Anexo:Imprimir/O Cabeleira

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Meu amigo,


A casa, onde moro, está situada ao lado de uma rua de bambús, em um dos cantinhos mais amenos da bacia de Botafogo.

Vejo daqui uma grande parte da bahia, os morros circumstantes, cravando seus cumes nas nuvens, o céo de opalo, o mar de anil.

Infelizmente este bello espectaculo não é immutavel.

De subito o céo se torna brusco, e só descubro cabeços fumegantes em torno de mim; ribomba o trovão nos pincaros alcantilados; a chuva fustiga as palmeiras e casuarinas; a ventania brame no bambuzal; a casa estala. Parece que tudo vai derruir-se.

Estas tormentas duram horas, noites, dias inteiros, e reproduzem-se com mais ou menos frequencia.

Quando ellas têm passado de todo, o céo mostra-se mais puro e bello, o mar mais azul, as arvores mais verdes; a viração tem mais doçura, as flores mais deliciosos aromas.

Pela face das pedreiras correm listrões d’agua prateada, que reflectem a luz do sol, formando brilhantes matizes. Coberta de frescas louçanias, a natureza sorri com suave gentileza depois de haver esbravejado e chorado como uma criança.

É tempo de cumprir a promessa extorquida pela amizade, que não attendeu ás mais legitimas escusas. Essa natureza brilhante e movel estava a cada instante convidando o meu desanimo a romper o silencio a que vivo recolhido desde que cheguei do extremo-norte do imperio.

Depois de cêrca de dous annos de hesitações, dispuz-me enfim a escrever estas pallidas linhas — notas dissonantes de uma musa solitaria, que no retiro, onde se refugiou com os desenganos da vida, não póde esquecer-se da patria, anjo das suas esperanças e das suas tristezas.

Tive porém que melhor seria leres umas centenas de paginas na estampa, que traduzires um volumoso in-folio, inçado de tantas emendas e entrelinhas que a mim mesmo custa às vezes decifral-as, pela razão de que tudo aqui se escreveu sem ordem, sem arte, sem se attender a ideal, por aproveitar momentos vagos e incertos de uma penna que pertence ao estado e a familia.

Por isso, em lugar de uma carta receberás nessa encantadora Genebra, onde te delicias com a memoria de Rousseau, Stael, Voltaire, Calvino — astros immortaes, que rutilarão perpetuamente no firmamento da civilisação, um livro hoje, outro talvez amanhã, e alguns mais successivamente, até que me tenha libertado da obrigação, que me impuzeste, conforme o permittirem as minhas forças diminuidas pelo meu afastamento das cousas litterarias de nossa terra.

Inicio esta serie de composições litterarias, para não dizer estudos historicos, com o Cabelleira, que pertence a Pernambuco, objecto de legitimo orgulho para ti, e de profunda admiração para todos os que têm a fortuna de conhecer essa refulgente estrella da constellação brazileira. Taes estudos, meu amigo, não se limitarão somente aos typos notaveis e aos costumes da grande e gloriosa provincia, onde tiveste o berço.

Pará e Amazonas, que não me são de todo desconhecidas; Ceará, torrão do meu nascimento; todo o norte emfim, si Deus me ajudar, virá a figurar nestes escriptos, que não se destinam a alcançar outro fim senão mostrar aos que não a conhecem, ou por falso juizo a desprezam, a rica mina das tradições e chronicas das nossas provincias septentrionaes.

Depois de alguns mezes de ausencia, tornei a ver o Recife, esplendida visão de teus sonhos nostalgicos. Lamento que, havendo sido transportado muito novo ainda ao velho mundo, não guardes dessa visão a menor lembrança, fugitiva embora. Genebra com o Mont-blanc coberto de neves e gêlos eternos; o lago immenso, que a um sem-numero de poetas tem inspirado maviosos e immortaes cantos; o Rhodano que, ao dizer de um viajante nacional, foge apressado, resmungando com voz medonha em procura de hospitalidade no Mediterraneo, não póde ter a belleza dessa elegante e risonha cidade, que surge d’entre mangues verdejantes, aguas limpidas, pontes soberbas, e se estende por sobre vasta planicie, obrigando os matos a se afastarem de dia em dia ao occidente para ter espaço onde alongue de improviso suas novas ruas, suas estradas, seus trilhos, testemunhos de sua prosperidade material, commercial e agricola ; onde funde novas escolas e erija novos templos, testemunhos de sua civilisação e grandeza moral.

Vi o Pará, e adivinhei-lhe as incalculaveis riquezas ora occultas no regaço de um futuro que, si não annunciou ainda a época precisa de sua realização, não se demorará muito, segundo se infere do que apresenta, em traduzir-se na mais brilhante realidade.

E que direi do Amazonas, incomprehensivel grandeza, que tem a indole da immensidade e a feição do escandalo?

Não ha prodigio que se possa comparar com aquelle no descoberto. Não creio que Rousseau fosse capaz de phantaziar semelhante, ainda que levasse toda a vida a imaginar, ele o philosopho sonhador que com suas idéas revolucionou o mundo; o homem crêa a grandeza ideal, a grandeza physica porém só Deus a concebe e executa. Stael em vão tentaria descrever esse reino encantado como descreveu Italia em sua imperecedoura Corinna em que o estudo dos monumentos e do passado não desdiz do coração, monumento de todos os tempos.

Entrando alli, pareceu-me entrar em um templo phantastico e sem proporções. É natural o phenomeno: sempre que nos achamos diante das obras primas da creação, secreto instincto nos adverte que estamos na presença de Deus. A admiração tem então a solemnidade de um recolhimento e de uma homenagem. As impressões passam dos sentidos ao fundo da alma onde vão repetir-se com maior intensidade. Todas as nossas faculdades — a intelligencia, a imaginação, a propria vontade, deixam-se dominar de uma como volupia que não é sensual, mas deleitosa, e grande como é talvez o extase. Ainda quando tenhamos o espirito cansado dos erros e injustiças dos homens, nós o sentiremos levantar-se immediatamente cheio de vida diante da representação enorme, como si elle se achasse em sua integridade virginal. É o effeito do assombro que percorre, como fluido, o nosso organismo, despertando em nós abruptas sensações que nunca experimentámos, e que são para nós verdadeiros phenomenos do mundo physiologico.

Aguas immensas serviam de lageamento ao magestoso templo, que tinha por abobada o céo sem limites. Á visão physica escapavam as columnas e paredes dessa cathedral-mundo, as quaes a minha imaginação fôra collocar além dos horizontes invisiveis do Atlantico.

Do lado do norte quebravam a monotonia da superficie envoltos nos vapores matutinos uns como rudimentos gigantescos de arcadas colossaes. Em outras quaesquer condições cosmicas esses rudimentos apresentar-se-hiam á minha vista como grandiosas ruinas; alli não; o que se afigura ao espirito de quem os observa, é uma cousa indizivel; affigura-se que essas arcadas estão em começo de construcção e se destinam a romper o céo, porque no meio daquelle sumptuoso impossivel poder-se-ha dizer que nenhum atomo tem o direito de se deixar destruir; quando tudo não exista alli ab initio, quando tudo não tenha alli uma vida que não teve principio e que não ha de ter fim, só o que resta ao corpo é nascer, agigantar-se, eternizar-se na materia, que não acabará sinão no fim dos tempos.

O que eu via e acabo de apontar não era outra cousa que a região amazonia que começava a desenhar-se risonha, azulada, esplendida. Eram ilhas sem numero, umas de comedidas dimensões, outras de descommunal amplitude, todas ellas multiformes, marchetando aqui as aguas, bordando alli o continente coberto de uma espêssa crôsta de verdura.

Quem não entrou ainda nesse mundo novo onde ao homem que pela primeira vez nelle penetra, se afigura não ter sido precedido por um unico sequer dos seus semelhantes; onde ha leguas e leguas que ainda não foram pisadas por homem civilizado, e onde ha rios que só a canôa do indio tem fendido, não póde formar idéa dessa esplendida maravilha.

Quando me achei, não em face mas no seio daquella natureza (porque em breve me vi cercado de ilhas, das quaes algumas podem comparar-se a continentes, que em todas as direcções iam ficando ou apparecendo), natureza a que a minha imaginação tinha dado fórmas incriveis, filhas da visão intima, reconheci só então quanto em seus vãos arroubos me havia a phantasia deixado áquem da realidade. Nada do que fui descobrindo conformava com as paysagens que eu traçára e colorira na mente não obstante as proporções gigantescas, as linhas correctas, as côres variadas, os matizes estupendos com que eu as tinha feito surgir de minha palheta. Pallidos e somenos hão de ser sempre diante daquella realidade a modo de fortuita os sonhos do maior imaginar.

Muito se ha escripto do Pará e Amazonas desde que foram descobertos até nossos dias. Que valem porém todos os escriptos e narrações de viagem a semelhante respeito? Quasi nada.

O que elles nos põem diante dos olhos é o traço hirto, e não o musculo vivo e herculeo; é a ruga, e não o sorriso; é a penumbra, e não o astro; o que elles nos offerecem são fórmas tesas e seccas em lugar dos contornos brandos, delicados e flexiveis dos immensos panoramas e transparentes perspectivas dessas regiões paradisiacas.

Como pintar as myriadas de ilhas, rios, furos, igarapés, que se mostram aos olhos do viajante desde a foz do grande rio, desde a confluencia deste com os outros rios, que não têm conta, até suas nascenças, que durante muitos annos ainda hão de ser quasi inteiramente desconhecidas? Como pintar taes immensidades, si vencer um desses rios, um desses furos, um desses igarapés, deixar atrás ou de lado uma, dez, cem ilhas, é o mesmo que penetrar em novos igarapés, novos furos, novos rios, contornar novas ilhas?

Nem sempre porém a natureza sorri, ou protege, ou abraça; ás vezes ella encolerisa-se e, trocando os afagos da mãi carinhosa com as asperezas da madrasta desamoravel, repelle o homem por mil fórmas, e o impelle para mil perigos.

A colera, o açoite, a repulsa, o impulso, o puro franzir do sobr’olho da madrasta irritada são terriveis manifestações: é a tempestade que afunda mil vidas — o homem, a cobra, a onça, a ave infeliz que passava trinando venturas; é a correnteza que desaggrega, desfaz ilhas, e as apaga da superficie das aguas, e arranca o cedro, a palmeira, os quaes vão arrebatados no turbilhão, que os engole vestidos de virente folhagem para os vomitar escalavrados, nús, despedaçados, sordidos.

A pedra não resiste. A revolução arrasta-a com rapidez inconceptivel, e a vai levar em um momento a fundos abysmos , que são outros tantos domicilios da vertigem e da morte. Com a pedra desappareceria a montanha, si tivesse a imprudencia de ir surgir á frente, ou no meio daquellas impetuosas aguas, que alagam, constringem, cavam, desmantelam, pulverizam praias, ribas, fragas e continentes.

— Que não seria deste mundo — pensei eu, descendo das eminencias da contemplação ás planiceis do positivismo, — si nestas margens se sentassem cidades; si a agricultura liberalizasse nestas planicies os seus thesouros; si as fabricas enchessem os ares com seu fumo, e nelles repercutisse o ruido das suas machinas? Desta belleza, ora a modo de estatica, ora violenta, que fontes de rendas não haviam de rebentar? Mobilizados os capitaes e o credito; animados os mercados agricolas, industriaes, commerciaes, artisticos, veriamos aqui a cada passo uma Manchester ou uma Nova-York. A praça, o armazem, o entreposto occupariam a margem, hoje nua e solitaria, o cômoro sem vida e sem promessa; o arado percorreria a região que de presente pertence à floresta escusa. O estado natural, espancado pelas correntes da immigração espontanea que lhe viessem disputar os dominios improductivos para os converter em magnificos emporios, ter-se-hia ido refugiar nos sertões remotos d’onde em breve seria novamente desalojado. Uma face nova teria vindo succeder ao brilhante e magestoso painel da virgem natureza. Não se mostrariam mais aqui as tendas negras da fome e da nudez. O trabalho, o capital, a economia, a fartura, a riqueza, agentes indispensaveis da civilização e grandeza dos povos, teriam lugar eminente nesta immensidade onde vemos unicamente aguas, ilhas, planicies, seringaes sem fim.

Mas por onde ando eu, meu amigo? Em que alturas vou divagando nas azas da phantasia? Venhamos ao assumpto desta carta.

No Cabelleira offereço-te um timido ensaio do romance historico, segundo eu entendo este genero da litteratura. Á critica pernambucana, mais do que à outra qualquer, cabe dizer si o meu desejo não foi illudido; e a ella, seja qual fôr a sua sentença, curvarei a cabeça sem replicar.

As lettras têm, como a politica, um certo caracter geographico; mais no norte, porém, do que no sul abundam os elementos para a formação de uma litteratura propriamente brazileira, filha da terra.

A razão é obvia: o norte ainda não foi invadido como está sendo o sul de dia em dia pelo estrangeiro.

A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as indoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, póde-se affirmar que ainda se conserva alli em sua pureza, em sua genuina expressão.

Por infelicidade do norte, porém, d’entre os muitos fllhos seus que figuram com grande brilho nas letras patrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edificio litterario dessa parte do imperio que, por sua natureza magnificente e primorosa, por sua historia tão rica de feitos heroicos, por seus usos, tradições e poesia popular ha de ter cêdo ou tarde uma bibliotheca especialmente sua.

Esta pouquidade de architectos faz-se notar com especialidade no romance, genero em que o norte, a meu ver, póde entretanto figurar com brilho e bizarria inexcedivel. Esta verdade dispensa demonstração. Quem não sabe que na historia conta elle J. F. Lisboa, Baena, Abreu e Lima, Vieira da Silva, Henriques Leal, Muniz Tavares, A. J. de Mello, Fernandes Gama, e muitos outros que podem bem competir com Varnhagem, Pereira da Silva, e Fernandes Pinheiro; que o primeiro philologo brazileiro, Sotero dos Reis, é nortista; que é nortista Gonçalves Dias, a mais poderosa e inspirada musa de nossa terra ; e que igualmente o são Tenreiro Aranha, Odorico Mendes, Franco de Sá, Almeida Braga, José Coriolano, Cruz Cordeiro, Ferreira Barreto, Maciel Monteiro, Bandeira de Mello, Torres Bandeira, que valem bem Magalhães, A. de Azevedo, Varella, Porto Alegre, Casimiro de Abreu, Cardoso de Menezes, Teixeira de Mello?

No romance, porém, já não é assim. O sul campêa sem émulo nesta arena, onde têm colhido notaveis louros: Macedo, o observador gracioso dos costumes da cidade; Bernardo Guimarães, o desenhista fel dos usos rusticos; Machado de Assis, cultor estudioso do genero que foi vasto campo de glorias para Balzac; Taunay que se particulariza pela fluência, e pelo faceto da narrativa; Almeidinha, que a todos estes se avantajou na correcção dos desenhos, posto houvesse deixado um só quadro, um só painel, quadro brilhante, painel immenso, em que ha vida, graça, e colorido nativo. Estes talentos, além de outros que me não lembram de momento, não têm, ao menos por agora, competidores no norte, onde aliás não ha falta de talentos de igual esphera.

Não me é licito esquecer aqui, ainda que se trata do romance do sul, um engenho de primeira grandeza, que, com ser do norte, tem concorrido com suas mais importantes primicias para a formação da litteratura austral. Quero referir-me ao exm. sr. conselheiro José Martiniano de Alencar, a quem já tive occasião de fazer justiça nas minhas conhecidas Cartas-a-Cincinnato.

Quando, pois, estáo sul em tão favoraveis condições, que até conta entre os primeiros luminares das suas lettras este distincto cearense, tem os escriptores do norte que verdadeiramente estimam seu torrão, o dever de levantar ainda com luta e esforço os nobres fóros dessa grande região, exhumar seus typos legendarios, fazer conhecidos seus costumes, suas lendas, sua poesia máscula, nova, vivida e louçã tão ignorada no proprio templo onde se sagram as reputações, assim litterarias, como politicas, que se enviam ás provincias.

Não vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que não aninho em meu coração brazileiro. Proclamo uma verdade irrecusavel. Norte e Sul são irmãos, mas são dous. Cada um ha de ter uma litteratura sua, porque o genio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e ha de ter, si já não tem sua politica.

Emfim não posso dizer tudo, e reservarei o desenvolvimento, que taes idéas exigem, para a occasião em que te enviar o segundo livro desta série, o qual talvez venha ainda este anno, á luz da publicidade.

Depois de haveres lido o Cabeleira, melhor me poderás entender a respeito da creação da litteratura septentrional, cujos moldes não podem ser, segundo me parece, os mesmos em que vai sendo vasada a litteratura austral que possuimos.

Teu
FRANKLIN TÁVORA

Rio — 1876.

I


A historia de Pernambuco offerece-nos exemplos de heroismo e grandeza moral que podem figurar nos fastos dos maiores povos da antiguidade sem desdoural-os. Não são estes os unicos exemplos que despertam nossa attenção sempre que estudamos o passado desta illustre provincia, berço tradicional da liberdade brazileira. Merecem-nos particular meditação, ao lado dos que ahi se mostram dignos da gratidão da patria pelos nobres feitos com que a magnificaram, alguns vultos infelizes, em quem hoje venerariamos talvez modelos de altas e varonis virtudes, si certas circunstancias de tempo e lugar, que decidem dos destinos das nações e até da humanidade, não pudessem desnaturar os homens, tornando-os açoites das gerações coévas e algozes de si mesmos. Entra neste numero o protogonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira do crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorancia que em seu tempo agrilhoava os bons instinctos e deixava soltas as paixões cannibaes. Autorizam-nos a formar este juizo do Cabelleira a tradição oral, os versos dos trovadores e algumas linhas da historia que trouxeram seu nome aos nossos dias envolto em uma grande lição.

Á sua audacia e atrocidades deve seu renome este heroe legendario para o qual não achamos par nas chronicas provinciaes. Durante muitos annos, ouvindo suas mãis ou suas aias cantarem as trovas commemorativas da vida e morte desse como Cid, ou Robin-Hood pernambucano, os meninos tomados de pavor, adormeceram mais depressa, do que si lhes contassem as proezas do lobishomem ou a historia do negro do surrão muito em voga entre o povo naquelles tempos.

Com a simplicidade irreprehensivel que é o primeiro ornamento das concepções do espirito popular, habilitam-nos esses trovadores a ajuizarmos do famoso valentão pela seguinte letra:

Fecha a porta, gente,
Cabelleira ahi vem,
Matando mulheres,
Meninos tambem.

O Cabelleira chamava-se José Gomes, e era filho de um mameluco por nome Joaquim Gomes, sujeito de más entranhas, dado á pratica dos mais hediondos crimes.

De parceria com um pardo de nome Theodosio que primou na astucia e nos inventos para se apossar do que lhe não pertencia, percorriam José e Joaquim o vasto perimetro da provincia em todas as direcções, deixando a sua passagem assignalada pelo roubo, pelo incendio, pela carnificina.

Um dia assentaram dar um assalto á propria villa do Recife.

As populações do interior, em sua maioria destituidas de bens da fortuna, e então muito mais espalhadas do que actualmente, pouco tinham já com que cevar a voracidade dos tres aventureiros a quem desde muito pagavam um triplo imposto consistente em viveres, dinheiro e sangue. O assalto foi resolvido em secreto conciliabulo dentro nas matas de Páo-d’alho onde mais de uma vez se haviam reunido para concertos identicos.

Na mesma hora aperceberam-se para a temeraria tentativa, e, com o arrojo que lhes era natural, puzeram-se a caminho contando de ante-mão com o feliz successo em que tinham posto a mira.

Á noticia da sua approximação a maior parte dos moradores, deixando os povoados, então muito fracos por não terem ainda a densidão que só um seculo depois tornou alguns delles respeitaveis, emigrou para os matos, unico abrigo com que lhes era permittido contar, embora se achassem a poucas leguas do Recife; taes houve que, não tendo tempo ou recursos para fugir aos crueis visitantes, lhes deram hospedagem como meio de não incorrerem no seu desagrado.

Ao declinar do dia seguinte eram elles na Estancia. Sentaram-se no adro da capella de taipa que fôra ahi levantada por Henrique Dias, para recordar aos vindouros que nesse lugar tivera elle o seu posto militar pelas guerras da restauração. Esse posto era d’entre todos o que ficava mais vizinho ao inimigo. Eloquente testemunho da bravura do troço da gente preta a quem a patria reservou distincta menção nas maiores paginas da historia colonial.

— É muito cedo para entrarmos na villa — disse o Cabelleira. E não será até melhor que o Theodosio vá primeiro que nós para assentar ainda com dia no meio mais certo de realizar a empreza?

— Tens razão, José Gomes — acrescentou Joaquim: o Theodosio, que é macaco velho, deve ir adiante a sondar as cousas. Para bater o pé ao inimigo e fazer frente a qualquer dunga, vocês sabem muito bem que eu sou cabra decidido; agora, para espertezas não contem comigo; isso é lá com o Theodosio qne é mestre em saberêtes; e ninguem lhe vai ao bojo.

Os tres malfeitores traziam comsigo bacamartes, parnahybas, facas e pistolas.

Cabelleira podia ter vinte e dous annos. A natureza o havia dotado com vigorosas fórmas. Sua fronte era estreita, os olhos pretos e languidos, o nariz pouco desenvolvido, os labios delgados como os de um menino. É de notar que a physionomia deste mancebo, velho na pratica do crime, tinha uma expressão de insinuante e jovial candidez.

Joaquim, que contava o duplo da idade de seu filho, era baixo, corpulento e menos feio que o Theodosio, o qual, posto que mais entrado em annos, sabia dar, quando queria, á cara romba e de cor fula uma apparencia de bestial simplicidade em que só uma vista perspicaz, e acostumada a ler no rosto as idéas e os sentimentos intimos, poderia descobrir a mais refinada hypocrisia.

— Entendo que é bem lembrado o que dizes, Cabelleira — acrescentou o cabra levantando-se; corro sem demora a armar o laço para apanhar o passarinho; ainda que, a bem dizer, já cá tenho o meu plano que ha de cahir tão certinho como S. João a vinte e quatro.

— E onde depois nos encontraremos? perguntou Joaquim vendo que o Theodosio se achava já de marcha para a villa.

— Não será o mais custoso. Esperarei por vocês debaixo da ingazeira da ponte.

Theodosio, não estando mais para conversa, conchegou o chapéo de palha á cabeça para que o vento não lh’o arrebatasse, e desappareceu em rapido marche-marche, por detraz dos matos que naquelle tempo enchiam ainda em sua maior parte a zona onde hoje se ostenta com suas graciosas habitações entre risonhos verdores a Passagem da Magdalena.

Antes que o sol descesse ao horizonte e as trevas envolvessem de todo a natureza, metteram-se o pai e o filho pelo caminho onde um quarto de hora atraz havia desapparecido o outro companheiro, alma do negocio e principal responsavel pelos perigos a que todos elles iam expôr talvez a propria vida.

A solidão estava sombria e triste.

Contavam-se então as casas por aquellas paragens. Em torno dellas o deserto começava a augmentar antes de pôr-se o sol. Uma lei cruel, a lei da necessidade, obrigava os moradores a trancar-se cêdo por bem da propria conservação.

Os roubos e assassinatos reproduziam-se com incrivel frequencia nos caminhos e até nas beiradas dos sitios.

Solidas habitações não tinham em muitos casos assegurado ás familias ineluctavel obstaculo ao assalto dos malfeitores. Triste época em que o despotismo tudo podia contra os cidadãos pacificos e bons, nada contra a parte cancerosa da sociedade!

A villa estava em festa. Foi no primeiro domingo de dezembro de 1773. Era governador Manoel da Cunha de Menezes, depois conde de Lumiar, joven fidalgo a quem a igreja pernambucana deve distinctos beneficios.

Com a data do 1.º daquelle mez tinha elle feito publicar um bando pelo qual ordenára aos moradores que puzessem luminarias em demonstração da alegria que causára á nação portugueza a abolição dos jesuitas em todo o orbe christão, pelo santo padre Clemente XIV.

No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete-de-setembro que liga o bairro do Recife ao de Santo-Antonio, via-se nessa época uma ponte de madeira, a qual fôra mandada construir em 1737 sobre os solidos pilares de pedra e cal da primitiva ponte, obra de Mauricio de Nassau, por Henrique Luiz Vieira Freire de Andrade, um dos governadores que mais honrada e benemerita memoria deixaram de si em Pernambuco.

Era uma rica construcção, nada menos do que uma rua suspensa sobre as aguas do rio Capibaribe, que passa ahi reunido ao Beberibe, depois de um curso de oitenta leguas por entre matas, por sobre pedras e ao pé de pittorescas villas, povoações e arrabaldes. De um e outro lado, excepto na parte central, que fôra guarnecida de bancos para recreio do publico, viam-se pequenos armazens de taipa de sebe em que se vendiam miudezas e ferragens. Estes armazens, que logo depois de promptos acharam alugadores, começaram a render a quantia de oitocentos mil réis annuaes, a qual no começo do seculo corrente se havia elevado á de quatro contos de réis. Com a fundação das casinhas sobreditas teve por fim o governador crear uma fonte de rendas destinada á conservação das pontes da provincia quasi todas nesse tempo em deploravel ruina. Destas obras com que dotou Pernambuco o genio desse illustre governador, não resta hoje o menor vestigio. Tudo desappareceu, tudo, até as arcadas hollandezas que ainda alcancei. O monumento das idades é mais depressa destruido pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, com ser voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude.

Á bocca da noite os dous aventureiros chegaram á parte do bairro da Boa-vista que é de nós conhecida por Ponte-velha. Raras casas mostravam-se então ahi.

A pouca distancia para o sul do lugar onde existíra a antiga ponte, nesse tempo já substituida pela da Boa-vista mandada construir por Henrique Luiz a quem já nos referimos, levantava-se na margem uma ingazeira idosa e ramalhuda. Abrindo sobre o rio a copa á semelhança de chapéo-de-sol, formava esta arvore uma vasta camarinha que servia de porto de abrigo aos canoeiros quando o vento era teso, e as marés puxavam com velocidade. Debaixo desse tecto protector as aguas corriam sempre mansas e bonançosas, e, sem primeiro descer ao pé do gigantesco vegetal, era difficil descobrir, pela densidão da sua folhagem, qualquer objecto ou ente que á sombra desta se acolhesse, ainda que estivesse o sol dardejando os seus luminosos raios. Fôra este o ponto de reunião indicado por Theodosio aos companheiros.

