéia. Novo ruído dentro do quarto chamou-lhe a atenção, e ela viu uma grande borboleta negra pairando sobre a sua cama.

Com os braços, as mãos e os cabelos inundados de suor, as pernas trôpegas e a boca enregelada, a afilhada da milionária seguia tudo o que a cercava, muda e sombria como as figuras que ornam os túmulos adorados.

Estavam de emboscada José Paz, Tibúrcio, Pedro Cambraia, Mariano, Chico valente e mais outro espião.

Tibúrcio, de joelhos na frente do grupo, com a espingarda entre os joelhos, alongava a vista pelos confins da estrada.

Soou a fatídica meia-noite, lentamente, na asa lúgubre do vento, que murmurava entre as árvores obscuras.

— Não façam bulha — murmurou Tibúrcio. — Ela não tarda.

José Paz tinha a boca entreaberta e a testa úmida, que reluzia ao clarão misterioso da lua. Chico valente, apesar do seu título de bravura, rezava consigo uma oração própria para conjurar duendes e fantasmas.

A um sinal rápido de Tibúrcio, todos prestaram mais atenção, arregalando os olhos enevoados pelo supersticioso terror que os acometia. Vinha descendo da mata a longa figura branca, de braços estirados e o porte sinistro como o de um espectro evocado entre os horrores dos túmulos.

José Paz apertou com a mão oscilante o cabo da faca, e seus olhos faiscaram tempestuosamente.

A sombra caminhava solene, silenciosa, assustadora, no meio da estrada. Tibúrcio examinou o gatilho da espingarda que estremecia entre os seus joelhos bambos.

— Vamos dar um grito para assustá-la, so Paz -questionou o Chico valente, doido por safar-se da meada.

José Paz fitou-o com um furor indescritível.

— Se alguém gritar aqui — disse ele surdamente -, cravo-lhe a faca na goela!

O fantasma pouco distava da casa de José Paz.

Tibúrcio voltou-se para o pai de Rosinha, e amedrontou mais do que a alma do outro mundo a cara hedionda do matuto, ruivo de cólera e de horror.

O peito arfava-lhe sibilando; as narinas zuniam-lhe vivamente e, de sua boca pálida, saia a respiração como o silvo das cascavéis no meio do fogo.

O fantasma aproximava-se cada vez mais, e José Paz abafou um grito na garganta abrasada.

— Não era possível duvidar! A sombra, depois de uma pequena pausa em que ficou parada como a examinar o que havia em redor, adiantou-se para a janela do quarto de Rosinha.

Tibúrcio levantou os braços e tentou gritar; a voz ficou-lhe estrangulada entre os dentes.

José Paz, alucinado, louco, terrível, deu um arranco de fera para trás, desembainhou a faca, lançou-a ao chão, e antes que se lhe pudesse impedir o movimento, arrebatou das mãos de Mariano a clavina, engatilhou-a e fez rogo, uivando como uma onça ferida.

A sombra moveu os braços longos e caiu estendida por baixo da janela. Quase ao mesmo tempo um grito de dor imensa atravessou o espaço, e uma outra sombra atirou-se da janela de Rosinha, caindo ao pé do ferido.

A Maricas Guandu e o Brás acudiram ao rumor do tiro com archotes que espalhavam uma luz penetrante e clara. Correram todos ao lugar do sinistro, e um brado geral desprendeu-se de todas as bocas. Rosinha de joelhos procurava estancar o sangue com as mãos agonizantes, o sangue que jorrava do peito do ferido, inundando a vasta mortalha em que estrebuchava o corpo.

Era Adriano. O chumbo penetra-lhe no lado esquerdo por baixo do ombro, fazendo uma ferida larga e mortal. As sombras finais coroavam a pálida cabeça do moribundo como de uma auréola sagrada. Seus olhos enublados fitavam o semblante da menina, e um sorriso doloroso e meigo voava nos seus lábios extáticos como a última irradiação da mocidade.

José Paz cambaleava e não tinha uma palavra a pronunciar naquela desolação horrenda.

A Maricas Guandu benzia-se, o Brás desatou a chorar, e o Mariano ajoelhou-se junto ao corpo do ferido:

— Perdoe-me, perdoe-me, meu senhor! — articulava o pobre rapaz, torcendo as mãos desesperado. — A clavina é minha, foi so Paz quem ma arrancou das mãos, mas se eu soubesse disto, antes queria rachar a cabeça de encontro a uma pedra!

Adriano voltou os olhos para o rapaz que soluçava contraindo-se em cãibras dolorosas.

— Não foste tu, meu amigo — disse ele a custo e com uma voz suave e triste -, foi a mão de Deus quem carregou a tua clavina. Pobre criança! — continuou contemplando Rosinha que, de joelhos, o observava sem proferir uma palavra e sem derramar uma lágrima — Pobre criança! O céu não quis que eu recebesse de tuas mãos a felicidade na Terra. Fica o teu véu de noivado, Rosinha, enodoado eternamente de sangue!

Ela não pestanejou sequer; parecia petrificada pela dor.

— Sr. José Paz — prosseguiu Adriano, procurando com os olhos quase apagados o vulto do assassino -, eu lhe perdôo e o lamento; não foi a mim que o senhor matou, meu velho, foi a alma de sua filha!

José Paz cambaleou de novo e segurou-se a uma árvore afastando-se do grupo.

— Não haverá um padre por aqui? — perguntou o ferido.

— Há nos Prazeres, e eu vou o buscar voando! — exclamou Mariano.

O ferido sorriu.

— Quando voltasses já eu estaria morto. Não vás, não; e ouçam-me vocês todos, meus amigos.

Aproximaram-se trêmulos, descobrindo-se um por um.

— Esta menina — acrescentou o moribundo – é pura como a hóstia do altar, e como as flores de Deus. O culpado fui eu que quis por força ir de encontro ao meu destino. E tu me havias prevenido, Rosinha! Mas estava escrito que este louco havia de morrer a teus pés!

A luz clara e brilhante, que por momentos se escondera entre nuvens, fulgurou no céu, de novo límpido e sereno. Um sabiá trinou no meio do mato, cuidando que era dia.

Adriano prosseguiu, abaixando a voz pouco a pouco, e à semelhança de uma luz que bruxuleia e apaga-se na lanterna seca de óleo.

— Adeus, Rosinha, pensa algumas vezes em mim...

Respirou com força como a despedir-se para sempre das aragens da terra, e:

— Guarda o meu nome no teu coração, oh! Meu doce e desgraçado amor!... Reza para que o céu tenha piedade de minha alma lá em cima!

Rosinha, sempre muda, cruzou as mãos molhadas de sangue no seio que estalava ofegante.

Adriano Carvalhal foi, pouco a pouco, deixando cair a cabeça, estirou os pés gelados sob a mortalha roçagante, e tentou por um esforço sobrenatural apertar na sua a mão da virgem.

Mas as forças abandonaram-no, e a mão pesada caiu sobre o corpo ensangüentado.

Seus olhos, sem irradiações e sem chamas, embeberam-se no céu.

— Quantas estrelas. — suspiraram os lábios extáticos e deslumbrados.

E, entreabrindo a boca, o moribundo exalou o derradeiro sopro, a derradeira exalação o derradeiro vestígio de sua mocidade. Para o céu festivo ascendeu aquela pobre alma enamorada, ferida no melhor banquete de suas esperanças e de suas ilusões de amor.

Rosinha desprendeu um grito rouco e cavo, entre o som produzido pela voz humana e o bramido da fera baleada. Ergueu-se de ímpeto, atirou para trás os cabelos negros, curvou-se junto ao cadáver, sacudiu-lhe a cabeça inanimada e, desferindo um círculo com os pés velozes, saltou sobre o corpo de Adriano e partiu a correr pela estrada deserta.

A Maricas Guandu e o Brás voaram-lhe no encalço e a prenderam nos braços quase à beira do rio. Ela olhou-os com uma feição de idiota, escondendo os dedos vermelhos de sangue, e desatou a soluçar, a chorar e a rir vibrantemente, ameaçando o céu com as mãos fechadas e convulsas.

José Paz foi entregue à justiça como assassino de Adriano Carvalhal.

A milionária envelheceu em uma semana, e metade de suas alegrias foi dentro do esquife do sobrinho. Pouco safa; apenas de dois em dois dias ia a Olinda, e visitava alguém no hospital dos alienados.

Esse alguém era a Rosinha do Jordão.

Contava a irmã de caridade que a loucura da menina era das mais dóceis — de que há notícias entre os desgraçados, órfãos de razão e de luz.

A menina gastava o dia inteiro em trançar coroas com flores, com papel e com tudo que lhe caia às mãos, para no dia seguinte desmanchar a obra e começá-la de novo.

Não pronunciava uma palavra, e olhava para a madrinha de vez em quando, como se nunca a tivesse visto neste mundo.

A meia-noite erguia-se da cama, e pé ante pé, com o dedo na boca, a reclamar silêncio, metia-se no vão da janela, ouvindo em santo recolhimento as 12 pancadas do sino confundidas com o sussurro eterno do mar.

Era essa a hora em que ela costumava esperar o pobre do Adriano.

Vi-o pela primeira vez no teatro de Santa Isabel, em Pernambuco, em uma noite em que a companhia italiana, dirigida por d. José Amat, dava o Barbeiro de Sevilha, a feiticeira pérola da coroa rossiniana.

Nada tem a minha história com a arquitetura ou com a empresa lírica do teatro pernambucano. Deixemos, pois, o edifício do Santa Isabel, que era graciosíssimo, e o empresário Amat, que ouve a esta hora os gorjeios vibrantes da Adelina Patti, para nos embebermos unicamente na essência que produziu este conto fugitivo e real, como a imagem da vida comum. Às oito horas em ponto apoderei-me da minha cadeira, pouco distante da orquestra. O regente moveu agilmente a batuta e os instrumentos entraram em campo, atacando com brio e com amor a introdução da ópera monumental.

Eu havia chegado da Corte poucos dias antes, e não estava disposto a perder a mais sutil particularidade da vida elegante de Pernambuco. Na véspera gozara os suaves eflúvios das auras do Caxangá; na antevéspera dormira em Apipucos, com as janelas do quarto abertas aos quatro ventos do céu e ao melancólico clarão da lua aventureira.

A orquestra deu-me desde o princípio a conhecer a inteligência dos professores que a compunham e do maestro que a regia. A introdução do Barbeiro, viva, cristalina, eloqüente, ora sentida como um amuo entre lágrimas, ora turbulenta como as gargalhadas de uma infância traquinas, prendia a minha atenção de turista à fiel interpretação musical da jóia de Rossini.

As senhoras nos camarotes, cheias de interesse, de pedrarias e de sorrisos, aspiravam os sons diáfanos das originais harmonias; os dillettanti sentavam-se caprichosamente limpando os vidros do binóculo e o cristal dos pince-nez indiscretos.

No meio da grandiosa ouverture, a flauta incumbida de um solo brilhante espalhou com uma etérea onda de melodias o profundo silêncio da atenção e do êxtase em todo o teatro.

Nos camarotes os leques colheram as buliçosas asas; na platéia os murmúrios e os diálogos cessaram como por encanto, à primeira nota do mágico instrumento.

A flauta era acordada por sopro de mestre, uma brisa inspirada percorria-lhe o misterioso tubo, extraindo daí cardumes de sons peregrinos que voavam em redor de todas as almas como um bando de segredos divinos.

Não pareciam notas de instrumento tangido por força humana, pois só o vento que surpreende o eco, só hálito da tarde que desperta o arvoredo possuem vozes assim, tão macias, tão brandas e tão magoadas.

As palmas na platéia e os lenços nos camarotes receberam os últimos ais do predileto instrumento.

Foi tal o sucesso, que por um minuto o regente suspendeu a orquestra em massa.

— Bravo, Salustiano! — gritavam as vozes frescas da mocidade acadêmica.

— Viva o Salustiano!

— Bis! Bis!

— O solo!

— O solo, Salustiano!

Recrudesciam as palmas, multiplicavam-se os bravos, e os aplausos, de animados que eram, chegaram a tocar a veemência do delírio.

Não houve remédio; apesar do olhar trôpego do delegado e de cinco ou seis fardas imponentes do camarote policial, o regente da orquestra voltou a página da partitura, e a meiga flauta, a adorada flauta, a flauta tentadora, ergueu-se de novo como um incenso de melodia naquele religioso silêncio do amor e da admiração popular!

Quando precipitaram-se as novas ovações, no final do solo, Salustiano levantou-se do fundo da orquestra e inclinou a cabeça comovida perante o público, arquejante de entusiasmo.

Era um rapaz de 22 a 25 anos, pálido e formoso como aquele Rafael de Lamartine, cujo retrato todos nós gravamos na nossa alma, depois da leitura das castas estrofes do mais inspirado livro deste século.

Fulgurava em seus negros olhos o tranqüilo astro do gênio, que derrama sobre as fisionomias favoritas da divindade uma aurora imortal. Ele sorria tímido quando saudou o público, e a flauta estremecia em suas mãos, como o arco da rabeca entre os dedos de Paganini na hora dos supremos triunfos.

Momentos depois, ergueu-se o pano, e Rossini, auxiliado por uma ruim companhia ambulante, apoderou-se da atenção pública.

Menos da minha; durante todo o primeiro ato não afastei os meus olhos do semblante pensativo e meigo de Salustiano.

Quatro meses depois, batia eu à porta da casa n.o 54 da rua da Roda, onde morava Salustiano em companhia de sua mãe, e de uma raquítica megera, que lhes servia de criada. Já nós nos dávamos com essa franca e cordial expansão da mocidade, tão pronta a entregar-se e a sacrificar-se entre dois sorrisos

Ele estava de cama, atacado por uma febre violentíssima. Quando me abriram a porta, saía o médico. A velha mãe do artista apertou-me as mãos afogada em lágrimas e soluços.

— Ânimo!

— É o que lhe digo — acrescentou o médico, continuando o meu pensamento; — o moço, embora gravemente enfermo, salva-se com toda a certeza.

— Deus o ouça, meu senhor!

— Mande já a receita à botica, e não se esqueça de ministrar-lhe a beberagem: um cálix de meia em meia hora.

— Vá descansado, sr. doutor

A velha apresentou-me ao descendente de Esculápio. Estendemo-nos as mãos, e ele chamando-me de parte.

— É conveniente que o senhor fique por aqui até a minha volta. A febre é traiçoeira, e se o delírio aumentar, não há braço de mulher que contenha o Salustiano.

— Com todo o gosto fico doutor. Interesso-me por este moço, e se for necessário passarei a noite inteira ao pé dele.

— Bravo. Vou mais tranqüilo, adeus. Pouco me demorarei.

Penetrei na alcova do doente, Impressionado deveras. A luz da velha lâmpada, posta discretamente na penumbra, aclarava em moles raios o silencioso aposento.

Salustiano estava lívido como um cadáver, e de sua boca entreaberta escapava-se o silvo agudo da respiração intermitente e febril. Os seus olhos meio cerrados nadavam em luz, e uma crispação nervosa sacudia-lhe às vezes o corpo da cabeça aos pés, como ao contato de uma pilha de volta.

A mãe do artista, sentada em um canto da alcova, ora limpava as lágrimas, ora desfiava, murmurando, as contas negras do rosário.

O quarto do Salustiano era um genuíno quarto de boêmio.

Na cintilante cal da parede viam-se duas ou três figuras de odaliscas e um retrato de Pergoleso. Junto à cabeceira gemia uma carunchosa estante ao peso de uma porção de livros de música e das obras completas dê Henrique Heine, seu escritor predileto.

No meio de tudo isso mortalhas de cigarros esparsas, dois cachimbos funambulescos e o busto de Petrarca, coroado de rosas e de louros.

Sentei-me defronte do doente e esperei. Um despertador colocado sobre a mesa, cheia de garrafas de medicamentos, quebrava a mudez do quarto com as suas longas e soturnas palpitações.

Pobre Salustiano! Ali estava ele talvez às portas da morte, com pouco mais de 20 anos e um surpreendente talento, digno da imortalidade na Terra e no paraíso! Ninguém o acompanhava nos seus amargurados transes, senão as dolorosas lágrimas maternas e o simples cuidado de um amigo, por assim dizer, da véspera, um amigo como se encontra tantas vezes na mocidade, entre os rumores de um festim e à beira de um túmulo insondável.

Eu me prendera pela simpatia e pela admiração ao engenhoso flautista, e desde a noite do Barbeiro de Sevilha Salustiano abriu o rol dos meus mais queridos companheiros. “A la vie! A la mort!”, como era a divisa do Antony.

Aquele dia era um sábado. O sábado, em Pernambuco, desde o toque de recolher, assemelha-se às mais formosas noites de Sevilha, em que dizem que os suspiros do amor e os suspiros das serenatas cruzam até o romper da alvorada, através dos flutuantes clarões da lua!

Enquanto eu me perdia em tristes pensamentos com os olhos fitos no busto melancólico do doente, parou pouco distante da casa um grupo, e os sons maviosos de uma flauta acompanhada a violão espalham-se lentamente na sua atmosfera.

Salustiano abriu os olhos e apertou com os dedos frios a cabeça abrasada.

Aproximei-me rápido, e a velha correu ao meu aceno. Apoderamo-nos ambos das mãos do artista.

A flauta na rua exalou mais plangente melodia, e as cordas vibrantes do violão pareceram soluçar convulsivamente.

— Ouçam! — murmurou Salustiano pondo o dedo sobre a boca. — É assim que começa o hino! O grande hino! O sublime hino!

— Salustiano!

— O hino da mocidade! — terminou ele, caindo como uma massa inerte ao longo da cama.

O médico, que entrava, examinou atentamente o pulso do doente.

A serenata estava no auge do entusiasmo.

Salustiano veio convalescer em minha companhia.

Aluguei para esse fim uma pequena e graciosa casa em Olinda, onde acondicionei a limitadíssima família do artista. Eu freqüentava nesse tempo o quarto ano acadêmico, e, depois da aula, voava ao meu silencioso sítio, em cujo limiar os dois hóspedes recebiam-me como se recebe um irmão e um filho estremecido.

Olinda é uma das mais encantadoras paragens do mundo.

Para os amigos da solidão, da paisagem e do silêncio, nada vale aquela cidade peregrina, plantada à beira d'água, e que contempla pensativa o mar, como a noiva de um marinheiro à espera da adorada vela do seu amor.

À tarde, eu e o artista sentávamo-nos em uma espécie de terraço que deitava para o nascente, e líamos alguma coisa, quase sempre o Intermezzo de Reine, de que ele era apaixonadíssimo.

E enquanto os navios singravam ao longe, e as jangadas perdiam-se na barra inflamada no horizonte, a alma daquele sublime rapaz bolava como uma gaivota nas doces ondas da inspiração e da poesia:

LV

“A floresta despertou ao som precipitado dos meus passos e eu vi as árvores agitarem os ramos, murmurando piedosamente e compadecendo-se do meu destino.

LVI

Em campos agrestes e desertos enterram-se os infelizes que se suicidam.

Ali nasce uma flor azul; chamam-lhe a flor da alma maldita.

Parei nesses campos e desprendi um suspiro. A noite estava fria e silenciosa. Aos raios frouxos da lua, eu via mover-se brandamente a flor da alma maldita.

LVII

Uma negra escuridão cobre os meus olhos, depois que os não a alumia a luz dos teus, ó meu anjo idolatrado!

A estrela do amor apagou-se para mim; vejo aberto um abismo diante dos meus passos; oh! noite eterna, sepulta-me para sempre no teu regaço!”



— E haverá melhores harmonias do que as desta protetora lira? — dizia-me o Salustiano, com os olhos úmidos e extáticos. Repara naquele brigue que aproa para nós; vê como o clarão do sol no poente envolve-o como que de uma bênção divina! Ler-se Heine, desta maneira, é gozar duas vezes a poesia; pelos olhos e pelos ouvidos! Lê, lê!

Voltando alguns capítulos do Intemezzo, eu continuava:

LVIII

“A tempestade faz gemer a frondosa ramagem das árvores, a noite está pesada e fria; eu atravesso o bosque no meu altivo e impaciente corcel. E enquanto o meu cavalo galopa, os pensamentos que me borbulham na mente transportam-me aos pés da minha amante.

Ladram os cães, aparecem os criados com archotes; eu subo a escada, fazendo tinir as minhas estridentes esporas.

Em um aposento atapetado e resplandecente com a chama de milhares de luzes, no seio de uma atmosfera serena e embalsamada, minha amante espera-me. Caio delirante entre os seus braços!

E o vento fustiga as folhas do carvalho, e elas parecem dizer no seu murmúrio lúgubre:

‘Para que te deixas dominar, louco cavaleiro, de insensatas ilusões!”

O crepúsculo, cujo véu obscuro caía lentamente sobre as ondas e envolvia a terra silenciosa, interceptava-nos a leitura do poema.

A velha, com medo do sereno, reclamava para o interior da casa a presença do filho, e terminávamos a noite, antes de nos recolhermos, ele a seguir o vôo das mariposas em redor do lampião, eu a folhear as Ordenações do Reino e os contos de Nodier.

Um dia Salustiano disse-me:

— Há um segredo na minha alma que preciso te revelar. Um segredo profundo como o mar, e perigoso como ele.

Contemplei-o atônito; nunca sua voz soara em meus ouvidos com tão fúnebre entoação, nem seus olhos despediram tão lúgubres centelhas.

— Há um segredo em minha alma! — repetiu o artista.

A natureza parecia querer ser intérprete das confidências misteriosas de Salustiano. O céu, pensativo e curioso, acendera todas as suas pupilas, e um milhão de aragens molhava a asa no mar e nas flores, à cata de segredos. As ondas sussurravam na praia alva e longa, a lua entornava o tesouro de mágicas ardentias, e no mar alto vogavam, mal surpreendidas por nossos olhos enevoados, as velas dos navios que abicavam ao porto, lutando com a maré e com os ventos contrários.

Salustiano tomou-me as mãos inquietas entre as suas:

— Crê, meu amigo, um mistério profundo me persegue como a minha sombra, como o meu sangue, como a minha alma. Dir-se-ia que Deus deu-me o gosto e o sentimento da poesia unicamente para que eu medisse o espaço que a desventura ocupa no meu coração! Amo, amo perdidamente uma mulher!

— E é essa a tua desgraça?

— É, sim; a minha desgraça está nesse amor. Não leste nunca a história de Bernardim Ribeiro e as aventuras do Tasso, pobres vermes sublimes apaixonados por uma estrela? Pois eu sou como eles. Estou apaixonado por uma estrela!

Salustiano ergueu os olhos ao céu, respirando sofregamente.

— Que estrela? — perguntei eu, gracejando. — Vésper, Mercúrio, Saturno, Minerva, Vênus, Júpiter? Estarás apaixonado por Júpiter, Salustiano?

— Júpiter, o rei dos raios? Justamente! O meu astro fulmina, meu caro, arrasa, pulveriza, incendeia! Tu a conheces; é a mulher mais bela do mundo; e decerto o anjo mais desejado do céu.

— Oh!

— Não rias. Poupa-me o teu espírito hoje, e deixa que esta confissão corra pacífica e suave como todas as confissões em que entra a alma.

— Está dito. Conta-me a tua paixão.

— Não é propriamente uma paixão mundana; não é o amor; não é o desejo; não é o entusiasmo; não é o coração. É o êxtase e o misticismo. Encontrei-a um dia... Mas para que recordar-te coisas que não podem te interessar absolutamente?

— Continua!

A velha chamou o filho por duas ou três vezes. Caía o sereno com o terno raio das estrelas.

— Eu sou pobre, como sabes; pobríssimo até; sou um miserável...

— Grande termo! Um miserável!

— Um miserável na extensão da palavra. O burguês que encontra na gaveta uma moeda de vintém, e na mesa uma côdea de pão, é mais feliz do que eu. Muito mais feliz.

— Estás hoje digno de um taquígrafo!

— Ri-te, tu que possuis um pai, uma família e tens um correspondente que te compra livros. Em vão, meu filho, em vão tentarás devassar com a vista impotente o negro abismo em que se estorce a miséria! Ser proletário é pouco; sentir a dor dessa lepra é que é horrível. Eu a sinto, Luís! Sinto-a com as maiores torturas e com as mais amargas lágrimas!

Minha alma pendia dos lábios vibrantes do artista, como um virtuose das cordas trêmulas de uma rabeca ou do tubo de uma flauta Inspirada.

— A minha estrela, esse astro fatal que conduz os poetas e os artistas, iluminou-me o espírito e arremessou-me ao canto obscuro de uma orquestra, em cujo trabalho mal chegavam minhas mãos a arrecadar o pequeno óbolo para o sustento desta infeliz mulher que me deu a vida. Como eu invejei, como eu invejo Bellini, Rossini, Mercadante, Donizetti, Beethoven e os outros mestres! Esses foram os prediletos do Senhor, e as suas inspirações, bafejadas pelo sopro divino, impuseram-se ao mundo com o fulgor dos fenômenos e a grandeza dos milagres!

— Espera, Salustiano. Para ti é que o futuro reserva palmas e coroas. Verás.

— Porque sou moço; não é verdade? Deixa-te disso. Eu nasci com a desventura amarrada às costas, como o caramujo com a inseparável concha. Esta desventura atroz é a minha existência; sem ela, eu morreria, embora nadasse em mares de dinheiro e me reclinasse aos coxins da opulência. Há quem venha ao mundo para ser banqueiro, quem venha para ser poeta, artista, bandido, parricida ou milionário. É o destino, meu caro. O destino inexorável e fatal. Quanto a mim, vim ao mundo com a seguinte sina: amar a glória impossível e a mulher mais impossível ainda. Eis o caso do canto de Heine ou de Murger: um grilo amante da estrela Vênus!

— E a tua flauta, louco!

Os olhos do artista chamejaram na sombra.

— A minha flauta? É a minha perdição, é a minha tortura, é o meu abismo! Que de dores tenho tragado por causa dela, Deus do céu! Foi em uma noite da Traviata — continuou ele, com a voz vacilante e a face lívida, como um condenado que se confessa no último degrau do cadafalso -, em uma noite em que o teatro estava cheio até a última galeria e uma atriz festejada incumbia-se pela primeira vez do tipo da Violeta. Ela estava no teatro...

— Ela?

— Não me perturbes! — exclamou Salustiano torcendo-me a mão nervosamente. — Ela estava no teatro. Bem defronte de mim; risonha, coberta de flores, de brilhantes e de cetins voluptuosos...

No fundo do camarote o pai contemplava-a com um olhar meigo e persistente. De seus olhos escuros escapava-se a irradiação de um céu inteiro, quando a noite vai calma e o mar adormece aos melancólicos afagos do vento! Por mais que meus olhos a procurassem, ela entregava-se venturosa aos meneios do seu leque e às frases perfumadas que um ou outro elegante, nos intervalos, dirigia-lhe em furtiva visita. Subiu o pano no quarto ato. Toda a sua alma embebeu-se no feiticeiro poema das lágrimas e das amarguras que em cena se desenrolava. Da pupila úmida desprendia-lhe um terno lampejo, e sua boca entreaberta deixava escapar suspiros mais chorosos e puros do que todas as melodias de Verdi... Incumbido do acompanhamento da célebre romanza final, estremeci tomando a flauta, como um assassino quando levanta o punhal sobre um peito indefeso. As luzes do salão multiplicaram-se à minha vista ansiosa; os aromas invadiram-me vertiginosamente; orquestra, teatro, luzes, público, Verdi, artistas, tudo desapareceu ante meus olhos paralisados, e só ela, ela só, erguia-se na noite tempestuosa de minha alma, à semelhança de um astro que rompe o nevoeiro da chuva ou o sorriso de uma mãe que transparece através de nossas mais tormentosas lágrimas!...

A prima-dona volvia o olhar assustado para a orquestra; o regente agitava a batuta; o povo murmurava... Que tinha eu com esse mundo estúpido, incapaz de compreender-me?

O sangue fervia-me nas artérias; a luz fugia de meu espírito; palpitava-me sôfrego o coração, e com a vista cravada nela, que, como todos, me contemplava indiferentemente, deixei cair das mãos a flauta inútil, saboreando o prazer inefável da minha ventura, das minhas dores, dos meus triunfos e das minhas alegrias simbolizadas naquela criança esplêndida e cruel! Arrancaram-me das mãos o maldito instrumento, e não sei como continuou o espetáculo.

No dia seguinte lembrei-me da ridícula cena, enquanto minha mãe chorava à cabeceira de minha cama e o médico estudava-me o pulso e a cabeça.

— Salustiano! — exclamou a velha pela centésima vez. Levantamo-nos ambos e dirigimo-nos ao interior da casa.

O artista disse-me ainda quase ao ouvido:

— Eu te hei de mostrar. Se morrer em breve, crimina-a porque morro por causa dela.

— Ora!

— Morro.

Salustiano T., ao autor.

A bordo do Cruzeiro do Sul, 20 de outubro de 186... Meu caro Luís. — Vou deixar-te esta carta na agência dos paquetes nacionais, no Ceará, em cujo porto fundearemos amanhã, se não falharem os cálculos do comandante Alcoforado. O mar está furioso; o vapor joga como um endemoninhado e o vento norte assovia arrogantemente nas gáveas e nos mastros despovoados.
Que tristeza, meu caro! Que tristeza apodera-se de minha alma e que dolorosíssima saudade! Desventurada existência de artista! Hei de estar sempre exposto a todos os perigos e contrariedades para conseguir um pouco de pão, enquanto os imbecis comem à farta em lautos banquetes.
Na realidade, vale a pena correr atrás da glória. Porque, digamos em confidência, eu amo a glória e o triunfo com uma fatal persistência e um inaudito arrojo. Que queres? É o único meio de aproximar-me a ela. A glória é uma escada de luz que devora o espaço aberto entre as ervas e as estrelas.
O mar geme neste momento como um moribundo impenitente. O vento diz coisas lúgubres, zunindo de encontro aos capacetes flutuantes das ondas, e o horizonte estende-se sobre nossas cabeças, escuro e fúnebre como uma ameaça.
O comandante por muito favor concedeu-me o seu beliche, onde eu escrevo-te estas mal amanhadas linhas. O Byron foi um doido quando teceu ditirambos engrandecendo o enjôo, e o meu adorado Henrique Heine no mar do Norte mentiu dando ao Oceano qualidades que o pobre velho nunca teve nem terá. Poetas! Poetas! Desculpa se te toco na ferida.
Tens ido ao Caxangá? Tens ido a Apipucos? Dá lembranças ao fotógrafo alemão que me fez o supremo beneficio de me ceder um retrato, companheiro hoje da minha saudade e das minhas veementes aspirações.
É o retrato dela! Imagina que felicidade! O retrato dela, pensativa e formosa como um anjo que está recordando-se das primaveras eternas do céu!
Sei que teimas em saber o nome da minha feiticeira. Desculpa-me o mistério. Tenho eu próprio medo de pronunciá-lo a sós, aqui mesmo, no meio do mar e da noite. Poderiam as ondas levá-lo e, espalhando-o em ouvidos indiscretos, revelarem o meu criminoso segredo ao mundo.
Procura-a nas melhores reuniões, nos melhores bailes, nas mais suntuosas festas, que a encontrarás com certeza. Ela e a alma da beleza, e ao seu contato não há quem deixe de sentir a influência magnética que os seres privilegiados exercem geralmente.
Amaldiçoado e bendito amor! Por que motivo a sociedade e o destino separaram-nos um do outro com tanta crueldade! Ah! meu amigo! Eu daria satisfeito metade de meu sangue para poder cair, rojar-me aos pés dela beijando entre lágrimas de divina alegria as margens do seu vestido perfumado, ouvindo em êxtase a sua voz, que me perdoasse.
Tenciono demorar-me no Pará o tempo suficiente apenas para dar alguns concertos e matar os desejos da minha mãe: ela ansiava por esta viagem; é uma paraense dos quatro costados, que necessita de vez em quando saborear as aragens natais de suas virgens florestas, sob pena de morrer aos poucos de nostalgia e de tristeza.
Pobre mãe!
Anteontem fez um dia soberbo e o mar estava manso como a lanugem de uma ovelha... Encostado à amurada do vapor, pus-me a contemplar o firmamento e uma velinha branca que bordejava nas vaporosas plagas do horizonte. Lembrei-me de Olinda, e senti mais do que sempre a tua falta, meu bom, meu único amigo! Qual será o destino que o céu me reserva? A ventura não foi criada para mim, e parece-me que as coroas do meu triunfo eram entrançadas com os goivos melancólicos da morte.
Antes que me esqueça, devo dizer-te: não estou bom, creio mesmo que estou bastante doente. Vem a bordo um médico, o dr. Ramos, da Bahia, a quem pedi que me auscultasse e aconselhasse. Disse-me que eram cismas minhas.
Cisma! Pode ser, mas afianço-te que há momentos em que tenho medo de ficar doido. Correm-me nuvens nos olhos, e um frio de morte apodera-se de meu corpo todo. Um cortejo extravagante, imagens burlescas, e sérias, pensamentos lúgubres e joviais, todo esse imbroglio rodeia-me em sonhos e quando estou acordado, a ponto de me aterrorizar.
No meio disso, porém, através dessas tempestades absurdas, fulgura o rosto e irradia o sorriso daquela mulher como o arco da aliança, como os primas da minha existência, submersa em um dilúvio de lágrimas. Adeus; é tarde, e sinto-me fatigado. Lamenta-me e estima-me, hei de mandar-te contar os meus sucessos ou desastres no Pará. Deus não há de ser mau para mim, que dizes? Conceder-me-á a suprema ventura de morrer na terra em que ela habita, respirando pela última vez os ares que lhe dão vida, mocidade e beleza.
Recomenda-me ao Colas e ao Coimbra do Santa Isabel. Aperta-te as mãos o teu velho e saudoso amigo

Salustiano T.

”

Nessa como em mais duas ou três cartas que Salustiano me escreveu, o espírito do artista parecia vacilar; raras vezes seguia um pensamento judicioso, e desde o momento em que sua pena lembrava a mulher adorada, vinha logo adiante uma fileira de palavras extravagantes, apaixonadas, dolorosas, que refletiam o estado anormal daquela miraculosa alma, tão digna de pairar na serena atmosfera da glória e da riqueza.

Fui uma noite ao Clube Pernambucano. Intrigava-me deveras o mistério dentro do qual o artista metera o seu amor, com o ciúme da concha quê acoita a pérola e da onda que sepulta as bagas do coral.

A mocidade impelia-me à descoberta do segredo, e nessa noite a nova diretoria do Clube abria os elegantes salões com um opulento baile.

Entrei às 11 horas e percorri avidamente com os olhos o grande salão festivo, em que cruzavam-se gazas, casacas, diamantes, flores e sorrisos. A orquestra enchia o ar de harmonias arrebatadoras; um denso aroma de cravos e rosas pejava a tépida atmosfera; e os leques adejavam como asas fugazes em plena primavera de amor.

Passava no turbilhão uma menina formosa, de olhos mortos e seio ofegante. Será esta?, perguntava eu a minha alma curiosa. Mais adiante outra curvava-se sorrindo à palavra lisonjeira do cavalheiro. Será aquela? Ou aquela outra, que arrasta com o aprumo de uma rainha a longa cauda dos vestido de cetim azul orlado de flores de ouro?

À uma hora da madrugada recrudescia o meu afã e o mistério ainda se conservava coberto pelas suas mil dobras, ante o mau espírito quase desanimado. Dei o braço a um amigo e fomos à janela principal receber o ar frio da noite.

Conversavam vivamente duas meninas, duas crianças de 15 a 18 anos, no vão da janela. E não voltas tão cedo para a cidade? — perguntava a que parecia mais moça.

— Não. Eu adoro aquele sossego! Faz bem ao coração! Olha, esta vida de barulhos e de testas cansa afinal! Houve tempo em que, se papai me tirasse da cidade, eu morreria!

A outra rui-se maliciosamente, batendo-lhe com o leque no rosto Ela ergueu os ombros nus, com um desdém esplêndido e levantou os olhos ao céu. Era uma admirável criatura, alva e contornada como um busto grego. Os cabelos enroscavam-se-lhe em volta da fronte alta, formando na nuca um tufo espesso que se desmanchava em ondas revoltas. Vestia uma simples toalete branca, envolta em primorosas rendas, e da cintura à fímbria roçagante deslizavam-se-lhe duas orlas de trepadeiras rubras como lágrimas de sangue.

Seus lábios meio abertos pareciam estar sempre aspirando os aromas de um mundo desconhecido.

— Conheces esta moça? perguntei em voz baixa ao meu amigo.

— Já a vi no teatro e nos Apipucos, creio eu. Mas no clube é a primeira vez!

Um sujeito pingue e condecorado chegou-se ao grupo formado pelas duas meninas, trazendo no braço um forte albornoz de caxemira cor de pérola.

— Vamos?

A esplêndida criatura voltou-se rapidamente.

— Oh! papai! Vamos!

Um dos diretores do baile aproximou-se agitado.

— Quê! Já, sr. comendador?

— Estou incomodada! — acudiu a menina com certa impaciência, recebendo a capa, e curvando-se para o velho estender-lha nos adoráveis ombros.

Voltou-se à companheira, e beijando-a nas duas faces:

— Agora, até quando?

— Breve!

— Qual! Não há mais teatro lírico! Só aí é que podia ver V. Exa.! — disse ela gracejando.

Senti um aperto íntimo e brusco.

— É ela; não há dúvida — exclamei.

Momentos depois, parou um carro à porta do Clube, e a formosa, ao subir o estribo, leve como uma visão, abandonava à brisa traiçoeira, que a conduzia até nós, uma vaga de perfumes provocadores.

Os cavalos fustigados arrebataram o cupê com uma velocidade pasmosa. Retirei-me também do baile, lutando entre as suspeitas que me assaltavam.

Antes de deitar-me, escrevi ao Salustiano as seguintes linhas.

“Descobri o teu segredo. Tens razão, pobre Bernardim! Estás apaixonado por uma princesa!”

Deixei de receber inteiramente cartas do Salustiano. Esperei três, quatro, cinco vapores da linha do norte. Fui a bordo do Tocantins, com cujo comandante dava-me há tempos, e pedi-lhe notícias do artista.

— Na capital não está — disse-me o comandante. A propósito, tenho aqui jornais do Pará. Quer consultá-los? Pode ser que o orientem de qualquer forma!

Abri os jornais e corri ansiosamente à seção dos espetáculos. Em vão! Não havia vestígio do nome de Salustiano.

— Mas de que Salustiano fala o senhor?