Dar com as primeiras casas illuminadas foi para os dous valentões motivo de justo espanto e receio. Não sabendo do regozijo official, e tendo bem presentes na consciencia os crimes que haviam commettido, logo lhes pareceu que seriam descobertos ao clarão das luzes, não se demorando o clamor publico, si assim acontecesse, a denuncial-os ás justiças de el-rei.

Pelo voto de Cabelleira tinha-se verificado no mesmo instante a volta ao deserto. Mas Joaquim cuja temeridade não conhecia limites, desprezando os conselhos do filho sobre o qual exercitava a tyrannia do despota primeiro que a autoridade do pai, foi fazer alto ao pé da ingazeira sobredita, tendo atravessado para chegar a este ponto as ruas mais publicas do nascente bairro da Boa-vista.

Profundo silencio reinava no vasto areal que guarnecia o rio por aquelle lado. As aguas mal se moviam. Desceram os dous á margem a ajuntar-se ao Theodosio conforme o convencionado, mas a sua expectativa foi illudida; não havia ahi viva alma; unicamente se mostrou aos seus olhos um corpo negro, oscillando debaixo da folhagem, ao brando ondear das aguas: era uma canôa que estava presa por uma corda ao tronco da ingazeira.

Depois de alguns momentos de espera não sem inquietação para os recem-chegados, um ruido que veio interromper o silencio reinante na margem, obrigou-os a pôr-se em armas por precaução. A corda rapidamente encurtando attrahiu sem auxilio visivel a canôa á margem e um corpulento canoeiro, nú da cintura para cima, arrastando uma vara pela mão, saltou á frente dos malfeitores.

— Sou eu, Cabelleira, sou eu.

— Theodosio ! Metteste-te em bôas.

— Eu estava escondido dentro na canôa para fazer um susto a vocês.

— A bom diabo te encommendaste hoje que o meu bacamarte mentiu fogo duas vezes — disse Cabelleira.

— Não fallemos mais nisso — acudiu Theodosio; celebraremos depois o caso. Por agora vamos ao que importa.

— Que é que ha?

— Não me estão vendo em figura de canoeiro? Vamos a ella emquanto é tempo.

Theodosio inclinou-se para passar aos dous um segrêdo que em pouco tempo foi por ambos comprehendido, e que entrou no mesmo instante a ser posto em execução pelos tres. O pai e o filho foram guardar as suas armas de fogo na canôa, e o cabra saltou novamente dentro nella e fez-se ao largo. Quem visse um instante depois o lenho resvalando na vasta superficie do rio á claridade dos astros da noite, juraria que nessa sombra fugitiva, nesse ponto que se perdeu por fim nos seios da escuridão, não ia mais que um canoeiro, sabedor das manhas das aguas e senhor dos meios de as vencer. Ia entretanto ahi uma maldade muito mais consideravel e perigosa, porque era hypocrita e estava disfarçada, do que a malvadez de Joaquim sempre alerta, e a impavidez de José sempre franco até na estrategia e na emboscada.

Estes dous ultimos, tanto que o cabra se afastou da margem, atravessaram a ponte da Boa-vista e, ladeando o canal que cercava Santo Antonio pelo lado occidental e ia encher ao sul as vallas da fortaleza das Cinco-pontas, e ao norte as do forte Ernesto, hoje inteiramente desapparecido, passaram em frente do palacio do governador e por este forte, o qual ficava pouco adiante do convento de S. Francisco, e entraram na ponte do Recife que apresentava uma vista magestosa e deslumbrante. Columnas e arcos triumphaes profusamente illuminados tinham sido alli erguidos a iguaes distancias. Ao som das musicas marciaes, o povo percorria o aereo passeio entre risos e folgares.

Ainda bem não se haviam os malfeitores confundido com os passeiantes, quando se ouviu um grito arrancado pelo panico terror de um matuto que os conhecêra.

— O Cabelleira! O Cabelleira! Grandes desgraças vamos ter, minha gente! — clamou o malavisado roceiro.

Estas palavras cahiram como raios mortiferos no meio da multidão que se entregava, incuidosa e confiante, ao regozijo official.

A confusão foi indescriptivel. Ás expansões da publica alegria succederam as demonstrações do geral terror. Homens, mulheres, crianças atropellaram-se, correndo, fugindo, gritando, cahindo como impellidos por infernal cyclone. A fama do Cabelleira tinha, não sem razão, creado na imaginação do povo um phantasma sanguinario que naquelle momento se animou no espirito de todos e a todos ameaçou com inevitavel exterminio.

Ouvindo aquellas palavras e sendo assim sorprendidos por uma occurrencia com que não contavam, os dous malfeitores instinctivamente bateram mãos das parnahybas primeiro para se defenderem, por lhes parecer que corria a sua liberdade imminente perigo, que para investirem com a massa ingente, a qual aliás fugia como rebanho apavorado pela presença das onças. Os seus gestos concorreram para augmentar o terror da multidão, a qual, mal interpretando-os, imaginou que ia ter começo a carnificina.

— Sim, é o Cabelleira, gente fraca. Elle não vem só, vem seu pai tambem [1] — gritou José Gomes, cujo rosto começou a annuviar-se.

Joaquim, feroz por natureza, sanguinario por longo habito, descarregou a parnahyba sobre a cabeça do primeiro que acertou de passar por junto delle. A cutilada foi certeira, e o sangue da victima, espadanando contra a face do matador, deixou ahi estampada uma mascara vermelha atravez da qual só se viam brilhar os olhos felinos daquelle animal humano.

José Gomes, por irresistivel força do instincto que muitas vezes o trahiu aos olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse:

— Para que matar si elles fogem de nós?

— Matar sempre, Zé Gomes — retorquio o mameluco com as narinas dilatadas pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos labios e destes penetrava na bocca cerval. Não temos aqui um só amigo. Todos nos querem mal. É preciso fazer a obra bem feita.

Este homem era o genio da destruição e do crime. Por sua bocca fallavam as baixas paixões que á sombra da ignorancia, da impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado os lampejos da consciencia racional que todo homem traz do berço, ainda aquelles que vem a ser depois truculentos e consummados sicarios.

Seu coração estava empedernido, seu senso moral obcecado.

Nenhum sentimento brando e terno, nenhum pensamento elevado exercitava a sua salutar influencia nas acções deste ente degenerado e infeliz.

— Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléo? Parece-me ver-te fraquear. Por minha benção e maldição te ordeno que me ajudes a fazer o bonito emquanto é tempo. Não sejas molle, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai. [2]

Tendo ouvido estas palavras, o Cabelleira, em cuja vontade exercitava Joaquim irresistivel poder, fez-se furia descommunal e, atirando-se no meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabolico desabrimento. Como dous raios exterminadores, descreviam pai e filho no seio da massa revolta desordenadas e vertiginosas ellipses.

A geral consternação teria cessado em poucos instantes si o povo pudesse escapar pelas duas entradas da ponte. Achavam-se porém estas já tomadas por piquetes de infantaria ás pressas organizados para embargarem a fuga aos matadores e reduzil-os á prisão.

Á medida que estes piquetes se foram movendo das extremidades para o centro, a populaça obrigada a aproximar-se dos assassinos, preferio a este perigo atirar-se ao rio, e a baldeação não se fez esperar.

Em poucos momentos os perturbadores da ordem acharam-se debaixo das vistas da força publica. O lugar da scena estava quasi inteiramente desoccupado. As columnas militares operaram um movimento unico, indescriptivel. Carregaram sem demora sobre os delinquentes que, á vista da estreiteza do passo e do cerco, só nas aguas poderam, como as suas victimas, achar salvação.

Um soldado, impellido talvez primeiro pelo impeto da paixão que pela consciencia do dever, o qual em occasiões iguaes áquella raramente falla mais alto que os instinctos animaes, atirou-se de arma em punho após os assassinos com o fim de apprehender um dos dous, ainda que lhe custasse a propria vida. Não logrou o seu intento este valente defensor da sociedade e da lei. Quando sua mão tocava em um dos delinquentes, de cima de uma canôa que nesse momento desatracára da ponte, desfecharam-lhe com a vara tão forte golpe sobre a cabeça, que o infeliz, perdendo os sentidos, foi arrebatado pela corrente. Igual scena se presenciou em 1821, figurando como victima João Souto-maior que procurára salvar-se no rio depois de haver ferido com um tiro de bacamarte na ponte da Boa-vista o governador Luiz do Rego Barreto.

Assim se passou na villa do Recife a noite do primeiro domingo de dezembro de 1773, noite memoravel, que principiou pela alegria e terminou pelo terror publico.

Notas do autor editar

  1. A trova popular diz:

    Corram, minha gente
    Cabeleira ahi vem;
    Elle não vem só,
    Vem seu pai tambem.

  2. Dizem os trovadores:

    Meu pai me pedio
    Por sua benção
    Que eu não fosse molle,
    Fosse valentão.

II

Por entre as victimas do terror que lutavam com as aguas do Capibaribe nas sombras da noite deslisou indifferente a canôa onde ia o Theodosio, assassino do soldado, que se atirára ao rio em busca dos delinquentes.

Theodosio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só mas não voltava agora desacompanhado. José, taciturno e quieto, e Joaquim, rosnando como besta fera que indiscreto caçador irrita em escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, sentados na pôpa do fugitivo lenho, com os bacamartes nas mãos, o espectaculo de afflicção e desespero; e, como si fizessem de caso pensado para denotarem a pouca conta em que tinham uma sociedade que elles dous unicamente acabavam de entregar em alguns minutos á perturbação e á dôr, pareciam affrontar com olhares insultuosos não sómente os homens mas tambem aquelle que ao fulgor das estrellas vê melhor do que os mortaes á luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribue por todos a sua indefectivel justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o unico que conheceu os tres aventureiros, rompendo as aguas, o unico que em suas frontes manchadas do sangue e do opprobrio recente leu o passado que os condemnava e o futuro que por elles esperava para justiçal-os com a excessiva severidade que havemos de ver.

Os naufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse aos mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como ilhas de verdura, qual demandasse, a fim de escapar da inclemencia da corrente, os bancos de areia formados pelo fluxo e refluxo das marés. Ninguem cuidou mais no Cabelleira senão para se distanciar com horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e ominoso.

Achavam-se na ponte o pai e filho, não para serem soccorridos, como foram, pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse elle descoberto antes de haver concluido o roubo que assentaram de praticar em um dos armazens. A denuncia do matuto transtornára esta combinação pela fórma que o leitor conhece, não impedindo porém que no essencial viesse ella a verificar-se, porque, ouvindo o trovão do alarido e fazendo conta que o conflicto fôra provocado pelos amigos como meio de concentrar em um só ponto as geraes attenções a fim de deixal-o ao abrigo de qualquer sorpresa, tratára Theodosio de aproveitar o tempo com a promptidão e pericia que lhe eram habituaes em semelhante genero de occupação.

Na extremidade de uma vara fôra acinte atado um ferro adunco para facilitar o escalamento. Prendêlo na varanda do armazem, subir pela longa haste até a estiva, passar desta á janella, e saltar dentro fôra obra de um instante para o Theodosio. Em poucos minutos quinquilharias preciosas, armas de fogo, perfumarias, miudezas de toda sorte desceram por cordas em suas caixas ou pacotes para a canôa. As gavetas, primeiro que as vidraças foram violadas e revistadas, e o dinheiro que continham passára a povoar o bolso do atrevido roubador.

São tradicionaes os roubos que deste modo se praticaram na ponte do Recife por aquelles tempos e durante muitos annos depois. Segundo contam os antigos, elles reproduziram-se no começo deste seculo com tanta frequencia, que os armazens ao principio com razão cubiçados pelos commerciantes, perderam de valor, e ficariam de todo depreciados si a policia, por uma rigorosa vigilancia que lhe faz honra, não houvesse impedido a continuação destes attentados.

Quando não houve mais objecto de preço que baldear, Theodosio desceu. Era tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aereo trajecto, quando dous corpos surgiram d’entre ruidoso espumeiro produzido por violenta queda e passaram-se á embarcação. Eram Joaquim e José Gomes que se haviam atirado ao rio para escaparem á prisão, como vimos.

A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos da enchente favoreceram a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual distancia das duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtrahia a qualquer inspecção do lado da terra, era arrebatado com os hospedes pelas aguas do canal que são profundas e correm alli com impetuosidade.

Em pouco tempo, contornando o palacio do governador, e deixando á direita o forte Waerdenburch, construido em 1631 nas Salinas, hoje Santo-Amaro, pelos hollandezes que lhe deram esta denominação para honrarem o seu general Diederik van Waerdenburch, seguiu no rumo do sul, rompendo, por entre ilhas de mangues, a escuridão e as aguas.

Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação dos Afogados contava-se a de um colono por nome Thimoteo, sujeito pontista, como tal conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre que se tratava de realizar qualquer transacção illicita ou simplesmente equivoca.

Era uma casa de taipa como quasi todas as outras do lugar, e achava-se a pouca distancia do forte tomado pelos hollandezes sob o commando do coronel Lourenço van Rembach aos portuguezes em 1633 e denominado por estes Forte-da-Piranga e por aquelles Principe-Guilherme em honra do principe de Orange. Ficava á direita da entrada da povoação, por detraz das primeiras casas. Foi demolido em 1813, pelo intendente da marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a cambôa que contornava pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava.

Thimoteo estabelecêra alli uma vendola ou bodega aonde ia ter o assucar, a gallinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objecto que era furtado pelos negros dos engenhos da redondeza. No exercicio desta criminosa industria comprava-lhes muitas vezes por dez réis de mel coado objectos de valor que revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros e almocreves que acertavam de entrar na venda.

Thimoteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher bem apessoada, ainda moça, mettida a valentona, finalmente uma dessas mulheres que tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá cá aquella palha. Diziam as más linguas que nos primeiros tempos da sua vida com o colono ella lhe fôra por differentes vezes ao pêllo; e que, comprehendendo elle que não podia fazer cinco montes, e renunciando á pretenção, que ao principio nutrira, de trazer sopeada a caseira, deixára esta tambem, por justa compensação de repetir o caridoso ensino com que o edificára logo depois de sua lua de mel.

Uma manhã um rapasito descorado parou á porta da bodega, saltou do cavallo abaixo e mandou medir contra-metade de aguardente.

— Olá, menino José. Muito cedo navega vossê hoje; disse Thimoteo ao recem-chegado.

— Parti de Santo-Antão na madrugada velha, tornou-lhe o hospede.

Emquanto o taverneiro aviava o matinal freguez, o cavallo que jejuava desde a vespera, pôz-se a devorar a grama do pateo, e, sem consciencia dos riscos em que se ia metter, foi cahir muito naturalmente dentro da pequena roça da mameluca e começou a destruil-a mostrando tenção de dar conta della.

Mas ainda bem o primeiro gerumú não se havia derretido entre os poderosos molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou neste tamanho golpe com uma das estacas da cêrca, que o pobresito, dando ás popas pelo meio do pateo, foi atirando os saccos aqui, os caçuás acolá, a cangalha além, e desembestou por fim, pela margem afóra, em violenta fuga.

Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a venda, e investiu com o inoffensivo matutinho.

— Amarello de Goyanna! gritou-lhe ella ao pé do ouvido. Não sei onde estou que não te ponho molle com este páo para te ensinar a amarrares melhor a tua besta esganada de fome.

O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de fallar e cujos olhos pareciam querer saltar das orbitas, respondeu-lhe sem se alterar nem mover:

— Besta! Besta é ella.

E, senhor de si qual si estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos labios com o maior sangue frio que ainda se pôde mostrar na taverna, onde as paixões se acendem com a promptidão do raio.

Irritada por esta represalia que a seus olhos pareceu condensar todo o desprezo do mundo, a mameluca não teve duvida, não, e levantou a acha para o rapazito.

Tinha este deposto o copo sobre o immundo balcão quando presentiu a arremettida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta pancada. A estaca hateu a meio no balcão, e metade della voou pelos ares em estilhaços que foram quebrar as panellas de barro e as poentas botijas com que se achavam adornadas as sujas prateleiras da possilga.

Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José havia desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera cahir redondamente no chão.

Quiz Thimoteo acudir á companheira na apertada conjunctura que se lhe desenhou aos olhos com as negras côres de um desastre, ou vergonha para o lar e bodega onde nunca soffrêra affronta igual ou que com esta se parecesse. Mas quando apercebia o animo para dar o arriscado passo, descobriu na mão de José uma faca de Pasmado que o reteve a respeitosa distancia.

Julgando-se José, á vista do aggravo que recebêra, com direito a publico e estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para o terreiro, e ahi, com uma raiz de gamelleira com que os meninos tinham brincado na vespera, começou a pôr em pratica a mais edificativa sóva de que nos dão noticia as tradições matutas.

A mameluca tentou por differentes vezes livrar-se das mãos do rapazito, espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam, pela dureza e pelo peso, manoplas fundidas de proposito para esmagar um gigante. Demais, José havia posto um pé no pescoço da Chica, e com elle comprimia-lhe o gasnête, tirava-lhe a respiração, afogava-a sem piedade.

A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinario madrugadores, por infelicidade da caseira de Thimotheo dormiram mais nesse dia do que tinham por costume. Além disso, as casas mais proximas da venda ficavam ainda a distancia, sendo todas, como então eram, muito espalhadas. Esta circumstancia, tirando toda esperança de prompto soccorro, animou José a prolongar o exercicio para o qual podia dizer-se estava preparado por diuturno habito.

Depois de alguns minutos, sentiu Thimoteo subirem-lhe emfim ás faces os restos do equivoco brio e gritou, sempre de longe:

— Vossê quer matar-me a Chica, José?

— Deixe ensinar esta cabra, seu Thimoteo. Ella nunca viu homem, e por isso anda aqui feita gallinho de terreiro, ou perú de roda, mettendo medo a todos estes papa-sirís dos Afogados.

Assim dizendo, José montava-se litteralmente na mameluca, e dava-lhe com os restos da raiz da gamelleira já sem serventia. A faca, que minutos antes reluzira em uma das mãos, estava agora atravessada na boca do matuto, em quem o ignobil vendeiro parecia ver, não uma figura humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a elle tambem, não com igual pisa, mas com a morte, que para elle era mil vezes peior.

De repente José colheu o impeto, pôz-se de pé, e inquiriu de si para si:

— E o meu cavallo?

Correu em continente á margem e soltou um longo assobio que atroou a solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silencio respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pateo onde alguns vizinhos, finalmente attrahidos pelos gritos, ao principio furiosos, depois rouquenhos, e por ultimo cansados e quasi imperceptiveis da moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restituil-a á casa.

— É o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que te vale é ter eu que ir em busca do meu cavallo. Si não fosse elle, nunca mais comias farinha.

Dias depois voltou José, montado no seu cavallo, trazendo uma espingarda nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás cheios de peças de panno e outros objectos que se vendiam nas lojas da villa.

— Boa tarde, seu Thimotheo, disse elle, pondo-se em terra de um pulo e entrando sem ceremonia na tasca. Dá-me noticias da Chica?

— Vossê ainda vem fallar nisso? redarguiu o vendeiro com semblante hypocrita, mas na realidade sobresaltado.

— Porque não? Queria acabar de dar-lhe a lição que principiei na quarta feira. Mas desta feita a cousa havia de ser de outra moda. Queria ver si lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta melancia.

— Pois não sabe que a Chica morreu da sua tyrannia.

— Ah! fez esta bestidade? Pois então, para celebrarmos o caso, bote aguardente e bebamos.

Thimoteo encheu sem demora o cópo que apresentou a José.

— Boba primeiro; disse este.

— Não, eu não bebo; respondeu o taverneiro.

— Não bebe? Ha de beber. E não se demore que tenho pressa. Atraz de mim vem alguem em minha procura, e eu não estou disposto a fazer mais carniça por hoje.

— Que imprudencia a sua, menino! Não bebo, não quero beber, está acabado. Veja si me obriga.

A este rasgo de cobarde arrogancia que seria digna de riso si não despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos no colono:

— Seu Thimoteo, vossê vai errado. Olhe que eu não posso demorar-me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.

O taverneiro, sem replicar, pôz o copo na boca, e, depois de haver sorvido alguns golles que lhe souberam a quassia ou jerubéba, restituiu-o ao rapazito, que o esvasiou quasi de um trago.

Então, sem cuidar de pagar a despeza, José saltou sobre a cangalha, pôz o cavallo a todo o galope e desappareceu no caminho como desapparece um raio na atmosphera.

Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Thimoteo. Vinha na batida de José, que havia commettido um roubo consideravel na praça, tendo, para escapar-se, assassinado um caixeiro e deixado ás portas da morte, com um sem-numero de golpes, dous soldados que diligenciaram prendêl-o.

Pertencem estas ao numero das primeiras proezas do Cabelleira. Não contava elle então dezeseis annos completos. Perpetrava, entretanto, destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais habeis e audaciosos assassinos.

Não obstante o modo por que o tratára desta vez o joven Cabelleira, nunca Thimoteo ficára mal ou se arrufára sequer com elle. Quem não descobre a razão de tal segredo? O colono respeitava e temia o matuto. Por detraz, dizia áquelles de cuja fraqueza estava certo, que o José era uma oucinha que se estava criando e que era preciso, emquanto não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz, que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só tinha para elle attenções e baixezas que bem denotavam os quilates do seu espirito.

José cresceu, reformou, pôz-se de todo homem. Perdeu a côr terrena e pallida com que o vimos da primeira vez na taverna, e ornou-se robusto de corpo e bonito de feições. Cabellos compridos e annellados, que lhe cahiam nos hombros, substituiram a pennugem que mal lhe abrigava a cabeça nos primeiros annos.

Thimoteo fôra testemunha de todas estas transformações. O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a villa a taverna dos Afogados. Esta taverna passára a ser um como entreposto onde elle depositava o que roubava com o pai, e mais tarde, com o Theodosio que viera associar-se-lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achára-se assim em condições de acompanhar dia por dia as differentes phases, os variadissimos successos de uma das existencias mais admiraveis que se conhecem na carreira do crime.

Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando o livrára da companhia da Chica achava-se Thimoteo nos seus quarenta e oito annos. Agora orçava pelos cincoenta e cinco. Tornára-se-lhe o cabello branco; destendêra-se-lhe o abdomen, cahiram-lhe um pouco as faces, sumiram-se-lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.

Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dous diziam-se amigos, e até certo ponto apoiavam-se reciprocamente, havendo a muitos respeitos entre ambos perfeito accôrdo de intenções e inteira communidade de interesses.

As barras vinham quebrando quando a canôa dirigida por Theodosio encostou na beira do Capibaribe, junto á ponte dos Afogados. Dentro em pouco a pingue mésse da noite, colhida ás custas de sustos, sangue e morte, passou para os escondrijos da taverna. Beberam em commum os quatro; celebraram todos a magistral façanha. Thimoteo applaudiu a coragem do pai e do filho, e a finura e as magicas do Theodosio.

De repente este levou a mão á testa e correu como desesperado á margem. Os companheiros metteram mãos ás armas e prepararam-se para o que désse e viesse.

Thimoteo, chegando á porta e estendendo os olhos pelo aterro dos Afogados afóra, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar a inquietação do seu digno conviva.

Só o Theodosio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras, olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabellos no auge do desespero. José dispôz-se a arrostar com o que pudesse acontecer e foi ter com o consternado amigo.

— Que diabo tens tu, Theodosio?

— O dinheiro, Cabelleira, o dinheiro!

E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dôr profunda, apontou o rio que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as aguas azuladas em que se reflectia o bello céo pernambucano que disputa a primazia ao céo de Italia.

— O dinheiro que tirei das gavetas do armazem lá se foi no camarote da canôa! disse o Theodosio, fulo de pezar que se não descreve.

— E que fim levou ella? interrogou José.

— Fugiu, desappareceu! Lá se foi tudo pela agua abaixo.

Não acabava quando, eil-a que aponta movida por dous meninos que, tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado della para brincarem como costumavam sempre que davam com alguma canôa sem dono. Pobres crianças!

Tanto que os viu, Theodosio empallideceu. Cabelleira porém correu a encontral-os acceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados, saltaram na margem os pobresinhos, e fugiram, ao passo que a canôa, ficando solta, desapparecia novamente impellida pela enchente da maré.

Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro, continuou a correr no encalço delles sem ter outra idéa que apanhal-os para arrancar-lhes das mãos o que considerava propriedade sua. Mas como sua colera augmentou com a fugitiva resistencia dos pequenos, atirou elle sobre o primeiro que lhe ficou ao alcance o facão com tanta certeza, que o pobresinho, cravado pelas costas, cahiu banhado em seu proprio sangue.

Não parou ahi então a fereza inaudita. José, achando limpas as mãos da victima, lançou-se com encarniçada furia atraz do camarada, o qual, tendo já ganho grande distancia, e sentindo que era perseguido tenazmente, se lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pavidos, crendo escapar por este modo ao terrivel assassino. Reconheceu, porém, que se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão diligenciava feril-o com o facão.

— Acuda, mamãi, que o homem me quer matar — gritou o menino das alturas aonde havia subido.

— Ah, tu pões a bocca no mundo, caiporinha? observou José. Pois vou tirar-te a falla em um instante.

Um tiro cobarde, cruel, assassino atroou os ares. Sangue copioso e quente gottejou como granizo sobre a arêa, e no mesmo instante o corpo do innocentinho, crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabelleira, veiu dar-lhe novo testemunho de sua pericia na arte de atirar contra seu semelhante. [1]

Quem estivesse com os olhos em Theodosio no momento em que Cabelleira corrêra atraz dos meninos, têl-o-hia visto atirar dentro em uma mouta de mussambês e manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um pesado pacote que tirára do bolso. Neste pacote achava-se o dinheiro roubado ao logista pelo astucioso ladrão que agora o furtava novamente aos proprios companheiros de rapinas, depois de haver concorrido, por sua trapaça, para a morte das innocentes creaturas.

Quando se soube que Cabelleira estava na terra, e tinha sido o autor do latrocinio, a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar a sua ferocidade.

Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circumvizinhas. Outros, dos mais corajosos, fortificaram-se nas proprias habitações, contando que seriam assaltados pelos matadores.

Felizmente estes demoraram-se no lugar unicamente o tempo que lhes foi preciso para pôrem em boa especie os objectos roubados segundo usavam depois de suas depredações.