— De um músico, um flautista, que partiu no Cruzeiro para o Pará.

Um passageiro, interpelado pelo comandante, declarou-me que Salustiano dera concertos na capital, onde fora muito festejado, e que partira para o interior da província pouco tempo depois, em companhia de sua mãe.

— E conheceu-o? — perguntei com crescente interesse.

— De vista apenas. Assisti a dois concertos dele. É um gênio!

— Um gênio, tem razão. Foi muito aplaudido pelo povo?

— Excessivamente. Era enchente certa no teatro toda vez que se anunciava um concerto do Salustiano.

— Obrigado!

Voltei à terra impressionado.

Onde estaria aquele mau amigo, aquele admirável talento, cuja imagem perseguia-me com a persistência incansável da figura da mulher amada, que não nos abandona um minuto sequer? Nessas vacilações de espírito agitei-me durante dois meses largos e aborrecidos.

Raiou o dia do carnaval, e o teatro de Santa Isabel anunciou pomposos bailes de máscaras.

No domingo gordo à noite dirigia os meus passos para o largo da Princesa. A fachada do formoso edifício do Santa Isabel, iluminada e florida, trazia-me à mente as misteriosas festas do serralho, em que em uma hora se goza tudo quanto se chega a saborear em dois anos nas cinco partes do mundo.

Os mascarados atropelavam-se à porta e o saguão regurgitava de povo. A música derramava no ar calmo da noite os seus inúmeros encantos e as suas infernais tentações.

Ornado apenas com a máscara insulsa que a natureza me concedeu, recebi o meu bilhete de ingresso e afastei a mole ruidosa para entrar no salão.

Entrei.

Não havia começado o baile ainda. Cruzavam-se os máscaras e os curiosos em várias direções, e a orquestra, incumbida de atiçar os sentidos populares, repetia, tentando os folgazões, a primeira parte de uma quadrilha provocadora.

Despejavam os lustres torrentes de fogo; dos vasos acondicionados junto aos grandes espelhos escapavam-se vagas de aromas diabólicos; o segredo preparava no meio de toda essa perigosa atmosfera as suas cem garras diamantinas e os seus irresistíveis filtros.

Às dez horas em ponto formou-se a quadrilha, e o maestro Colas acenou com a imperial batuta à sua harmoniosa falange.

O que é o carnaval, sabem todos os que não têm vivido dentro de um ostracismo imbecil, separados da humanidade turbulenta e ativa.

O baile de máscaras é o resumo do baile da vida.

O dominó, o pierrô, o debardeur, o polichinelo representam excelentemente a criatura humana fardada de vários matizes e sujeita aos indecifráveis sentimentos que a acometem.

A loucura toma a vanguarda nesses pleitos revolucionários e brilhantes; o espírito da mordacidade, da injúria ou da intriga, é sombra do veludo e do cetim, exercita-se contra as vítimas que o acaso lhe sugeriu, e bloqueia o senso comum de uma maneira insuportável.

Os camarotes começaram a se encher desde as nove horas. Às dez e meia abriu-se um na segunda ordem, e apareceu-me ante os olhos curiosos... quem? A desconhecida do clube em todo o fulgor de sua imensa beleza.

Trajava um vestido de cetim verde-claro com fofos alvos, e na cabeça sustinha um toucado de margaridas e palmas verdes. Um colar de esmeraldas e pérolas acariciava-lhe o colo palpitante.

Correu com o binóculo a platéia, examinou os camarotes e disse, sorrindo ao velho, que a seguia como uma sombra, não sei o que, que o fez também sorrir.

Depois da quadrilha marcava o programa uma valsa. O delírio subia nota por nota a escala do entusiasmo e da loucura. Cresciam os perfumes, multiplicavam-se os movimentos dos pares dançantes, e a poeira que os pés levantavam no turbilhão enevoava o espaço, aclarado vertiginosamente por oitocentos tubos de gás.

Ela, à semelhança dos cisnes que nadam, e das estrelas que brilham, deixava-se guiar indiferentemente pelas cambiantes ondas em que seu espírito se embalava. Parecia-me a figura de Hebe nos resplendores do paraíso, desmanchando ao furacão dos ventos e das harmonias a basta cabeleira desgrenhada.

Seus olhos seguiam as danças sem luzirem de febre ou de interesse natural na mocidade; seu peito largo e nu respirava como de costume, e o leque abria-se mansamente como uma nuvem alva sobre os seus lábios distraídos.

Alguns máscaras procuraram com ditos tolos e lembranças banais arrancar-me à espécie de misticismo que me subjugava; meus olhos, porém, fitavam-se religiosamente sobre aquela criatura, que, a meu ver, era a depositária da existência, de uma das mais preciosas existências da Terra.

Lembrei-me do Salustiano. Onde estaria àquela hora o inspirado artista? Ele daria de bom grado metade dos dias futuros, unicamente para acompanhar como eu os ziguezagues caprichosos que o leque da elegante descrevia em redor de sua casta formosura!

A meia-noite o delírio tocou a meta; a dança macabra entrava na festa estendendo os seus braços medonhos e insaciáveis.

Ergui-me de um canto onde me sentara, quase escondido por uma multidão de espectadores, e dirigi-me ao saguão. Um polichinelo, cheio de guizos, deteve-me o passo e enlaçou-me a cintura

— Que fazes aqui?

Achei originalíssima a pergunta, e desatei uma gargalhada.

— Não deverias aqui vir! — continuou ele com a voz esganiçada e vibrante. — Isto é o turbilhão, meu caro, o turbilhão em que ela aparece como o santelmo no meio dos naufrágios!

Esforcei-me por me desvencilhar do abraço.

— Espera um pouco, impertinente folhetinista, e olha para aquele camarote!

O dedo enluvado designava-me o camarote da menina do clube, a Laura do Salustiano, a Laura ou a Beatriz, a inspiração que ia matando os sonhos e as alegrias do meu desventurado artista.

— Repara, repara naquela tranqüilidade, e naquele indiferentismo! Assim fazem as estrelas, não é verdade? Quando as ondas espumam e fervem loucamente! Malvada! E há entre nós, entre cancanistas e valsistas, palhaços e macacos, um homem que vive por ela, vive, sofre, agoniza e morre!

— Quem é esse homem? — acudi eu intrigado.

— É um homem! Rara avis! Bípede implume, segundo Platão, estupor de vícios, segundo Voltaire. Ele corre talvez arrebatado pelos furores da dança, contemplando-a através do prisma fatídico deste baile celebrado em honra do nascimento do diabo!

O polichinelo apertava-me a cintura em risco de partir-me as costelas.

— Mas, admira a sua beleza! — prosseguiu ele dando à voz o tom da súplica e da humilhação -, admira-a agora, agora que ela se debruça do camarote como um anjo que espia as misérias da Terra! Tra la la, la, la! bonita valsa, sim senhor, bonita valsa de Auber! Quatro bemóis, quatro bemóis tem esta valsa! Andante! Tra la la!

— É um ébrio! — pensei comigo. — Com licença, meu espirituoso polichinelo, eu já volto.

— Não te deixo, não! Hás de ouvir-me até o fim! E dá graças a Deus, mal-aventurado, que estás ouvindo um moribundo!

A voz estrangulava-lhe na garganta opressa. Mais de 20 pessoas nos cercavam curiosas.

— Aquela menina que tu vês, pura, branca, meiga, tranqüila, é o cadafalso em que se degolam uma por uma as ilusões de uma existência inteira! Eu armo-a! — articulou ele em um soluço, sufocando a frase em meu ouvido.

Arrastei-o para fora da sala. Ele seguiu-me trêmulo e as suas luvas queimavam com o calor das mãos febricitantes. No botequim arrancou-se de meu braço por um violento esforço e saltou sobre o balcão. Todos voltaram-se para ele, alegres, como se esperassem um chorrilho de sandices.

— Eu morrerei! — gritava o polichinelo, emprestando à voz variadíssimos tons. — Eu morrerei por causa dela, mas que importa? Com todos os diabos! Que importa? Que importa?

O botequim enchia-se, à proporção que o máscara gesticulava falando.

— Vocês todos olham-me contentes, e nenhum de vocês é capaz de me entender. Vão dançar, imbecis. Dancem até arrebentar! Pulem! Saltem! Estorçam-se, aniquilem-se, oh foliões do grande carnaval! Oé! Oé!

O caixeiro servia conhaque a um freguês. O polichinelo curvou-se rápido, e, apoderando-se do cálice cheio, engoliu o espírito em meio segundo.

Pungiu-me cruel desgosto vendo-o cambalear.

A orquestra no salão chamava os dilletanti para nova dança. O botequim esvaziou-se pouco a pouco. O polichinelo continuou com movimentos mais frenéticos:

— Dancem, dancem, felizes idiotas! Para vocês é que se inventou o carnaval!... Oé! O carnaval, a asneira, os pulos, a toleima! Offenbach, Strauss, Schulloff, Goria, Ravina, Arditi e os outros! Dêem lembranças, marotos, à bela dos olhos grandes e das tranças flutuantes! Ela me mata, mas eu amo-a! Tra la le li! Adoro-a!... Sinto por aquela criatura um...

Subitamente o polichinelo virou-se para a porta que desembocava no saguão e, estendendo os braços, ficou hirto, pasmo e inteiriçado como um espectro... Segui-lhe os movimentos e notei que entre as pessoas que se retiravam vinha uma moça, coberta por um longo albornoz, cor de pérola.

Temi conhecer a verdade. Lancei-me ao máscara que, preso de um violento ataque, despenhava-se de cabeça baixa como um corpo decapitado.

Eu e algumas pessoas presentes arrancamo-lhe os disfarces que o desfiguravam...

Por baixo daquelas barbas ásperas e ridículas apareceu-nos o lívido rosto de Salustiano inanimado.

Até as quatro horas da manhã Salustiano ardeu em um a febre implacável. Eu havia-o conduzido para a minha casa na cidade, sem saber mesmo onde habitava a mãe do artista, ou se ela estaria no Recife àquela hora.

O médico que receitou ao doente era o antigo facultativo que eu pela primeira vez encontrara na casa da rua da Roda. Ministrou-lhe uma simples beberagem e exigiu-me o maior cuidado com o enfermo.

— Este rapaz acaba mal! – disse-me ele tristemente. — É a sina dos artistas e dos poetas — continuou com um doce sorriso: — o corpo humano não pode suportar por muito tempo os vôos da essência divina.

— E haverá perigo?

— É de crer que não. Isto passará com facilidade... mas depois? Quem sabe se amanhã um novo excesso virá prostrá-lo deveras? Pobre Salustiano!

Quando o médico se retirou, sentei-me à cabeceira do doente. Contemplei então o rosto macilento, úmido pelas transpirações da febre, e fiz uma idéia dos sofrimentos por que passava a desventurada alma daquele louco ideal. Tremiam-lhe os lábios abrasados, de vez em quando, como se articulassem um nome, uma oração querida. As mãos cadavéricas, cruzadas sobre o peito ofegante, pareciam já as de um defunto à espera das fúnebres dobras do seu derradeiro lençol.

Auxiliou-me um companheiro de casa, A. R. (lerá ele estas páginas?), a verter o remédio através dos dentes cerrados convulsivamente.

Aos primeiros clarões da manhã Salustiano abriu os olhos e volveu-os em redor de si com espanto e terror. Apertei-lhe a mão ardente e pronunciei em voz baixa o seu nome. O artista olhou-me longamente, sem pestanejar, e com os sobrolhos unidos, como quem se esforça por atrair à memória lembranças fugidas. De súbito, porém, fechou os olhos e tornou-se imóvel, qual se o torpor da moléstia o petrificara completamente.

Descansei a mão sobre o seu peito; o coração batia brusco e precípite como o de uma criatura arquejante.

Decorreram alguns minutos em que eu, com a vista no céu, em cujos flocos vaporosos a madrugada estendia as suas harmônicas luzes, me entreguei às pesarosas cogitações que o estado de Salustiano suscitava-me ao espírito preocupado.

Um som flébil e suave partiu o silêncio do gabinete, espécie de rumor de asas invisíveis ou de suspiros de criança, que sonha com os brincos do paraíso.

Outro som, mais outro, outros ainda sucediam-se sem intermitência, com uma angélica melodia. Voltei-me para o doente e vi que era de sua boca adormecida que as notas se desprendiam...

Nuvem rosada subia-lhe das faces à fronte inspirada e seus lábios frementes, como as cordas sonoras de uma harpa, reproduziam os sons sem que a harmonia perdesse o mínimo compasso e a menor partícula de doçura.

Os lábios despediram notas mais rápidas e seguidas, entrelaçavam-se os ais e as melodias com uma formosura igual à dos concertos das aves escondidas na sombra, à hora do crepúsculo, que é quando a natureza enlanguesce e os pássaros cantam os triunfos do dia que desmaia.

Assim, em cardumes misteriosos, em serenos adejos em vôos peregrinos e castos, o artista criava, sonhando talvez com a glória, um dos seus mais caprichosos poemas musicais. Eu pendia extático dos lábios vibrantes, e meu coração banhava-se nas águas lustrais daquelas harmonias com uma ânsia sobrenatural.

Pouco a pouco os sons diminuíram, estremeceu a boca terminando o suspiro da última nota, e o silêncio foi interrompido apenas pelos sussurros da natureza que despertava.

Os campanários soavam em todas as igrejas e a luz entrando pelas janelas aclarava ao mesmo tempo a cabeça imóvel de Salustiano e a roupa de polichinelo, envolta em trapos e guizos, aos pés da cama.

Como chegara ele ao Recife sem que ninguém o esperasse ou pressentisse sequer?

Contou-me tudo a velha a quem procurei no dia seguinte e com quem conversei largamente, depois do restabelecimento de Salustiano.

— Este rapaz é doido, meu senhor — disse-me ela.

Quando chegamos ao Pará fomos muito bem recebidos por todo mundo, e até os jornais falaram de meu filho como se pode falar bem de um artista. Salustiano parecia estar satisfeito, alegre, trabalhava até cedo, quando não tocava no teatro, e todas as tardes ia com os amigos passear pelos arredores, donde voltava corado e forte. Imagine a minha felicidade! Nesse tempo, ele lhe escreveu?

— Algumas poucas cartas, sim.

— Deu concertos no teatro, onde foi muito aplaudido, coberto de coroas, versos, flores que era um deus-nos-acuda! Não sei quem lhe mandou uma carta daqui do Recife (nós estávamos fora de Belém) que o fez ficar triste de um momento para outro que nem um castigo do céu!

A pobre mulher enxugou os olhos molhados de lágrimas, enlaçando as mãos com um movimento de dor.

— Uma carta?

— É verdade; uma carta amaldiçoada!

— E a senhora não conseguiu fazê-la ler por alguém, para saber o que sucedia?

— Qual! Ele rasgou-a logo depois, e ficou branco como uma cera. Na véspera de seguir para o sul o vapor, Salustiano escreveu a noite inteira. Foi ele mesmo pôr a carta na agência do lugar, e, voltando a casa, nem quis comer, nem quis sair mais do seu quarto. Tinha-se tratado um concerto em casa particular e não houve forças humanas que o fizessem tocar naquela noite.

— É célebre!

— Veio segunda carta; ele acabou de a ler e disse-me que partíamos para o Recife no primeiro vapor.

“— Já!” — perguntei-lhe admirada.

“— Se me quer bem, minha mãe, vamos embora.”

— Fiz-lhe a vontade; embarcamos no Paraná, que fundeou em Pernambuco mesmo no domingo de entrudo. O mais, o senhor sabe...

— E ele compôs alguma coisa lá? Trabalhou?

— Ah! É verdade. Salustiano está fazendo não sei que música, que eu se pudesse punha no fogo até lhe ver as cinzas!

— Não diga isso!

— E então, meu senhor? é uma dor de coração ver o rapaz como sofre quando põe-se sozinho a cantar, a escrever e a tocar na flauta tudo aquilo. Sua, treme, fica amarelo, e já chegou uma vez a desmaiar nos meus braços!

— Não terá ele alguma paixão que oculta à senhora?

— Eu sei! Se tem, renegada seja a mulher que está o matando.

— Havemos de salvá-lo! Descanse!

— Agora estou mais tranqüila porque sei que o senhor e o sr. dr. R. são seus amigos às direitas!

— Pode crê-lo. O que couber em nossas forças empregaremos a favor dele!

Entrava o Salustiano da rua. Acompanhei ao quarto e sem mais preâmbulos:

— Deixa-me ver o retrato de que me falaste na tua carta.

Ele olhou-me enleado.

— Perdi-o!

— Pior! Deixa-me ver o retrato da moça que me mostraste na noite de Carnaval.

— Pelo amor de Deus não fales tão alto! — murmurou ele voltando-se para a porta entreaberta.

— Deixas ou não?

— Para quê?

— Para convencer-me da verdade. Em Olinda prometeste-me dizer o seu nome; é inútil; eu o sei na ponta da língua.

O artista aproximou-se-me palpitante.

— Pois é ela, sim, é ela mesma! — exclamou em um tom submisso e humilde.

— Com quem te correspondias tão em segredo do Pará para Pernambuco?

— Foi minha mãe que...?

— Não te importes. Qual era esse grande amigo por quem esqueceste aquele que te fala neste momento?

— Oh! Perdoa-me, vou contar-te tudo; é o coração em pedaços que tu exiges, pois bem; ficarás satisfeito. Votei-te sempre a mais decidida amizade, e, acima de tudo, uma gratidão profunda. Mas um acanhamento invencível apoderava do meu espírito e do meu coração, quando tinha de dirigir-me a ti nessa mal-aventurada rede em que embrulhei a minha existência. Receei as tuas censuras, aliás justíssimas, e...

— Procuraste outro confidente.

— Não procurei; ele já havia surpreendido o meu segredo. Queres saber quem é?

— Dispenso o nome de um mau amigo!

— Mau amigo!?

— Péssimo, traidor, cruel amigo! Todo aquele que não te arredar do precipício a que te arrojas fatalmente, não merece ser contemplado no rol dos verdadeiros amigos. E o que te dizia ele em uma carta que tanto te impressionou?

— Dizia-me que ela fora pedida em casamento.

— E tu tencionaste imediatamente assassinar o noivo, não é verdade?

— Não gracejes. Nunca em minha vida senti tormento igual ao que a notícia me trouxe. Cuidei morrer de desespero!

— Bom. Responde-me agora; foste ao baile de máscaras na certeza de a encontrares no teatro?

— Fui. Dou-me muito com o Zebedeu, o bilheteiro do Santa Isabel. Soube por ele que o comendador alugara um camarote para essa noite, e...

— O mais, meu ex-polichinelo, poderei contar melhor do que tu!

— Não me recordes coisas que eu resgataria feliz com o preço de meu sangue.

— Queres — resgatar o passado?

— Esquecendo-a? Não!

— Ouve-me, esplêndido louco. Estás matando a fogo lento tua mãe!

O artista empalideceu e fitou-me. amedrontado.

— O que esperas desse amor, Salustiano? O que esperas de semelhante empresa? Pois não tens certeza ainda do impossível que te separa, a ti, artista e pobre, duas vezes condenado, daquela moça milionária, aristocrática e filha de um comendador, quase barão?

— Tenho; mas amo-a...

— Compreendo, descendente de Pirro, compreendo os teus entusiasmos pela formosura dessa menina! És artista, e os artistas possuem o dom supremo de analisar a beleza através dos prismas celestiais. Mas, em nome do senso comum, em nome de teu futuro, em nome de tua...

— Basta, pelo amor de Deus! Se minha mãe nos ouvisse!

— Infeliz mulher! Ainda há pouco amaldiçoava à minha vista a criatura que te faz sofrer!

— E o que devo eu fazer então?

— Esquecê-la!

— Impossível!

— Queres um conselho? Carrega uma pistola até a boca, dirige à casa dela e depois de declarar-lhe o teu imenso amor, faz saltar os miolos ao teto!

— Seria melhor isso! — acudiu ele com um olhar sinistro.

— Se as almas são na realidade imortais, e se é certo que elas se reúnem em outro mundo, uma hora depois do teu suicídio, a alma de tua mãe iria queixar-se no céu da ingratidão de seu filho!

— Santo Deus! Queres enlouquecer-me!

— Responde-me, Salustiano; o que pretendes da mulher que adoras? Dize!

— Um olhar, ou um sorriso! Um sorriso dela seria a minha eterna felicidade!

— Se ela te contemplasse embevecida no meio dos teus triunfos artísticos, com toda a sua mocidade, com todos os seus sorrisos inocentes e o seio arquejante de entusiasmo e vida?

Ele tremia da cabeça aos pés e acompanhava as minhas palavras como quem assiste a uma revelação divina.

— Se isso acontecesse, tu fugirias dela para sempre e tentarias esquecê-la um dia? Juras?

— Juro — balbuciaram os lábios deslumbrados do artista.

Corri ao interior da casa e tomei pela mão a velha, surpresa e assustada. Conduzia-a ao pé do filho, sem lhe dizer uma palavra.

— Jura pela vida de tua mãe, Salustiano — exclamei eu, reunindo todas as minhas forças.

Ele curvou-se subjugado, e repetiu inundando as mãos vacilantes da velha de beijos e de lágrimas:

— Juro pela vida de minha mãe.

Como certas plantas enfezadas e maninhas, que ao primeiro raio do sol espalham ao ar fulgurante os novos botões de recém-nascida primavera, a alma de Salustiano começou a expandir-se feliz e animada, aspirando os ventos odorosos da mocidade, e expondo-se às irradiações solenes do astro do futuro.

Não era o mesmo aquele rapaz franzino, nervoso e apaixonado. Seus olhos cobriam-se de uma luz magnética, e de sua boca, outrora silenciosa, as frases espirituosas e vivas voavam em bandos infatigáveis.

A principio assustou-me a rápida metamorfose. Estaria curado? Estaria salvo? Por um desses raros, mas conhecidos fenômenos psicológicos, o espírito do meu louco amigo voltaria aos arraiais antigos, donde fora banido pelas Eumênides insaciáveis do amor e da juventude?

Um dia surpreendi-o à mesa do trabalho. Assim que me viu, debruçou-se sobre o papel de música que enchia, escondendo-o com o temor com que o ladrão oculta as provas do crime.

— Salustiano, tu me enganas!

— Eu te engano?

— Engana-me, sim. Que diabo estavas aí a fazer de tão monstruoso e negro, que a minha presença amedronta?

— Estou preparando a minha salvação — disse ele com um sorriso banhado em torturas e lágrimas. — Não era Isso o que querias? Não me preveniste ontem de que em breve eu daria o meu concerto de despedida?

— Bom, bom; copias músicas perfeitamente!

Os olhos do artista fuzilaram como o flanco tempestuoso da nuvem.

— Não copio músicas, não! Componho a última parte do Hino da Mocidade. Hino da Mocidade! Deverá intitular-se Hino do Desespero!

— Quê!

— Olha, Luís — acrescentou ele, apertando-me as mãos com um carinho fraternal -, há momentos em que tenho vontade de expor-me à tua maldição, aos desprezos do mundo, aos desprezos dela — dela, entendes? -, e como um alienado que escapasse às prisões do hospício, arremessar-me a seus pés pedindo-lhe a morte, já que a vida não quer me abandonar!

Seus olhos úmidos como os da ovelha moribunda fitaram-se dolorosamente em meu rosto.

— Quebras o teu juramento?

— Nunca. Sinto-me com forças de carregar o Atlas às costas e bater-me com o mundo inteiro!

— Nesse caso...

— Nesse caso, pensas tu, é facílimo afrontar o meu amor e a minha desventura? Eu nem sei, meu caro! Os tremendos sacrifícios importam a existência da criatura humana!

— Mas, qual era a tua intenção, se eu não te falasse?

— Matar-me.

— E tua mãe?

— Foi o que me prendeu à beira da cova, a idéia de torturar o coração de minha mãe. Desventurada mulher! Eu que por uma lágrima dela verteria sorrindo, gota a gota, todo o suor do meu corpo e todo o sangue de minhas veias!

— Bravo, Salustiano! És uma bela alma!

— Não sou, não, porque arremessei-me ao indefinido, cuidando marchar em estrada simples e comum.

— Privilégio dos privilegiados, meu caro! Se nascesses recebedor de impostos ou agente dos correios, nunca saborearias o indizível prazer de te expor à morte por uma visão ou uma quimera fugitiva!

— Perfeita visão, é verdade.

— Perfeitíssima! Nem ela te conhece!

— Não falemos mais dessas coisas que me atormentam. Vamos entrar em questões mais sisudas. Foste chamado à lição na academia?

— O que estavas escrevendo? Pergunto-te de novo.

— Nada; uma despedida às fantásticas delicias da arte.

— Tão cedo, meu poeta, foges ao afago das tentadoras musas?

— A arte é um inferno, e o artista é o maior e o primeiro de todos os condenados. A arte diz "voa" e prende os braços daquele a quem aponta os brilhantes horizontes, com torrentes mais pesadas que o universo. Mais vale a obscuridade que a luz nestes casos; prefiro a posição do morcego à da borboleta.

— Mau gosto!...

— As dores que eu tenho engolido e as mágoas que me acompanham São mais numerosas do que os astros que brilham nas eternas constelações. Não te rias! Para ti que és feliz, que vives satisfeito, que não amas, tudo corre às mil maravilhas, sem tropeços, nem cuidados. Mas eu! Eu, cujos dias são pesados, um por um, na balança das aspirações impossíveis, esforço-me como um miserável nos tortuosos labirintos da minha existência, e se não fosse... o que tu sabes, a esta hora estarias acompanhando a minha última viagem!

— Louco!

— Louco! Louco! Chama-me louco, e tens razão, porque não sentes o que eu sinto! Sabes o que eu escrevia?

Salustiano revolveu freneticamente os seus papéis de música, e estendendo-nos ante os olhos ávidos:

— Este Hino — exclamou ele — é a minha desgraça e a minha glória! Todos os meus pensamentos, todos os meus êxtases, suspiros, encantos, entusiasmos, desilusões, quimeras, sonhos, febres, arrojos, quedas e ascensões de mocidade e de talento, estão aqui, neste papel escuro, nestas folhas garatujadas, que o primeiro varredor lançaria ao lixo se as encontrasse à porta da casa!

— Sobre estas folhas chorei eu muitas noites, e muitos dias erguia o meu pensamento anelante como o poeta que traduz o último canto de uma epopéia, o matemático que descobre a solução de um problema estupendo, e o mineiro que arranca da terra convulsa o diamante envolto em sangue, suor e lodo! É o Hino da Mocidade! O Hino! O grande Hino da Mocidade!

Todo o seu corpo vacilava, como ao choque de uma carga elétrica, e os seus cabelos negros em redor da testa larga e pálida voavam flutuantes, à semelhança das nuvens obscuras que a tempestade revoluciona.

— Desde o dia em que vi pela primeira vez aquela mulher, uma harmonia selvagem surgiu do meu coração desvairado, e meus olhos começaram a descobrir, através das lágrimas do meu amor, o sombrio e fulgurante fantasma da glória! Arremessei-me à mesa do estudo e compus, compus, com o desespero do pobre que procura uma côdea de pão ou do astrólogo que persegue no céu a cauda de uma estrela!

As notas safam-me em borbotões, lavas, coriscos, raios, soluços, cóleras, que sei eu?! Um completo extermínio e uma completa vitória de harmonias! Hás de ouvir na flauta o Hino da Mocidade! É um furacão! É um tenor, é um naufrágio!

Tentei reproduzir as ânsias e as venturas supremas de minha alma deslumbrada! Às vezes, crê, às vezes a correnteza de minhas dores assemelhava-se à corrente caudalosa dos rios, quando a tormenta ruge e o relâmpago ensangüenta os ares! Outras vezes, era o murmúrio da fonte que se parecia com o suspiro do meu amor, o sussurro das flores ao afago da noite e ao resplendor das estrelas! As notas embebiam-se no papel; os compassos galopavam-me ante os olhos ardentes como uma legião de demônios e de fadas! Tudo entorpecia-me os sentidos! Tudo me agitava, erguia-me, torturava-me, incendiava-me, enregelava-me, pois tudo me inspirava como se Deus estivesse atrás de mim!

Repetidas crispações nervosas acometiam-lhe os membros e o suor brilhava escorrendo por sua face macilenta.

— Eu executarei esta música sagrada e maldita adiante dela! Não é o que tu exiges? Não é o que exige o mundo?

— Ouve-me, Salustiano!

— Não te ouço, não! Deixa-me contar-te tudo, já que o meu destino por tua causa...

— Por minha causa?!

— Por causa de minha mãe — acudiu ele, abrandando a voz -, deteve-se em frente de suas mais fogosas esperanças!... o Hino da Mocidade será acariciado por aqueles ouvidos divinos, e as vozes da flauta angustiada confundir-se-ão no esplêndido concerto de primavera e de inocência, que rompe do seu coração sublime! Oh! Feliz! Três vezes feliz e três vezes desgraçado, artista que te sepultas com as tuas próprias mãos suicidas!

Apertei em meus braços.

— Meu amigo!

— Quando é o concerto? — perguntou ele, transformando-se de súbito.

— De hoje a 15 dias, pouco mais ou menos.

— Tenho tempo. Vou estudar!

— Mas por tua honra, vê o que fazes!

— Se da prova final eu me salvar, acredita que conquistei o mais gigantesco de todos os triunfos.

Salustiano contemplou o céu profundo e luminoso:

— Felizes os que não têm mãe! — murmurou ele surdamente.

— Estás louco!

— Felizes! Porque esses podem morrer.

Nos programas espalhados para o seu concerto, Salustiano fez inserir a seguinte epígrafe:

CONCERTO DE DESPEDIDA À ARTE

em benefício
do artista Salustiano Tenório

Procurei no dia em que os jornais publicaram o primeiro anúncio:

— Que diabo vem a ser concerto de despedida à arte?

Ele pareceu perturbar-se levemente com a pergunta.

— Nada. É um meio apenas de chamar concorrência. Sou americano, meu caro! Pertenço à propaganda civilizadora do pufe!

Não é preciso pufe para ti. O teatro vai encher-se pelo simples fato de te apresentares ao público de flauta em punho.

— Obrigado; mas é conveniente formar a estrada para se andar a gosto; o talento só, caro mio, se realmente eu o tenho, pode conseguir, e já não é pouco, morrer à fome em qualquer cantinho imundo e negro!

— Mau! Começas com as tuas descrenças oratórias!

— Não falemos mais disso. Gostaste do programa?

— Gostei. Estou ansioso por ouvir-te executar as variações dos Puritanos, de que o Colas fez-me ontem as mais laudatórias ausências.

— Bom amigo aquele! Mandou-me oferecer a orquestra grátis para o concerto.

— Decididamente teimas em não me revelar um ou dois trechos do Hino, antes da execução em público?

— Decerto, para causar-te surpresa.

— Creio que seria difícil.

— Como? Se nunca tu?...

— É o que tu pensas. Parece-me que cantarolaste alguma coisa do famoso Hino na noite do Carnaval, enquanto dormias, ardendo em febre.

— Maldita noite! Causa de todas as minhas desventuras!

— Olha, tenho às vezes ímpetos de desligar-te do teu juramento, Salustiano. Palavra de honra!

— Cuidas que me arrependi!

— Que dúvida!

— Não me arrependi, não; mas sofro as dores de uma operação horrenda! Imagina! É o mesmo que arrancarem-me, vivo e palpitante, com tenazes ardentes o coração do peito!

— Mas ficarás salvo depois?

— Salvo!

Um pálido sorriso vagou-lhe na boca desmaiada, e o suspiro cortou o lábio em tímidos arpejos. Imediatamente, porém, o rubor coloriu-lhe as faces mórbidas e um tremor nervoso sacudiu bruscamente.

— Vou trabalhar! — exclamou ele.

— Por que não cedes a algum copista a tua música? Salustiano olhou-me com o espanto de um homem que surpreende as primeiras palavras de um doido.

— É que o copista poderia errar um ou dois compassos — volveu ele, moderando-se instantaneamente.

Deixei-o no gabinete, de pena empunhada, e fui a negócio, no Recife.

Só os delicados afagos de uma mesada iminente teriam o poder de afastar-me de Salustiano. O correspondente esperava-me.

Era a segunda vez que eu penetrava no edifício do teatro de Santa Isabel, depois da famosa noite de domingo de Carnaval.

O teatro estava todo iluminado, e na zona diáfana em que se derramavam miríades de estrelas de gás, flutuavam flâmulas e estandartes, prodigalidade excessiva da parte do empresário, em honra ao Salustiano, o beneficiado da noite.

Enchia o povo o saguão, e as carruagens enfileiravam-se no largo. Batiam oito horas quando entrei. A muito custo conquistei a minha cadeira e corri os olhos por todos os camarotes. Havia um desocupado, quase unido ao cenário, na segunda ordem.

Os músicos preparavam os instrumentos, e o regente Colas ainda não tomara posse da cátedra presidencial.

Marquei a cadeira e saí. O porteiro da caixa, meu conhecido desde épocas mais felizes, não pôs dúvida em ceder-me ingresso.

— Hoje não entra aqui ninguém – disse-me ele entre um sorriso de incredulidade e um olhar de mistério.

— Oh! oh!

— Foi mesmo o sr. Salustiano quem deu essa ordem.

— Mas eu....

— Oh! O senhor, é outra coisa. A casa é sua!

— Obrigado, respeitável cérbero!

Salustiano estava no camarim, enluvado, encascado, frisado, mas lívido como um defunto.

Com a cabeça firmada nas mãos hirtas, ele parecia esquecer-se completamente do lugar em que se achava, e de tudo quanto o cercava naquele momento. Ardiam duas velas sobre a mesa, cheia de potes de carmim, pó de arroz, escovas, barbas postiças, plumas multicores e os demais utensílios de teatro, de que tantos príncipes e monarcas se têm servido durante o reinado de cinco atos de melodrama!

Chegavam até o camarim os sons variados da orquestra que se afinava. O contra-regra bateu palmas e o regente sentou-se de batuta erguida. Começava o espetáculo por não sei que comédia traduzida do francês. No primeiro e no último intervalo fazia-se ouvir a flauta do Salustiano; nos outros a atenção pública ia repartir-se entre os talentos mais ou menos festejados de vários músicos pernambucanos.

A ouverture na orquestra fez estremecer o busto pendido do meu taciturno amigo. Salustiano ergueu a cabeça, correu a mão sobre a testa úmida, como quem fustiga uma asa agoureira, e, vendo-me, aumentou-lhe a cadavérica palidez.

— Tenho medo — disse ele com a voz surda e vacilante. — Medo!

— Medo!?

— Sim, meu amigo — continuou o artista apertando-me vivamente as mãos entre as suas. — Sinto o terror na minha alma. Olha, o jogador que expõe em última parada o derradeiro pecúlio de seus filhos, não sofre o que eu padeço agora!

— Anima-te, rapaz! Deixa estas coisas para os romances de capa e espada!

— Não brinques, pelo amor de Deus! Passei um dia horrível hoje! Estive quase a transferir o concerto. Esqueci-me até, acredita! Esqueci-me da primeira nota da música!

— Logo te entusiasmas! O artista, Salustiano, é como o cavalo de batalha (salvo a comparação), cria fogo quando ouve o primeiro clamor das trombetas guerreiras, e aspira o sangue dos feridos! Quando soarem as palmas que te receberem, ganharás alento, e o artista ocupará triunfante o lugar do homem!

— Deus te ouça!

Ela não veio ainda.

— Antes não venha, meu filho! Vendo-a, a flauta cairá das minhas mãos covardes, e eu próprio rolarei no tablado como uma massa inerte!

— Ou erguer-te-ás na asa da inspiração, meu poeta, ascendendo ao paraíso da arte, do amor e da mocidade!

Os olhos dele fulguravam através das pestanas negras como a cauda do fuzil no meio da borrasca.

— Fala-me, que me dás vida!

— Joga-se hoje o grande lansquenet da tua existência, sublime mentecapto! Pede ao céu que o teu doublé seja em ouros, que é justamente a cor do sol e da fortuna!

Rindo-se o artista, respondeu-me com uma energia fora do comum na sua natureza lânguida e doentia.

— Estás no teatro, minha mãe e o R.; tudo se fará.

— O R. ainda não chegou, parece-me, mas ele virá com toda a certeza. Adeus; coragem, coragem!

— Reza por mim.

— Farei o possível; mas nota que eu sou herege... na arte.

Quando de novo entrei na platéia, volvi os olhos para o camarote, até então desocupado. Dessa vez estremeci vendo na frente, com o alvo braço nu pousado no parapeito do camarote, a tão esperada senhora dos destinos do beneficiado. Ela estava fulgurante de beleza e de juventude. Sua boca vermelha e voluptuosa entreabria-se em um sorriso admirável, e de seus olhos negros, como o crime, escapavam-se irresistíveis cintilações. Cobria-a um longo vestido de cetim azul, e em seus cabelos cintilava, como diabólicas pupilas, uma chuva de diamantes, formando um diadema. Da mão dela pendia um grande cacto, borrifado ainda de sereno.

Subiu o pano. Enquanto se representava a comédia, uma comédia fútil e banal, olhei para o camarote e vi que ela conversava, rindo com o velho, meneando a esplêndida cabeça, soberana e pura como a da Palas mitológica.

Caiu o pano e eu dirigi-me à caixa do teatro. Salustiano enfiava em surdina, na flauta, escalas sobre escalas; os sons trêmulos e chorosos entrelaçavam-se como os ais melancólicos de um rio à noite, ou os murmúrios do vento entre as ramas espessas do arvoredo sombrio.

— Ela está aí!

— Já a vi! — exclamou o artista, com a alegria de um cego que torna a contemplar o disco incendiado do sol.

— Ânimo!

— Por ora, tudo irá bem, creio eu. Pouco trabalho tenho. Para mais tarde é que peço forças ao céu. O Hino foi composto com o pensamento nela, e tremo à idéia de não poder interpretá-lo com alma!

— Mas tu cambaleias, desgraçado!... Se te sentes mal, transforma-se o programa.

— Qual! Na hora das grandes catástrofes ou dos grandes triunfos, a criatura humana é menor e mais vacilante que o átomo!

A orquestra deu o sinal. Corri à minha cadeira. Pouco depois dirigi os olhos para o camarote; ela tinha-os presos no palco.

Subiu o pano.

Fez-se um profundo e religioso silêncio em todo o teatro. Salustiano entrou em cena no meio de uma salva geral de palmas, enquanto o regente da orquestra entregava-lhe, em nome dos professores de música pernambucanos, uma gentil coroa de louros.