Notas do autor editar

  1. Diz a trova popular:

    Lá na minha terra,
    Lá em Santo Antão,
    Encontrei um homem,
    Feito um guaribão,
    Puz-lhe o bacamarte,
    Foi pá, pi, no chão.

III

Como nunca um mal vem desacompanhado, segundo mui bem diziam nossos maiores com aquella autoridade que, entre outros graves officios, não se lhes póde recusar na sciencia da vida, ao grande contagio das bexigas, que todo o anno de 1775 e uma parte do seguinte levou assolando a provincia de Pernambuco, succedeu uma secca abrazadora, mal não menos penoso senão mais funesto que o primeiro em seus resultados.

Si por occasião do referido contagio subiu o numero das victimas a tanto, que os cemiterios e as igrejas já não tinham espaço para lhes offerecer sepulturas, que diremos nós para darmos a conhecer, não unicamente os effeitos da peste, commum a todos os climas e a todas as regiões, mas juntamente com estes effeitos os da secca, flagello especial de algumas de nossas provincias do norte?

Exceptuada a febre amarella por occasião de sua primeira invasão, a qual se verificou em Pernambuco em 1686, não consta que alguma outra calamidade de peste haja sido mais fatal áquelles povos do que a sobredita calamidade. Do mesmo modo a secca, chamada em Ceará secca-grande, que arrasou Pernambuco desde 1791 até 1793, com ser mais intensa e duradoura do que a de 1776, ficou-lhe áquem nos estragos produzidos nesta ultima provincia onde esta secca foi precedida do terrivel contagio que levou milhares de almas como já dissemos. Dous flagellos, um immediatamente depois do outro, para não dizermos dous flagellos reunidos, dos quaes o primeiro disputava ao segundo a primazia no abater e no destruir, traziam pois a provincia em continuo pranto e luto, pranto nunca chorado e luto nunca visto em tamanha extensão, ao tempo em que se passaram os acontecimentos que diremos neste capitulo.

Governava então Pernambuco José Cezar de Menezes que não se demorou a expedir para differentes pontos recursos medicos e alimenticios, a fim de combater a epidemia, e acudir á pobreza no seio da qual, ao mesmo tempo que a fome, consequencia natural da secca, ia ella buscar, como sempre succede, o maior numero de suas victimas.

Não se fez esperar com seu quinhão de auxilio o poder espiritual, então amigo desinteressado e leal do poder civil, não só em Pernambuco, mas tambem em todas as capitanias do Brazil. E porque não havia de succeder assim, si sob as abobadas do vaticano ainda volteava, representado na pureza e sabedoria de sua doutrina, o grandioso espirito de Ganganelli; si aos jesuitas, expatriados, repellidos do seio de todos os estados civilizados, faltava a organização que havia antes imposto ao mundo esta companhia como a mais poderosa das até a esse tempo conhecidas, e que veiu depois restituir-lhes, não a totalidade, mas uma grande parte do perdido predominio; si no palacio da Soledade se sentava d. Thomaz da Encarnação Costa e Lima que tornou distincto o decennio de seu ministerio por sua circumspecção, por sua brandura, por suas virtudes, as quaes nos corações dos diocesanos lhe erigiram altares mais naturaes e mais solidos que os dos proprios templos?

Um bispo, que comprehende sua missão, é uma das maiores fortunas dos povos que pastorêa; porque um tal bispo, para proceder assim, tem necessidade de saber e de exercitar a caridade; porque um tal bispo não admitte em seu coração a mais minima sombra de odio, e só possibilita a entrada nelle à humildade, à modestia, aos mais delicados affectos paternaes; porque de todos estes predicados só se podem originar grandes e edificantes beneficios para os crentes, e particularmente para os pobres.

D. Thomaz dirigiu-se a este ideal, unico em que devem ter os olhos aquelles que se acobertam com as vestiduras episcopaes antes para representarem, como lhes cumpre, o officio da piedade e do amor celestial, que a magistratura das mundanas ambições. Ah, esta magistratura é muito mais difficil de contrastar e muito mais cruel quando móe em nome de Deus as consciencias, do que quando, agaloada ao sabor de ficções caducas, encorrenta a liberdade em nome da ordem e da razão publica, as quaes são um dia as primeiras que proclamam estarem innocentes. Deus porém, com ser tão poderoso e grande, não póde fallar, e é por isso que muitas e reprovadas paixões se dizem echos de sua voz.

Acredito que d. Thomaz foi bom, piedoso e justo por effeito de sua propria natureza; ha porém quem diga que deve elle seu adiantamento no caminho da perfeição catholica de que nos deixou formosissima estampa, ao estudo dos exemplos que lhe legaram seus predecessores e ao empenho com que buscou imital-os.

O que fica fóra de toda duvida é que d. Thomaz achou a cadeira episcopal de Olinda verdadeiramente illustrada por conspicuas e benemeritas virtudes que não foram até hoje igualadas. Assim, d. Francisco de Lima morreu tão pobre que unicamente se lhe encontraram de seu 40 réis em dinheiro. Elle havia despendido todas as rendas da mitra na sustentação das trinta missões de indios que reunira e visitara no seio de inhospitos sertões, sendo-lhe preciso, para cumprimento deste apostolico dever, transpôr mais de duzentas leguas na avançada idade de 70 annos. D. José Fialho não deixou nunca de exercitar as funcções pastoraes com honra sua e proveito publico. Por occasião de uma epidemia que grassou na provincia, este respeitavel antistite frequentou o pulpito, visitou os enfermos, acudiu aos necessitados, e deu ordem nas boticas para que, por conta delle, se aviassem remedios para os doentes que os medicos e cirurgiões declarassem serem pobres. Exercitou a caridade com tanto fervor que sua familia veiu a experimentar em casa falta do necessario. D. Luiz de Santa-Thereza deu começo ao palacio da Soledade, e concorreu para a fundação dos recolhimentos de Olinda, Iguarassú, Afogados e Parahyba, gastando nas respectivas obras o producto de suas rendas; missionou desde Porto-calvo até ao Rio-grande-do-norte. Finalmente d. Francisco Xavier Aranha concluiu o sobredito palacio, realizou differentes melhoramentos na igreja da sé e em varias outras igrejas, visitou grande parte da diocese, e foi muito zeloso nos deveres de seu sagrado ministerio. Depois de d, Thomaz dignificaram ainda aquella cadeira d. Diogo de Jesus Jardim, o esmoler, d, Azeredo Coutinho, o sabio, d. Marques Perdigão, o piedoso, o pacificador dos cabanos.

Estamos pois em 1776. É no momento em que o fogo da peste mais abrazara a provincia.

D. Thomaz mandou distribuir esmolas pelos pobres de Olinda e do Recife e despachou, como havia feito o governador, soccorros em dinheiro e viveres ás povoações mais affigidas do mal. Para completo desempenho de seu dever pastoral, ordenou que se fizessem preces em todas as matrizes e em todos os conventos, e convidou o povo a procissões de penitencia. As procissões eram então actos magestosos e dignos. Uma dellas produziu tão viva e salutar impressão no espirito do povo daquelle tempo, que o historiador se julgou na obrigação de transmittir sua memoria á posteridade.

Eram sete horas da noite quando esta procissão, que sahiu da igreja de S.-Pedro, se encaminhou á da Madre-de-Deus, designada para um rigoroso miserere. O bispo acompanhou-a em pessoa, descalço, e confundido com o povo. Todos, vestidos de branco, disciplinavam-se com sincera contricção.

Tendo chegado á igreja, d. Thomaz subiu ao pulpito, d’onde sua palavra começou a cahir com a singela eloquencia que a verdadeira piedade suscita e a que o amor paternal autoriza. O devoto bispo havia-se inspirado naquella passagem que um dos primeiros luminares das lettras portuguezas, fr. Luiz de Souza, nos deixou em sua immortal Historia-de-s.-Domingos, e que se refere ao sermão pregado com identico fim pelo visitador fr. João Furtado em Evora.

Antes que o povo começasse a dispersar-se, tres penitentes, envoltos nos competentes lençóes e armados com as respectivas disciplinas, tomaram pela Rua-direita abaixo trocando a puridade entre si palavras que davam a entender acharem-se elles penetrados antes de contentamento que de contricção, sentimento que a occasião autorizava com mais justiça a suppor em sujeitos taes. Eram Joaquim, José e Theodosio como o leitor já deve ter comprehendido.

Quando d. Thomaz se recolheu a seu palacio achou-se roubado. José, Joaquim e Theodosio, que no momento em que elle sahira a cumprir o piedoso mister, se haviam introduzido á sorrelfa, com a facilidade que proporciona o disfarce, em uma das muitas salas ou em um dos muitos corredores desse edifício, tinham tirado, na ausencia do venerando proprietario, não os castiçaes de prata como fizera João Valjean em casa do bispo Myriel, mas differentes quantias que d. Thomaz destinara para novos auxílios á pobreza do alto sertão mais affligida da fome do que nenhuma outra da diocese. Estas quantias achavam-se repartidas e já devidamente acondicionadas em pacotes distinctos, que só esperavam opportunidade para seguirem seu destino.

O digno prelado leu a triste verdade na confusão em que, ao entrar em seu gabinete, achou os officios e instrucções que, com as esmolas da sua profunda piedade, agora desapparecidas, dirigia aos parochos dessas longinquas e desvalidas freguezias.

No dia seguinte, muito cedinho, um cavalleiro esbarrou na vendola de Thimoteo e, saltando em terra e batendo com alguma precipitação na porta, perguntou para dentro:

— Ainda está dormindo, seu Thimoteo?

— Quem é você? — interrogou o vendeiro em resposta á pergunta que deixamos repetida.

— Abra a porta sem demora, que tenho que lhe dizer.

O recem-chegado era um crioulo alto, magro, de boa cara e de geitos e meneios que revelavam extrema benevolencia.

— Olhe, seu Thimoteo; ouça-me cá. Eu sei que em sua casa está o Cabelleira com o pai e o Theodosio; e por isso corri a avisal-os. Uma tropa vem já do Recife para prendêl-os. Diga a elles que se mettam na capoeira emquanto é tempo.

— E como soube você disso?

— Sabendo. No começo do Aterro passei eu por ella. O governador ficou muito escandalizado com o que elles fizeram hontem á noite no palacio do bispo, e diz que ha de pôl-os na corda mais dia menos dia. Tudo isso me contaram na venda de seu José do pateo da Ribeira.

— Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso.

— Não tem que me agradecer. Eu quiz fazer este serviço ao proprio Zé Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é muito descortez e desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto Zé Gomes menino, e querendo-lhe por isso algum bem, achei que era minha obrigação fazer o que em meu caso faria meu irmão para livrar do risco o antigo conhecido. Diga-lhe isto mesmo. E até á primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancorêtas no engenho da Magdalena; além disso a soldadesca já deve vir bem perto no faro das cascaveis que estão no ninho.

Quando Thimoteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não encontrou dos tres malfeitores, (os quaes na realidade tinham passado a noite na taverna), senão o Theodosio que, sabendo de tudo melhor do que os outros dous, os quaes haviam unicamente ouvido atravez das portas algumas das palavras do negro, correu sem demora a metter-se em uma especie de escondrijo que arranjára em Tigipió e cuja existencia era só delle conhecida.

Na epocha em que se passou esta historia, fazia o Capibaribe adiante do Forte-da-Piranga ', um cotovello, que foi depois aterrado, e é hoje quintal de uma casa. O angulo internava-se na direcção do sul por entre uns lagêdos alcantilados que se sumiam dentro de um capão de mato.

Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade e das sombras com que a dotára a natureza, a qual desde os Afogados até ao Peres apresenta uma face monotona e triste — uma immensa planicie, coberta de capim-lúca.

Por entre as lages via-se uma verêda de gado que ia ter no engenho da Magdalena ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtava quasi um quarto de legua do caminho para quem tinha de ir da margem direita ao dito engenho.

O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em que este fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno accidentava-se um pouco, e elevava-se até ás lages negras pelo meio das quaes o gado tinha aberto sua passagem, melhor e mais naturalmente do que o faria o homem.

No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sitio, alguns ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dous sujeitos litteralmente armados surgiram diante de seus olhos.

Vendo-se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste, o crioulo pôde unicamente dizer estas palavras:

— Acabo de lhes fazer um bem, e é deste modo que vosmecês me dão o pago?

— Desce do cavallo, negro. Este cavallo foi teu até este momento; d’agora em diante elle nos pertence, e é preciso que nol-o entregues quanto antes.

— Meu cavallo! exclamou o crioulo com entranhada dor. Meu cavallo é meu unico haver, meus senhores. Si vosmecês m’o tomarem, com que darei eu de comer a minha mulher e a meus filhos, que não têm outro arrimo sinão eu?

— Que morram de fome como estão morrendo da secca os outros por ahi além. Demais, não te custará ganhar com que comprares outro cavallo para continuares em teu officio. Deste é que deves perder o feitio. Precisamos delle já para fugirmos com tempo á tropa que ahi vem.

— Perdão, meus brancos, — disse Gabriel com a voz mais doce e terna que pôde. Eu peço a vosmecês que me deixem ir embora. Em que os offendi? Não os tenho respeitado sempre? Vosmecês não me conhecem? Sou um pobre preto que nunca fez mal a ninguem, e que segue seu caminho caladinho sem se importar com a vida dos outros filhos de Deus.

Os dous matadores não estavam, ao menos naquelle momento, para estas banalidades, e, conscios de que urgia remover o óbice, saltaram sobre o crioulo, e, apeando-o com violencia, tomaram-lhe o animal, o qual se deixou passivamente conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira onde Joaquim julgou prudente recolhel-o sem demora.

Gabriel, que de pé e immovel viu, com lagrimas nos olhos, desapparecer o seu unico bem, reflexionou com pezar:

— Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é que hei de ir para a minha de pé, sem o meu cavallo, heim?

— Ainda estás ahi fallando, negro? Quererás tomar-nos satisfações? replicou o Cabelleira voltando-se de chofre e fixando sobre o Gabriel a vista que chammejava como a de um chacal.

— Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e deixam-me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e a outra atraz.

A estas vozes o Cabelleira não pôde mais conter-se, e de um só pulo fez-se sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não se achava no mesmo lugar, mas sobre uma das lages que davam para o rio, tendo em uma das mãos uma faca núa, que refulgia aos raios do sol.

— Si quer brincar na ponta da faca, meu branco, a cousa é outra, e vosmecê encontra homem, — disse de cima.

Ainda bem não tinha proferido estas expressões, quando a seus olhos brilhava tambem a faca de seu feroz contendor.

Travou-se então entre elles um combate de gigantes que durou alguns minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lugubre realce o deserto com sua profunda solidão.

Os dous contendores eram habilissimos em jogar a faca. Nunca se encontraram competidores mais dignos um do outro.

As laminas inimigas cruzavam-se a modo de impellidas por electricidades iguaes. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade caracteristica dos matutos do norte, maxime dos matutos de Pernambuco.

Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da lage que, começando no estreito angulo, ia morrer no Capibaribe por um declívio quasi abrupto. Haviam-se avizinhado tanto do rio, que o ruido das aguas já não deixava ouvir o incessante bater dos ferros assassinos. Estes ferros eram como duas serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem devorar.

De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual ficou assim entre dous inimigos capitaes.

— Ainda está vivo este negro, Zé Gomes? perguntou o mameluco ao filho.

— É agora a sua derradeira, — respondeu este,

— Com dous é impossivel a um só se divertir, — tornou o negro, em cuja testa a alvura do suor contrastava com o negror da pelle luzidia.

José Gomes estava excitado ao ultimo ponto e rolavam-lhe tambem pelo rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões abreviar o duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão, apertou com o crioulo com toda a violencia de que era capaz e que, como sempre, levou de vencida todas as resistencias adversas. Gabriel, ou porque conhecesse que na realidade estava exposto a imminente perigo, ou porque julgasse ser chegado o momento de pôr por obra a sua traça, deixou-se escorregar, quando menos esperava o inimigo, pela face opposta da lage, e foi cahir dentro das aguas que passavam alli rapidas e espumosas.

Cabelleira correu, fóra de si, após o fugitivo a fim de ver si o apanhava para mitigar no sangue delle a sede que o combate lhe acendera; mas antes que houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação de um tiro lhe annunciou que o temerario que lhe resistiva acabava de pagar com a vida esta ousadia.

Um momento depois o cadaver de Gabriel, entalado entre duas pedras que sobresahiam ás aguas no meio do canal, tingia-as com o seu sangue, e Joaquim o mostrava com o cano do bacamarte, vindo fumegante, ao filho, que nunca pôde, como seu pai, matar curimãs a tiro nas aguas turvas das enchentes.

IV

Segundo as tradições mais correntes e autorizadas o Cabelleira trouxe do seio materno um natural brando e um coração benevolo. A depravação, que tão funesta lhe foi depois, operou-se dia por dia, durante os primeiros annos, sob a acção ora lenta ora violenta do poder paterno, o qual, em lugar de desenvolver e fortalecer os seus bellos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a uma machina de commetter crimes.

Como é possivel porém que se houvesse abastardado por tal fórma a obra que sahiu sem defeito das mãos da natureza? Como se comprehende que uma organização sã se tivesse corrompido ao ponto de exceder, no desprezo da especie humana, a féra cerval que se alimenta de sangue e carnes fumegantes, não por uma aberração, mas por uma lei da sua mesma animalidade?

É que a mais forte das constituições, ou indoles, está sujeita a alterar-se sempre que as forças estranhas, que actuam sobre a existencia, vêm a achar-se em luta com suas inclinações. Por mais energicas que taes inclinações sejam, não poderão resistir a estas tres ordens de moveis das acções humanas — o temor, o conselho e o exemplo, que formam a base da educação, segunda natureza, por ventura mais poderosa do que a primeira.

No caminho da vida veiu encontrar o Cabelleira a seu lado Joanna, exemplo vivo e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espirito de religião que a caracterisava. Em contraposição porém a este salutar elemento de edificação, do outro lado da criança achava-se Joaquim, não só naturalmente máo, mas tambem obcecado desde a mais tenra idade na pratica das torpezas e dos crimes.

Boa mãi era Joanna, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastada pela ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquelle que estava destinado a ser o primeiro algoz do proprio ente a quem dera a existencia?

A mulher é tanto mais forte, e a sua influencia directa e decisiva na formação dos costumes, quanto mais puro é o ambiente do meio social onde ella respira, e esclarecidos são os entes com quem coexiste. Collocada em um tal centro, a mulher não é sómente uma providencia, é sobretudo uma divindade. As suas forças elevam-se á altura das potencias de primeira ordem, e ordinariamente são potencias triumphantes, onde quér que seja o mundo moral, não um cahos, mas uma creação grandiosa e harmonica, em conformidade ás leis da esthetica christã e ás altas conquistas da civilização que possuimos. As suas qualidades delicadas, fontes de grandezas impares, tornam-se porém nullas, ou são vencidas, sempre que entram em luta com a ignorancia, com o vicio, com o crime.

Infelizmente para o Cabelleira, grande animo que poderia ter vindo a ser uma das glorias da patria si a sua bravura e a sua firmeza houvessem servido antes a causas nobres que a reprovados interesses e crueis necessidades, sua mãi, docil, posto que ignorante, de bonitas acções, posto que nascida de gente humilde, não só não pôde exercitar no infeliz lar a acção benefica que á esposa e mãi reservou a natureza, mas até foi, como seu filho, uma victima, não menos do que elle, digna de compaixão, um joguete dos caprichos e instinctos brutaes daquelle a quem ella havia ligado o seu destino, não para que fosse o seu tyranno mas para que a ajudasse a carregar a cruz da pobreza.

Pela sua organização, pelos seus predicados naturaes, o Cabelleira não estava destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os máus conselhos e os pessimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai converteram seu coração, accessivel, em começo, ao bem e ao amor, em um musculo bastardo que só pulsava por fim a paixões condemnadas. Desgraçadamente estas paixões que nelle escandalizaram a sociedade coéva, não desceram com seu corpo á sepultura. Ellas estão ahi exercitando em nossos dias o seu terrivel imperio á sombra da ignorancia que ainda nos assoberba, e que em todas as terras e em todas as idades tem sido considerada com razão a origem das principaes desgraças que affligem e destroem as familias e os estados.

Joanna, a mãi boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o pai sem alma nem coração. José foi sempre o motivo, a causa desse combate sem tregoas, José, o filho sem sorte que estava fadado a legar á posteridade um eloquente exemplo para provar que sem educação e sem moralidade é impossivel a familia; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de obrigar o pai a proporcionar á prole, ou de proporcionar-lh’o ella quando elle o não possa, o ensino que fórma os costumes domesticos nos quaes os costumes publicos se firmam e pelos quaes se modelam.

Aos sete annos de idade o pequeno já sabia matar passarinhos com seu bodoque, presente que lhe fizera o pai com expressa recommendação de amestrar-se em seu uso para que viesse a ser mais tarde um escopeteiro consummado.

— Ó José, ouve bem o que te vou dizer. Quando o sanhassú ou o bem-te-vi não cahir morto da bala do bodoque, mas só com uma perna ou uma aza quebrada, não lhe apertes o pescoço para que não esteja penando. Faze um espetinho de cabuatã, e crava-o na titela do passarinho. Tu não sabes que os passarinhos são diabinhos que nos perseguem, furando as laranjas e destruindo as bananas do quintal?

— Tenho pena, papai, e não farei isso aos pobresinhos — respondeu o menino.

— Tens pena, tu José? Pois sabe que é preciso que percas esta pena e que te vás acostumando a ser homem. Si hoje cravas o espeto na titela do bem-te-vi, amanhã terás necessidade de cravar a faca no peito de um homem; e si no momento da execução tiveres a mesma pena, ai de ti! que a mão te fraqueará, e o homem te matará.

Uma manhã José entrou saltando de contente, e trazendo um preá que o fojo tinha apanhado.

— Ó papai, como é que hei de matar este preá?

Joanna chamou o menino para junto de si, tomou-lhe a presa que elle trazia, e pôz-se a miral-a com ternura.

— Olha, meu filho, olha bem para elle. Não achas vivos e bonitos os olhos do preázinho? Que lindo pescoço! Que mãos bemfeitas! Que dizes, José?

— É, mamãi. Acho tudo bonitinho.

— E si o achas bonitinho, para que o queres matar, meu filho?

— Para aprender a matar gente quando eu for grande.

— Matar gente! José, José! Quem te ensinou esta barbaridade? Virgem da conceição!

— Foi papai, mamãi.

— Não, eu não consentirei, nem o céo permittirá que levantes em tempo algum a tua mão para offender a alguem. Que desgraça, mãi santissima! Como é que Joaquim ensina semelhantes cousas ao filho?!

— Dê-me o meu preá, mamãi. Quero espetal-o vivo como fiz hontem com o papa-capim.

— Ainda me vens fallar nisso? exclamou Joanna consternada.

E levada de uma inspiração ou de um repente irresistivel, chegou á porta que dava para o pequeno cercado onde o capinzal crescia, e ahi soltou o innocente prisioneiro.

José chorou, gritou, esperneou, rolou pelo chão com raiva. Irritada por este procedimento, para o qual ella foi buscar explicação antes na inconveniente direcção que a José ia dando Joaquim que no impulso de reprovadas paixões de que julgava isento o filho naturalmente docil e terno, puxou-lhe de leve pelas orelhas, dizendo-lhe que si outra vez judiasse com os passarinhos lhe daria uma surra que elle havia de agradecer.

Quando Joaquim voltou á casa, o menino correu a relatar-lhe o que tinha acontecido. O máo marido, o pessimo pai ralhou com Joanna em quem por um triz não bateu; e para completar a lição e o exemplo pernicioso, prometteu a José que o primeiro preá que o fojo pegasse havia de ser sujeito a um genero de morte que elle ainda não conhecia.

O menino mal pôde dormir aquella noite. Nunca desejou tanto que a armadilha lhe désse caça. A curiosidade de conhecer a nova fórma de matar os animaes, promettida ao primeiro que tivesse a sorte de se deixar apanhar, o teve por muito tempo na maior excitação e vigília.

Pela manhã correu José ao fojo, onde encontrou, em lugar de preá, um coelho.

Era uma lindeza o animal. Gordo, coberto de macio pêllo em que se divisavam ligeiras malhas tão alvas como o algodão que pendia dos capulhos estalados ácima de sua masmorra, o filho do campo despertava, pela belleza das fórmas, e pela harmonia dos contornos, todos os sentimentos benevolos de que é capaz o humano coração. Os olhos reluziam como dous coquinhos polidos. O cão batia-lhe precipite qual si quizesse sahir-lhe pela bocca. E essa creatura tão candida e inoffensiva ia morrer! Oh meu Deus, porque extravagante e barbara interpretação das leis naturaes, ha de o homem julgar-se com direito á vida de semelhantes entes que mais merecem a sua protecção do que desafiam a sua cobardia?

Quando José, irresistivelmente captivo da formosura da innocente criaturinha, estava ainda admirando os seus encantos, um movimento violento arrancou-lh’a das mãos.

— Meu coelho! gritou o menino sentido de lhe terem arrebatado a graciosa presa.

— Ah, suppunhas que havias de pôr-me terra nos olhos, José? Não, este lindo animal não morrerá.

-— Sim, sim, mamãi; eu não o levarei a papai para o matar como elle disse; não quero que o meu coelho morra. Elle é tão bonitinho, que faz gosto. Quero crial-o para mim, para mim só, já ouviu, mamãi? Meu coelhinho tão bonitinho!

José estava fortemente commovido, e Joanna, fixando nelle olhos perscrutadores, leu em seu rosto a pureza e a sinceridade da sua commoção, indício irrecusavel, senão prova convincente, da excellencia das inclinações do filho. Todas as hesitações que traziam seu espirito em continua inquietação dissiparam-se diante do enternecimento do menino de cuja brandura e natural bondade já não lhe foi licito duvidar.

— Dê-me o meu bichinho, mamãi — pediu José quasi chorando.

— Elle é teu, José, e ninguem, ainda que seja teu pai, te privará delle. Mas, antes que o tenhas comtigo, quero saber por curiosidade o que vás fazer do coelhinho.

— Ora! Vou leval-o para casa. Levo logo daqui capim bem verde para elle comer, e faço lá uma caminha no canto do meu quarto para elle dormir junto de mim.

— E si teu pae o quizer matar?

— Pedirei a papai que o não mate, não. Olhe, mamãi: o melhor é eu vir esconder o coelhinho no mato sempre que meu pai estiver para chegar. Deus me livre de ver meu coelho morrer.

— Deus te livre, atrevido! gritou ao pé da mulher e do filho o máo marido, o pai desnaturado, carrasco da familia antes de sêl-o da sociedade e de si proprio.

E arrebatando com rudeza bruta das mãos de Joanna o pobre animal, fez gesto de lhe quebrar a cabeça contra uma pedra que lhe ficava fronteira.

— Que queres fazer, Joaquim? interrogou Joanna, não obstante achar-se aterrada pela presença do marido.

— Ainda m’o perguntas, mãi cobarde que só sabes dar a teu filho lições de mofineza? Eu não quero meu filho para chorão.

— Mas eu tambem não o quero para assassino.

— Hei de ensinal-o a ser valente. Ha de aprender comigo a jogar a faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espirito que não tens animo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é respeitado e temido? Queres que não haja quem faça caso de teu filho?

— Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai.

— Que estás tu a dizer, mal ensinado?

O menino quiz chorar, como que se mostrou escandalizado por extremo o tyranno da familia, que, para o fazer chorar com mais gosto, segundo disse, lhe deu tres ou quatro sipoadas fortes, depois das quaes José mal se pôde ter em pé. Joanna, não podendo ver o filho apanhar sem razão, partiu para Joaquim, a fim de lhe tirar das mãos o pequeno, mas Joaquim repelliu-a com tanta força, que a fez cahir por terra; e voltando-se immediatamente para José, perguntou-lhe com gesto e voz de aterrar:

— Então, mata-se ou não se mata o coelho, José?

— Mata-se, papai, — respondeu o pequeno com as faces banhadas de lagrimas ainda.

— Não quero que chores. Quem é homem não chora; quem é homem faz chorar.

E dando o andar para a casa, com o filho pela mão:

— Vás vêr agora de que modo morre o coelho, — disse com expressão que se não póde descrever.

— Meu Deus, meu Deus! Que desgraça esta, que desgraça a minha! exclamou Joanna quando os viu desapparecer na volta do caminho.

Os corações maternaes têm inspirações angelicas e grandes. Joanna, que não se havia levantado ainda, pôz-se de joelhos no meio da natureza verde e explendida que a tinha recebido em sua quéda, e, elevando os olhos humidos e tristes ao céo profundo e bello que se estendia a perder de vista acima de sua cabeça, enviou a Deus esta supplica cheia de amor e philosophia:

— Senhor, Senhor, protegei meu filho. Inspirai-lhe sentimentos brandos por quem sois, meu Deus. Que elle seja bom, e que vos conheça e tema.

Não pôde ir adiante a desventurada mãi cuja voz fôra embargada por lagrimas violentas que lhe saltaram dos olhos contra o seu querer. Mas de repente, como si tornasse em si de um sonho penoso e achasse de novo todas as suas idéas um instante obliteradas pela intensa dor, Joanna fez em pedaços a taboa, e entupiu com pedras e maravalhas o buraco que com aquella armava ciladas aos inoffensivos filhos do deserto. Tendo assim destruido a armadilha, tomou o caminho de casa na qual se lhe deparou um espectaculo em que ella nunca imaginára e que por um triz não abateu de todo o seu cansado espirito. Uma forca havia sido levantada com ramos verdes no terreiro em sua ausencia, e della pendia por uma embira o coelho, minutos atrás cheio de vida, agora morto, o pescoço destendido, os bellos olhos empanados. José, não só não chorava, mas até se mostrava indifferente ao espectaculo repugnante, como si já não fosse o mesmo que poucos instantes antes havia manifestado os mais generosos sentimentos a favor da victima. O reverso deste recente passado representava-se agora aos olhos de Joanna: o pequeno prorompia em applausos a cada balanço que dava o corpo inanimado do animal que Joaquim, por entre chufas grosseiras e de máo gosto, impellia de quando em quando com a mão ensanguentada e tôrpe.

Joanna não pôde conter, diante da scena final daquella tragedia infame, a sua justa e bella indignação.

— Homem cruel, onde aprendeste esta lição indigna que acabas de ensinar a teu filho?

A esta angelica exprobração Joaquim respondeu com uma gargalhada de desprezo que retumbou por toda a vizinhança.

— Quem matou o coelho, José? perguntou Joanna ao menino, para o qual tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsavel do estranho delicto.

— Fui eu, mamãi. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.

Joanna volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não se demorou a retorquir com a impudencia que o caracterisava:

— Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso? Quererás tomar-me contas, Joanna?

— Eu não, Deus sim; Deus hade tomar-t’as um dia, homem sem coração.

— Deus! Quem é Deus, toleirona? Quem já o viu? Quem já ouviu a sua voz? Estás caducando, mulher.

Sem ter para o seu tyranno outra resposta que o silencio, Joanna resignou-se a dar-lh’a, e foi cahir sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de lagrimas.

Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso, que, tendo elle querido tomar de um menino do vizinho uma chicara de arroz doce, o menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais força do que elle, não só não se deixou esbulhar de sua propriedade, mas até bateu em José com vontade, sem comtudo se sahir illeso, por que José lhe pôz a cara em sangue com as unhas, e lhe arrancou da côxa um pedaço de carne com os dentes.

Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um punhalzinho e, chamando o filho, entregou-lhe a nova arma, mediante este discurso:

— Sabes para que fim te dou este ferro, José? É para não soffreres desaforo de ninguem, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou preto o que te offender. Si alguma vez entrares em casa, como entraste hoje, apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo, dou-te uma surra de tirar pelle e cabello, e corto-te uma orelha para ficares assignalado. Toma o ferro.

José tinha então seus nove para dez annos, e ouviu a advertencia do pai com toda attenção, promettendo cumprir fielmente as suas ordens.

Joanna, que tudo presenciára, e de certo tempo atrás adoptára o alvitre de não contrariar abertamente o marido para o não incitar a maiores excessos, aguardou a sua ausencia, e quando foi tempo prégou a José as lições de moral que seguem:

— Meu filho, Deus, nosso pai, que está no céo, não póde receber bem os feios actos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou ha pouco. Para os mais velhos não tenhas nunca expressões descorteses e muito menos acções offensivas; ainda que seja um negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito pela idade delle. Seja a tua unica vingança, quando alguem te offender, pacifica retirada; não ha vingança maior, nem mais digna: procedendo deste modo, terás, meu filho, agradado a Deus e dado aos homens mais bonito exemplo do que si houveres proferido, em resposta, palavras injuriosas ou insultuosas contra o teu offensor. As armas só servem para excitar á pratica de crimes; os homens bons não trazem comsigo armas. Dá-me o punhal, de que teu pai te fez presente e recebe em troca este rozario que te dou para tua consolação nas tribulações. [1] Reza por estas contas, e encommenda-te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim praticando, virás a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãi que morreria de dôr e vergonha si te visse apartado do caminho do bem.

De que serviram porém estes bons conselhos, si Joaquim, vendo mais tarde o rozario no pescoço do filho, fez em pedaços a enfiadura, espalhou as contas pelo chão, e chamou a mulher feiticeira?

Não ficou ahi a manifestação do seu desagrado. Voltando-se para Joanna:

— Si continuares a fazer asneiras como esta, — disse elle — acabas queimada, bruxa; e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que continues a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é.

O parocho, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escandalo, mandou chamar Joaquim á sua presença, e lhe disse que si elle repetisse a scena do rozario, ou obrasse acto identico, seria elle Joaquim quem deveria de morrer queimado por crime de heresia.

Joaquim tornou á casa tão furioso, que puxou pela faca para matar Joanna, a quem attribuiu o mexerico; esta, porém, não correu nem pediu que a soccorressem; limitou-se a chorar em silencio a sua desgraça e a appellar para Deos a quem não cessava de encommendar o filho em suas orações.

Depois de haver esgotado o vocabulario dos epithetos infamantes contra sua mulher, e dos convicios immundos contra o vigario, determinou Joaquim de deixar a casa para se ir metter com José no ôco do mundo, palavras suas.

Que noite passou Joanna!

Não houve rogativa, não houve lagrimas que abrandassem o coração do mameluco. Desgraçada mãi, que pediste e choraste em vão, em vão como sempre!

— Vai só, Joaquim, já que me queres deixar; deixa porém comigo meu filho; peço-te esta graça por tudo quanto ha sagrado na terra e no céo — disse ao marido a infeliz mulher com angelical doçura, momentos antes da partida fatal.

— Nessa não cáio eu — replicou Joaquim. — Si José ficasse em tua companhia, quando eu voltasse um dia por aqui, achava-o servindo ao vigario, ou, pelo menos, feito sacristão.

José entretanto, como querendo escusar-se ás saudades da despedida, encaminhou-se para o quintal d’onde se pôz a olhar para os araçazeiros e goiabeiras em que elle foi encontrar novo motivo de pezar com que não contava. Eis que uma menina de longos cabellos castanhos, que estava brincando em um dos quintaes contiguos, foi tiral-o da sua contemplação.

— Que está vossê fazendo, José?

— Ora! Não sabes que vou sahir de casa, Luizinha?

— Não sabia, não.

— Pois vou, e não sei quando voltarei. Estou triste. Tenho pena de deixar mamãi.

— E de mim não tem tambem pena? perguntou ella com suave ingenuidade.

— Tenho tambem, sim; eu estava lembrando-me de vossê agora mesmo. Olhe, Luizinha: si eu algum dia voltar vossê me quer para seu marido?

— Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando vossê judia com os passarinhos e dá pancadas nos meninos.

— Pois eu lhe digo uma cousa: si algum dia eu chegar aqui de volta, tenha logo por certo que não faço mais mal a ninguem. Si pareço máo, Luizinha, não é por mim.

Deste innocente colloquio os veiu tirar a voz de Joaquim que chamava por José para partirem. Pouco depois o pai e o filho deram as costas á povoação. Joanna ficou de cama.

Data desse dia a vida que levaram até o momento de cahirem no poder da justiça. Não foi ella nada menos do que uma longa série de attentados que difficilmente se acreditam. O numero destes attentados e as circumstancias que os revestiram, não ha quem os saiba com individuação e clareza. Muitos delles foram de todo esquecidos, na longa travessa de mais de um seculo que se conta de sua perpetração; e dos que assim se não perderam chegou aos nossos dias uma noticia vaga, incompleta e por vezes tão escura, ou tão confusa, que temos lutado com grandes difficuldades para, por ella, recompôr esta historia.

É que as tradições do crime são menos duradouras que as da virtude.

Ha nisto uma lei salutar da Providencia.

Notas do autor editar

  1. A trova popular diz:

    Minha mãi me deu
    Contas p’ra rezar.
    Meu pai deu-me faca
    Para eu matar.

V

 

Luizinha era uma menina branca, orphã, de indole benigna e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viuva recolheu-a em sua casa á conta de filha, e começou logo a ter para ella maternal solicitude. Luizinha era digna deste amparo, não só pelos predicados sobreditos, sinão tambem pelos seus encantos naturaes que a todos captivavam com justa razão.

Florinda, a viuva, deu á menina a educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou muito qne Luizinha soube fiar, coser costuras chãs, fazer bicos e rendas, respeitar os mais velhos e encommendar-se a Deus. Como era dotada de excellente coração, dentro em pouco passou a ser estimada por todos do lugar, e até pelos comboieiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para deixar passar a força do sol do meio dia, ou ahi pernoitarem quando não podiam, ainda com ar de dia, romper a mata onde se acoutavam negros fugidos e mal-feitores.

A mata tinha mais de legua de comprido, e ninguem lhe sabia os escondrijos.

Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz, logo prognosticaram que elle ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo domicilio. Á vista da sua má indole de todos conhecida, houve quem assegurasse que elle estava de mãos dadas com os facinorosos de Pernambuco, de Parahyba e de Rio-grande-do-norte, que alli se homiziavam. Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos, e escapavam sempre á acção da justiça, inefficaz naquelle tempo, como ainda o é hoje a nossa policia nos povoados longinquos, para não dizermos nas proprias capitaes segundo sabemos.

A voz do povo não era sinão o echo da verdade.

Não se metteu muito tempo que crimes de nova especie, revestidos de circumstancias que revelavam a maior perversidade de parte dos delinquentes, vieram a attestar que os negros arraiaes estabelecidos no centro da espessura haviam feito novas acquisições que primavam nas ciladas, no manejo das armas, na firmeza das execuções.

Ao principio não se soube a quem attribuir o sangue novo levado ás veias dos grupos dos criminosos ahi asylados, os quaes, bem que numerosos, nunca manifestaram a audacia, a ferocidade inaudita que sorprendiam e aterravam agora as populações. Para maior confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o Joaquim, ora de companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu cavallo, vendendo legumes, macaxeiras, farinha, assucar pelas povoações, e fazendo compras no Recife; o que deixava, pelo menos suppôr que elles se davam ao trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente á custa do suor de seu rosto. Mas em menos de dous annos não se pôde mais pôr em duvida que fossem consenhores dos vastos e virgens dominios, onde figuravam talvez como os primeiros e mais respeitados de todos os outros conquistadores, seus iguaes.

Algumas victimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar com vida das garras dos féros algozes, deixando-lhes unicamente dinheiro, fazendas ou generos, declaravam que o mais audaz e o mais terrivel d’entre elles era um joven de cabellos tão crescidos que lhe batiam nos hombros, assemelhando-se aos de uma dama. Outros diziam que tinham visto por muitas vezes o Joaquim na malta dos salteadores, e que na pessoa do joven dos cabellos compridos ou do Cabelleira, segundo começaram logo de chamal-o, haviam reconhecido seu filho José Gomes.

Notou-se tambem uma especie de moderação, ou de suspensão de hostilidades, ou ao menos de cessação de crueldade nestas, de parte dos salteadores em certas quadras do anno, durante as quaes não figuravam nos acommettimentos nem o Cabelleira nem seu pai. Dahi se inferiu, comtodo o fundamento, que os dous matadores não limitavam as suas correrias áquellas redondezas, mas, que pelo contrario, deixando os seus escondrijos, visitavam novos termos, percorriam outros lugares, como os selvagens mudam de região quando na que preferiram para a sua transitoria residencia, não encontram mais com que alimentar a sua indolencia e barbara voracidade.

Esta conjunctura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se levantaram nas freguezias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o Cabelleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham enchido a provincia natal. As pacificas ribeiras do rio Parahyba e do Rio-grande-do-norte, os engenhos, povoações e villas das duas províncias, que trazem os nomes destes dous grandes rios, começaram a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as propriedades ruraes e os pontos populosos de Pernambuco, o terrivel imposto a que por mais de uma vez nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos salteadores escolheram para centros das suas operações as matas proximas dos rios, as catingas pegadas aos caminhos d’onde podiam facilmente espreitar e acommetter a seu salvo os inoffensivos viajantes que, com o fructo do trabalho honesto e da industria esforçada, deixaram muitas vezes nessas medonhas solidões o seu sangue, a sua propria vida.

Cresceram a par a idade de Luizinha e o nome odioso do Cabelleira, nome que, principiando como um boato ou uma duvida, se foi de dia em dia condensando e se constituiu a final uma fama que echoou, com os uivos das feras carniceiras, do sul ao norte, do sertão ao littoral, engrossando sempre com as novas façanhas, como um fraco regato acrescenta o volume das suas aguas e se faz rio caudal com os subsidios que cada dia recebe em sua longa e demorada passagem pelo deserto.

Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existencia, a menina acompanhou com os olhos inundados de lagrimas as phases successivas que atravessou esse nome destinado a ter uma pagina enlutada na historia da patria. É que bem dentro no seu coração estava a imagem do companheiro de infancia a quem ella nunca pôde esquecer, ainda quando esta imagem lhe apparecia, como tantas vezes aconteceu, envolta em uma nuvem de sangue, e acompanhada de unisonas maldições.

Á noticia de um novo attentado commettido pelo moço que por uma lei natural da imaginação sempre se lhe representava com as feições do menino de outr’ora, Luizinha sentia no coração uma dôr semelhante á que produz a dentada de uma serpente.

No terço, que se rezava de noite em casa de Florinda; na missa que o coadjuctor celebrava de madrugada; em qualquer occasião propria para elevar o pensamento ás regiões onde flue a eterna fonte das consolações em cujas aguas se retemperam das dores da vida os espiritos resignados e crentes, a pobre moça tinha sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José e o tornasse, pela contricção e pela emenda, digno do perdão da sociedade. Ella não podia crer que, tendo sido esta tantas vezes indulgente para outros criminosos, fosse inexoravel para o mancebo que por algum tempo andára apartado do caminho do dever. Pobre, ingenua e credula criança!

Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava escripto que o comêta que assim abrazava a terra, percorreria a vastissima orbita que a Providencia lhe traçára, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro de profundas e medonhas escuridões.

Uma tarde Luizinha foi buscar agua no rio Tapacurá, que banha a cidade da Victoria, então povoação de Santo-Antão, á qual pertencia Gloria-de-Goitá d’onde era natural o Cabelleira. Santo-Antão distingue-se na historia pernambucana pela circumstancia de lhe estar proximo o Monte-das-tabocas no qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portugueza contra o dominio hollandez, e exercitou directa e decisiva influencia no futuro politico, commercial, industrial e religioso do Brazil. Esta memoravel batalha, depois de seis longas horas de fôgo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em commemoração deste acontecimento, uma lei provincial de 6 de maio de 1843 eregiu a antiga povoação em cidade a que chamou da victoria como acima se vê.

O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidaveis, estava então cortado pelo rigor da secca de que tratamos no capitulo anterior. No seu largo leito viam-se unicamente, a espaços como de ordinario, pequenos poços onde os habitantes mal achavam agua para o consumo diario.

Luizinha, não querendo levar para a casa agua chafurdada, passou pelos primeiros poços, já muito remechidos, e foi encher a sua vazilha em um que distava pouco menos de quarto de legua da povoação.

O poço ficava a beira de um capão de mato. De um lado o terreno elevava-se gradualmente, e accidentava-se mais adiante, formando zig-zagues quasi inacessiveis e escondrijos escuros, a que a espessura das arvores dava um aspecto medonho. Do lado opposto a margem plana, igual e descampada, formava com a banda fronteira um admiravel contraste.

Quando Luizinha, da areia do rio onde se sentára a descansar, se dispunha a levantar-se para tornar á casa, deu com os olhos em um homem que da borda do mato a observava em silencio com tal interesse que parecia querer attrahil-a a si com a vista.

Sem demora correu ella ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo do outro lado do rio onde estava, o desconhecido veiu cahir no mesmo instante entre ella e a vasilha, sem perder, no rapido vôo, uma só das armas com que se achava apercebido.

— Em vão, meu bem, pretendes fugir-me. Antes que o diabo esfregasse um olho, eis-me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir embora sinão por minha livre vontade.

O sitio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não tardavam a envolver de todo a natureza.

Luizinha, lançando os olhos pela margem afóra, não viu viva alma. Teve então tamanho medo, que involuntariamente cahiu sentada aos pés do terrivel desconhecido. Lembrou-se de gritar por soccorro, mas logo viu que seria inutil esta tentativa, visto que as suas vozes se perdiriam no vasto ermo onde unicamente echoava o coaxar dos sapos e das rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos bacuráus.

— Meu Deus! exclamou ella. Não haverá um christão que me valha nesta aflição?

— Ninguem, ninguem te valerá, bonita rapariga — respondeu o desconhecido, levantando-a por um braço e como querendo arrastal-a na direcção da lingua de terreno por onde se podia ir, a pé enxuto, á margem fronteira.

— Mas, meu senhor — tornou Luizinha achando em si mesma coragem de que nunca se julgára capaz — por tudo quanto é sagrado lhe peço que me deixe ir embora. É quasi de noite, e, si me demorar mais tempo aqui, arrisco-me a encontrar algum malfeitor que me offenda no caminho.

— Queres maior malfeitor do que eu?

— Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veiu caçar por estas bandas, e, como me encontrou neste ermo, está me mettendo medo para divertir-se a minha custa. E creiu até que havia de defender-me si alguem quizesse fazer-me mal.

— Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar-me das unhas a minha formosa juruty. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por este limpo, ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e.........

— Deus me livre! exclamou Luizinha assaltada por novos terrores.

— Olhe: si vossê não quizer vir por bem, vem por mal — disse o desconhecido.

— Por mal? E onde está Deus? interrogou Luizinha, elevando todo o seu espirito aos pés daquelle que está em toda a parte para acudir aos atribulados que o invocam com sincera confiança. Nem por mal nem por bem. Eu não vou com vosmecê ainda que me custe a propria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de dentro deste mato, de cima deste céo. Elle ha de lembrar-se de mim.

Diante da firmeza na realidade admiravel, com que a fragil moça respondeu á sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente. Tornando logo em si, porém, continuou com certo disfarce de máo annuncio:

— Ora, menina, deixe-se de asneiras e vamos para diante emquanto o caso não fica mais serio. Si vossê é bonita, eu tambem não sou feio; assim, podemos ter filhos galantes como os têm os passarinhos no seio da solidão.

— Meu Deus, meu Deus, compadecei-vos de mim emquanto é tempo! exclamou ella quasi vencida do terror.

Então á luz crepuscular que enchia a planicie como uma neblina, lobrigou Luizinha um vulto que se dirigia para o lugar onde ella se achava com o malfeitor. Não foi preciso mais para que recrudescesse o seu valor que a ia desamparando.

— Cuidas que não vejo quem alli vem? perguntou o desconhecido, apontando o vulto que, como vinha pelo rasto da moça, com pouco mais estaria com elles. Eu podia agora mesmo metter-me comtigo pelo mato a dentro. Si tentasses gritar, tapava-te a bocca, e ninguem saberia o teu fim. Mas quero ficar, para, em vez de uma, levar em minha companhia duas mulheres para o mato, onde ha grande necessidade desta fazenda.

— Estou aqui, minha mãi, estou aqui — gritou Luiza quasi ebria de prazer pela sua salvação, que teve por indubitavel desde que na mulher recem-apparecida reconheceu Florinda.

O malfeitor, porém, seguro de seu poder, nem se moveu, nem se alterou siquer; e para dar testemunho irrecusavel de que não fazia caso do inesperado adjutorio, chasqueou de Florinda, por se apresentar armada com um cacete e um facão.

Querendo Luizinha correr ao encontro da viuva que, tendo ouvido as palavras da rapariga, fôra em seu soccorro com gestos e meneios de louca, o desconhecido, cujos olhos cobriram de repente com uma expressão indescriptivel a pobre victima, não lhe consentiu arredar o pé de junto de si.

— Não irás — disse rudemente, assentando a mão sobre o braço da moça com tanta força e violencia, que a ella se afigurou que elle lhe tinha dado um golpe com o couce da arma.

Florinda passava por ser a mulher mais forte de toda aquella ribeira.

Ella derrubava grossas arvores a machado, abria roçados por empreitada, cortava na mata-virgem lenha que vendia na povoação, e até tarrafeava nas lagôas como um habil pescador. Não se distinguia só nos serviços do campo, mas tambem em fazer excellentes tapiocas e optimo arroz doce que eram as delicias dos matutos e sertanejos nas feiras.

Era curibóca, reforçada, não feia e de boa estatura. Acreditava na existencia do diabo, no inferno e nas penas eternas como ainda hoje acredita a gente do campo e uma grande parte dos habitantes das cidades; mas em compensação tinha uma fé viva e fervorosa em Deus, e era de costumes irreprehensiveis, fé e costumes que desgraçadamente faltam a muitos dos que têm hoje aquella primeira crença.

Tendo ficado viuva, sem filhos, na flôr dos annos, não se quiz casar segunda vez, e nunca ninguem achou motivo de pôr em duvida a sua honestidade. A Luizinha, a quem pouco depois de ter casado, tomou sob sua protecção, como já referimos, consagrava ella todos os seus affectos, e nella fazia consistir o seu orgulho, o seu prazer e a sua felicidade.

Não sendo de meias-medidas quando se julgava offendida, Florinda botou-se com todo o impeto, que trazia, ao desconhecido, o qual, sem soltar Luizinha, que se torcia ao aperto da mão de ferro que a segurava, rebateu o golpe do facão de Florinda com o cano do bacamarte. Com o choque o facão partiu-se, e a folha inteira foi cahir dentro no poço, ficando na mão da curibóca o cabo imprestavel da infame arma.

Florinda era prudente. Tanto que se viu desarmada, sobresteve, dominou a sua justa indignação, e, com a voz masculina que lhe déra a natureza, assim fallou ao malfeitor:

— Que quér vosmecê fazer com minha filha?

— Quero leval-a comigo para meu divertimento. Si tens força para impedires o meu intento, é agora a occasião.

Ouvindo estas acerbas expressões, Florinda, que com a vista medira de cima a baixo o seu adversario, metteu-lhe o cacete com todo o animo que lhe dava sua vida sem mancha, e a justa defeza da filha, seu unico thesouro, de todos acatado e querido. No mesmo instante o ar sibilou, e ouviu-se o som de uma pancada contra um corpo sonoro. Um grito, antes urro medonho, echoou pela vasta solidão, e uma massa, que se parecia, na fórma e no peso, com um tronco de angico annoso, tombou sobre a areia. O desconhecido acabava de obrar uma acção vil. Com a cronha do bacamarte tirara os sentidos áquella digna mulher, que o encarára sem medo.

Vendo sua mãi cahir desfallecida, Luizinha quiz correr em seu amparo, mas não lh’o permittiu a mão do malfeitor que a puxou para traz com força herculea.

— Ah! não conheceste o Cabelleira, cascavel? acrescentou elle com os olhos fitos em Florinda. Vêm metter-se na bocca da onça, e depois dizem que a onça é cruel.

Aos ouvidos de Luizinha aquelle nome passou como uma chamma electrica, que lhe deu forças para volver á vida.

— Cabelleira! repetiu ella.

Só então viu os longos cabellos que cahiam em ondas por debaixo das abas do chapeu de palha sobre os hombros do assasino.

— De que te admiras? Não sabes que o Cabelleira está em toda a parte onde não o esperam? Vem comigo.

E sem mais contemplação, o matador arrastou a menina contra a vontade, a resistencia, os sobrehumanos esforços que esta lhe oppunha, por junto do corpo de Florinda, e seguiu em busca da margem fronteira, onde a noite era já fechada, e o aspecto do sitio pavoroso.

— Agora te conheço, José malvado — disse a moça. Mata-me tambem, já que mataste minha mãi que nunca te offendeu.