Estava pálido o artista como um sentenciado que aguarda o golpe do carrasco; estremeciam-lhe os membros visivelmente, e por duas vezes a flauta, conduzida à boca, resvalou mal suspensa dos dedos oscilantes.

O público, sem compreender aquela súbita comoção, procurou animar o seu predileto artista, fazendo-lhe soar de novo ao ouvido profusão de palmas e de bravos.

Só eu possuía o segredo, o lúgubre segredo de tão misterioso enleio. Salustiano não havia ainda erguido os olhos para o camarote fatal, e tentando descobrir o sentimento que se apoderava dela naquele instante, notei com desgosto que a sua misteriosa beleza, à semelhança da formosura das esfinges, não revelava a mais sutil comoção ou o menor abalo.

A orquestra lembrou o motivo dos Puritanos e deu começo ao acompanhamento. O maestro Colas não despregava a pupila ardente do semblante demudado de Salustiano.

Finalmente, depois de um supremo esforço, a flauta deixou voar as primeiras notas, tímidas, assustadas quase em murmúrio, como um enxame de mistérios suaves que têm medo de ser surpreendidos. Pouco a pouco foi ganhando alma o instrumento e entusiasmo o artista; pouco a pouco as notas mais firmes e vibrantes percorreram em deliciosas escalas os tesouros harmoniosos desse poema dos Puritanos, tão solene, no meio dos seus poéticos arroubos, e tão poético, em meio de suas lágrimas arrebatadoras!

A platéia prorrompeu em retumbantes aplausos.

Cai o pano, e dirigindo eu a vista ansiosa para o camarote, reparei que ela espalhava do lábio coralino aquele desdenhoso sorriso, que jamais a abandonava.

Fiquei indignado. Pois quê! Não haveria nada capaz de perturbar a eterna monotonia de tão peregrina formosura?! Seria realmente insensível essa menina a tudo quanto o céu formou para eletrizar as almas e produzir no coração humano o choque dos santos entusiasmos e dos irresistíveis delírios?!

Alva, tranqüila, primorosa, como a mais bem contornada estátua de mármore, obra do cinzel de Fídias, ela resistia com a impassibilidade das rochas ao fragor das palmas, que saudavam o artista inspirado, e as ondas de harmonias divinas que flutuavam através das luzes e do aroma, ora arquejantes como beijos insaciáveis, ora meigas, castas, puras e ternas, como um suspiro entre lágrimas ou as orações de um moribundo.

Fui encontrar o Salustiano no camarim, abatido e mudo.

— Creio que dou parte de fraco — disse-me ele. — Não posso mais.

— Saíste perfeitamente nos Puritanos.

— Pessimamente, deves tu dizer.

— Hás de permitir que eu não saúde com grandes exclamações a tua, aliás graciosíssima, modéstia!

— Graceja, graceja, inexorável amigo! Oxalá não te arrependas do passo que deste!

— Salvando-te?

— E terei eu forças bastantes para arrostar tão tremenda prova sem sucumbir nela?

— A imaginação dos artistas e dos poetas, Salustiano, é como o vidro do microscópio; faz de uma pulga um elefante.

— Tu é que pretendes transformar em rosas os espinhos que me cercam, mas meteste-me em uma empresa impossível!

— A propósito, quem vai tocar agora?

— Ninguém. O Roberto canta a Serenada do D. Pasquale.

— Eu tenho dito por aí cobras e lagartos a respeito do teu Hino.

— Maior será a desilusão do público!

— Veremos!

— Responda-me seriamente: não fizeram fiasco as variações dos Puritanos?

— A tua comoção serviu até de alvo aos aplausos, como viste!

— Palmas de compaixão!

— Estás insuportável, distintíssimo maestro!

Entrava no camarim a mãe do Salustiano. Mudamos de conversa. Dois minutos depois, fui ocupar o meu lugar nas cadeiras. O camarote estava vazio.

— Teria ela ido embora? — perguntei a mim mesmo com terror.

O R., que veio me falar, disse-me que ela e o pai passeavam no salão. Descansei. Enquanto se cantou a Serenada, e dois artistas, um violinista e outro perfeito violoncelista ocuparam a atenção pública, nem ela nem o velho dignaram-se vir ao camarote.

Desceu o pano, e eu dirigi-me ao saguão para fumar.

O tema da conversa entre todos era o Salustiano.

— Tiraria a sorte grande? perguntava um interlocutor a outro. – Despede-se da arte!

— Não sei. Ali está quem nos pode dizer alguma coisa.

Referiam a mim. O que fizera a pergunta era meu conhecido; encaminharam-se na minha direção, e o curioso questionou-me acerca da despedida à arte, anunciada pelo flautista.

— Ele anda doente — acudi eu, encontrando felizmente a tempo uma resposta banal; — quer tratar-se; vai para os sertões do Ceará um destes dias. Eis a explicação do anúncio!

— Coitado! Mal podia suster-se em cena, há pouco!

Salustiano fechara-se no camarim, através de cuja porta ainda pude ouvir os sons flébeis de sua flauta, recordando um ou outro motivo da música.

A mãe do artista, que se sentara junto aos bastidores, chamou-me.

— Parece-me que ele não está bom! — disse-me ela com cuidado.

— Por quê?

— Não sei, veja.

Salustiano abriu a porta do camarim e saiu com a flauta na mão. Realmente causava dó olhar-se para o pobre moço. Um terno sorriso, o sorriso do martírio resignado e do glorioso sofrimento aclarava-lhe como luz celestial os traços desfigurados.

Ele padecia atrozmente; sua alma a custo sustentava os ímpetos do coração opresso, e a sua inteligência por um esforço quase sobrenatural acudia às urgentes necessidades de momento; a flama do talento sobrepujava as aflições profundas da existência dilacerada.

— O que sentes tu?

Tive desejos de arrastá-lo do teatro; dir-se-ia que ele agonizava.

— Nada. Uma debilidade passageira.

— Acabemos com isto, Salustiano! És ou não és um homem? Tens ou não tens força suficiente para saltar sobre o ridículo que o teu misterioso sofrimento pode provocar ante os olhos do público?

— Ridículo; acreditas que seja ridículo isto?

E o artista espalhou por um nervoso movimento os cabelos revoltos, como um brioso corcel que se prepara para o combate.

— Acredito que o povo não sabe acompanhar as peripécias extravagantes de tua vida, e não poderá, portanto, desculpar-te as heróicas pusilanimidades. Cada um pagou o seu bilhete de cadeira, platéia, camarote ou galeria no honesto e louvável intuito de ouvir a tua flauta e admirar o teu talento. Ora, é pouco airoso apresentares-te como tipo de romance perante uma multidão pouco amiga, neste momento, de coisas imaginárias ou poéticas.

— Basta. Eu não te envergonharei, nem me envergonharei também. Vai descansando — continuou ele rapidamente e empurrando-me com brandura; — não tarda a subir o pano... vai! Oh! É verdade; conduz minha mãe ao camarote.

A velha persistia em ficar na caixa; Salustiano, enfadando-se, obrigou-a a subir para a terceira ordem onde lhe havia reservado um lugar.

Quando eu me apoderei da minha cadeira, a orquestra executava os prelúdios da ouverture. Percorria a sala do teatro, dos últimos camarotes às últimas gerais, uma espécie de ruído surdo e abafado, tal como acontece na atmosfera, carregada de eletricidade, quando através do pavilhão das nuvens a tempestade prepara-se para assombrar a natureza. Comecei a ter sérios receios pelo sucesso do Salustiano. Seria eu culpado ou não por haver insistido com o artista em levar-se a cabo uma empresa tão difícil e escabrosa? Arrependia-me da minha idéia, e o meu coração febril pulsava-me violentamente dentro do peito abrasado.

Terminavam os últimos sons da orquestra quando ela chegou à frente do camarote. Sua mão enluvada e graciosa sustentava sempre o hastil do cacto, cujas pétalas o calor das luzes e da noite fazia arrufar em um melindroso recato.

Ergueu-se o pano. A orquestra marcou os primeiros compassos do acompanhamento e as palmas vibrantes saudaram a aparição do Salustiano. Os olhos dele e os olhos dela encontraram-se de súbito e um flamejante clarão perpassou o rosto do artista, que se hasteou glorioso como um cetro triunfante.

A flauta, unida vertiginosamente aos lábios, desprendeu um trilo rápido, fugaz, lancinante, que parecia ferir os ouvidos na passagem. Em seguida as notas imponentes atacaram a introdução do Hino com um valor e uma sonoridade admiráveis. Todas as vistas estavam presas em cena, e um silêncio de morte pairava no ambiente luminoso. A pele úmida de Salustiano brilhava com as luzes e a flauta arquejava-lhe nas mãos convulsas. Com o busto meio pendido do camarote, a formosa criatura seguia a música, animando-se pouco a pouco de nota a nota, de compasso a compasso, como uma floresta virgem que desperta ao cântico matutino dos pássaros, e aos primeiros raios do sol no oriente. Entrou finalmente o Hino, o grande, o festivo, o indizível, o maravilhoso Hino da Mocidade! Era ele! Era a música, que em surdina cantarolavam os lábios túmidos e febris do artista na noite do Carnaval! Os sons tumultuosos e doces, tranqüilos e revolucionários, calmos e tempestuosos, enroscavam, serpenteando na atmosfera, serenos às vezes como a espiral de um perfume, e outras vezes arrogantes, amedrontadores, esplêndidos e voluptuosos como as iras, os gemidos e os beijos de um gigante.

A platéia inebriada e pasma estendia as mãos para a cena... Salustiano crescera a meus olhos; crescera prodigiosamente, assumindo a portentosa figura de um semideus. Ele batia-se com a sua criação, lutava com o seu talento, arcava com a fortaleza de sua alma, impetuoso, ardente, indomável, indescritível! As notas voavam no encalço cristalino de outras notas, confundindo-se em turbilhões, entrechocando-se, devorando-se, esvaindo-se em uma só e imensa harmonia!

Minha imaginação aterrorizada e acariciada a um tempo, via desenrolar-se, ante os seus olhos sôfregos, quadros de diversos matizes e cores, qual se o instrumento do artista fosse uma varinha encantada a cujo toque criavam-se novos mundos e abria-se de par em par o mitológico domínio das feiticeiras e dos duendes.

Galopavam corcéis de crinas flutuantes e dorso luzidio, cobertos de esmeraldas e rosas, montados por fogosas amazonas, cujo capacete de prata luzia ao clarão melancólico da lua!... O bando ruidoso fugia envolto na poeira argentina da noite, fazendo retinir no espaço radiante o choque das lanças sobre o dono dos animais, e o ruído das armaduras de ouro picando o ventre abrasado dos insaciáveis corcéis!

Imediatamente transformava-se o panorama e um grande lago, afagado pelos vislumbres da cadente madrugada, estendia até os confins do horizonte. Cortava a água um batel tripulado por anjos e seguido por uma falange de cisnes e garças, de asa espalmada.

Depois era uma floresta cheia de harmonias e sombras; depois a luta de dois gladiadores ofegantes; depois um templo majestoso em cujos altares celebrava o oficio divino, enquanto o órgão despejava a sua invisível urna de melodias e místicas emanações!

Contemplei a heroína de todos esses triunfos; ela pendia do camarote, trêmula, assustada, palpitante, de boca entreaberta, seio exausto e colo estendido, como se conhecesse que era a alma desse miraculoso Hino, e quisesse submergir-se no abismo luminoso que a atraía, fatalmente.

Salustiano tocava a meta do incompreensível. Não era a música de Verdi aquilo! Apaixonada e brilhante! Nem os soluços de Bellini; nem os caprichos provocadores de Rossini; nem a imponente inspiração de Meyerbeer, nem a chorosa loucura de Donizetti reveladas nas lágrimas de Lucrécia ou nos angustiados arroubos de Lúcia. Era o Hino da Mocidade! A alma de um artista feita em pedaços e ascendendo gigantescamente ao horizonte no meio de súplicas, de orações e de blasfêmias sublimes! As harmonias subiam, subiam, enovelavam-se, entrelaçavam-se como serpentes impalpáveis, e desfaziam-se de ímpeto como um dilúvio de estrelas e de raios!...

Salustiano cambaleava e o sopro estava quase a abandoná-lo.

O povo em pé entregava-se ao magnetismo daquela música, sem saber se ela o despedaçava ou comovia. Era a vitória do gênio! O triunfo irradiante da arte!

Enfraqueceram pouco a pouco as notas; diminuíram os sons, desenrolando-se como um colar de pérolas desmanchado; e em um último esforço, a derradeira harmonia ergueu-se palpitante do tubo da flauta e do peito do artista! O delírio fez explosão nesse momento! Os gritos, as palmas, os lenços, as flores coroavam tumultuosamente o intérprete da mocidade, e ela, à semelhança do aloés quando rompe do seio fecundo da terra, desprendendo um brado de entusiasmo, deixou cair aos pés do artista o cacto, úmido com as lágrimas que lhe choviam dos olhos deslumbrados.

Salustiano veio quatro vezes consecutivas à cena. Em todas elas unia aos lábios a flor, que era o resumo de todas as suas angústias, de todas as suas glórias, esperanças, desconforto, futuro e vida!

Quando eu corri à caixa, fui a tempo de recebê-lo entre os meus braços. O suor gotejava-lhe da fronte, e um calafrio intenso percorria-lhe o corpo forçando a contrair as mãos geladas.

A caixa foi invadida por grande parte do povo que reclamava o artista em altos brados.

Ele agarrou-me a mão e com a voz sibilante e breve:

— Vem! — exclamou.

Arremessou-se ao camarim e fechou a porta sobre nós. Sem me dar tempo de evitar-lhe o rápido movimento, despedaçou contra a parede a flauta, origem de seus recentes e deslumbrantes triunfos.

— Salustiano!

— Cumpro a minha promessa! E antes que me arrependa, olha!

Seus dedos nervosos rasgaram os papéis de música onde fora escrito o Hino, e ele lançou-se nos meus braços, chorando como uma criança. Batiam à porta do camarim, e a voz da velha chamou o artista.

Salustiano enxugou os olhos, afastou para longe os fragmentos da flauta e da música, dizendo-me ainda:

— Amanhã ou depois partirei deste céu e deste inferno. O destino permitiu, ao menos, louvado seja Deus, que caísse uma flor nas ondas do meu naufrágio!

E beijou respeitosamente as úmidas pétalas do cacto.

Quando Paulo Maurício bateu à porta de sua casa soavam piedosamente em todos os campanários as 12 pancadas de meia-noite. Uma chuvinha impertinente e fria açoitava a atmosfera e vinha colar à fronte magra do poeta os negros cabelos que a sombreavam.

A casa era na rua da Misericórdia; uma casa de fúnebre aparência e velha como as três virtudes teologais. Estava a rua silenciosa; a chuva enlameava as calçadas em cujo passeio, ao longe, ressoavam monótonos os passos de um sonolento policial.

O poeta mal comera durante o dia, e uma maldita febre — a febre da pobreza -, vós a conheceis, miseráveis! Fazia latejar-lhe o pulso ardente, roçando-lhe nos lábios pálidos a asa diabólica.

Dormia o Cérbero daquele inferno, à hora em que o esfaimado inquilino levantava a aldraba e propunha-se a safar-se da chuva cada vez mais perseguidora. Enquanto pela quarta vez o poeta batia à porta do seu tugúrio, alguma coisa foi-lhe de encontro às pernas e um hálito quente bafejou através das calças úmidas.

Voltou-se Paulo Maurício e reconheceu na tal coisa um cão; um cão magro e trêmulo, com os olhos cheios de dor e de meiguice como acontece a essa classe admirável. Paulo Maurício curvou-se e roçou os dedos carinhosos no pêlo hirsuto daquela inesperada visita.

O cão lambeu os dedos do poeta, grunhindo em sinal de festa.

Paulo Maurício dizia entre si, contemplando os lacrimosos olhos do rafeiro:

— Pobre diabo, pobríssimo-diabo! Condenam-te à fome, ao frio, às chuvas, até o dia em que um espetaculoso e nédio fiscal te arremessar às goelas secas uma bola de arsênico. O teu rival, esse gatinho traidor e voluptuoso, de gana escondida no veludo, pronto sempre a dar o bote, possui tapetes flácidos, um ninho sobre o piano da menina, e um berço agradável no cesto da costura. Tu, que és bom, ó amigo! Tu, que és nobre, altivo, humilde e carinhoso — tu, á símbolo da fidelidade — coisa em que a época não crê absolutamente -, andas por ai a enlamear-te nas sarjetas imundas, a latir no meio da escuridão e do inverno, a ladrar no céu torvo e insensível, sem que alguém se lembre de te oferecer uma côdea de pão ou uma guarita para a noite. Estás com fome, eu o sei! Vejo nos teus olhos desvairados e na rispidez febril de tua língua humilhada. Consola-te comigo, ouviste? Ora vamos lá! Não gemas mais assim que me feres duplamente. O mal de muitos consolo é, diz esse enorme e estúpido povo, o povo que faz máximas durante o almoço, o jantar e a ceia. Olha para mim. Aqui estou eu também com uma violenta falta de alimentos! E sou feito à imagem de Deus! E penso, e cismo, e creio nas grandes aspirações do século e da humanidade. Tem paciência. Basta, basta, não me faças cócegas na mão com a tua língua. Safa! A porteira dorme hoje como qualquer empregado público. Afasta-te um pouco, meu amigo, e deixa-me atordoar os sonhos dessa fera, que bebeu uma dose de ópio hoje para atormentar-me!

Paulo Maurício bateu de novo à porta. Responderam-lhe do fundo do corredor com uma espécie de ronco ou de grunhido sinistro.

— Bom; despertei o bruto — disse o poeta.

A chuva engrossava. Por trás do nevoeiro o céu tempestuoso parecia uma barreira impenetrável entre as consolações divinas e as decantadas angústias humanas.

Paulo Maurício conchegou ao peito o fraque desmantelado e enterrou o queixo numa gravata impossível. O cão encostado às pernas do poeta tiritava estendendo a cauda enregelada e nua.

Rangeu a porta sobre uns gonzos atroadores, e no vácuo mal aclarado pelas réstias dum lampião, surgiu o focinho meio feminino e meio lupino duma parda colossal.

— Ainda um dia eu o deixo a patinhar aí pelas ruas, senhor Maurício — rosnou ela, embrulhando-se na baeta, que a envolvia até os pés. — Isto são horas, meu senhor, de vir acordar a gente! Vale muito a pena meu amo alugar quartos para me enterrar mais depressa.

— Pois já pensa em morrer, tia Angélica? — volveu o poeta sorrindo e afagando o ombro da porteira. — Ora multo boas noites!

— Amém. Então não entra, senhor?

— Entro sim, tiazinha de minha alma, entro e em companhia.

— Quê?!

— Não se agaste. Trago um pobre para passar a noite comigo. Temos que conversar acerca do Asilo de mendicidade. Uma grande idéia do governo, tia Angélica!

O vento começou a soprar com violência, e a chama da lanterna agitou-se como um colérico em convulsões.

— Deixemo-nos de brinquedos, senhor! Faça favor de entrar para dentro, que eu não estou para apanhar uma defluxão de peito. Ora não se viram, e vosmecê ri-se!

— Com licença. Permita-me que eu convide a minha visita a acompanhar-me ao quarto.

— Faça favor... — E o monstro tentou impedir a entrada ao companheiro de Paulo Maurício.

Era tarde, porém. A um sinal do poeta, o cão faminto dera um arranco para o interior da casa, em risco de lançar por terra a velha parda, a lanterna e qualquer outra barreira que lhe interceptasse o ingresso.

— Um cachorro, gente! — bramiu a velha, recuando assustada.

— Um cachorro, sim, minha querida tia Angélica! Um cachorro honesto como o senhorio desta casa, um cachorro ágil, atrevido e grato. Olhe, se vosmecê um dia por sua desgraça cair no mar...

— Credo!

— Ouça: se tal acontecer, este amigo salvá-la-á, expondo-se à morte, unicamente, tia Angélica, porque a sua caridade recebeu numa noite de chuva à porta de casa. e deu-lhe um bocado de pão para matar a fome. Veja se há por este mundo de Cristo muito fidalgo agradecido assim!

A velha resmungou entre dentes:

— Veio em má hora. Não há um pãozinho de rala para remédio!

O poeta acudiu com um melancólico sorriso:

— Experimente sempre; procure. Estou hoje com desejos de ceder-lhe, tia Angélica, a cabeça de Jesus, que tenho no meu quarto... Aquela, sabe?

A medonha careta da velha metamorfoseou-se num sorriso, que à força de tentar ser delicado, fez lúgubre e fantástico.

— Está bom, está bom. Não quero que as alminhas do céu digam que eu fui má um dia. Vamos ver se há na cozinha algum osso ou pelanca para esse cachorro feio.

— Feio? Repare bem, tia.

E o poeta apoderando-se da lanterna aproximou-a ao rosto do cão.

O pobre animal estrebuchava de frio, cosido com a parede esboroada. De suas pupilas cobertas por tênue neblina escapavam-se reflexos metálicos como os que produz o aço mal polido e o seio das ondas no mar alto ferido pelas estrelas.

— Olhe como treme o infeliz, tia Angélica. Faz pena, não é verdade? Coitado, coitado! Que patas frias! Andaste muito pelo meio da chuva, hein, meu camarada?

O cão, como se compreendesse a linguagem piedosa do poeta, lambeu-lhe de novo as mãos, uivando docemente.

— Vosmecê ainda lhe há de acontecer alguma com os bichos — observou a velha. — Da outra vez foi com o gaturamo, que entrou pela janela do seu quarto; agora é um cachorro, que apanhou na rua. Cachorro de rua, então, que dana, enquanto o tinhoso esfrega o olho!

— Verá que se engana, tia Angélica. O que me pode acontecer por acaso? Chorar? Ora viva! Chora-se por tantos homens e por tantas mulheres, quanto mais por um cão!

— Oh! senhor! Vosmecê está doido! Cão e gente é o mesmo?

— O mesmo, não, tia Angélica: estou pouco disposto a ofender a superior raça canina, os animais mais perfeitos da criação. O cão é incapaz duma baixeza ou duma traição. Bate-se-lhe e ele volta a receber de novo a pancada, humilde e satisfeito. A sua ambição única é a de servir de sombra ao homem, que lhe concede a suprema ventura de uma vez ou outra, cuspir-lhe no pêlo ou pisar-lhe a cauda com um pé amaldiçoado.

— Tá, tá, tá! Vamos ao que serve. É tarde e eu quero me deitar. Leve o seu cachorro para cima, mas Deus permita que ele não ladre, senão o senhor Gregório...

— O senhorio?

— Sim, senhor, é muito capaz de passar-me alguma sarabanda. Os vizinhos não gostam nada de barulhos, nem eu, com a ajuda de Deus!

Paulo Maurício chamou o cão; o animal ali ficou unido à parede sem mover as pernas. A fome e o frio petrificavam-no.

— Acenda o espírito de vinho, tia Angélica, e aquente-me um pouco de água. Hei de pôr-te rijo como um fuzileiro, meu amigo! — acrescentou o poeta carregando o cão nos braços compassivos.

— Santa Mãe de Deus! — acudiu a velha, esbugalhando os olhos. — Vosmecê quer fazer deste bicho um menino de peito?

— Não pode andar, e então? Levo-o ao colo.

E o poeta subiu ao seu quarto conchegando ao peito o cão agonizante.

O espaço ocupado na casa da rua da Misericórdia por Paulo Maurício era uma água-furtada, de telha-vã, e paredes mal caiadas, em cujas fendas o vento estorcia-se às vezes como gritos dum bando de almas condenadas.

A vida desse rapaz era um prodígio de bondade e de ternura. Nunca do fundo de sua miséria arriscou ele um cartel ao mundo egoísta e brutal, que o encerrava em seus círculos infernais, como os do Inferno do Dante, onde habitam os que perderam de todo a esperança e a fé.

Paulo Maurício estava ainda na época luxuriante da existência em que a dor desfaz-se em gotas de lágrimas, e o espírito retempera-se, amianto divino, nas labaredas do sofrimento e nas piras da amargura.

O seu coração aspirava sempre, e as angústias de todos os dias e de todas as horas eram as brancas asas com o auxílio das quais aquele ente peregrino e nobre devassava os largos mistérios do infinito.

Órfão e pobre, apresentara-se à sociedade, à madrasta implacável, armado apenas com a túnica de sua mocidade e as crenças bebidas no regaço materno. Para que contar mais este capítulo da inesgotável história dos miseráveis?... Paulo Maurício tentou duas, dez, cem vezes ganhar o pão amargo como qualquer imbecil de tamancos mas, faltando-lhe a principal qualidade para tão duro mister — a insensibilidade -, teve de tocar em outro ferrolho e pedir agasalho em novo tugúrio. A sua inteligência fenomenal atraiu as atenções dum honrado homem, que o iniciou nos segredos das tricas comerciais, e proporcionou-lhe as proteções de algumas casas de negócio, onde ele escrevia, conseguindo amontoar laboriosamente o parco pecúlio de sua subsistência diária.

O que porém o arrastava, o seduzia e o desorientava era esse místico arroubo das almas privilegiadas, essa ascensão do espírito às paragens desconhecidas — a poesia enfim, Oceano de diamantes e de lágrimas, em cujas ondas a mocidade se afoga!

Era poeta; poeta pela inspiração e pelo sentimento. Havia na sua vida uns traços da existência fugitiva de Casimiro de Abreu, e descobria-se em sua fronte a palidez doentia, com que Delaroche desenhou o suave contorno da cabeça de Cristo.

O honrado protetor morreu na véspera do dia em que Paulo Maurício foi dispensado dos seus serviços de escrituração nas casas que lhe deram almoço cotidiano.

Quando voltou para o seu quarto, vinha sombrio.

Beijou repetidas vezes o retrato de sua mãe, e depois de estender a vista ansiosa pelo horizonte impassível e tranqüilo — desatou a chorar convulsivamente.

— Ótimas tardes lhe dê Deus, senhor Maurício! — exclamou à porta uma voz trôpega e surda.

Era mestre Gregório, o senhorio da casa, caricatura de homem sério, olho de usurário e sorriso de raposa velha.

O poeta enxugou furtivamente as pálpebras e dirigiu-se ao senhorio.

— Boa tarde, senhor Gregório; boa tarde. Vem cobrar o mês? Estamos a 24, parece-me.

A raposa fingiu-se surpresa.

— Já 24, hein? Ora vejam! Nem me eu alembrava.

Paulo Maurício abriu uma gaveta.

— Para que tanta pressa, senhor Maurício? Deixe-se disso!

— Tanto faz hoje como amanhã. Aqui tem, senhor Gregório; cinco e dois sete, e três dez, e seis dezesseis...

— ...Mil, duzentos e quarenta; ainda faltam esses quebradinhos. Bom; bom; pegue lá o recibo; trazia-o, por acaso.

A caricatura de homem sério pôs a rir com todos os seus dentes de onça sanguinária. Ia a sair quando o poeta pronunciou-lhe o nome.

— Chamou-me?

— Estou a propor-lhe um negócio, senhor Gregório.

O homúnculo enfiou, e abotoado-se todo:

— Se é para baixar o aluguel, não estou em casa.

Paulo Maurício reprimiu um gesto de asco e:

— Pelo contrário, é para pedir-lhe que não me o aumente. Fui despedido de Soares Campos e da casa do Fabrício.

Mestre Gregório estremeceu.

— Oh! diabo! — disse ele. — Então como vive o senhor de hoje por diante?

— Quer dizer: como pagarei os seus aluguéis, não é verdade?

— Quase, quase. Mas afinal de contas o dinheiro é que é a vida, e quem não o tem peça a Deus que o mate e o diabo que o carregue. Grande coisa é andar pelas ruas de cotovelos rotos e barriga vazia! Safa! antes um estouro!

— Ouça-me, senhor Gregório. Sabe que sou amigo do trabalho?

— E depois?

— Façamos um contrato. Deste momento em diante ocupar-me-ei com os seus livros de escrituração, e o meu ordenado...

— Acabe.

— Resumir-se-á nos aluguéis que eu deva pagar-lhe mensalmente.

— Dezesseis mil, duzentos e quarenta réis?

— Justamente. V. S. come em casa...

— De vez em quando.

— Come. Se achar humano convidar-me para a sua mesa, basta-me.

— E o senhor lidará com todos os meus livros, assentos, pagamentos etc., etc.?

— Tudo.

— Irá a cobranças?

De pálido que era tornou-se dessa vez purpúreo o rosto de Paulo Maurício, até a raiz dos cabelos.

— Não — respondeu ele com a voz vibrante e rápida.

— Está feito. Há quem seja mais exigente do que o senhor. Vou pensar no caso.

O poeta aproximou-se ao usurário, e cravando-lhe as pupilas irradiantes:

— Em 24 horas dê-me a resposta decisiva.

— Por que em 24 horas e não em 30?

— Nada mais simples. O senhor vai sair daqui por uma porta e eu por outra. Baterei em mata duma aldraba a pedir trabalho. Mendigarei um emprego, um mata-fome, uma espelunca em que derrame suor e lágrimas... em troca da importância duma camisa lavada e duns sapatos que me livrem da lama. Eu possuo uma alma ousada, senhor Gregório! O cansaço não me aterra, e a luta é para mim o meio único de um dia deixar no mundo um nome digno de mim e de minha mãe. Bem vê que estou disposto...

— Mas o que tem isso com as 24...

— Vai ver. Se voltar sem ter encontrado um coração que me ampare e me compreenda, esperarei pela sua resposta até o tempo do prazo fixo. Demos que V. S. me diga redondamente que não.

— Demos!

— Nesse caso — e nos olhos do poeta fulgiu a asa dum pensamento sinistro -, eu pedirei perdão à sombra imaculada de minha mãe e...

O usurário acompanhou automaticamente os movimentos precipites do moço.

Paulo Maurício desalojou de entre os papéis, que povoavam a gaveta, uma excelente faca mineira, de bainha de prata, e desembainhada, fê-la brilhar ante os olhos espavoridos do senhorio...

— Que diabo faz o senhor? — acudiu mestre Gregório procurando o chapéu e a bengala.

— Não tenha receio. Está vendo esta lâmina? É magnífica; aço de primeira qualidade; fura o ferro como se atravessasse a casca dum ovo. Pois, ilustríssimo senhor, admitamos que ninguém me salve desta miséria, e que a resposta do senhor Gregório vá de parelhas com a de tão cavalheirescas almas...

Mestre Gregário estava fulo de terror; a faca fazia evoluções entre os dedos nervosos do poeta, como um corisco.

— Meto-me neste quarto, queimo os meus papéis, escrevo um bilhete de agradecimento à sociedade fluminense, e mergulho este ferro até o cabo dentro do coração. Aí tem!

Paulo Maurício embainhou a arma, sorrindo com o ar semibárbaro e semidivino dos gladiadores romanos. O senhorio cortejando até o chão, saiu do quarto a resmungar grotescamente. No patamar esbarrou com a velha Angélica:

— Diga-me cá, mulher, esse rapaz, esse senhor Maurício, é dado à bebida?

— Até hoje, meu senhor, não viram nada estes olhos que a terra há de comer.

— Salta! — continuou mestre Gregório, apalpando um por um os degraus da escada — se ele em vez de meter em si a faca, desse para...

E um suor de morte percorreu-lhe a espinha dorsal.

Quando Paulo Maurício viu-se órfão, estava num colégio, cuja mesa e cujas aulas freqüentava por caridade dos diretores. A mãe do poeta vivia nesse tempo em companhia duma família generosa, saboreando com amargas delicias o pão da esmola e a enxerga da mendicidade disfarçada. Desditosa mulher! Acalentava o filho em braços alheios, sorrindo entre lágrimas, como um doloroso astro, através das chuvas da tempestade.

Quem te compreenderá, oh mãe, oh indescritível poema do amor e da castidade? Hás de ir, solene vítima, hás de ir atravessando as almas e os séculos, de braços abertos a todas as desventuras e olhos cheios de fé, erguidos ao céu, que muitas vezes não te escuta nem te favorece sequer!

Concedeu-te o Deus de Belém, a graciosa ventura de resguardares no seio o fruto dum sentimento partilhado, e ainda hoje, querida, ainda hoje esperas aos pés da cruz, as derradeiras gotas de lágrimas, as derradeiras lágrimas de suor, daquele que geraste e concebeste em longas horas de aflitiva bem-aventurança!

Trazes na cabeça a doce estrela do cristianismo, de cujas facetas caem os raios que aclaram a família e iluminam o universo. Cornélia, mãe de heróis; Maria, mãe de mártires; envolta neste ou naquele nome, passará a tua figura luminosa sobre a face dos tempos, como um eterno beijo que jamais se apagará, pois que teve origem na alma da criação e no resplendor da religião sublime.

Os pecados da mulher são resgatados pela mãe; os prantos desta lavam as nódoas daquela. Poder misericordioso de Deus! Como tu és admirável assim, e como nós, os filhos agradecidos, te louvamos e bendizemos!

Ai daqueles que não conseguem, depois dos primeiros tormentos da existência, descansar a cabeça abatida no regaço tranqüilo duma mãe!

Paulo Maurício foi desses infelizes. Saindo do colégio para os braços do mundo; do risonho preceptor para o severo, o astucioso, o cruel padrasto, que nada desculpa, nem poupa. Nunca soube rir essa criança; nasceu coberta de névoas e cresceu no meio da pobreza, que é o crepúsculo da vida.

O homem generoso de quem já aqui se falou, amparou-o até certo tempo. De forma que, o trecho que eu conto das memórias do poeta, refere-se justamente ao capítulo do desamparo e do infortúnio.

O talento perseguia-o, feria-o, acompanhava-o atrozmente. As quedas dos espíritos superiores são mais terríveis que as outras; a consciência e o coração fazem um peso às vezes quase insuportável.

Paulo Maurício assistiu aos últimos momentos da vida de sua mãe. Ele tinha 16 anos nesse tempo. Um portador azafamado entregou ao diretor do colégio onde assistia o poeta, uma carta em que se reclamava a presença do menino.

O diretor leu a carta e mandou chamar o discípulo.

— Vá se aprontar depressa.

— Minha mãe está muito mal; não está, José? — perguntou o menino ao portador.

— Pois já o sabia? — indagou ansiosamente o mestre.

Um fúnebre sorriso desenhou-se nos olhos e nos lábios do órfão.

— Sonhei, senhor doutor — disse ele com voz profunda.

O colégio era situado na rua das Marrecas; a casa em que agonizava a mãe do menino, era na rua dos Beneditinos. O portador mal podia acompanhar os passos nervosos e rápidos de Paulo Maurício. Ele voava como se fosse conduzido pelas asas do pensamento. Entrou em casa enregelado até a ponta dos cabelos, e com o suor a deslizar-lhe pelas fontes e faces, baga a baga.

Momentos depois, estava ajoelhado à cabeceira da cama mortuária. A moribunda afastou da vista as longas névoas que já a turbavam, e pondo as mãos sobre a cabeça do filho, sorriu erguendo os olhos ao crucificado, cujo lenho resplandecia entre duas velas, aos pés da cama.

— Meu filho!

Uma velha mulher chorava no fundo da alcova, e o padre ia a retirar-se pensativo, depois de haver deixado num seio infeliz e puro pela última vez o alvo corpo de Jesus. Paulo Maurício apertou aos lábios convulsos as dobras do lençol já santificado pela morte.

A moribunda tentando esforços quase sobre-humanos, disse ainda ao filho:

— Deus te proteja. Sê homem honrado e faz tudo para não seres pesado aos outros.

Ela tinha a boca seca e abrasada.

— Água! — exclamou entreabrindo os lábios freneticamente.

A velha fez um movimento, mas o menino antecipou-se-lhe. De um salto correu a buscar o copo e duas lágrimas caíram-lhe confundindo-se com a água.

A agonizante bebeu o conteúdo do copo em um trago sôfrego.

Uma espécie de bem-aventurança iluminou-lhe os traços desmaiados, tal como os raios do sol no poente ou os últimos vislumbres da estrela-d’alva.

— Ouve-me, Paulo.

O menino escondeu entre as mãos dela a face inundada de pranto.

— Não chores, meu filho. A morte, em vez de separar, reúne. Lembra-te sempre de tua mãe, que vai pedir a Deus por ti, e que será feliz no céu com a tua felicidade neste mundo. Eu tenho certeza de ti; morro descansada. Dá-me um beijo, aqui, na minha boca.

O menino uniu os lábios aos lábios maternos e aspirou faminto a alma dolorosa, que se despedia da vida. A velha a custo arrancou-o dessa posição horrível, justamente no instante em que a moribunda estrebuchava no paroxismo final.

Durante três dias, Paulo Maurício lutou com a morte. Os médicos desenganaram-no, mas a juventude salvou-o.

Voltou para o colégio, donde saiu protegido pelo homem, que pouco depois havia de forçosamente abandoná-lo aos azares do mundo. As raras jóias — jóias! — que a mãe lhe deixou e que lhe foram fielmente entregues, ele as cedeu à velha enfermeira em sinal de religiosa gratidão. Um véu fatal desde então, coseu-lhe em redor da alma, e quando ele declarou ao mestre Gregório que se mataria, estava decidido a dar cabo de si.

O espírito materno, porém, velava como uma divina sacerdotisa sobre os destinos do poeta.

A oração de Paulo Maurício viera ao mundo à semelhança dessas flores melancólicas e obscuras, que nascem à superfície das sepulturas cheias. Borrifavam-no, em vez de orvalho, lágrimas, e a sua alegria era o luto que o amortalhava. O amor, a festa, o prazer, todas essas teclas vibrantes que produzem as sinfonias da mocidade eram-lhe desconhecidas e até adversas ao seu caráter altivo. A memória de sua mãe enchia-o, completamente, e quando o poeta às vezes estendia a vista pelo horizonte iluminado, cuidava distinguir através dos raios das esferas a figura ideal daquela que única o amou em vida.

— És tu, sim, meu santíssimo amor! Sempre pudibunda e bela!

As musas da saudade e das aspirações sublimes eram as suas companheiras nas horas do recolhimento profundo da alma. Longe dos trabalhos cruéis e brutais que, durante o dia, lhe facilitavam os parcos meios do sustento habitual, o poeta deixava-a voar na correnteza dos seus pensamentos, como um prisioneiro, a quem se concede uma hora de ar livre, perante o mar e o céu.