— Ah, conheceste a final o Cabelleira?

— Tanto me conhecesses tu, desgraçado!

— Que queres dizer com estas palavras? perguntou o bandido.

— Olha-me bem. Até de Luiza te esqueceste! Assassino, eu te perdôo a morte: mata-me.

Tinham chegado á beira do capão de mato. O Cabelleira estacou. O que acabava de ouvir tel-o-hia prostrado mais depressa do que um golpe igual ao que descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes de Florinda, si no mesmo instante não lhe houvesse chegado aos ouvidos um assobio agudo, signal de extrema afflição no couto proximo.

— Ah era vossê? Perdôe-me, Luizinha. Eu não a esqueci. Perdôe-me. Eu não sabia que era vossê — disse então, com brandura, soltando a moça sem mais demora.

VI


Não se póde descrever o abalo que experimentou Cabelleira ao reconher Luiza, menina até aquelle momento em sua imaginação, moça de então por diante aos seus olhos deslumbrados do explendor daquella belleza correcta, natural, irritada e crente.

Pela primeira vez depois de tantos annos, o musculo endurecido que elle trazia no peito dobrou-se a uma impressão profunda, a uma força irresistivel e fatal, como a cera se dobra ao calor do lume.

Á medida que se internava na espessura ia cahindo em si, e mais difficil de transpor se lhe ia tornando a via dolorosa por onde nesse momento arrastava os pés menos pesados que sua cabeça cheia de encontrados pensamentos.

Pouco a pouco o passado se lhe foi desenhando na tela, ao principio escura, depois diaphana e resplandecente da imaginação vivamente excitada pela violenta commoção. Por ultimo todas as scenas infantis, tão afastadas, que poderiam considerar-se sinão de todo desvanecidas, ao menos vagas, confusas e de impossivel resurreição, reappareceram nos seus olhos com o vigor de outr’ora sinão mais vivas e animadas que d’antes.

Luiza representou-se-lhe sorrindo e brincando nas campinas, por junto dos assudes, á sombra dos joazeiros. Era a mesma menina meiga e amavel, com quem elle folgára á beira dos poços e vallados, e para quem tantas vezes apanhara camarões nas enxurradas.

O bandido lembrou-se de que uma quadra tinha havido em sua vida, na qual elle só cuidava em armar arapucas por entre os leirões do roçado para pegar jurutis, em abrir fojos debaixo das moutas, ou armar quixós e mondés na capoeira com o fim de apanhar preás para a menina.

A conhecida scena do coelho pendurado da forca de ramos, obra de Joaquim, se lhe estampou novamente, por natural associação de idéas, na tela do pensamento, e veiu acrescentar-lhe o vexame que lhe opprimia o coração.

Viu depois Luiza encostada na cerca do quintal, ao pé de uma goiabeira, os cabellos soltos, os pésinhos descalços.

Esta ultima visão recordava-lhe a scena da despedida que o leitor conhece. José estava tão vivamente excitado, que lhe pareceu ouvir as vozes, as queixas, as rogativas, os prantos de Joanna, e as recusas, os remoques, as asperezas, o desprezo que para ella tivera Joaquim na manhã fatal, em que o pequeno fôra arrancado dos braços de sua mãi quasi hallucinada pela dôr da separação. Pareceu-lhe ouvir as palavras de Luiza: « Quero-lhe muito bem, mas não gosto quando vossê judia com os passarinhos, e tenho medo de sua faca. » Pareceu-lhe escutar distinctamente o som das suas proprias expressões: « Quando eu chegar de volta, não maltratarei mais os animaes. »

E a menina a quem tanto amára, a quem nunca esquecêra, e cuja imagem indecisa e vaporosa os olhos do seu pensamento tinham por mais de uma vez sorprendido junto de si testemunhando a perpetração de algum crime, essa menina crescêra, puzera-se moça, chegára á idade em que todos têm no criterio natural um côrpo de leis e na consciencia um juiz para julgar as suas e as alheias acções.

— Que juizo ficaria fazendo de mim Luizinha? perguntou de si para si o Cabelleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéas. Ah! que póde ella pensar de mim sinão que sou um assassino?!

Luiza tinha-o, de feito, nomeado por esta palavra, havia poucos instantes, entre as lagrimas que lhe arrancára o desespero. Era pois certo, e o bandido bem o comprehendia, que o abysmo que já na meninice de ambos os separava, longe de se ter arrazado, se tornára mais fundo com o correr dos annos. Agora elle não judiava só com os animaes como em outro tempo; elle saqueava povoações e matava gente; e desta verdade era irrecusavel prova o que acabára de praticar com Florinda. Si até aquelle momento Luizinha lhe votára affeição ou se condoêra da sua pouca sorte, era natural suppôr que estes sentimentos se tivessem modificado, sinão de todo extinguido, depois do ultimo acontecimento. Á affeição deveria ter succedido o desprezo, á pena o odio.

Não eram outras as idéas que tumultuavam na cabeça de Cabelleira. Estas idéas produziram no seu animo tão profunda impressão que elle sentiu lagrimas nos olhos, elle o grande assassino que sempre se mostrára insensivel ao longo pranto que por toda a parte fazia correr.

Sem se poder governar, achou-se de repente voltado para o rio. Seus pés, primeiro que sua vontade, o queriam guiar de novo ao lugar onde tinha achado motivos para tamanha transformação. Eis que novo assobio, precedido da detonação de alguns tiros, rompeu os ares e veiu divertil-o destas preoccupações. O escondrijo, não havia que duvidar, precisava de seu soccorro. Então uma nuvem de sangue envolveu a vista do infeliz mancebo. O passado cahiu-lhe novamente em pedaços aos pés. O espirito de vingança fustigou-o com vehemencia no coração, theatro de encontradas e profundas paixões. Cabelleira volveu a ser outra vez féra, e rapido deslisou-se como uma cobra por entre as arvores e por debaixo da folhagem.

Com a mata que dava asylo aos malfeitores confinavam as terras onde Liberato, irmão de Gabriel, tinha uma engenhóca.

Ao principio Liberato viveu muito satisfeito em suas terras. Tendo-se, porém, annos depois formado o couto alli junto, foi-se elle desgostando a ponto, que só por não ter outro remedio continuou a morar nellas.

As terras eram muito ferteis, e a sua situação não podia ser melhor do que era; mas, pela pessima vizinhança, estavam, como nenhumas, expostas em todos os sentidos a serem usufruidas, como eram constantemente, pelos malfeitores, o que as havia inteiramente depreciado.

Na realidade quem menos se gozava das suas plantações era Liberato, dono dellas. A macaxeira mais enxuta, a melancia mais madura, o melhor milho verde, o feijão de melhor qualidade eram para a bocca ou antes, ao dizer popular, para o papo dos pesados vizinhos. A gallinha gorda anoitecia no poleiro mas não amanhecia no terreiro, não porque a raposa a tivesse pegado, mas porque os raposos a tinham tirado para a sua panella, que estava quasi sempre fervendo dentro da mata virgem.

A vacca leiteira, o quartáu carnudo desapparecia do pasto quando menos pensava o crioulo, que os ia recomprar em segunda mão, si, como quasi sempre acontecia, os animaes furtados eram da sua particular estimação; não escapavam da rapacidade dos malfeitores as proprias bêstas do serviço da engenhoca. Dentro dos cannaviaes appareciam vastas camarinhas, obra dos ladrões; as cannas passavam para a mata aos feixes. Emfim era uma calamidade aquella gente, era uma desgraça para o Liberato, mais do que para nenhum outro, aquella vizinhança.

Liberato propôz a venda das terras a mais de um morador do lugar, mas todos se escusaram a compral-as. De que valiam ellas em realidade, com serem tão boas, estando sujeitas, como estavam, áquella omnimoda servidão? Não tendo para onde ir, nem outro algum recurso, resignou-se Liberato á sua sorte, e botou para Deus, juiz supremo, que dá provimento a todos os recursos interpostos com justo fundamento. Era de indole pacifico, tinha mulher e filhos, não queria rixas com ninguem, e muito menos as queria com matadores de profissão.

Quando lhe aconselhavam em familia, a mulher, ou os filhos, para que reagisse contra os ladrões, elle respondia sempre com estas palavras, ou com outras equivalentes:

— Deus me livre. Si os brancos e o rei não podem com elles, eu, que sou negro, é que hei de poder? Vamos passando assim mesmo conforme Deus nos ajudar. Póde-se dizer que vivo trabalhando para elles. Paciencia! Um dia isto ha de ter fim, ou com a vida, ou com a morte. Será quando Deus quizer.

Liberato não procedia deste modo por fraqueza, mas por bonissimo discernimento. Elle era até valente por origem. Vinha a ser neto ou bisneto de Henrique Dias, com cuja fama se gloriava. Do illustre guerreiro lhe vinham por successão as terras que possuia nas proximidades do Monte-das-tabocas, onde o negro heroe conquistára brilho inescurecivel para seu nome que ficou sendo uma das primeiras glorias da patria. Mas bem estava vendo que não podia avantajar-se a quadrilhas de ladrões e assassinos affeitos á pratica de toda a sorte de depredações.

Havia já muitos annos que elle vivia sem ter neste assumpto outras idéas. Pouco a pouco se habituára a repartir o seu pelos ladrões. Esta partilha elle a considerava tão forçada, tão fatal, que, sempre que abria um novo roçado, ou encoivarava terras para algum novo partido de cannas, dizia, entre gracejo e resignação:

— É preciso fazer mais acrescentado para que os meus vizinhos não levem tudo, e eu não venha a ficar sem ter com que remir as minhas necessidades.

Estava Liberato um dia concertando uns cóvos para os metter em um poço onde os camarões saltavam em cardumes, quando, banhada em pranto, carpindo a sua desgraça lhe entrou pela porta a mulher de Gabriel.

— Mataram meu marido, Liberato. Estou viuva, e vossê já não tem seu irmão.

— Quem lhe contou isso, Anninha? perguntou o negro quasi esmagado da dor que lhe trouxe a repentina e funebre nova. Não é possivel. Ha de ser mentira. Quem havia de matar Gabriel, que nunca se importou com os outros?

— Desgraçadamente não é mentira, não. Eu soube de tudo. Foi o Cabelleira quem o matou. E o malvado ahi vem com o pai, roubando e esfaqueando a quem encontram. Previna-se, Liberato, que elles já devem estar na mata. Ai de mim! Que desgraça, meu Deus! Que será de mim sem Gabriel que era tão bom marido?!

— E onde estou eu, Anninha? Não chore. Eu ainda não creiu neste conto. Mas si succeder a desgraça que vossê diz, nem por isso deverá desesperar, que os homens ainda não se acabaram na terra.

Seguiu-se um longo pranto na casa do crioulo. Ao carpir de Anninha vieram juntar-se as lamentações de Rosalina, mulher de Liberato e irmã da viuva.

Liberato passou tres noites sem pregar olhos, pensando comsigo só. A dôr acerba a que elle, sem dar mostras, talvez por prudencia, mal tinha podido resistir com sobrehumano esforço, veiu despertar os longos resentimentos e antigos desgostos que jazíam como arrefecidos no fundo do seu coração. Aquelles que quotidianamente o despojavam dos productos do seu trabalho e da sua economia, tinham-lhe roubado uma vida preciosa. Quem lhe podia assegurar que elles não viessem mais tarde a tomar-lhe a mulher, a tirar-lhe a filha, a arrancar-lhe a propria vida si elle se oppuzesse á sua vontade criminosa?

Liberato reflectiu maduramente sobre este grande assumpto, e ao cabo de tres dias tomou a resolução que lhe pareceu melhor. Não se contava na distancia de tres, ou quatro, ou dez, ou vinte leguas da povoação um só proprietario, lavrador, foreiro, almocreve ou morador que não tivesse queixas dos malfeitores, especialmente do Cabelleira que a todos excedia na petulancia e fereza. Aquelles a quem faltavam motivos de offensa pessoal, tinham razão de sobra para quererem a dissolução do couto nas offensas feitas pelos facinorosos aos parentes e amigos. Só uma população cansada de lutas sanguinolentas, e um governo que cuidava menos de proteger efficazmente a propriedade e a vida na colonia do que de adquirir grossas rendas para a metropole, e riquezas para si proprio, poderiam soffrer bandos de sicarios que, assim fortificados ao pé das familias, roubavam impunemente bens, honra e vida.

Liberato entendeu-se com tres ou quatro dos vizinhos mais proximos, e depois de lhes haver dado parte do golpe de que fôra victima na pessoa de seu irmão, propoz-lhes colligarem todas suas forças para tentarem a expulsão dos malfeitores. Não obstante haver por essa occasião recordado os damnos irreparaveis que a cada um desses vizinhos tinham elles occasionado, não houve um só que estivesse pela proposta do negro, tal era o terror de que todos se achavam penetrados.

Nenhum queria arriscar-se a pagar com a vida semelhante ousadia aconselhada aliás pelo instincto da propria conservação.

Liberato voltou á casa triste e desanimado, mas não dissuadido de tentar o assalto, unico meio que se lhe offerecia de vingar-se dos assassinos de Gabriel, e libertar-se do violento imposto que sobre sua fraca fortuna, já muito depauperada, os malvados faziam pesar sem tregoas nem piedade.

Concertou seu plano comsigo mesmo debaixo de rigoroso sigillo. Na tarde seguinte com o pretexto de tirar uma abelha e encovar tatús, encaminhou-se para a mata, acompanhado de seus dous filhos Ricardo e Sebastião, e de seu genro Vicente, todos apercebidos com espingardas, facões e chuços.

Conhecia algumas das verêdas que levavam ao covil. Acostumados a verem nelle uma victima paciente de que mais tinham que tirar do que temer, não cuidaram os malfeitores em occultar-lhe essas verêdas. Liberato e os seus embocaram por uma dellas sem hesitações nem temores, perfeitamente senhores de si e conhecedores do terreno onde pisavam.

Antes de chegarem ao rancho foram presentidos. A verêda, antes picada aberta a machado, era estreita, e passava por um embastido de arvores colossaes, que formavam natural estacada, impossivel de romper.

Liberato sabia o perigo a que se expunha com este passo. Estava, porém, disposto a dar aos malvados uma lição de mestre, ainda que lhe custasse a propria vida, desmoralisando, quando outro successo não pudesse obter, o fatal valhacouto.

Ainda bem não tinham chegado ao ponto em que a picada se bifurcava, quando ouviram um assobio que repercutiu com estranho som na profunda selva.

— Ah! disse Liberato aos seus — perdemos a diligencia. Estão prevenidos e esperam por nós.

Elle não se enganava. Um dos moradores a quem convidára para o assalto, pondo-se em secreta intelligencia com um dos criminosos, delatára por mêdo a intenção de Liberato. Dupla cobardia, tanto mais digna de ser execrada quanto foi parte para que viessem a dar-se lamentaveis scenas!

Posto que logo conhecesse que não havia salvação possivel para nenhum delles, Liberato, não querendo dar o braço a torcer, proseguiu com firmeza em sua marcha como si nada houvesse.

Pouco adiante, a vereda estava completamente tomada por grossos troncos ligados ás arvores parallelas por fortissimos cipós.

— Estamos encurralados — disse elle com serenidade. Melhor um pouco; havemos de bater-nos a faca e a chuço. Voltemos, já que não podemos por aqui avançar. Cada qual trate de matar para não morrer.

— Não podemos abrir caminho atravez destes páos? perguntou Sebastião.

— De que modo? É impossivel — respondeu Liberato.

— Só si nós trepassemos, e fossemos saltando de galho em galho até deixarmos atraz de nós a estacada — lembrou Ricardo.

— Elles nos deixariam fazer isto? observou Vicente.

Mal tinha acabado estas palavras quando uma descarga da trincheira, deitando por terra o genro de Liberato, veiu annunciar-lhes que para elles tudo estava acabado.

Afastarem-se da trincheira para ficarem ao abrigo de seus traiçoeiros tiros foi a primeira cousa em que todos entenderam.

— Cobardes! exclamou Liberato com raiva concentrada. Têm gente como farinha, e encurralam quatro homens que elles não se animam a bater em campo aberto. Onde está a valentia destes ladrões que, não satisfeitos com o que me furtam, mataram meu irmão para lhe roubarem seu unico bem?

Depois de se haverem alongado alguns passos mais da trincheira onde reinou logo profundo silencio, perceberam que os inimigos vinham a seu encontro para lhes embargar a sahida. Achavam-se deste modo os assaltantes entre a espada e a parede.

Era medonha a escuridão dentro da mata.

— Facas em punho, e avancemos — gritou não obstante Liberato aos filhos, certissimo de que poucos instantes de vida restavam a todos elles.

Para dar o exemplo precipitou-se, como um raio, contra a mó de malfeitores que difficilmente lobrigou a pouca distancia diante de si. Sebastião e Ricardo praticaram o mesmo, e dentro em pouco as armas inimigas cruzaram-se com furia tal de parte a parte, que dellas saltavam chispas, e o som dos seus embates ia perder-se ao longe no seio da vasta selva.

Depois de alguns minutos que decorreram em incessante lutar, terceiro assobio sibilou por entre a folhagem. A este signal cahiu de cima de uma das arvores mais proximas a luz sinistra de dous fachos cujo clarão encheu o estreito passo.

Mettia horror o theatro da luta. Dos assaltantes só restava o Liberato que se batia, como um bravo que era, com o proprio Cabelleira; dos salteadores muitos faziam companhia com seus cadaveres aos de Ricardo, de Sebastião e de Vicente.

— Eu logo vi que tinha pela frente o ingrato Cabelleira — disse Liberato, que só a seu grande animo devia estar ainda de pé. Já que mataste meu irmão, miseravel, pódes tambem tirar-me a vida agora; mas fica sabendo que não lograrias o teu intento si não fosse o adjutorio de teus cobardes companheiros.

Á palavra ingrato José sentiu surgir-lhe espontaneo remorso na consciencia, e instinctivamente recolheu o impeto com que ia dar em Liberato o golpe de honra.

— Não fui eu que matei Gabriel — disse sem se sentir, sem o querer o malfeitor.

— Fui eu, fui eu — trovejou Joaquim com furia aterradora. E que tem isso? Pois ainda estás dando satisfações a este negro, Zé Gomes?

Ouviu-se então o estalo de galhos e cipós que se romperam com violencia inesperada para deixarem passar um corpo agil, que foi cahir de um salto a frente de Liberato. Esse corpo, ou antes essa onça petulante, irritada e cruel, não era sinão o pai de Cabelleira.

— Rende-te, negro — gritou Joaquim ao infeliz, descarregando-lhe sobre a cabeça, já em differentes partes mutilada, o facão que trazia na mão esquerda, emquanto com a faca presa na direita, aparava o golpe que vibrara como ultimo arranco a sua victima.

Liberato, de feito, não pôde mais resistir. Tinha o corpo todo crivado de facadas. Cambaleou e cahiu.

Joaquim atirando-se ao desgraçado, embebeu-lhe no peito, sem hesitar, antes com a firmeza de cynico sicario, a folha de sua faca, que lhe atravessou o coração.

— Por este guariba fico eu — disse. Não ha de vir mais perturbar o nosso socego.

Os cadaveres dos assaltantes foram examinados entre risos, insultos e galhofas impias, á luz dos fachos sinistros. Completou-se por este modo a tragedia.

VII


A victoria, não obstante o lugar e o numero que deram superioridade aos fortíficados, custou-lhes consíderaveis damnos. Com outra investida da mesma força que a primeira, ou ainda menor, o couto arriscava-se a ser dissolvido. Os malfeitores não eram muito numerosos e qualquer perda, por pequena que fosse, os expunha a desastres certos e quiçá fataes. Além disso, achavam-se divididos por differentes pontos d’onde protegiam as correrias emprehendidas pelos mais destemidos. A organização protectiva era tal, que o mameluco e o filho, d’entre todos os mais temerarios e valorosos, percorriam, não já sómente a provincia d’onde eram naturaes, mas Parahyba e Rio-grande-do-norte em todas as direcções sem maior perigo, porque, quando as justiças os perseguiam, elles achavam sempre perto de si um refugio amigo onde se acolhiam, e si ahi eram buscados, como muitas vezes aconteceu, resistiam, ajudados por seus iguaes, com tanta energia e denodo que sempre a victoria ficava de seu lado.

Desta vez porém não lhes fôra muito favoravel o lance.

O Cabelleira, cuja bravura estava acima de todo o encarecimento, e seu pai que a nenhum cedia o lugar na crueldade, tinham ficado cobertos de golpes, alguns delles mortaes. Maracajá, cabra de más entranhas e por isso de creditos colossaes entre elles, ficára com uma mão horrivelmente destruida, e o hombro esquerdo mutilado. Ventania, outro matador de fama, apresentava no rosto e peito feridas extensas e profundas. Jurema, Jacarandá, Gavião e dous negros fugidos tinham morrido nas pontas das facas dos assaltantes.

Á vista de tudo isso, tanto que considerou restabelecida a ordem na lôbrega estancia, Joaquim reuniu o restante das suas forças, e lhes fallou nestes termos:

— A luta foi feia, camaradas, e devemos dar um exemplo de estrondo para que ella não venha a repetir-se tão cêdo. É certo que dos cabras que se atreveram a vir bater-nos, não voltou um só que fôsse contar a sua derrota, mas o abalo que padecemos foi grande, e, si a justiça vier por ahi nestes dias, correremos grande perigo, só não si nos ausentarmos. Entendo que devemos obrar um feito que a todos dê que fallar, que aterre a população e o capitão-mór, que faça crer que nunca estivemos tão fortes nem mais dispostos a sustentar o nosso posto.

— Estou prompto para ir pôr fôgo agora mesmo na povoação — disse Manoel-corisco, calcêta evadido da cadeia do Recife por occasião do segundo arrombamento praticado nos ultimos tempos da administração do governador Henrique Luiz.

Este sentenciado tinha tomado parte, aos dezeseis annos, no levante dos soldados que se verificou quando governava Pernambuco d. Manoel Rolim de Moura. Do dito levante existe ainda viva lembrança na provincia, pelo grande saque a que procederam, não só na villa do Recife, mas tambem na rica e populosa cidade de Olinda, a perola de Coelho. Os sessenta eseis annos, que contava, ainda lhe permittiam forças e animo para attentar contra os bens e a vida com tanto maior firmeza quanto era fragueiro no crime por uma pratica de longos annos.

— Em vez do incendio, o saque — acudiu Miguel-mulatinho.

— Para tanto não temos forças, mas si o querem, encontram-me prompto, como sempre — observou Manoel-corisco.

— A minha opinião é que apanhemos os cavallos e gado que ainda existem por estas beiradas. Elles devem render na feira dinheiro fresco para irmos resistindo á secca. Feito isto, levantemos o acampamento por algum tempo — tornou Miguel.

— Que é que resta por aqui? perguntou Corisco. Na fazenda de Liberato poucas rezes se contam. Antes de morrer, o ladrão do negro já estava limpo; só tinha em casa os cachorros, os gatos, a mulher e a filha.

— Boa idéa, boa idéa — gritou Joaquim, cujos olhos nadavam em ferocidade. Terão vossês coragem para darem conta da empreza?

— Diga lá, Joaquim. Vossê não está com patativas choronas, vossê está com carcarás que tem boa vista, boas azas e melhores unhas — acudiu Miguel-mulatinho, librando-se nos pés para imitar o passaro que quer voar.

— Vamos lá ver o que propõe vossê — acrescentou Manoel-corisco.

— Proponho o roubo das melhores raparigas da povoação. Isto, sim, ha de dar a todos a medida da nossa audacia, e por todos será considerado uma prova de que estamos fortes como nunca estivemos.

— Sim, senhor, muito bem lembrado — disse o Mulatinho, melhor não podia ser, mas a cousa é séria, Joaquim.

— Ora! Tens medo?

— Medo! O medo comi eu com as papas que minha mãi me deu quando era pequenino — retrucou o malfeitor como por demais.

— Dito e feito, Joaquim. Quando será isso? Hoje? Amanhã? perguntou José-trovão, negro hediondo, cuja cara apresentava profundas cicatrizes e cujos olhos, vermelhos como tomates, padeciam de estrabismo divergente.

— Hoje não. Amanhã, ou depois, conforme entender melhor Zé Gomes — respondeu Joaquim.

E logo acrescentou:

— Mas onde se metteu Zé Gomes que o não vejo aqui?

O lugar onde se achavam reunidos os bandidos era um dos pontos mais centraes da mata.

Tinham elles assentado o seu arraial ao pé de um olho-d’agua que não seccava ainda no rigor do verão. Este arraial compunha-se de meia duzia de ranchos abertos por todos os lados e unicamente cobertos de palhas de pindoba. Dos caibros pendiam surrões, vestias e chapeus de couro. Algumas rêdes estavam armadas dentro das palhoças. Á noite alumiavam-se ordinariamente com fogueiras; tinham porém sempre em quantidade fachos de que se serviam nas suas idas e voltas por dentro da mata, quando fazia escuro. Tudo annunciava que o ponto era sempre provisorio, e podia ser deixado de um momento para outro sem prejuizo nem saudades.

O Cabelleira estava longe delles naquelle instante.

Apenas viu passada a borrasca, reappareceu-lhe a imagem de Luiza em quem elle via dous typpos cada qual mais seductor — em um a menina de oito annos com o rosto banhado da expressão da meninice, que é agradavel até aos olhos dos que tem o coração mais endurecido do mundo; no outro a moça ingenua, corajosa, banhada em pranto, de rojo a seus pés, pedindo-lhe misericordia, insultando-o, amaldiçoando-o, bella, tanto mais bella quanto mais augmentavam sua dôr e sua indignação, ambas tão profundas como era o affecto que ella votava ao bandido.

Este não tinha tido até aquelle momento predilecção amorosa para alguma outra mulher.

Sua vida nomada, arriscada, cheia de sobresaltos, ensopada em sangue só lhe tinha permittido querer bem á imagem da menina que ainda na vespera se debuxava em seu espirito como um vago e pallido reflexo do passado. Inesperadamente porém, este reflexo se illumina com todos os brilhos do mais primoroso iris. A reminiscencia desmaiada, quasi desapparecida, tomou corpo, fórma, côr, contornos suaves, olhos matadores, cabellos escuros, voz harmoniosa, energico sentimento, e com soluços o commove, e com exprobrações o faz conhecer e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração, que se havia convertido em fóco de paixões sanguinarias, era agora ninho de doce e indefinivel sentimento.

O bandido estava experimentando, não a lascivia bruta que proporciona rapidos prazeres, delle conhecidos como a aguardente que bebia nos dias quentes e nas noites frias, mas uma fatalidade benevola, branda e terna que o impellia para a moça, primeiro pelo espirito, e só depois pela beileza da fórma que o attrahia; e essa fatalidade era tão poderosa que elle não achava forças em si para lhe resistir apezar do seu querer.

Chegando á beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da visão que ahi deixára, achou em seu lugar a solidão infinita, a solidão só.

Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava-se das margens, com os ruidos do deserto, fresca e grata emanação, que teve para o seu peito abrazado o effeito do balsamo fragrante.

Pareceu-lhe que debaixo da folhagem do joazeiro onde, segundo o seu pedido, esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava brandamente.

— Luizinha? Luizinha? chamou elle.

Ilusão! Estava alli o vacuo mais cruel do que um raio que o houvesse fulminado. A sombra da arvore movida pela brisa nocturna representava a fórma graciosa que o bandido acreditou ser Luiza.

— Foi-se embora! disse o Cabelleira esmagado.

Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planicie que se estendia diante de si. Ninguem! Nem siquer um vulto que por um instante ao menos lhe désse o prazer de uma nova esperança, fallaz embora como a que se despedaçára a seus pés naquelle momento. Só o deserto lhe appareceu, menos vago, mais real com sua taciturna immensidade, só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas, e das aguas mortas.

Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro na mata. Lembrou-se de banhar as feridas como costumava depois de identicos desastres. Mas a agua fresca que tantas vezes lhe havia servido de balsamo refrigerante, produziu-lhe agora differente effeito. A vista do bandido foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou-lhe mais do que o corpo, e elle cahiu sem sentidos á beira do poço.

Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu deliquio, a aurora vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se confunde no infinito. A viração matutina transmittiu-lhe aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o echo das lôas cantadas pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes nos póços como de costume.

Levantou-se ainda aturdido. Seus olhares foram logo cahir sobre o lugar onde na tarde anterior elle havia deitado Florinda em terra com o couce do bacamarte. Não se achava, porém, alli o cadaver da curibóca. O bandido deu então o andar para a estancia, com o pensamento concentrado em Luiza que, ten- do-se visto livre de suas mãos, corrêra em soccorro de Florinda.

— Minha mãi? minha mãi? chamára ella, abraçando o corpo da victima, e chorando como criança.

No seu prantear e no seu carpir, Luiza tivera todavia espirito para lembrar-se das ultimas palavras do Cabelleira. « Com pouco elle estará aqui outra vez, pensou ella. Deus me livre de que elle venha ainda encontrar-me neste ermo. Que seria de mim si tal acontecesse? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãi só e desamparado?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei até que amanheça. Ha de apparecer alguem que me ajude a leval-o para casa. »

E afflicta, e consternada, Luiza olhára ao longo da margem a vêr si descobria quem a soccorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram-se sobre a areia, á beira dos poços. Ella sentira então voltar-lhe o animo, fallára, perguntára quem estava alli, pedira que a fossem amparar em tamanha afflicção, mas ninguem a ouvira, ninguem acudira ao seu chamamento. Tudo fora illusão. Esses vultos foram as sombras das arvores movidas pelo vento, as quaes enganaram depois o bandido como vimos.

A noite, porém, corria com rapidez. A lua que descia a occultar-se por detraz da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza. O silencio tornava-se mais profundo, tornava-se absoluto. O sitio, de si ermo, estava agora lugubre por se haver convertido em mansão de morte e luto.

Luiza lembrára-se de ir chamar alguem, visto que ninguem lhe apparecia para a tirar daquelle afflictivo transe. Mas a casa que ficava mais proxima era a de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de meio quarto de legua do lugar. Além disso, ella não queria deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos, quanto mais por horas.

De uma vez corrêra ao longo da margem a ver si o céo lhe tinha enviado algum protector. Mas logo voltára, lembrando-se de que o cadaver podia, de um instante para outro, ser offendido por algum animal.

— Não, não, minha mãi! exclamara ella. Não te deixarei, haja o que houver.

Então ella vira que o cadaver erguêra os braços para conchegal-a, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fôra como illusão dos olhos della.

— Abraça-me, minha mãi, abraça-me. Leva-me comtigo que eu, sem ti, sou o ente mais desgraçado do mundo.

Mas, sentindo a pressão physica e irrecusaveldos braços que tinha por mortos, recuou pera, á pallida claridade do escasso luar, certificar-se da verdade.

— Não fujas, Luiza. Vem. Não estou morta. Ajuda-me, que me levantarei.

Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquella voz branda e benevola que ella estava acostumada a escutar desde a infancia como o echo de maternal providencia.

— Minha mãi! Vive ainda, minha querida mãizinha? perguntára Luiza, chorando e sorrindo alternativamente, beijando, como louca, sem ordem nem moderação, aquelle cadaver que se tornára vivente, aquella vida que resuscitára no seio da natureza onde lhe parecêra que se havia afundado para nunca mais voltar como se afundam as borboletas que as tempestades arrojam aos charcos e marneis.

— Vê si pódes levantar-me, Luizinha.

— Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Elles não tardam por ahi, creio eu. Vamos, já minha mãi. Está-me parecendo que dalli, daquelle mato traiçoeiro, um homem nos acommette, ou um tiro nos vem ferir.

Cambaleante e trôpega, Florinda déra o andar arrimando-se no hombro da filha.

— Que tens, Luizinha, que olhas tão horrorizada para aquella banda? Fez-te algum damno o assassino?

— Não, nada me fez. Mas eu tenho mêdo destes lugares. Nunca mais virei buscar agua aqui.

— Conta-me tudo, Luizinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era elle? Não o conheceste? Seria o Cabelleira?

— Não sei, não sei, minha mãi. Estava já tão escuro quando elle appareceu... Sei porém, que elle se compadeceu de mim.

— Estás dizendo a verdade, Luizinha?

— Sim, minha mãi; elle não me offendeu. Dando mostras de estar arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais.

— Malvado! disse Florinda. Que pancada me deu elle! Põe a mão em minha fonte. Vê como fiquei. Virgem santissima! Não sei como não me saltaram os miólos. Mas... ampara-me bem, que uma nova perturbação me vem tirar os sentidos. Ampara-me, sinão caio. Não posso andar mais.

— Temos de feito andado muito, minha mãi, e deve estar cansada.

Luiza, novamente afflicta, volvendo os olhos em torno de si, viu, a poucas braças, uma sombra immovel que brilhou aos seus olhos como um astro de protecção e conforto.

Estavam salvas. Era a casa de Liberato.

 

VIII


A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em linha recta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras pertencentes á engenhoca. Era fraca de construcção, mas podia considerar-se uma verdadeira casa de campo por sua bonita apparencia, pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio peitoril de madeira que não contribuia pouco para sua rustica elegancia.

Á pequena distancia tinham sido edificadas tres casas menores e menos vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, e nas outras duas os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via-se outra casinha que na fórma arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, a sombra do irmão, ahi vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.

Sem ter escravos nem dispôr de grandes meios pecuniarios, Liberato, com o auxilio de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava cannas, fazia roçados e vasantes, e, no tempo proprio, fabricava assucar e rapaduras, distillava aguardente, e desmanchava mandioca que lhes dava farinha para todo o anno.

Viviam em perfeito accôrdo aquelle pai, aquelle irmão, aquelles filhos e aquelle genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxilio mutuo, reciproco respeito e commum felicidade.

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada á mata. Liberato, para maior segurança dos seus designios, havia recommendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham elles por costume caçar pacas e tatús uma vez por outra, quando fazia luar e o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores. Quando, porém, se soube do acontecido por bocca de Luiza, e pelo vestigio do atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava dizendo d’onde havia procedido, a inquietação e o susto vieram tomar o lugar ao somno e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes da engenhoca.

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ella despertou a natureza. Inspirando as aves, colorindo os campos, e permittindo ver no espelho sereno das aguas do Tapacurá o bello céo que nelle se reflectia com seus esplendidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao deserto o movimento e a vida que as trevas tinham occultado debaixo de seu espesso véo.

Com a tornada do dia, resurgiu em todos a confiança, só não em Luiza, que via proximo o termo da vida de sua mãi privada novamente do uso da falla por lhe haver voltado a congestão.

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo sem que os caçadores houvessem volvido á seus lares. Então a consternação tornou-se geral e verdadeiramente cruel.

As familias reuniram-se todas na casa grande para se protegerem em caso de perigo que logo tiveram por imminente.

Tres dias se passaram nessa afflicção que se não póde descrever mas que facilmente se imagina.

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir soccorro no povoado, mas a quem? O capitão-mór achava-se no Recife, e o povoado, que um seculo antes constava de uma capela dedicada a Santo-Antão, e de meia duzia de casas, pouco mais era do que isto na época em que se passou esta historia; precisava tambem de protecção.

De sua agonia a veiu tirar um caboclo velho, que morava no caminho do povoado, em terras da engenhoca, e que era o estafeta do lugar. Vivia só em uma palhoça á beira da estrada. Chamava-se Mathias mas era mais conhecido pela alcunha de Veado, a qual se originára de ser elle muito agil e andador.

Mathias, achando-se sem fumo para o cachimbo, dirigiu-se á casa grande no presupposto de encontrar ahi o Liberato que uma vez por outra lhe dava do melhor que tinha alguns pedaços para seu gasto. Só então soube do que havia, e logo se offereceu para ir dar com o crioulo a quem devia muitas obrigações, e respeito. Havendo Rosalina aceitado o offerecimento, Mathias voltou á choupana a buscar uma espingarda velha, e um minuto depois estava no rasto dos caçadores.

Antes de transpôr os limites da fazenda, viu elle para as bandas do Monte-das-tabocas um bando de urubús esvoaçando como costumam quando sentem carniça. Seria alguma rez morta o objecto da inspecção dessas aves? Talvez fosse. A secca estava fazendo no gado victimas aos centos.

O Veado porém, naturalmente suspeitoso, acreditou logo que estava alli o cadaver do Liberato ou de algum dos seus.

Para ir ter á grota sobre a qual se libravam os urubús, não era preciso entrar a mata, mas unicamente contornal-a pelo lado opposto ao rio. O terreno apresentava desse lado um vasto taboleiro, e depois ia gradualmente alteando até á grota, que se interpunha entre o taboleiro e a mata, formando um fosso natural que protegia o couto. Só quem tivesse grande coragem, e fosse perfeito conhecedor dos accidentes do sólo, se animaria a arriscar o pé no profundo despenhadeiro.

Mathias em pouco tempo atravessou toda a planicie e chegou á borda do abysmo. Cheiro de carnes putrefactas feriu-lhe logo o olfacto agudissimo que sentia, á distancia, o coaty, o veado, a anta, e até a cobra.

De cima nada pôde ver, porque do fundo do valle e das encostas da montanha se levantava uma vegetação secular cuja folhagem basta e enredada parecia destinada a conservar perpetuamente occulta ás vistas do homem a escusa região. O cheiro da carne corrupta porém foi um indicio, um raio de luz, para o indio que, havendo tomado a peito descobrir a verdade, estava no proposito de não hesitar, para o conseguir, diante da perda da propria vida.

A seus pés mostrava-se um sulco deixado no terreno pelas aguas que, descendo ao longo do estreito espinhaço, aqui se escoavam para o taboleiro, alli para dentro do precipicio. Por elle se encaminhou Mathias, arrimando-se na espingarda, e com ella rompendo a custo os cipós que formavam diante de sua passagem uma rede quasi inextricavel.

Passou-se uma hora. O sol chegou ao poente. Veiu o lusco-fusco, e com elle augmentaram as tristezas, os medos e as agonias das mulheres recolhidas na casa grande.

Rosalina, tendo posto todos os cães da banda de fóra, e fechado todas as portas da casa, abriu o seu tosco oratorio, e convidou as outras ao terço tradiccional, agora mais do que nunca necessario para fortalecer os espiritos abatidos.

Florinda estava expirando. Ao lado della achava-se Luiza desfeita em lagrimas, e Anninha que ajudava a enferma a morrer. A porta do aposento inteiramente aberta deixava ver as outras mulheres de joelhos na sala, aos pés do oratorio, cantando as rezas que constituem o terço, essa parte do culto externo que, depois de longamente usada em quasi todo o norte, desappareceu das capitaes, e já não tem no proprio interior das provincias a pratica geral a que em grande parte se deve referir o adoçamento dos costumes dessas povoações antes de haverem sido dotadas com as escolas e com os institutos de educação que actualmente as disputam á ignorancia com mais vigor e proveito.

De subito o ladrar dos cães veiu interromper o concerto das vozes femininas que enchiam o ambito da sala, e iam repercutir no vasto pateo. O ladrar augmentou, e com elle tornou-se mais distincto, mais proximo, ao principio um estrupido de passos, depois um ruido de vozes surdas do lado defóra da habitação.

Nesta a alegria e a afflicção, a primeira quando se lhes afigurou que os caçadoros chegavam, a segunda quando, em lugar destes, pensavam serem os malfeitores que as vinham assaltar, disputaram um instante em violenta porfia os espiritos das pobres mulheres naturalmente expostas, pelas suas circumstancias especiaes, a estas crueis alternativas.

Depressa porém se dissiparam todas as duvidas. Com furia indomita, os cães deram mostras de querer despedaçar os visitantes. Semelhante indicio foi uma prova evidente de que, não de casa, mas estranhos eram estes.

De repente ouviu-se uma voz que, echoando no terreiro, veiu resoar dentro de casa:

— Aqui estou. Sou eu.

Era a voz de Mathias.

Rosalina, ebria de violenta alegria, correu á porta para a abrir, mas logo sobresteve a este novo fallar do caboclo:

— Não digo, não digo isto, ainda que me matem.

— Dize que abre a porta, sinão te varo com esta faca, Veado do demo — disse Joaquim a meia voz.

— Não digo — repetiu o caboclo.

E alteando a voz, tremula e como abafada, gritou com toda a força que pôde:

— Não abram, não abram. Eu trouxe os malvados enganados até aqui para poder avisal-a, sinha Rosalina. Liberato, Ricardo, Sebastião e Vicente são com Deus. Fujam, si podem, que eu sei que morro.

— Ah! miseravel, que nos illudiste — vociferou Joaquim.

E com a faca atravessou incontinente o coração de Mathias que, sem soltar um ai, cahiu envolto em um turbilhão de sangue.

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha penna, molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve scenas de estranho cannibalismo como as que nesta historia se lêem. Aperta-se-me naturalmente o coração sempre que me vejo obrigado a relatal-as. Entre os motivos da minha repugnancia e da minha tristeza sobresahe o seguinte: Eu vejo nestes horrores e desgraças a prova, infelizmente irrecusavel, de que o ente por excellencia, a creatura fadada, como nenhuma outra, para altissimos fins, póde cahir na abjecção mais profunda, si o afastam dos seus summos destinos circumstancias de tempo e lugar que, nada, ou muito pouco valendo por si mesmas, são de grande peso para a perturbação do equilibrio moral do rei da creação, tal é a fragilidade da realeza, ou antes das realezas humanas. Mas desgraçadamente estas scenas não são geradas pela minha phantasia. São factos acontecidos ha pouco mais de um seculo. Si só alguns delles foram recolhidos pela historia, quasi todos pertencem á tradicção que nol-os legou, antes como limpido espelho, que como tenebrosa noticia do passado. Não estou imaginando, estou, sim, recordando; e recordar é instruir, e quasi sempre moralisar. Com estas razões considero-me justificado aos teus olhos, leitor benevolo.

Gritos, queixumes, imprecações e prantos que nenhuma penna humana póde descrever, seguiram-se, de dentro da casa, ás ultimas palavras do Veado.

Thereza, mulher de Vicente, abraçou-se com Rosalina, menos madrasta do que mãi, e começou a carpir com ella a desgraça commum, dando mostras de ter enlouquecido. Não se demoraram a imital-as nas demonstrações de dôr e desespero Josefa, mulher de Ricardo, e Candida, mulher de Sebastião.

Da sua angustia, para a qual será difficil encontrar parallelo na historia das desgraças humanas, vieram tiral-as uma fortissima pancada contra a porta, e estas formaes palavras de Joaquim:

— Si não abrem por bem, hão de abrir por mal.

— Quando fôr tempo de tocar fogo na capuaba, é só dizer, Joaquim, acrescentou Manoel-corisco.

— Querem queimar a casa, Rosalina, disse Candida. Estamos perdidas, minha gente. Meu Deus, meu Deus, soccorrei-nos.

Rosalina poderia ter vinte annos. Suas formas eram arredondadas, os cabellos crespos e negros, os olhos admiravelmente fendidos, a boca impossivel de descrever-se, porque exprimia graça, volupia soberba e desdem ao mesmo tempo. Era o typo da mulata ardente, caprichosa, cheia de vivacidade e energia, typo que está destinado a desapparecer d’entre nós com o correr dos annos, mas que ha de ser sempre objecto de tradições muito especiaes no seio da sociedade brazileira, pelo muito que tem figurado no campo, na cidade e no lar.

— Sim, querem tocar fogo na casa para nos obrigarem a sahir. Mas não sahiremos, disse Rosalina com firmeza.

E acrescentou sem demora:

— Sahir para onde? Os nossos maridos desappareceram para sempre dentre os nossos braços. Não temos mais quem olhe por nós neste mundo de amarguras e miserias. Somos cinco desgraçadas a quem a vida já não póde offerecer prazer nem socego, mas só desgostos e lagrimas. Não, Candida, não sahiremos daqui.

— Mas que faremos, Rosalina?

— Que faremos! Pois vossê ainda pergunta?

— Sim, porque os malvados estão ahi, e é tempo de tomarmos a nossa resolução.

— Está tomada — respondeu Rosalina. Morreremos, e não nos entregaremos aos malvados.

— Meu Deus! meu Deus! exclamou Thereza.

— Não, não, Rosalina — acrescentou Josefa. Vamos ver si nos salvamos.

— Si nos salvamos!.. disse a mulata com ironia e desdem. Não ouves os malfeitores bater na porta?

— Mas então... balbuciou Thereza.

— Morreremos todas, Thereza, morreremos todas, mas com honra, ao pé deste oratorio — gritou Rosalina com tal energia e decisão que nehuma das outras se animou a proferir uma palavra siquer contra a sua sentença de morte.

Para dar o exemplo, a mulata cahiu de joelhos diante do sanctuario, tendo no rosto a serenidade que faz bellos e venerandos os martyres, os verdadeiros martyres.

Thereza foi a primeira que imitou sua madrasta, e as outras não se demoraram a acompanhar Thereza. Quem poderia resistir á heroica decisão de Rosalina inspirada no sentimento da honra, e na oração?

— Abrem, ou não abrem? perguntou nesse interim de fóra Joaquim impaciente.

A resposta que a esta pergunta deram as mulheres foi o continuarem o terço alguns minutos antes interrompido, resposta que ha de perdurar nas tradições populares como um traço caracteristico da firmeza e do valor das gentes do norte naquelles tempos de grandeza de animo que raro apparece hoje.

— Ah! estão rezando? Fogo, Manoel-corisco, fogo, Mulatinho, fogo, Trovão!

De repente um clarão afogueado inundou o terreiro, e indicou que a ordem do capitão do bando ia ser promptamente executada.

— Depressa, depressa,— gritou Joaquim.

— Emquanto o diabo esfrega um olho, o mocambo fica torrado, e as caiporinhas, são nossas — respondeu José-trovão, chegando a chamma do seu facho a um montão de cangalhas, tripeças, gamellas e outros objectos encontrados no alpendre, e que elle havia apinhado de proposito, para servirem de combustiveis, ao pé das quatro janellas da casa.

Esta operação reproduziu-se na porta fronteira, nas portas e janellas lateraes, no peitoril de madeira e nas tôscas columnas que sustentavam de espaço a espaço o telheiro do alpendre.

Quando o espirito racional ultrapassa os limites que o separam dos instinctos da féra; quando o homem deixa atraz de si, na sua marcha descendente, o animal cerval que bebe o sangue por natural fatalidade a que não pôde resistir, não raro figura de protogonista de dramas que, como este, enlutam a historia e envergonham a humanidade.

A porta principal tinha sido respeitada. Diante della estendeu-se pelo chão, formando-se em semi-circulo, o bando dos salteadores, os quaes ao espectaculo das chammas que do peitoril passando ás paredes e destas á coberta, envolveram em poucos momentos a casa e formaram uma só chamma, uma fogueira unica, gigantesca e medonha, só tinham infames graçolas e indecentes insultos para as victimas. Sujos, maltrapilhos, nas mãos as facas núas e os bacamartes sinistros, semelhavam, ao clarão da fogueira immensa, uma legião de demonios que só as crepitantes labaredas separavam dos anjos.

— Quando se resolverem a não morrer assadas na coivara, como lagartixas, abram a porta e saiam sem susto, que não havemos de brigar — disse Joaquim.

O estalido da madeira, do barro, das telhas abafou em poucos momentos as vozes das mulheres.

— Que fazem, que não sahem logo? perguntou o Mulatinho depois de alguns minutos de espera infructifera.

— Venham para fóra, raparigas — acrescentou o Trovão.

Ainda bem não tinham proferido estas palavras, quando a frente da casa vinha abaixo, atirando torrões abrazados contra as féras que, afrontando o pudor com expressões obscenas, assistiam, ébrios de ferocidade, a medonha representação.

— Parece-me que as caiporinhas se escaparam — disse Joaquim.

A esta voz todos os malfeitores correram á porta principal sobre cujos portaes descansavam uns restos de caibros incendidos.

Descarregando então os couces dos bacamartes sobre a porta, fizeram-na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chammas ainda não haviam chegado.

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o echo de uma angustia longamente recalcada e de subito desprendida, dominando o estrondear do incendio, veiu resoar no pateo.

— Minha mãi, minha mãi não morrerá no fogo!

Então viu-se uma scena horrivelmente bella, Luiza, saltando por cima da caliça e dos enchameis abrasados, ganhava o pateo com Florinda ás costas, semelhando um visão ignea, phantastica e sobrenatural.

Os malvados, sem se poderem governar, voltaram um passo atraz, não tanto pela estranha e fugitiva apparição, como principalmente por verem no lugar occupado, havia pouco, por aquellas contra cujo pudor a sua brutal concupiscencia sc aguçava, pequenos troncos carbonisados em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento a ultima imagem.

— Diabo! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão do que as victimas

— Todas mortas! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pezar que accusava a mallograda e lasciva esperança.

— Só nos resta uma — disse o Trovão, correndo, em busca de Luiza que havia cahido quasi sem sentidos no terreiro junto do cadaver de Mathias.

— Cá está ella.

— São duas, são duas.

— Esta é minha, exclamou o Trovão, acercando-se de Florinda para assenhorear-se della.

— Trovão do diabo! exclamou o Mulatinho com indescriptivel expressão. Não vês que é uma defunta?

Florinda estava na realidade morta.

— Resta-me a outra.

— A outra? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços?

— Ha de ser minha, custe o que custar redarguiu o negro.

— A outra é minha — disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente os dous bandidos.

Era o Cabelleira.

Notas do autor editar

IX


Profunda revolução se havia operado durante uma noite no intimo do bandido.

Quando elle chegou ao couto, estava já resolvido o assalto á familia de Liberato, a qual por se achar mais proxima do que qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.

Cabelleira não deu mostras de que approvava, ou reprovava semelhante resolução.

Seu animo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e investidas, mostrava-se agora frio diante do assentado acommettimento. Viração suavissima passára por cima do férvido charco das suas paixões, e deixára, senão purificadas, de certo quietas as aguas que ahi se ennovellavam turvas e lodosas. Essas aguas nunca jamais viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão, por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes que se geram e alimentam em putridos pantanos; podiam tornar-se mansas, como as dos lagos, azues como as dos golphos.

Ao principio os companheiros do bandido attribuiram o seu silencio, a sua tristeza e a sua abstracção aos ferimentos recebidos na luta. Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento querido que, não só a elle, mas tambem a todos os do couto proporcionava, nas mãos do inspirado tocador, momentos de prazer e consolação.

Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma verêda que ia ter á borda da grota aonde chegava levemente a aragem do taboleiro, e d'onde se descortinava o vasto sertão oppresso e abrazado.

Aos sons da viola puzeram-se uns a cantar, outros a dansar, como brincam saltando as crianças na campina.

De repente Manoel-corisco fez signal para que se calassem.

— Estou vendo alli em baixo um homem que vem na direcção da grota, disse elle aos camaradas.

— Vossê não se engana, Manoel. Elle vem tomando chegada tão gacheiro e amedrontado, que não póde ser amigo nosso.

Os saltedores tinham razão, porque o desconhecido era Mathias.

Um delles quiz immediatamente estendel-o por terra com um tiro do seu bacamarte. Assentaram porém occultar-se a fim de verem primeiramente o que pretendia.

Quando Mathias desappareceu por um lado, segundo já dissemos, os malfeitores sumiram-se pelo lado opposto, pé ante pé, na embocadura do profundo abysmo.

Tinha o Cabelleira avançado já alguns passos após os companheiros, quando uma idéa subita, actuando sobre sua vontade por modo irresistivel, o fez sobresaltar-se. Elle se lembrára de que si os companheiros conseguissem apoderar-se do desconhecido, não o deixariam com vida. Mas o bandido sentia-se naquelle momento tão pouco disposto a contribuir para a morte de um homem, que não pôde acabar comsigo que voltasse á beira da grota.

— Si eu quizesse, esse desconhecido não morreria, disse de si para si. Mas não. Si não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, tambem não o irei salvar.

O lodo tinha já desapparecido da superficie do charco immundo que elle trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo, como se vê, a vasa corrupta e pestilencial.

Para que Mathias declarasse o fim que o levava áquelle ponto, preciso foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nelle sem piedade. Supplicio atroz e cobarde que o indio soffreu com estoica resignação caracteristica de sua raça.

— Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno? perguntára Joaquim.

— Vim em procura daqueles que alli estão para os urubús comerem, respondera o velho.

— Até que emfim déste com a lingua nos dentes.

— Quizeste primeiramente provar o cipó de rego.

— Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso?

— Quem me mandou! Tive pena daquellas mulheres que choravam por seus maridos, e larguei-me a ver si os encontrava.

— Tiveste pena das mulheres, hem? Maganão! Havemos de lá ir hoje de noite para tambem termos pena como tu tiveste.