Mestre Gregório respeitava o seu hóspede, e os inquilinos da casa — uns oito personagens pelo menos — sentiam irresistível simpatia por esse moço quase incógnito, que passava a vida entre o trabalho e a meditação.

A tia Angélica, por sua parte, adorava o poeta pelo simples fato de ele possuir uma bela imagem de Jesus, gravura de Calamatta, que lhe tocara por prêmio no colégio. A velha, toda a vez que varria o quarto de Paulo Maurício, estacava defronte da gravura, exclamando entre cinco sinais-da-cruz:

— Bento nome do Senhor! Sempre aqueles judeus foram uns marditos do couro do diabo!

O poeta pilhou-a num desses rasgos, certo dia em que voltara mais cedo para casa.

— Está admirando a minha cabeça de Jesus, tia Angélica?

— Não se me dava de trocar os meus brincos de plaqué por este registro, senhor Maurício!

— Eu é que o não troco por coisa alguma, tia. Quero-lhe um bem extraordinário.

— E gave-se disso, meu senhor, porque é uma perfeição.

Contemplando a gravura, a volumosa porteira murmurava ainda em despedida:

— Bendito o ventre que te concebeu!

— Amém. Até logo, tia Angélica.

— Já quer que me vá hein? Oh! gente! eu nunca vi um moço como vosmecê, sempre só!

— Antes assim que mal acompanhado, tia. Até logo.

— Cá vou, cá vou. Até; fique-se com Deus.

Paulo Maurício possuía uma ternura imensa para tudo quanto é fraco, inerme, e geralmente espezinhado pelos pés maciços do gênero humano. Uma flor, um pássaro uma formiga, valiam mais a seus olhos do que a árvore genealógica da raça dos Bourbons.

As andorinhas, que recortavam o seio azulado da tarde, mereciam-lhe olhares de interesse e simpatia fraterna. Ele acompanhava-as no giro caprichoso, até perdê-las de vista, e dizia consigo:

— Se eu tivesse asas também, iria convosco, oh loucas! Até engolfar-me nas vagas serenas do paraíso!

Entrou-lhe, certa tarde, ia caindo o crepúsculo — um passarinho, um gaturamo pela janela.

A ave estendia já debilmente as asas, e desprendendo festivos gritos, veio pousar pouco distante do poeta no encosto duma cadeira.

Paulo Maurício exultou com a visita, como esses meninos folgazões, que vêem descansar no poleiro da armadilha a desejada caça. Adiantou-se até o pássaro, com as mãos abertas, receoso de o perder. O gaturamo agitou novamente as asas sem mudar de posição, e desenrolou um rosário de melodiosos gorjeios.

O poeta estava maravilhado. Prende delicadamente entre as mãos o fugitivo, e 20 minutos depois, acondicionava-o dentro duma gaiola, gentil empréstimo da porteira de mestre Gregório.

— Olhe, tia Angélica; que graça! Ele vai cantar, espere!

— Que é, senhor? Nem que eu não tivesse mais que lazer!

— Um minuto só!

A alma daquela criança inspirada ressoava como o piano de Thalberg.

O prazer fulgia em seus olhos, e os seus ouvidos esperavam a primeira harmonia do pássaro, à maneira do leitor quando espera o jornal do dia ou um telegrama comercial.

O gaturamo desfez-se em melodias em honra do poeta. A velha estendeu o beiço, e ponderou conscienciosamente:

— Vale quatro mil-réis, de olhos fechados. Depois de tal sentença, a esférica mulher retirou-se orgulhosamente.

Esse passarinho foi por algum tempo a predileta companhia do poeta. Despertava-o cantando e cantando o adormecia.

Ao sair para o trabalho, todas as manhãs, Paulo Maurício dizia à porteira:

— Bom dia, tia Angélica; receba saudades do meu gaturamo.

Uma certa manhã o poeta saiu sem cumprimentar a velha.

— E então, ó senhor Maurício? E o gaturamo?

O moço voltou-se com semblante pensativo e articulou entre dentes:

— Morreu; morreu há pouco, tia Angélica. Reze-lhe por alma.

Tentou sorrir, mas confrangiu-se-lhe o rosto angustiosamente.

A velha subiu ao quarto e arrecadando gaiola e pássaro morto:

— Ora aí tem o que são amizades por estas coisas à-toa. Mais vale comer um prato de arroz.

Foi a oração fúnebre que a respeitável matrona cedeu ao harmonioso companheiro de Paulo Maurício.

Era pois um coração terno e bom o desse órfão da fortuna e dos homens. A desgraça havia-o por assim dizer purificado, e a sua alma, alheia aos gozos turbulentos da existência, pendia para o que é humilde e fraco, para as venturas calmas e ignoradas, como os cálices das flores dum cemitério que se debruçam sobre a terra silenciosa.

Mestre Gregório, por terror ou por compaixão — quem pode sondar o charco desses espíritos baixos e mercantis? – dirigiu-se ao poeta no dia seguinte ao do episódio da faca, e disse-lhe entre duas respeitabilíssimas caretas:

— Venho trazer-lhe a resposta. Antes, porém, faça o favor de me dizer o que arranjou.

— Nada — respondeu Paulo Maurício. — Estou sem emprego e sem pão.

Depois de olhar desconfiado para a gaveta em que dormia a arma, o usurário acrescentou:

— Pois eu sou mais humano do que os outros. O senhor de hoje por diante tratará dos meus papéis e comerá à minha mesa. Pode acontecer alguma vez que eu não jante em casa, mas não faz mal; a Angélica já está prevenida para não o deixar morrer à fome.

Um feroz sorriso adelgaçou os lábios de mestre Gregório.

— Tanta generosidade, sr. Gregório! — acudiu o poeta sorrindo entre o desdém e o pudor ferido.

— Quero — agora pedir-lhe uma coisa.

— Diga, meu caro patrão.

— Eh! eh! eh! Patrão! Já me chama patrão! Queria pedir-lhe que me vendesse aquela...

— A faca? Impossível, sr. Gregório— Foi uma lembrança de amigo. Herdei-a de meu pai. Tenha paciência.

— Não falemos mais nisso. Então, está convencionado?

— Perfeitamente. Mande-me hoje os seus livros.

— Pronto. Até logo.

— Até logo, sr. Gregório.

O usurário, antes de sair, contemplou ainda a gaveta como os selvagens o gatilho misterioso duma espingarda.

A tia Angélica entrou nesse momento na alcova do poeta.

— Bravo! — exclamou a megera saudando grotescamente Paulo Maurício; — que bom vento foi esse! O amo está com vosmecê pelo beicinho. Verá que homem aquele de truz! Quando gosta deveras de alguém não há quem lhe chegue!

Uma nuvem de sarcasmo amortalhou o semblante heróico do órfão.

Na gaveta em que se escondia a faca tão contrária à índole oscilante de mestre Gregório, guardava o poeta o seu tesouro. Um tesouro! A riqueza que não se vende nem se compra, a opulência acumulada com lágrimas e com sorrisos, brilhante sempre e sempre abençoada pelo destino!

No silêncio da noite, à luz mortiça da vela, Paulo Maurício abria um grande livro manuscrito, em cuja primeira página lia-se em largos caracteres a palavra Ideal. Era o título do poema.

Todas as noites, em hora de inspiração, o poeta depositava no receptáculo de seus pensamentos o óbolo do coração e da mocidade. O Ideal simbolizava a luta do homem com a natureza e com a sociedade. Vibrava naqueles cantos resplandecentes e enérgicos ora a lira arrogante do Ashaverus, ora o mavioso arrabil da Messiada.

Um pesar no entanto oprimia a alma ingênua do poeta. Onde achar um juízo imparcial sobre a sua obra? A quem recorrer? A quem pedir conselho e lição?

Repetidas vezes os dedos nervosos rasgavam um canto começado, e Paulo Maurício embebendo os dedos entre os cabelos perdia-se num silencioso e morno abatimento.

O nome e a imagem de sua mãe ocupavam quase todo o poema. Eram as bússolas e as âncoras da inspiração febril; presa a essas santas amarras, a alma do poeta ganhava forças, ganhava coragem, ganhava luz, no meio das sombras e desalentos que a perseguiam.

Paulo Maurício pouco saía de casa depois do seu contrato com o senhorio. Era o seu passeio favorito uma livraria menos freqüentada, onde, graças à proverbial bondade do livreiro, o poeta conseguia examinar alguns volumes, e mais de uma vez, trazê-los consigo por empréstimo.

O seu ânimo recluso e desconfiado separava-o do mundo e dos moços como ele. Receava molestar os mais com a sua desgraça, e sabe Deus a angústia que o oprimia, ao partilhar as magras refeições de mestre Gregório.

Começa esta história num dia em que Paulo Maurício, voltando à casa tarde, perdera o jantar. Subiu ao seu quarto, leu cinco páginas da Imitação de Jesus, e quando anoiteceu, saiu a espairecer. A velha Angélica — rendamos-lhe o merecido preito! — viera oferecer ao poeta alguma coisa "para aquentar o estômago", mas o moço recusara com um doce sorriso.

O horizonte estava um pouco tempestuoso, apesar de não chover ainda. Paulo Maurício foi até o Passeio, onde ficou três horas, a cismar por entre as árvores, e a contemplar pensativo a marcha dos cisnes e das irerês no lago adormecido.

— Ó minha mãe — murmurava ele com a sua alma -, acaso me vês tu lá de cima, da misteriosa guarida, ninho e glória do teu espÍrito imortal? Responde-me, inefável essência! Consola-me e dá-me forças para caminhar nesta negra rua da amargura!

Soprava a brisa do mar. Paulo Maurício cuidou sentir o carinho de uma asa invisível entre os seus cabelos esparsos.

Havia baile no Cassino, essa noite. Eram dez horas os cupês e os trens faustosos estacavam ruidosamente à porta do opulento edifício.

As luzes do salão resplandeciam como num festim oriental. Os lacaios da casa imperial, os curiosos e os ramalheteiros enchiam a calçada junto ao portão. Paulo Maurício instintivamente moveu os panos até lá e esgueirou-se entre a multidão. Aproximava-se um carro; aberta a portinhola, desceu, ágil e elegante, uma moça envolta em cambraias diáfanas. Luziam-lhe na cabeça os diamantes, e o seu ombro nu, desfazendo-se da capa, que o cobria, cintilou como o dorso de Vênus.

O poeta fechou os olhos resistindo à fascinação. A elegante desapareceu abandonando ao indiscreto vento da noite uma espiral de violetas e de cravos.

Paulo Maurício vagou até meia-noite por quase todas as ruas da cidade, meio alucinado, com aquela figura de ninfa ou de arcanjo a segui-lo como a sombra do amor. O seu estado de fraqueza e a comoção que o abalava faziam-no vacilar como um homem quase ébrio.

A porta de casa encontrou o cão. A sua alma ansiosa precisava transbordar, e quando ele carregou ao seio até o quarto o corpo do animal moribundo, ia reconhecido ao destino por lhe haver enviado uma criatura em quem empregasse o mundo de amor e de simpatia que surgia esplêndido do seu coração extasiado.

A velha Angélica cumpriu a promessa baseada na oferta da cabeça de Jesus. Momentos depois o cão, acalentado e saciado, punha os olhos úmidos no seu novo amo. Paulo Maurício fechou a porta da alcova e chegou-se ao cão.

— Posso contar com a tua amizade, que dizes, amigo?

O rafeiro estendeu a cabeça agradecida grunhindo em surdina.

O poeta sentia-se cambalear. Tentou varrer as nuvens que lhe obscureciam a vista, mas, faltando-lhe as pernas, caiu sobre a cadeira ao pé da mesa.

Recuperou os sentidos ao romper do dia. A primeira coisa que viu foi o cão, na mesma atitude da véspera, de olhos presos nele com a persistência infatigável de um irmão ou de um amigo.

Banharam-se de lágrimas as faces do poeta.

— E é um cão! — murmurou pensativo.

Gregório ia às mil maravilhas com o seu novo guarda-livros. Paulo Maurício, além de ser uma inteligência rara, era a dignidade personificada. Na fronte daquele moço distinguia-se esse toque solene que a experiência deixa gravado na cabeça encanecida do ancião.

E que melhor escola do que a da necessidade e a da miséria? É aí que se estuda a vida e se descobre o fio de Ariadne para os meandros inacessíveis da sociedade mundana. Paulo Maurício educava o seu espírito entre as lágrimas e os sofrimentos. Desse choque fatal surgia-lhe a alma cheia de irradiações, como Minerva do cérebro de Júpiter e a namorada de Marte do meio das espumas.

No dia seguinte ao do encontro com o cão esfaimado, desceu o poeta até a sala de jantar, a hora do almoço, amparando-se ao corrimão e encostando-se às paredes. As sombrias visões da febre dançavam urna sarabanda infernal ante os seus olhos turvos.

O usurário esperava-o à mesa em companhia de um sujeito que Paulo Maurício não conhecia.

— Ora viva o sr. Maurício! — exclamou mestre Gregório. — Não nos quis ontem aparecer?

O poeta saudou com um leve sinal de cabeça o desconhecido, e apertando a mão do senhorio:

— Estive fora ontem — disse ele. — Passei mal o dia!

— E é verdade. O senhor está com as mãos como uma brasa!

Paulo Maurício tomou lugar à mesa, sorrindo dolorosamente.

Mestre Gregório incumbiu-se das apresentações.

— O sr. Paulo Maurício! O sr. Mendes, rico fazendeiro de Baependi!

— É filho do Rio de Janeiro? — perguntou Mendes ao poeta.

— Sim, senhor. Aqui nasci e creio que aqui morrerei.

— Um moço da sua idade não pensa em morte! Mas, agora reparo... O que tem? Sente alguma coisa?

O poeta mal chegara o alimento à boca; um suor frio derramou-se-lhe pela testa e faltou-lhe a luz de repente.

— Não é nada — acudiu ele, dominando-se. — Fraqueza talvez!

O fazendeiro apiedou-se do estado do moço, e com a voz comovida;

— Para que trabalha tanto? Disse-me o sr. Gregório que o senhor leva as noites em claro. Também, não vai a matar; nem aqui o amigo é tão exigente assim!

— Oh! não. Os trabalhos de que me incumbe o sr. Gregório pouco me atropelam. O meu mal, senhor, é dos piores e dos que não têm remédio.

Mendes sorriu com brandura paternal.

— Alguma paixão, hein?

— Por minha mãe. Amo-a e hei de morrer desse amor.

Mestre Gregório olhou de esguelha para o fazendeiro, movendo os ombros quase imperceptivelmente.

Mendes, porém, era uma alma romana, um desses distintos caracteres cuja missão no mundo é as mais das vezes compreender e aliviar as desgraças alheias. Rara avis.

— O senhor é órfão, não?

— De Deus e dos homens, senhor! — respondeu Paulo Maurício com uma pungente dignidade.

— Oh! — sussurrou o usurário a modo de censura.

Mendes contemplou lentamente o poeta.

— Não fale assim. A criatura deve esperar sempre uma felicidade, embora tardia. O céu, mais hora, menos hora, ampara aqueles que o imploram com sinceridade e crença. Quer fazer-me acreditar talvez — veja lá se pode! — que não tem o menor vislumbre de ambição e que a nada aspira no mundo?

— Mentiria, se tal dissesse! — acudiu Paulo Maurício elevando o busto com um sentimento de nobre orgulho. A minha ambição, porém, é alheia aos caprichos dessa riqueza bastarda cimentada com bilhetes de banco e moedas cunhadas. Aspiro às coisas ideais! Meu coração estremece feliz à idéia de que um dia, no futuro, mais de uma boca cite-me o nome com entusiasmo e amor. Eu prefiro a glória de Tasso à de Rothschild, e de bom grado trocaria, se os possuísse, os tesouros dos contos arábicos por uma estrofe de Lamartine.

— Poesia! Poesia!

— E então! Não será uma virtude, diga-me, e uma grande virtude, ser poeta no meio das brutalidades, da fome, das misérias e dos insultos da existência terrestre? Qual merece mais: o sibarita que se chafurda até o pescoço nos pântanos, ou o infeliz que, para não manchar a túnica de sua alma, agarra-se a quanta pedra, a quantos espinhos e tojos encontra às mãos, morto de fadiga e de torturas?

— Gosto de ouvi-lo, moço; isso é belo, é cheio de abnegação e de sentimentos elevados. Dê, porém, ao coração a sua parte, ou por outra, o seu inestimável quinhão entre todas as vicissitudes da vida. É preciso admitir que há na terra quem mereça ainda simpatias e amor.

— Há, sim. E eu conheço alguém...

— Bravo!

— Veja.

O poeta fez um sinal, e um cão, deitado por baixo de sua cadeira, estirou o colo, as pernas e o pescoço, pousando em seguida a cabeça festiva nos joelhos de Paulo Maurício.

— Oh! oh! — exclamou mestre Gregório. — Não sabia desse novo inquilino!

— Esqueci-me de lho participar — volveu Paulo Maurício afagando o cão. — É tempo ainda.

— Com que então — disse o fazendeiro — é esse o tal alguém tão preconizado?

— Justamente; é este cão.

— Tem-no há muito?

— Desde ontem à meia-noite. Chovia quando o encontrei à porta desta casa; o coitado tiritava de frio e de fome. A desgraça possui o imparcial condão de nivelar todos os animais. Compadeci-me deste miserável órfão e dei-lhe abrigo. Hoje de madrugada surpreendi-o com os olhos fitos em mim como um sublime enfermeiro. Quero-o deveras e dói-me não ser rico para nomeá-lo meu herdeiro universal.

— O senhor sempre anda com umas idéias! — observou mestre Gregório, rindo parvamente.

— É de raça este cão?

— Parece que roçou pela genealogia dos Terra Nova; mas que olhos! Que cabeça inteligente! A natureza é uma ingrata na extensão da palavra. Nega a voz a um animal como este, para outorgá-la copiosamente a quanto barbeiro estupidarrão e usurários há por aí.

Mestre Gregório dilatou as ventas e esfregou a vasta orelha.

— O senhor não freqüenta a sociedade? — perguntou Mendes.

— Não, senhor. Ia uma vez ou outra, enquanto minha mãe vivia, à casa em que por caridade lhe davam um travesseiro e um lugar à mesa. Tive um protetor, que morreu, há pouco tempo, e desde então só à imensa bondade do sr. Gregório devo a ventura de conversar com o sr. Mendes, a esta hora e nesta sala.

— Acredita na espontaneidade da simpatia?

— Por que não?

— Saiba, pois, que deve contar-me no número dos que o estimam.

Paulo Maurício agradeceu modestamente.

Quando subiu para o seu quarto, ia mais lento e senhor de si. O cão, à maneira do homem, também movia melhor o corpo, aventurava ziguezagues caprichosos, sacudia a cauda e estendia a cabeça aos raios do sol, que iluminavam a alcova. O céu estava azul; soprava um vento frio e agradável: no quintal de uma casa próxima, duas lavadeiras cantavam alegremente.

Paulo Maurício apoiou-se à janela e respirou com delicias os aromas do dia. Estava mais alegre, mais forte, mais esperançoso e por que não mais feliz? Mais feliz também; as palavras do fazendeiro haviam-lhe sido gotas de ambrosia e um bálsamo para as feridas de sua alma atribulada.

É fácil na mocidade transformar-se o sentimento e dar abrigo às musas da esperança e da fé o coração, ondas, a todas as pérolas e a todas as tempestades da vida. O fazendeiro jantou ainda em casa de mestre Gregório. Vendo-o de novo, estremeceu de júbilo o poeta. Ao despedir-se, disse-lhe Mendes:

— Lembre-se de mim.