— Ellas não serão tão tolas que appareçam a qualquer que lá chegue, retorquiu Mathias com segunda tenção.

— Mas a ti abriram ellas a porta, velho mandingueiro.

— Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu sou incapaz de as offender

— Então, si lá formos, não nos deixarão entrar? perguntou Joaquim.

Mathias, depois de um momento de reflexão, respondeu:

— Só si forem comigo.

— Pois está dito. Iremos comtigo, disse o Mulatinho.

— Mas tu irás amarrado, bem amarrado, gia de lagôa, acrescentou José-trovão.

— Como quizerem, com tanto que não me matem no caminho.

— Si nos facilitares a entrada, pódes ter por certo que não haverá quem se atreva a tocar-te em um cabello siquer.

— Bem sabes que não precisamos do auxilio de pessoa alguma para tomarmos conta de uma casa onde só ha mulheres choronas, observou Joaquim. Mas sempre é melhor entrar sem fazer barulho para não dar que fallar á vizinhança.

Era quasi noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão, quando se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado entre elles, quatro seguiram com Mathias pelo lado por onde este havia descido, emquanto os outros, subindo pelo lado opposto, se dirigiram ao escondrijo a fim de se proverem dos instrumentos necessarios para o assalto. Os primeiros esperariam pelos ultimos na bocca da mata para, reunidos, seguirem a seu destino.

No momento em que os malfeitores tomaram a direcção da engenhoca, um cavalheiro, que entrára na mata por secretos atalhos, fôra dar com o Cabelleira em seu retiro. Era o Theodosio.

— Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento.

Foram estas as suas primeiras palavras.

— D’onde vens tu? Que diabo tens, Theodosio?

— Vem ahi soldados que nem terra.

— Quem te contou semelhante cousa?

— Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite da procissão.

— Ora!... Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca torci a cara a homem nenhum, e não morro de carêta, como saguí.

— Eu tambem não tenho medo delles, disse o cabra. Mas é bom a gente estar prevenido para não cahir no mondé como bicho do mato.

O Theodosio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer. Fino, matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição o crime que haviam elles commettido na villa.

— Ora, Theodosio! redarguiu José com mostras de fazer pouco do que lhe dizia o camarada. Eu, por ser bicho do mato, é que não hei de cahir no mondé. Olha tu: emquanto houver mata virgem por esse mundão de meu Deus, podem elles mandar contra mim os soldados que quizerem, que não me apanham, ainda que sejam tantos como formigas. Não me hão de ver nem a fumaça.

— Não digo menos disso, respondeu Theodosio.

— Eu sou cabra mesmo damnado — proseguiu Cabelleira. Quem se engana comigo é porque quer. Metto a unha no chão, e entro no ôco do mundo para nunca mais ninguem me pôr o olho em cima. As matas de Serinhaem, Agua-preta, Goitá, Goyanna, Parahyba, Rio-grande ahi estão bem fresquinhas para esconderem em seu seio a onça pintada. É bom que não me assanhem. Si o governador duvidar do meu sério, sou capaz de me largar daqui pi, pi, até á villa, e lá mesmo vou mostrar-lhe com quantos páos se faz jangada.

— Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão não tarda a roncar.

— Eu nunca deixei de trazer a faca e o bacamarte promptinhos para o serviço. Quem quizer, venha ver.

— Está bom. Até já, disse o Theodosio, despedindo-se para sahir.

— Aonde vás? perguntou-lhe o Cabelleira.

— Tenho cá uma idéa. Vou passar pela porta do capitão-mór.

— O capitão-mór está na villa, disse José.

— Não, senhor, está ahi. Veiu antes de mim, que não me escapou. Vou passar-lhe pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho que ahi se ache de serviço a fim de ver si pesco noticia que nos oriente.

— Não é máo o que queres fazer. Mas olha bem, não caias em alguma ratocira.

— Macaco velho não mette mão em combuca, respondeu Theodosio, preparando-se para montar novamente.

— Faço-te companhia até o cercado da engenhoca do defunto Liberato, acudiu Cabelleira.

E saltou sobre a garupa do cavallo que Theodosio pôz a passo pela vereda secreta que ia dar na via publica.

— Uê! exclamou Theodosio, voltando-se para o companheiro a fim de melhor saber delle a verdade. Pois morreu o Liberato, tão bom amigo nosso, que nunca nos faltou com geremús, cannas e criação?

— Elle era camarada, é verdade. Mas metteu-se-lhe na cabeça que havia de tirar-nos o couro, e ha tres dias veiu bolir comnosco.

— Que estás dizendo?

— Não só elle, mas tambem os filhos e o bom do genro.

— Foi a sua derradeira delles, hem?

— É verdade. O Zé Rufino, que o negro fôra convidar para o ajudar na tragedia que tinha ideado contra nós, correu logo a dar-nos parte de tudo ainda em tempo. Quando os cabras appareceram, encontraram gente. Fizemos o bonito em poucas horas. Estão todos dentro do grotão.

— E que vás tu ver á engenhoca?

— Vou reunir-me com os outros que lá estão fazendo uma das suas. Mas onde arranjaste tu este quartáu passeiro e passarinheiro que se vai derretendo na estrada depois da grande caminhada que traz da villa?

— Falta ahi engenho onde se vá buscar um animalzinho fóra de horas para a gente fazer sua viagem?

— Pois então vai logo pondo de olho alguns outros para fazermos a nossa mudança si a tropa vier perseguir-nos.

— Amanhã pela manhã teremos um lote, e poderemos metter terra em meio antes que o tropão bata por cá.

Tinham deixado a vereda, e achavam-se já na estrada que, fazendo pouco adiante um angulo, seguia em linha mais ou menos recta até o povoado.

Ao passarem por baixo de uma pitombeira que no angulo apontado agitava no ar a sua copa gigantesca, subito ruido espantou o cavallo que por um triz não tirou o cabresto da mão do Theodosio. Com o violento arranco, partiu-se a cilha da cangalha, e os dous cavalleiros vieram á terra.

— Diabo! exclamou o Theodosio contrariado e perturbado. Foi alguma curuja que abalou da pitombeira.

Não se havia partido só a cilha, mas tambem a armação da cangalha.

— Sabes que mais, Theodosio? Acho melhor, que não vás ao povoado.

— Porque não?

— A cilha partida, a cangalha arrebentada, tudo me parece aviso para que não faças a viagem, disse o Cabelleira.

— Estou já em outro accôrdo. Deixo-te o cavallo e vou a pé. Este cavallo é quem me está encaiporando.

Em quanto o Theodosio seguia pela beira do rio, o Cabelleira, que havia tomado a direcção da engenhoca, dava a volta do caminho, e descobria a casa envolta em chammas cujo clarão sinistro illuminava a estendida solidão. Em breves instantes achava-se entre os companheiros, e cortava, como vimos, a porfia do Trovão e do Mulatinho sobre a posse de Luiza.

— Luizinha! exclamou o bandido. Tu me pertences.

— Que dizes, Zé Gomes? interrogou Joaquim sem poder bem comprehender o que ouvira ao filho, que lhe pareceu hallucinado.

— Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ella, pertencer-nos na mocidade. Chegou a occasião.

— Atreves-te a fallar-me em juramento! Não sabes o que estás dizendo. Esta mulher é minha, e quem fôr homem que se metta a vir tomar-m’a.

Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabelleira puxava da faca dando mostras de querer ferir com ella o seu interlocutor.

— Zé Gomes! gritou este. Já te esqueceste de que sou teu pai?

— Não tenho pai; só tenho mãi que me ensinou o caminho do bem; pai nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquelle que só me ensinou a roubar e a matar.

— Zé Gomes, olha bem o que dizes! redarguiu Joaquim, medindo o filho com olhar ameaçador e terrivel.

— Já lhe disse, retorquiu o mancebo sobreexcitado pela opposição do velho, ao qual se atirou com furia brutal para lhe arrancar das mãos os pulsos de Luiza afogada em prantos e soluços.

Joaquim resistiu. Os outros malfeitores reuniram-se em torno daquellas duas hyenas que ameaçavam despedaçar-se mutuamente. Mas não houve um só d’entre tantos que tentasse compor os discordes.

Cabelleira brandiu emfim a faca contra o velho.

Neste momento voz chorosa e soluçada resoou na solidão. Foi a voz de Luiza.

— Cabelleira, disse ella, terás animo para ferir teu pai?!

O braço do bandido descahiu em continente como si aquella voz lhe tivesse cortado os musculos athleticos.

— Meu pai! exclamou o desgraçado. Um pai não toma a mulher de seu filho. Mas já que o queres, fica-te com ella, acrescentou voltando-se para Joaquim. Cabelleira vai desapparecer para sempre, e sem o seu auxilio hão de cahir nas mãos da justiça todos os que me cercam. A tropa ahi vem.

— A tropa! gritaram os malfeitores sobresaltados, olhando uns para os outros, e todos para a solidão que, ao declinar do incendio, retomava seu aspecto equivoco e medonho.

Tendo assim fallado, Cabelleira deu o andar na direcção da estrada. Seu espirito estava abatido, seu coração despedaçado pelo golpe cruel que lhe havia vibrado a desgraça.

Então Luiza, vendo assim perdido o ultimo raio de esperança que ainda a guiava no meio das trevas do seu infortunio, exclamou:

— Meu Deus, meu Deus, que será de mim?

Joaquim entretanto tinha-se atravessado diante do Cabelleira. Todo assassino é cobarde.

— Porque nos queres deixar? perguntou elle ao filho. No momento em que mais precisamos de ti, é que tu, nos desamparas? Não sejas mão, Zé Gomes. Eu te perdôo a desobediencia, e te restituo a mulher. Fujamos todos.

Cabelleira atirou-se a Luiza, e tomou-a nos braços com phrenesi de hallucinado.

Volvendo um instante depois os olhos ao redor, não viu um só siquer dos companheiros. Penetrados de panico terror, todos tinham corrido, sem excepção de Joaquim, a occultar-se na mata.

— Vamos, Luizinha, disse o bandido á moça, com ternura. Ninguem a offenderá, ninguem.

— E minha mãi?! soluçou Luiza cahindo que a eternidade se ia metter entre ella e Florinda, e que sobre a terra estava tudo acabado para ella.

O bandido conchegou-a ao peito e abafou-lhe as ultimas palavras com um beijo.

X


Que valeu a Luiza ter-se libertado das mãos de Joaquim, si o Cabelleira a prendia em seus braços possantes e athleticos?

— Solte-me, solte-me — disse a moça ao bandido.

— Quer ficar aqui? Não a deixarei só.

— Não se importe comigo. Siga seu pai, que eu irei para minha casa. Não preciso da companhia de ninguem.

Com esforços sobre-humanos Luiza tentou libertar-se das suas prisões. Foram inuteis esses esforços.

— Si não me soltar, ha de ver-me cahir morta a seus pés.

Ella tinha podido apoderar-se do facão do malfeitor, e o voltava contra si mesma.

O Cabelleira parou, e soltou-a.

— Que pretende vossê fazer, Luizinha? Não tem pai, não tem mãi, não tem quem por si olhe. Para onde quer ir?

— Quero matar-me aos pés de minha mãi.

— Isso nunca.

Sem esforço nem luta elle a desarmou em um momento.

Depois perguntou, com a voz mais branda do mundo:

— Matar-se porque, Luizinha? Não se lembra que me prometteu ser minha mulher quando um dia nos encontrassemos?

— Eu fiz esta promessa com uma condição, que vossê não cumpriu.

— Pois bem. Estou prompto a cumpril-a agora — tornou elle com ternura.

— Quer enganar-me, José? Para que eu acreditasse em suas palavras fôra preciso não o ter visto levantar ha pouco a faca para seu pai.

— É verdade; assim foi. Eu estava fóra de mim — respondeu com ar pezaroso que indicava remorso, vergonha e arrependimento do feio acto que tinha praticado. Mas que importa isso? continuou elle. O tanto matar já me aborrece, e eu quero mudar de vida.

— Não creio, não posso crer no que vossê diz — observou Luiza.

— Nem si eu jurar?

— Eu sei!...

— Que razão tem para duvidar tanto de mim, Luizinha? Estou vendo que vossê nunca me quiz bem.

— Eu é que posso dizer isso de vossê.

— Si eu não lhe quizesse bem, não a tinha deixado livre como está. Si eu só a quizesse lograr como fazem com as outras, quem me poderia impedir de realizar a minha vontade? Ninguem.

— Podia, e póde ainda matar-me, mas fazer isso, nunca. Só depois de me haver tirado a vida.

— Como se engana! Assim o quizesse eu; mas não quero. Eu sei que vossê me quer bem, e por isso não me vexo nem apresso.

Com os braços tremulos o Cabelleira apertou Luiza novamente contra o peito onde lhe ardia o coração em chammas de entranhado amor.

— Deixe-me, José. Aquella que vossê offendeu, aquella que vossê arrancou d’entre os meus braços, dalli o está vendo e amaldiçoando.

— Perdôe-me, não me odeie, Luizinha, por sua bondade, e pelo muito que nos queremos nos primeiros annos. Si eu a privei de sua mãi, estou prompto a protegel-a d’agora por diante. Pelo corpo de sua mãi, juro que farei isso, Luizinha.

— Jurará tambem que não ha de tirar mais a vida de ninguem, ainda que seja de um passarinho?

O bandido reflectiu um momento.

— E si me quizerem matar? perguntou depois.

— Fugirá — respondeu Luiza.

— E si não puder fugir?

— Eu quero que vossê jure, Cabelleira, que em caso nenhum derramará mais sangue sobre a terra, ouviu? Si não fôr assim, tudo estará acabado entre nós.

— Pois bem, Luizinha. Eu o juro. O malvado será de hoje em diante homem de bem.

Luiza fitou-o como um anjo deve fitar um demonio que promette ser anjo. O Cabelleira, porém, não lhe deu tempo para grande contemplação, porque de chofre a tomou pela terceira vez nos braços febris, e desappareceu com ella no meio da escuridão.

Saltar ao cavallo, vencer o vasto pateo, galgar a cêrca, e, em vez de ir em demanda da mata, voltar ao rio e descer pela margem esquerda na direcção do norte, foi obra de um instante para o destemido sicario. Luiza deixou-se conduzir em silencio ao meio do fatal desconhecido.

Ainda bem não tinham vencido uma milha na veloz corrida, quando o Cabelleira descobria uma cinta escura que se desenhava e movia, como nuvem de tormenta, no confuso horizonte.

Seu primeiro cuidado, ao ver aquella visão aterradora, foi afastar-se da margem, e metter-se em um alagadiço que ficava a alguma distancia do rio. Com a grande secca o brejo estava em pó, e a poderosa vegetação aquatica reduzida a raras touças que mal encobriam uma pessoa sentada.

— Esperemos aqui, Luizinha, que passe a tropa que vai para o povoado.

Luiza conheceu que estavam em perigo, e não fez a menor opposição. Atravessando o cavallo diante de si, accommodaram-se ambos de pé, do melhor modo que puderam, Luiza a rezar como costumava nos momentos arriscados, Cabelleira observando em profundo silencio, através da escuridão da noite, a mata que apparecia, como gigantesca e estendida mole, do lado opposto da planicie deserta e medonha.

O mancebo não se enganára. Era de feito uma tropa que vinha em busca dos salteadores.

Os pelotões encaminharam-se para as embocaduras das veredas. Não havia mais que duvidar. O segredo da encoberta estava no poder da justiça.

— Estão perdidos, disse o Cabelleira commovido. Si foram tomadas as sahidas que ficam do lado do poente, nenhum se salvará.

Como impellido por força irresistivel, o Cabelleira deu o andar para o mato.

— Que vai vossê fazer? perguntou-lhe a moça com inquietação, atravessando-se na frente delle.

—Não se assuste, Luizinha. Vou defendel-os.

— Diga antes que vai morrer.

— Não, o que eu vou fazer é matar gente sem piedade, acodiu o bandido.

— Matar gente! repetiu Luiza. Que valeu então o juramento que fez ha pouco?

— Ah! disse elle, cahindo em si. É verdade, Luizinha. Mas que quer que eu faça? Pois não hei de ir ajudar os meus a sahirem da tribulação em que se acham?

— Elles são muitos e valentes, respondeu Luiza; podem bem dispensar o seu adjutorio. Demais, vossê não pertence mais a elles, mas a mim, a mim só; ouviu José?

— Sim, eu sou seu, Luizinha; eu pertenço a vossê pelo coração, pelo amor.

Ouvindo estas palavras, ella inclinou ao chão seus olhos mais bellos que as estrellas que brilhavam no céo.

— Mas, vossê fez bem em lembrar o juramento que ha pouco fiz, proseguiu o Cabelleira. Eu não podia ver meus companheiros em perigo sem correr para junto delles a defendel-os. Si não fosse vossê, Luizinha, eu já não estava aqui. Mas agora me lembro: saiamos sem demora, que talvez seja ainda tempo de os salvar por outro meio.

Em menos de um instante acharam-se montados no cavallo que o bandido pôz a galope em direitura ao rio.

— Para onde vamos nós? perguntou Luiza, agarrando-se, sobresaltada, ao destimido matador. Aonde me leva vossê, José?

— Não falle, Luizinha, não falle, que pelas suas palavras podem vir sobre nós.

Nesse momento a detonação de alguns tiros e as vozes de um clarim, pregoeiro de não sei que operação militar, indicaram que a força tinha dado com os bandidos, e que qualquer aviso para que fugissem seria inutil.

— É tarde, disse o Cabelleira. Já não é possivel a salvação. Mas hão de ter-me ao pé de si na sua derradeira, exclamou, saltando do cavallo abaixo e dando mostras de querer correr ao lugar do perigo.

— Cabelleira! exclamou Luiza penetrada de terror. Vossê terá animo de desamparar-me neste deserto? Não, não ha de fazer isso comigo. Veja que eu sou hoje só no mundo.

O bandido parou incontinente. Estas palavras foram grilhões que o prenderam aos pés da adolescentula.

— Tem razão, Luizinha.

— Fujamos sem perda de tempo, acrescentou ella.

Nesse momento uma das escoltas sahia da mata.

Grande victoria tinha sido ganha pelas armas reaes contra os destruidores da propriedade, honra e vida de inoffensivas povoações.

Innumeras partidas militares já tinham sido expedidas contra os malfeitores sem resultado.

Pouco depois do cannibalismo perpetrado no primeiro domingo de dezembro de 1773 na ponte do Recife, o governador Manoel da Cunha de Menezes fizera seguir contra elles uma força consideravel.

Esta força chegou a Afogados alguns minutos depois da retirada dos autores da desordem; e dahi não passou, por não ter sido possivel, apezar das mais minuciosas indagações, saber o rumo que haviam tomado os criminosos.

O Thimoteo, cuja taverna foi varejada, declarou unicamente que elles tinham de feito estanciado ahi, mas que se haviam retirado sem lhe dizerem para onde. Não houve promessas nem ameaças bastantes a obter delle declaração mais formal e menos laconica do que esta.

Tempos depois novas partidas foram mandadas a ver si se conseguia o fim desejado.

Tanto a que seguiu ao norte, como a que seguiu ao sul, bateram matos, atravessaram rios cheios, empregaram emfim os maiores esforços inutilmente. Em mais de um lugar, ou de um pouso encontraram vestigios da recente passagem dos bandidos, ou da sua acção destruidora e fatal; mas nunca lhes foi possivel dar com os tres personagens, typos legendarios que todos conheciam pelos seus tristes feitos, que todos tinham visto, a quem quasi todos tinham pago pesado tributo, mas que illudiam a vigilancia e zombavam dos esforços de todos, sem excepção do poder publico. Nuvem miracul envolvia-os, ocultava-os aos olhos da justiça e da lei, que tem em toda a parte vistas penetrantes e perscrutadoras a que ninguem se encobre por muito tempo. Nos seus tenebrosos antros saboreavam o corrosivo prazer que proporciona o roubo, e a impunidade. Esta animava-os á pratica de novos crimes, e expunha ao publico descredito a administração menos digna de temer-se, ao parecer delles, do que o particular que muitas vezes resistia, defendendo a sua propriedade, e na defesa e resistencia os feria, embora tivesse de cahir aos golpes descarregados por elles com tal firmeza, que nunca deixou de ser fatal.

Cunha de Menezes, convicto da inefficacia dos seus esforços contra os quaes se levantava, além da audacia e cynismo dos malfeitores, um triplice embaraço que mais do que estes contrastava aquelles esforços, — a falta de população, de tropas e de estradas, embaraço que era favorecido indirectamente pela indifferença dos mais fortes, e directamente pelo temor da maior parte dos moradores, renunciou ao empenho, que por muito tempo alimentou de reivindicar os fóros da administração assim affrontados diaria e ostensivamente pelos sobreditos malfeitores.

Com esta mudança de resolução coincidiu a sua promoção ao lugar de governador da Bahia. Em 31 de agosto de 1774 entregava elle a José Cesar de Menezes, a quem já nos referimos, as redeas do governo de Pernambuco, então, como ainda hoje, difficeis de sopesar.

José Cesar teve de voltar a sua attenção para a guerra com a Hespanha; e quatro mezes depois de haver tomado conta do governo, fez partir para a Colonia-do-sacramento, então novamente no poder dos hespanhóes, bem como os fortes brazileiros de S.-Miguel, Santa-Thereza, e S.-Pedro-do-rio-grande-do-sul, um regimento de infantaria.

Em 1776 tinham seguido do Recife para aquella colonia cerca de 1.100 pernambucanos.

Á guerra seguiu-se a peste, e á peste a fome como vimos.

Quando se achava assim a braços com este triplice flagello, teve sciencia de que differentes ambulancias que, em parte as custas do regio erario, e em parte ás custas dos negociantes mais ricos da villa haviam sido expedidas por ordem sua para os pontos onde o mal se manifestava com maior intensidade, tinham cahido nas mãos dos salteadores.

O governador mal pôde dominar a sua colera, e na pratica intima com os que tinham muito lugar diante delle, declarou que daquelle momento em diante o principal empenho do governo ficava sendo dar cabo dos criminosos que devastavam a provincia.

Desgraçadamente falleciam-lhe gente e dinheiro para pôr por obra este louvavel empenho.

A terrivel epidemia tinha desolado povoações inteiras.

A fome continuava a gerar os males que em toda a parte são seus companheiros naturaes e inevitaveis.

A secca devastava ainda o interior da provincia como chamma que irrompe do seio da terra, e tudo abraza e destróe.

Mas José Cesar era activo, energico, esforçado e de grandes espiritos. Confiava no poder da autoridade, e tinha por certo que havia de restaurar a tranquillidade e a segurança privadas, e restabelecer o dominio das leis.

Emfim, depois de haver pensado com madureza sobre o grave assumpto, deu ordem a seu secretario para que expedisse em seu nome aos capitães-móres de Iguarassú, Itamaracá, Varzea, S.-Lourenço, Santo-Antão, Tracunhãem, Nossa-senhora-da-luz, Jaboatão, Muribéca, Cabo, Ipojuca e Serinhaem, a circular seguinte:

« Ordena o sr. governador e capitão-general que, para um negocio que entende altamente com a paz publica, se ache vm. no dia 8 do corrente mez, pelas nove horas da manhã, neste palacio, onde se ha de celebrar junta a fim de tratar-se do mesmo negocio.

«Vm. fará igual aviso aos coroneis das ordenanças que houver em seu districto. »

No dia designado acharam-se presentes onze capitães móres e outros tantos coroneis.

Depois do almoço, durante o qual lhes disse, explicou e particularizou todo o seu pensamento, convidou-os o governador a chegarem até aos paços do senado da camara de Olinda.

Uma galeota, que estava ás ordens em uma das rampas do palacio, os recebeu e os conduziu á capital ilustre.

A sessão da junta foi secreta.

Todos presumiram que a fome e a peste eram os motivos principaes da reunião, mas dificilmente conciliaram esses motivos, que estavam no publico dominio, com o sigillo que se guardou durante a sessão, e continuou a ser mantido depois do seu encerramento.

Seguiram-se, como é facil imaginar, differentes versões e fizeram-se longos e variados commentarios.

Fallou-se de guerra no exterior, de geral recrutamento, e de novos impostos.

Veiu logo a pêllo lembrar igual ajuntamento que se verificou em 1727, sob o governo de Duarte Sodré Pereira, e o imposto decretado nessa occasião pelo dito ajuntamento, imposto calculado em um milhão e cincoenta mil cruzados, que se tornou effectivo em vinte annos, e foi destinado a occorrer aos gastos com o casamento dos principes de Portugal.

Cuidou-se em oppôr á forçada contribuição, caso viesse a verificar-se, a resistencia que naquelle tempo apresentaram os povos da ribeira de S.-Francisco.

Mas passaram-se dias e semanas sem que acto algum, publico, official, ou simples revelação particular viesse confirmar as suspeitas. A deliberação continuou trancada debaixo dos sellos do mais rigoroso segredo.

Uma manhã um batalhão de infantaria, devidamente municiado, moveu-se, e pôz-se em ordem de marcha na direcção do sul.

Este batalhão fez alto em Afogados.

— Temos guerra, gritaram os meticulosos pelos angulos da villa.

Alguns parasytas, plantas conhecidas e existentes em todas as regiões, mas muito mais abundantes nas regiões officiaes, ou governativas, correram a palacio a verem si podiam, pelos meios que sabe a astucia perfida e servil, inferir das palavras de José Cesar, ditas na intimidade, o destino a que se dirigia a columna militar, inesperadamente posta em armas e a caminho. O semblante do governador, porém, semelhava uma superficie plana; não apresentava uma só ruga que pudesse trahir occulto desgosto, ou indicar grave apprehensão. Si da fronte passavam a estudar as palavras de José Cesar, não descobriam no sentido destas menos discrição e reserva do que tinham encontrado na expressão daquella. Os labios do governador guardavam com a severidade da disciplina militar e das praticas do governo naquelles tempos silencio absoluto a respeito do acontecimento que preoccupava os grandes e o popular.

A curiosidade publica mostrou-se dentro em pouco ainda mais excitada com certas noticias trazidas do interior pelos boiadeiros, almocreves e estafetas. Em todos os districtos, por ordem dos respectivos capitães-móres, de acôrdo com os coroneis de ordenanças, se tinham levantado milicias locaes que evidentemente se aprestavam para um fim de grande importancia, a julgar pelas apparencias.

Das sédes de alguns desses districtos já os destacamentos haviam marchado para certos e determinados pontos que os informantes não sabiam dizer.