— Sempre.

— Hei de vir com a família passar uns meses na corte. Dar-me-á o gosto de aparecer por minha casa?

Paulo Maurício guardou silêncio.

— Vai, sim senhor, vai! Tinha que ver! — interrompeu o usurário. — Pode-se gabar, sr. Maurício! que ainda não ouvi este nosso amigo falar de ninguém como de vosmecê.

O poeta apertou entre as suas as mios do fazendeiro.

— Deus lhe pague.

— Vai?

— Vou.

Terminada uma pequena escrituração de mestre Gregório, Paulo Maurício entregou-se ao seu poema, de corpo e alma. As idéias jorravam-lhe do coração em borbotões revoltos; anavalhe o peito, e a inspiração, à semelhança dessa terrível serpente do Amazonas, enroscava-se-lhe na alma em milhares de círculos gigantescos.

O cão parecia compreendê-lo, seguindo-lhe os movimentos, os gestos, os acenos e os olhares.

Suave, a noite abria no regaço das nuvens todos os seus irradiantes tesouros. A lua, fraca ainda, franjava o horizonte de uns leves tons de opala, que se multiplicavam de floco em floco.

O herói do poema de Paulo Maurício, como o Ashaverus, como o judeu amaldiçoado pelo Cristo, vagava cercado das mais cruciantes dores e pesadas aspirações, à cata do ideal. Urna diferença, porém, distinguia os dois tipos: um era perseguido pela profecia de Jesus, o outro pela ingratidão dos homens.

O talento de Paulo Maurício obrara prodígios naqueles cantos repassados de entusiasmo e nervosa eloqüência. Por vezes o delírio da própria inspiração o dominava profundamente, a ponto de o poeta arremessar ao chão a pena e recitar em altas vozes as estrofes que lhe irrompiam do coração deslumbrado.

Nessa noite subiu à meta o sentimento que se poderia chamar a febre do ideal. Ofegante, trêmulo, com a fronte úmida e os lábios abrasados, o poeta declamava as últimas páginas do seu livro. Era um furacão. Era uma tempestade! Era uma maravilha!

O cão eriçava o pêlo e grunhia arrebatado naquela torrente impetuosa. Revelavam as palavras um quadro de horror ou de angústia; o animal confrangia-se todo, e mal conseguia suster-se nas patas vacilantes. A inteligência do homem o fascinava, e as chamas do poder criador como que o elevavam até a essência da alma humana.

No momento em que o herói do poema alcançava enfim o bem supremo, o amor partilhado, e as coroas do triunfo na imortalidade, a voz de Paulo Maurício despedia notas de uma música divina; seus olhos fulguravam como a racha de uma aurora boreal, e uma espécie de torpor místico veio paralisar-lhe num êxtase a boca inspirada. O poeta correu à janela e voltou-se em cheio para as nuvens estreladas.

De um salto o cão foi-lhe no encalço, e, suspendendo-se até o peitoril, acariciou as mãos queridas, latindo de prazer e de palpitante ventura.

Paulo Maurício, com um movimento frenético, debruçou-se sobre o animal e prendendo-lhe a cabeça entre os dedos nervosos:

— Tu me compreendes, tu me compreendes, amigo! — articulou ele.

Em seguida, apoderando-se do manuscrito, mostrou-o ao cão.

— Já que o destino determinou que fosses tu a única testemunha das minhas secretas mágoas e alegrias... Olha! Isto aqui será o berço da minha glória ou o túmulo das minhas ilusões.

O cão veio humildemente deitar-se-lhe aos pés.

No fim do mês, mestre Gregório dirigiu-se à água-frurtada do poeta.

— Viva o meu amigo e guarda-livros! — exclamou o usurário entrando no aposento.

— Oh! O sr. Gregório! Muito bom dia!

O senhorio parecia pisar brasas; ia de um lado a outro do quarto, sem tomar uma resolução qualquer. Respirava alto; puxava os colarinhos — uns colarinhos fora do alinhamento -, esfregava a barba, o queixo, os olhos etc. Estava em crise o homem, infalivelmente.

— O que tem o senhor? Vejo-o preocupado.

O usurário de chofre estacou defronte do poeta.

— Eu cá não entendo de papas na língua. Um homem é um homem e um gato é um gato. Aqui está o que aqui me trouxe!

Dito isto mergulhou a mão no bolso do amplo casaco e descobriu uma carta volumosa. Passando-a a Paulo Maurício, fez menção de se retirar, quando o moço o deteve por um gesto:

— Perdão. Deixe-me primeiro ver de que se trata.

— Nada, nada. Nesses negócios não me quero eu meter. Desenrole a meada por si mesmo!

E retirou-se às pressas como um malfeitor perseguido.

O poeta abriu intrigado a carta, de dentro da qual caíram algumas notas do Banco do Brasil. Lançou os olhos para a assinatura. Leu Mendes. A carta dizia assim:

“Meu amigo, ou antes, meu filho. Que o seu orgulho não se sobressalte com a minha ousadia. Eu o estimo como pai e admiro-o como homem. Perdoe-me, novamente lhe rogo. Vá ao Garnier e muna-se de bons livros com a bagatela que inclusa achará. Para tão bom emprego destinei essa lembrança, que o seu coração não me criminará pelo atrevimento. Far-me-á relevante serviço de aceitar, e, maior ainda, e incomparável ventura, se quiser o vir à noite à nossa casa, rua das laranjeiras nº... onde acomodei minha família. É o dia dos anos de uma filha adorada. Como eu exultarei com a sua presença, meu grande espírito! E como seria para mim inefável contentamento se meu filho, um rapaz da sua idade, conseguisse ser seu amigo e discípulo desse raro caráter! Venha abraçar quem se presa de ser seu admirador e agradecido amigo."

P. Mendes.

O poeta leu três vezes a carta. Da segunda vez amarrotara-a convulso; da última sorriu com ar triunfante, colheu no chão as notas esparsas, e, acenando ao cão, desceu à rua.

Esbarrou na escada com a velha Angélica.

— Faça-me um favor, tia. Mande-me lavar e engomar para esta noite aquela camisa bordada.

— A que está na gaveta?

— Sim, e não se há de enganar, porque é a única da espécie.

Durante o jantar, Paulo Maurício mostrou-se jovial e parlador contra o costume. Mestre Gregório espreitava-o sorrateiramente, rindo-se por baixo da barba. À sobremesa, o usurário passou ao moço uma carta.

— Ainda outra? — perguntou o poeta franzindo o sobrolho.

— Isto agora é comigo acudiu de pronto o usurário. — Aumentei-lhe o seu ordenado; e entrego-lhe a demasia, descontando o aluguel.

Paulo Maurício guardou com a maior serenidade o dinheiro.

— Aceito e agradeço.

Às dez horas da noite entrara o poeta no salão principal da casa do fazendeiro. Ressoava a música e os pares entrechocavam-se, no meio dos perfumes e das luzes.

Mendes correu-lhe ao encontro, de braços abertos.

— Bem vê que não faltei.

— Se soubesse como me alegra a sua presença! Vou lhe apresentar minha família. Venha.

O fazendeiro conduziu Paulo Maurício à sua mulher, em primeiro lugar, logo depois ao filho, à filha mais velha, e finalmente à dona da festa, uma menina formosa, toda envolta em gazes e margaridas.

— Esta é a minha Cecília — disse ele.

— Se o sr. Mendes me permitisse... — aventurou o poeta.

— O quê?

— Que oferecesse uma lembrança do dia de hoje. É uma ousadia que a generosidade de V. Exa. — continuou ele dirigindo-se à menina — me relevará de certo.

O fazendeiro contemplou intencionalmente o poeta.

— Algum tesouro? — perguntou com a voz indecisa.

— Não: são flores. Violetas. Perdão, minha senhora!

E Paulo Maurício abrindo o lenço entregou um gracioso ramo de violetas à menina.

O filho do fazendeiro tomou o braço do poeta, e entrelaçaram-se aquelas duas almas generosas, presas de uma mútua e viva simpatia. De uma ocasião, o filho do dono da casa, obrigado a acudir não sei a que urgência social, deixou por alguns instantes o companheiro.

Quando voltou não o viu mais. Paulo Maurício havia abandonado o sarau.

Cecília procurava o pai por todos os cantos.

— Ah! Até que o achei, papai!

— Que temos?

— Olhe as artes do seu amigo Paulo Maurício.

O raminho de violetas trazia meio oculto por filigranas de papel-cambraia um rico porte-bouquet de ouro, cravejado de turquesas e diamantes.

O fazendeiro, depois de examinar de perto a jóia, entregou-a à filha, sorrindo amargamente.

— Indomável orgulho! — disse ele entre dentes.

O poeta examinava as contas de mestre Gregório. Era a hora do trabalho; eram cinco horas da tarde. A velha Angélica, rotunda e misteriosa como a lua cheia, entreabriu mansamente a porta da alcova.

— Dá licença?

— O que quer, tia?

— Está aí um moço seu amigo. Pode entrar?

Paulo Maurício mal teve tempo de abotoar o paletó.

O filho do fazendeiro, afastando a criada, penetrou no aposento.

— Oh! O sr. Mendes?

— Eduardo, Eduardo é o meu nome! Venho brigar muito com você, ilustre desertor!

O filho do fazendeiro em um belo rapaz, formoso de corpo e formoso de alma; coisa rara numa época em que a matéria anda tão hostil ao espírito. Tinha 22 anos e cursava as últimas aulas da Escola Central.

— Desertor?

— Desertor, sim! Mas, antes de tudo — prosseguiu o moço ao ouvido do poeta — põe no olho da rua esta velha imensa!

A tia Angélica, a um sinal de Paulo Maurício, saiu do quarto resmungando sinistramente.

— Meu caro Maurício — prosseguiu Eduardo Mendes -, você é um ingrato, e além de tudo um traidor!

— Um traidor, eu?!

— Pois o que significa o mimo que deu à minha irmã?

O poeta corou até as pálpebras, e a palavra suspendeu-se-lhe nos lábios enleados.

— Olha — acudiu o outro, forçando-o a sentar-se e apoderando-se de uma pequena mala carunchosa que metamorfoseou em cadeira -, minha família é simples como as plantas e desconfiada como um caipira.

— Mas...

— Espera. Das duas, uma: ou você está a fingir-se nababo, ou é na realidade um milionário, que viaja incógnito.

Paulo Maurício tentou cortar em meio o pensamento do camarada.

— Pelo amor de Deus, meu querido! Favoreça-me com a sua preciosa atenção. Meu pai o adora e eu adoro meu pai; logo, você é para mim um ente adorabilíssimo. Compreendo todo o orgulho dos talentos superiores; respeito o melindre dos corações nobres, porém, rogo-lhe, que veja de hoje em diante naquela casa das Laranjeiras uma espécie de cabana de Bernardim de Saint-Pierre, pronta a abrigar a amizade, e não um palácio de duques, marqueses, condes, valetes, et reliqua!

O poeta riu-se e apertando a mão do amigo:

— O senhor é uma encantadora alma! — disse ele.

— Outra! O senhor! Parece-me, meu caro, que nunca chegaremos a um acordo, e portanto...

O filho do fazendeiro dirigiu-se à porta, de chapéu em punho.

Paulo Maurício sentiu-se arrastado por tanta graça e espontaneidade. Prendendo nos braços o amigo, exclamou com a voz comovida:

— Perdoa-me, Eduardo; eu sou um urso!

— Ora, graças! — volveu o moço com todos os ímpetos do prazer juvenil — Je te retrouve, mon chéri!

Meia hora depois, o filho do fazendeiro despediu-se.

— Sabes, Paulo Maurício; quero-te um bem enorme. Se fosses mulher casava-me contigo.

O cão pôs-se a acarinhar os pés de Eduardo Mendes.

— Não sabia que eras amador do gênero. Hei de oferecer-te um galgo soberbo.

— É inútil. Basta-me este leal e inteligente amigo.

— Queres-lhe muito?

— Muito; se a teoria de Pitágoras não é uma asneira, a alma deste cão pertenceu a algum mártir romano.

— Sim?

— Palavra!

— Pois bem — exclamou o filho do fazendeiro, com um ar meio cômico e meio sério -, juro pela cabeça do teu cão que serei teu amigo eternamente.

— Que palavra comprida!

— Com a condição, já se sabe, de não seres mais?... ajuda-me!

— Urso?

— Apoiadíssimo; urso!

Entre gargalhadas separaram-se os dois rapazes.

Paulo Maurício sentou-se de novo à mesa do trabalho.

O cão humildemente veio enroscar-se ao pé da mesa. O poeta afagou-o com a mais fraternal meiguice:

— Descansa, meu amigo. Ninguém ocupará o teu lugar.

O animal cerrou os olhos, agitando a cauda amorosamente.

Graças à proteção de Mendes, de quem mestre Gregório dependia como todo o usurário dos homens dinheirosos, a existência de Paulo Maurício viu-se transformada de repente; entre os espinhos de sua jornada laboriosa brotam algumas flores peregrinas.

O filho do fazendeiro forçara o poeta a receber um ou outro mimo das mãos do pai, e ele próprio rara vez deixava de visitar, depois da aula, o modesto aposento da rua Misericórdia.

Embalado por tão inesperadas carícias, a alma do poeta, contrária à dos sibaritas, agitou no ar chamejante da mocidade as suas asas diáfanas, e o talento de Paulo Maurício com mais ânsia entregou-se às conquistas da inspiração e do futuro. O poema limado e concluído esperava apenas a hora da publicidade, esse mar tormentoso em que, segundo una frase célebre, navegam quase sempre sem perigo os batéis e soçobram as grandes esquadras.

O filho de Mendes surpreendeu uma noite Paulo Maurício na leitura do seu amado manuscrito. O poeta, à vista do amigo, ocultou o livro.

— Tens medo de que eu te roube algum pensamento?

— Que idéia!

— Sorriram os dois e saíram braço aqui, braço acolá, com direção à praça da constituição. O cão seguia-os como uma sombra.

Havia festa na cidade essa noite; uma festa nacional. A praça da constituição, toda embandeirada e iluminada, mal continha a multidão que a atravessava de lado a lado.

— Sabes, Paulo, que eu chego a invejar a sorte deste quadrúpede que nos acompanha?

— Explica-te!

— Decerto. É o teu único confidente, parece-me. Para mim tens segredos, caro mio!

Paulo Maurício contemplou lentamente o companheiro:

— Um dia será divulgado esse segredo.

— De forma que só no supradito dia é que este teu humilíssimo servo entrará na confidência geral?

— Olha, Eduardo. Eu sou como um desgraçado joalheiro cuias mãos tímidas e assustadas gastam noites, meses e anos na confecção de um tesouro, destinado a fazê-lo rico ou a abismá-lo de todo na miséria. Enquanto não estiver completamente terminada a obra, o silêncio e o mistério devem cercá-la como sentinelas constantes. Perdoa a perífrase e admira a estátua do primeiro imperador.

Discutiram e conversaram sobre mil coisas ainda. As aspirações da mocidade e os sonhos dessa fulgurante quadra da vida voavam pousando sobre as duas esperançosas almas, como um bando de pombas no topo de uma palmeira. Às dez horas da noite o poeta quis voltar à casa. Eduardo Mendes conseguiu demorá-lo mais tempo, e, apesar de inúmeras negativas da parte de Paulo Maurício, entraram os dois num café.

— É preciso habituar-te um pouco à vida, meu guaicuru — observou, rindo, o filho do fazendeiro.

O licor produz uma série de indiscrições e confidências, que fora ocioso catalogar aqui. À meia-noite, já Eduardo Mendes conhecia o título e o assunto do poema de Paulo Maurício.

— É o tesouro do joalheiro — disse o poeta. — Se eu o perdesse, morreria!

Iam a sair do café quando ouviram badaladas fúnebres em várias freguesias e algumas pessoas do povo a correrem azafamadas.

— Oh! diabo! — exclamou o filho do fazendeiro; é fogo!

Os dois amigos foram instintivamente conduzidos na mole sussurrante, que o mesmo pensamento atraía.

Os bombeiros corriam arrastando as pesadas máquinas, cujas rodas reboavam como um agouro pelas calçadas e ruas. Ao longe um clarão sinistro avermelhava o horizonte.

— Tens medo? — perguntou Eduardo Mendes graciosamente.

— Por quê?

— Senti teu braço estremecer.

O cão, perdido entre o povo, deu um arranco ouvindo o poeta chamá-lo, e não os deixou mais, acelerando a corrida um pouco febril. Por vezes o animal estacava de súbito e espreitava o horizonte aclarado pelo incêndio.

Próximos à rua da Misericórdia, Paulo Maurício e Eduardo Mendes foram forçados a diminuir os passos. O povo engrossava, e os gritos dos bombeiros, o estalido do incêndio, o próprio calor do fogo, não punha mais em dúvida o lugar do desastre.

— É na minha rua! — gritou Paulo Maurício, e arrastando o amigo cortou as ondas tumultuosas do povo. Um cordão de policiais e de curiosos circulava a casa de mestre Gregório. Era lá o incêncio. As labaredas enroscavam-se pelas janelas, as faíscas subiam vertiginosamente, enovelando-se no ar como um repuxo sibilante; desabavam com estrondo as paredes, e a água das bombas mal podia cortar aquela muralha rubra e vaporenta. Paulo Maurício, lívido, ofegante, alucinado, quis arremessar-se ao fogo, arrancando-se dos braços de Eduardo Mendes.

— Paulo Maurício!

— Deixa-me pelo amor de Deus! — bradou o poeta estendendo as mãos para as chamas convulsivas. — Não vês que eu perco ali a minha felicidade, o meu sangue, a minha glória?

E desprendendo-se do amigo lançou-se à porta da casa. Os policiais impediram-no a custo.

O poeta quase exânime, com os dedos cerrados entre os cabelos úmidos, foi cercado pelo povo e sentiu-se preso entre as mãos nervosas de Eduardo Mendes.

Nesse momento fez-se um vácuo nas chamas; a onda rubra entreabriu-se de súbito, e um cão, um cão com o pêlo incendiado, e o corpo aberto em chagas, de um salto miraculoso, passou sobre o povo e sobre a tropa, caindo aos pés de Paulo Maurício. Na boca do animal vinha um rolo de papéis.

O poeta desprendeu um grito de angústia e de prazer, reconhecendo o seu poema, salvo do incêndio.

Foi difícil arrancar das presas espumantes do cão o manuscrito. Paulo Maurício, seguido por Eduardo Mendes e algumas pessoas do povo, vibrantes de curiosidade e de pasmo, correu à primeira botica onde em vão tentou restituir à vida o seu heróico e sublime amigo.

O poeta de joelhos, junto ao animal agonizante, chorava como uma criança.

— Pagaste cedo a tua dívida, meu leal companheiro! — articulou ele através dos soluços que o abalavam. — E a providência te abandona! E Deus não me concebe a suprema ventura de te salvar!

O cão, cravando o derradeiro olhar no rosto pálido do seu amigo, esforçou-se por mover ainda a cauda, como nas horas da passada alegria e, estendendo a cabeça mutilada sobre a mão do poeta, expirou gemendo.

Publicou-se, seis meses depois, o poema de Paulo Maurício.

A primeira página, tarjada de negro, era consagrada à memória de um cão.