Emfim, tendo reunido todos estes elementos de duvidar e de decidir, e os tendo pesado na balança da critica, arte ou sciencia commum a todas as sociedades ainda as que se acham no estado mais rudimentar, julgou-se o publico autorizado a affirmar que se tratava de effectuar uma diligencia de alta monta, para a qual tinham de concorrer simultaneamente as differentes forças locaes, de combinação com algum destacamento da capital.

XI


Antes de se haver movido da capital o destacamento que foi estacionar em Afogados, grande confusão dominara nos espiritos dos habitantes desta localidade.

Foi o caso que pelas oito horas da noite, pouco mais ou menos, dous vultos se tinham ido collocar defronte da taberna do Thimoteo.

A alguns freguezes e frequentadores do taberneiro causou reparo o mysterioso par que ninguem se animou a ir reconhecer, não obstante a todos parecer elle equivoco e digno de receiar-se.

Não se podia confiar no tempo, principalmente nos lugares afastados da villa.

Roubos e assassinatos repetiam-se a cada canto. Na propria capital os habitantes não tinham por seguras nem sua propriedade nem sua vida. Por isso, qualquer sujeito duvidoso suscitava, com razão, desconfianças e medos nos homens pacificos que por interesse proprio se apartavam sem demora dos pontos onde taes sujeitos appareciam ou podiam apparecer.

Quem menos se inquietou com os desconhecidos foi o Thimoteo que, acostumado a tratar, de instante a instante por assim dizermos, com essa especie de gente, se considerava fóra de todo risco ainda quando este se desenhasse, como em certas occasiões, com as mais vivas e medonhas cores. A seu parecer, de individuos taes só tinha elle que esperar favor e protecção, visto que, sendo sua taberna ponto obrigado das relações da capital com o centro, quer fosse de dia quér de noite, assim de inverno como de verão, tinham elles, como elle proprio, grande interesse, sinão maior do que elle tinha, em conservar, defender, amparar esse poderoso ponto de apoio para os seus dolos, violencias e infames ciladas de que era victima o matuto simplorio, o sertanejo de boa fé, o mascate, emfim quem quer que passava por aquella infernal estancia.

Apontavam-se no lugar outras tabernas, das quaes algumas tinham á sua frente patrões mais habeis do que o Thimoteo; a do velho, porém, mestre no mister como nenhum outro, tinha fama extensa, quasi geral na provincia. Era uma taberna tradicional por ter servido muitas vezes de theatro a scenas de sangue e morte.

Pelas festas de arraial, o jogo, a crapula ahi se praticavam com prejuizo consideravel da ordem publica, da fortuna particular, do socego e honra das familias.

Estas circumstancias, este passado davam-lhe certo prestigio que attrahia para o immundo balcão, ou para a lobrega camarinha da tasca o vicioso por habito, o filho da viuva, a rapariga infeliz, os quaes iam encontrar debaixo das quatro telhas do casebre largo campo onde dar expansão a suas paixões reprovadas.

Quando algum frequentador, exaltado pela cachaça, ameaçava esfaquear o vendeiro por alguma das suas, respondia elle, abrindo a camisa, e mostrando o largo peito coberto de espessos e avermelhados pêllos:

— Pode fazer do peito do velho Thimoteo bainha da sua faca. Já bebeu a minha aguardente, não será para admirar que queira agora dar meu sangue a seu cachorro magro. Mas de uma cousa tenha vossê certeza; ainda que me mate, ainda que me esfole, não passa o gadanho no meu zimbo. Poderá comer das minhas sardinhas, chupar do meu vinho, mas de dinheiro nem ceitil ha de cahir na sua unha.

Thimoteo dizia a verdade. Elle tinha todo o seu haver amoedado em lugar só delle conhecido.

Ficára só no mundo depois da morte da Chica, e enthesourava sem destino o que illicitamente adquiria. Seus unicos companheiros de casa eram um cão, e dous gatos. Estes ultimos comiam com elle á mesa, quasi no mesmo prato, e, para bem dizermos, dormiam na mesma cama.

Por isso, quando viu os mysteriosos vultos parados defronte da taberna; quando os viu mais tarde dirigir-se para esta no momento em que elle ia fechar as portas por se haver de uma vez retirado a freguezia do dia, disse Thimoteo com a maior fleugma:

— Podem entrar sem susto, que o Thimoteo é amigo.

Os desconhecidos ganharam de um pulo a tasca, e trataram de fechar as portas.

— Fazem bem, disse-lhes o vendeiro, sem se dar por achado. O tempo não está para graças. Mas si vosmecês estão aqui de emboscada a algum tonante, será bom deixarem aberta esta janellinha da porta.

— Não estamos de emboscada a ninguem, porque quem queriamos já está seguro, disse um delles, trancando com a taramella a janellinha indicada.

— Ah! Já sei. Querem ceiar comigo. Não ponho duvida.

Os desconhecidos entre-olharam-se como si se consultassem.

— Não façam ceremonia, camaradas. Naquella mesinha, que alli vêem, muito fidalgo tem feito a sua refeição. Tirem os capotes, si querem estar a vontade; e esperem um momento, que não ha demora.

Sem esperar resposta, o velho tomou o interior do casebre, e voltou logo, trazendo pães, postas de peixe frito, e uma cuia com farinha.

— Então? Que fazem? Vão sentando-se, e toca a comer. Não esperem por mim, que sou de casa e não tenho etiquetas.

E entrou novamente, manifestando, pela promptidão com que tratava de pôr a ceia, a melhor vontade de ser agradavel aos estranhos hospedes.

Não eram estes no todo sympathicos, mas tambem não eram mal encarados.

O que representava ser mais moço era secco de corpo, tinha boa estatura, côr fula, olhos scintillantes e redondos, cabello chegado ao casco. O nariz um pouco rombo estava em desharmonia com as outras partes da cara onde se lia uma expressão de audacia, que respondia bem á agilidade do corpo.

O outro era feio de feições, baixote e roliço. A côr, o angulo facial, o cabello carapinha estavam claramente denunciando a sua proveniencia africana.

Por baixo dos capotes, já velhos, cingia-lhes os rins um cinto de couro d’onde a cada um pendia uma espada de ponta direita. Eram as espadas as unicas armas que traziam á vista.

Sentaram-se á mesa sem tirar os chapéos de palha com que estavam cobertos.

— Vinho ou cachaça? perguntou o velho, apontando, de volta, na porta, com uma penca de bananas que lhe vinham cahindo das mãos de maduras.

— Vinho, disse o mais moço.

— Traga da canna para mim, acrescentou o outro.

— Muito bem, respondeu Thimoteo. Olhem: o pão é da padaria do Zé Braga, o peixe é do Viveiro-do-Muniz, a farinha é da Muribeca, e as bananas são do meu quintal. A cachaça é do engenho do Mendonça, e o vinho é puro de Lisboa.

No fim da ceia, que as reiteradas libações prolongaram, e que correu animada, por mais de um dito, um gracejo, uma sentença licenciosa, o Thimoteo dirigiu estas palavras aos hospedes:

— Não está má esta. Dei-lhes da minha ceia sem saber quem são vosmecês. Agora, os seus semblantes, sinão me falta a memoria, não me são de todo estranhos.

— Assim deve ser, disse o cabra. Mais de uma vez tenho comprado aqui o meu vintem de aguardente.

— Isto é outro cantar; já vejo que somos conhecidos velhos.

— Tão conhecidos somos, seu Thimoteo, replicou o cabra, que tomo a liberdade de o convidar para um passeio agora mesmo por esta estrada afóra.

— Nossa-senhora-da-paz livre-me de tal, disse Thimoteo empallidecendo. Sahir a esta hora, por este tempo, deixar a minha casa á revelia, santo Deus! Nem pensem nisto, meus bons amigos.

— Não tem que receiar, meu caro. Cada um de nós traz, como vê, uma espada á cinta, e a sabe manejar.

— Bem estou vendo, disse Thimoteo. Mas sempre lhes quero dizer: o crioulo Gabriel sabia muito bem jogar a espada, e melhor a faca, mas o Cabelleira o lambeu.

— Ah! Cabelleira? disse o negro.

— Sim, senhor; elle apparece por aqui ás vezes; eu o tenho visto fazer proezas de espantar.

— Seu Thimoteo, disse o cabra, levantando-se, fez bem em fallar no Cabelleira. Eu quero perguntar ao senhor uma cousa....

Antes que terminasse a sua oração fez-lhe um signal o negro, e elle disfarçou por este modo:

— Mas é já tarde, e nós não nos podemos demorar mais. Vem ou não vem?

— Para onde, senhor? perguntou o vendeiro, levantando-se aterrado por haver finalmente comprehendido que tinha diante dos olhos dous inimigos.

— Saberá depois. O essencial é que nos acompanhe.

— Não posso fazer tal cousa.

Thimoteo recuou instinctivamente quando ouviu as ultimas palavras do desconhecido. Este porém, em um instante o tinha segurado pelos pulsos emquanto o negro lhe passava uma corda nos braços.

— Como é que me fazem isto? perguntou Thimoteo. Querem matar-me?

— Não, senhor, disse o cabra. Vossê ha de chegar vivo, bem vivo a seu destino, ainda que o Cabelleira se metta a tiral-o das nossas unhas, o que eu duvido.

— E a minha venda?

— A sua venda fica ahi; nós não a levamos.

— Mas... roubam-me tudo, tudo.

— Não tem vossê roubado a tanta gente?

— Ora! Feche bem as portas, e avie-se, que é tempo. Si não quer ir pelos pés, irá amarrado como um porco.

Thimoteo aceitou, contra vontade, já se vê, e por não ter outro remedio, a situação que se lhe afigurou irrevogavel.

— Vista o seu gibão, que vossê vai ser apresentado a gente nobre.

— Ah! disse o vendeiro, respirando, mas não sem grande espanto, que mal disfarçou.

Pouco depois os tres convivas seguiam, a marcha batida, pela estrada de Santo-Antão. Têndo deixado a taberna, cujas chaves o Thimoteo levava comsigo por permissão dos desconhecidos, haviam estes pouco adiante entrado com elle no mato para tomarem dous cavallos que alli tinham deixado occultos. Em um delles montou o negro, e no outro montaram o cabra e o vendeiro, este passado de medo, que o caso não era para menos, aquelle guardando-o na garupa, e tendo uma faca nua na mão. Tomaram novamente a estrada, e logo desappareceram como sombras phantasticas, no fundo da escuridão.

Conforme a deliberação tomada no senado da camara pelo governador, capitães-móres e coroneis de ordenanças, a busca dos malfeitores tinha de ser dada ao mesmo tempo nas matas dos respectivos districtos.

— Estes bandidos, dissera o governador, fazem-nos maior damno do que a fome, a peste e a guerra. Matam a sangue frio, para roubarem a fezenda áquelle que pacificamente a ganhou com o suor do seu rosto. Penetram nos casas, nas lojas, nos engenhos, nos proprios templos, e, tirando dahi o fructo da economia e do trabalho honesto e esforçado da propriedade alheia, vão consumil-o nas suas orgias e delirios. A sua passagem o pobre não fica privado sómente das suas migalhas; fica tambem privado da sua honra, da honra das suas filhas; si se não atrevem a fazer hoje o mesmo aos ricos e nobres, amanhã o farão, animados por um longo passado para o qual não posso volver os olhos sinão com tristeza, porque elle me diz que aos meus predecessores faltou animo para esmagar a hydra do crime, ou que foram elles indifferentes aos males privados e publicos que resultaram da sua impunidade della. Não quero que o meu nome passe á historia d’envolta com essa impunidade; ha de passar com o lustre da autoridade que se faz respeitada por cumprir com zelo e coragem os seus deveres, entre os quaes se conta o de castigar os delinquentes. Fio que os senhores capitães-móres e coroneis hão de auxiliar a administração, que nestes intuitos, não attende sinão á gloria de sua magestade, que Deus guarde, e á paz e felicidade dos povos. A falta de tropas será supprida pela creação de milicias provisorias, e locaes para o fim unico de acabar com os coutos dos facinorosos; e a de dinheiro sel-o-ha pelo erario regio, que segundo me autorizou sua magestade por carta firmada por sua real mão, adiantará por emprestimo a quantia necessaria para a mantença dessas tropas até que de todo se tenham aniquilado os coutos. O erario será resarcido das quantias que houver adiantado, por meio de um imposto que se lançará para o dito fim sobre os povos dos districtos ruraes, ou dos que ficam distantes desta villa duas leguas, attendendo-se a que a estes o beneficio da extincção dos coutos occasiona particular proveito.

Nenhum dos convocados teve que oppôr ao pensamento e vontade do governador, conhecido como uma autoridade arbitraria. Todos, ao contrario, votaram por estas idéas, certos de que se attendia por taes meios a uma necessidade publica da maior magnitude. « José Cesar governou arbitrariamente, é verdade, diz um historiador, mas as suas arbitrariedades raras vezes deixaram de ter um fundo de justiça. Na punição dos delinquentes foi infatigavel. »

Chegando a seu districto, cada capitão-mór tratou de levantar a milicia volante, a qual foi formada dos individuos solteiros, maiores de vinte e menores de quarenta annos, com exclusão sómente daquelles que por si dessem outrem.

Não foram poucas as difficuldades que tiveram de vencer para que se formassem os contingentes, destinados a pacificar o interior.

Não sabendo o verdadeiro fim que se propunha a autoridade com a fundação desses contingentes, suspeitaram os povos uma grande leva para fóra da terra para combater o estrangeiro. Mas os capitães-móres conseguiram desvanecer as suspeitas por meio de afirmações sob palavra de honra. Naquelles tempos a palavra do homem equivalia a juridica obrigação ou a solemne tratado, e a honra era digna e efficazmente representada por um cabello da barba. Hoje, as proprias palavras dos reis tornam atraz, as convenções diplomaticas não passam de ciladas internacionaes, a honra tem-se refugiado nos retiros com medo da publicidade, que a expõe a geral pouco caso.

Temos subido muito nas sciencias, industrias e artes, sem excepção da arte de governar; mas, em ponto de honra, em virtudes civicas, em moral domestica, a nossa decadencia, impossivel de recusar, attesta que temos levado a obra da reformação além dos limites pertinentes, e prova a necessidade de transplantarmos das ruinas do passado, onde vicejam esquecidas, algumas plantas modestas, cujas flóres purificam o ar com seus perfumes, e cujos fructos formam sangue novo e são.

O capitão-mór de Santo-Antão, querendo avantajar-se aos outros, anticipou-se nos meios de pôr a mão nos malfeitores.

Sabia elle das assiduas relações do Cabelleira com o velho taberneiro, ao principio por mera suspeita, e posteriormente por informações que tomou de aggregados e ordenanças seus, alguns dos quaes, de passagem para o Recife, entravam na taberna, bebiam nella o seu grogue, e algumas vezes até alli pernoitaram. No dia fatal, em que o famigerado bandido tirara a vida aos dous meninos, passára por Afogados o capitão-mór momentos depois do dobrado delicto.

O commercio illicito do taberneiro, a sua má fama, as suas estreitas ligações com sujeitos mal vistos de todos, principalmente com o Cabelleira, deram-lhe a convicção de que qualquer diligencia, que tivesse por fim a prisão dos delinquentes, não poderia sortir effeito si não fosse precedida da prisão do taberneiro.

Duas praças de sua confiança foram por elle encarregadas de levarem o velho a sua presença sem que se soubesse para onde nem como elle fôra. Alexandre, o negro, e Valentim, o cabra que vimos ceiando com Thimoteo e que por sobremesa o prenderam foram as taes praças; e á vista do modo como se houveram, cabalmente justificaram a confiança do capitão-mór.

Ia amanhecendo quando os tres cavalleiros se apearam na porta deste.

As casas do povoado estavam ainda fechadas, e ninguem os viu entrar; o capitão-mór que levara a noite em claro, á espera dos seus commissarios, foi abrir-lhes a porta em pessoa.

Thimoteo posto em confissão, negou tudo ao principio, sahindo-se, com varias evasivas, das rêdes que lhe lançava o capitão-mór, perito em interrogar.

Quando porém viu a sua vida ameaçada; quando formalmente se lhe declarou que a sua morte seria inevitavel si não auxiliasse com lealdade a acção da justiça na busca dos criminosos; quando o Alexandre de espada desembainhada, e o Valentim de faca na mão, receberam do capitão-mór ordem para infligir-lhe a pena ultima dentro da capoeira proxima; quando se viu arrastado por elles ao theadro onde se lhe destinára o tragico fim que horroriza todo homem — a morte natural, o instincto da propria conservação retomou ao calculo e ás manhas do vendeiro os seus direitos. Confuso e abatido, Thimoteo aceitou o odioso papel que lhe foi distribuido naquella grave representação em que importantes interesses e muitas vidas iam correr imminente risco.

Thimoteo conhecia todos aquelles lugares onde tinha andado na sua mocidade em dias de feira de gado.

A secca que estava devastando a provincia tinha-lhe proporcionado occasiões de conhecel-os melhor. A escassa farinha, os poucos legumes e outros comestiveis que appareciam nas feiras geraes, eram logo comprados por atravessadores que os iam revender com usura no Recife.

Nos primeiros tempos Thimoteo resignou-se a ver passar os productos no poder dos atravessadores: mas faltando-lhe esses productos, não só para os expor na sua taverna, sinão tambem para o proprio uso, tomára o accôrdo de ir pessoalmente um sabbado por outro a Santo-Antão prover-se do necessario para a semana. Quando o Cabelleira estava na mata, Thimoteo ia ter com elle e lhe comprava por quasi nada o que muitas vezes tinha custado a vida do pobre roceiro, que deixava mulher viuva, e uma infinidade de filhos na orphandade.

Dest’arte estava elle senhor dos caminhos e carreiras que iam ter á encoberta onde entrava com familiaridade, e d’onde sahia como amigo.

Elle sabia que o Cabelleira se achava na terra por haver estado de passagem na sua taverna, conforme vimos. De tudo informado, o capitão-mór aguardou ancioso a noite seguinte, para dar começo á batida da mata. Com o fim de illudir porém a vigilancia dos assassinos, e escusar as suas suspeitas, mandou notificar as praças do contingente para que se achassem em um ponto das matas do seu engenho, ao qual cada um devia dirigir-se desacompanhado a fim de não dar na vista de quem quer que fosse.

Tanto que anoiteceu, o capitão-mór deu ordem para que Valentim, Alexandre e dez matutos experimentados se trepassem em arvores proximas das quaes pudessem observar o rumo que os malfeitores tomassem depois do escurecer. Estas sentinellas perdidas deviam dar aviso á tropa que estava no engenho, para que ella, guiada por Thimoteo, corresse a tomar as entradas, e pudesse prender os malfeitores em sua volta ao couto. Foi o que succedeu.

Quando Valentim viu os ladrões tomarem, á bocca da noite, pelo caminho da engenhoca, desceu-se da pitombeira onde se trepara, montou no cavallo que tinha preso de prevenção dentro de uma moita, e correu ao engenho. A tropa moveu-se em continente, sob o immediato commando do capitão-mór.

Dividida a metade della em tantos piquetes quantas eram as picadas secretas, tomou todas estas, e achou-se em condições de interceptar a passagem daquelles para o ponto central. A outra metade, collocada a um lado da mata a distancia conveniente, pôde acudir aquelles pontos logo que o Valentim, que depois do aviso havia voltado ao seu posto, foi informal-os da volta dos malfeitores. Assim, acharam-se estes, quando voltaram da engenhoca, entre duas columnas inimigas, ás quaes forçado foi entregarem-se, quasi todos com a morte. Ao Joaquim se poupou a vida, a fim de se cumprir a determinação do governador, não só a respeito delle, mas tambem do Cabelleira e do Theodosio para fins de alta justiça.

Quando o Cabelleira se afastou com Luiza da beira do rio para o alagadiço, o Valentim estava dando o seu segundo aviso, e elles puderam, por isso, escapar à sua inspecção.

Tinha elle, porém, ouvido antes, de cima da pitombeira, o dialogo do Cabelleira com o Theodosio, e sido causa do ruido que espantara o cavallo deste ultimo. Tinha visto aquelle encaminhar-se á engenhoca, o que o fizera acreditar que entre os malfeitores, que tinham de tornar, e effectivamente tornaram à mata, se achava o famigerado bandido, alma do couto, terror dos povos. Não lhe parecendo, por isso, necessario vigiar o terrivel salteador, que elle considerava seguro com os outros na armadilha que lhes havia armado, consagrou-se todo a evitar que lhe escapasse o Theodosio. E como queria ter grande parte na gloria que resultasse da extincção dos celebres assassinos, voltou sobre seus passos á estrada, e encaminhou-se ao povoado.

Valentim era bravo como uma onça, e tinha deste animal a agilidade e a destreza no mais alto gráo. Confiava, não só nestes dotes naturaes , mas tambem na sua espada de ponta direita que muitas victorias já lhe havia proporcionado. Elle jogava com insigne habilidade esta arma.

Pouco adiante ouviu vozes. Apressou os passos, e encontrou-se face a face com o Theodosio, que, nada sabendo do que havia, demandava o couto.

Comimpeto de féra botou-se a elle, não para vencel-o, mas para matal-o.

— O seu gracejo é pesado, camarada, disse o Theodosio, recuando ante a brutal investida.

— Valentim não graceja. Rende-te, cabra Theodosio; ou então reza o acto de contricção, que esta é a tua derradeira.

— Si eu trouxesse a minha espada, não lhe enjeitava o bote. E si quer saber para quanto presta o cabra Theodosio, embainhe o seu ferro, e vamos decidir da sorte pela faca.

—Não estou para tuas parólas, cabra safado. Si não te entregas já nas mãos do Valentim, que nunca escolheu armas para provar que é homem, tiro-te o couro antes do amanhecer.

Theodosio, vendo aquella decisão ante a qual poucos animos, talvez unicamente o do Cabelleira, deixariam de curvar-se; e confiando nos recursos do seu genio astucioso que nunca o havia desamparado ainda nos maiores apertos, respondeu com voz melliflua:

— Não me mate, meu amo; o Theodosio rende-se.

No momento em que assim fallava, o Valentim descarregou-lhe tamanha pranchada na cara, que elle cahiu redondamente no chão.

Quando voltou a si, tinha nos pulsos enrodilhada uma corda de couro crú, em cuja ponta segurava o cabra.

— Levanta-te, que quero olhar para a tua cara, disse-lhe Valentim, fustigando o prisioneiro com a ponta da espada. Onde está a tua fama, cabra Teodosio?

Este não respondeu.

Subita tristeza invadira-lhe o espirito ordinariamente expansivo como o de uma criança.

Tinha ouvido tiros na mata, e conhecido que a situação era mortal.

XII


Ao amanhecer a região littoral da provincia desde Alagôas até Parahyba, estava separada do sertão por um cordão sanitario, formado pelas milicias volantes dos differentes districtos ruraes.

Todas as matas comprehendidas na zona que fica entre a costa e o sertão, foram batidas ao mesmo tempo.

Os piquetes que penetraram nas de Serinhaem, Agua-preta, Muribeca, Merueira, S.-Lourenço, Catucá, Iguarassú, Goyanna, Páo-d’-alho, Limoeiro, recolheram-se mais tarde ás respectivas sédes, depois do terem realizado importantes capturas.

Assassinos de profissão e de fama, que, protegidos pelas trevas da noite e pelas sombras das selvas virgens, tinham horrorizado durante muitos annos as povoações pacificas, appareceram á luz do dia, trazendo nos pulsos cordas e algemas que bem denotavam que a justiça dos homens, reflexo ainda que pallido da justiça de Deus, cêdo ou tarde restaura os seus foros e faz-se respeitar como uma fatalidade reparadora.

O capitão-mór de Santo-Antão, justamente vangloriado por ver no seio de sua força o Joaquim e o Theodosio, cuja fama offuscava a de todos os criminosos, com excepção somente do Cabelleira, seguiu immediatamente, á frente della, para o Recife a apresentar-se ao governador.

No caminho de Afogados reuniu-se ella com a força que, tendo aguardado nesse lugar aquelle dia, designado para a geral batida das matas, se movera pela manhã em direitura ás que lhe ficavam nos limites occidentaes. As duas forças chegaram ao Recife formando uma só expedição que foi recebida pelos habitantes com inequivocas demonstrações de consideração e reconhecimento pelo relevante serviço que haviam feito.

Tantos eram os crimes commettidos pelo Cabelleira, e estes crimes haviam sido revestidos, na sua maior parte, de circumstancias tão odiosas, que, quando se divulgou que o afamado bandido tinha escapado ás malhas da rêde da justiça, mostras de justo pezar vieram substituir-se nos semblantes de todos á expressão do regozijo recente que havia manifestado a população.

Com raras excepções, não se contava familia, desde o Recife até o alto sertão, a quem a peia, a faca ou o bacamarte do terrivel matador não houvesse roubado uma existencia querida.

Por isso, era elle o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdel-o montava perder a diligencia, ao parecer da maioria.

Alguns, não sem razão, mostraram-se receiosos de que, quando menos se esperasse, elle viesse forçar a cadeia do Recife onde tinham sido postos a ferro os novos presos, e restituindo-lhes a liberdade de que tão máo uso haviam feito, se puzesse com elles novamente em campo para matar com maior ferocidade, que d’antes, roubar sem treguas, incendiar povoações, reduzir tudo a sangue, ossos, e cinzas.

O governador entretanto mal podia conter a sua satisfação diante do resultado das providencias que elle proprio havia indicado para a extincção dos bandos dos criminosos que infestavam a provincia.

Elle conhecia melhor do que o povo e os figurões da villa e da capital, as dificuldades, algumas dellas invenciveis, que se atravessam naturalmente diante de expedições semelhantes. Elle sabia que perseguir atravez do deserto, para reduzil-os á prisão, homens que vivem como as feras, e com ellas, no seio de escusas brenhas, de regiões inhospitas e desconhecidas, é empreza para grandes animos, raros em todos os tempos e em todas as terras, maxime naquellas terras em que, como em todo o Brazil então, o importante serviço da policia está por ser organizado, a mingoa de pessoal apto para isso, de recursos pecuniarios, de vias de communicação interior, de prisões, e de outros muitos elementos indispensaveis a este grande mister.

A cadêa, que por poucas alterações passou ha poucos annos a fim de servir, como serve, para casa do jury e do tribunal da relação, tinha sido dada por prompta pelo coronel de engenheiros Costa Monteiro, á camara nos fins de 1732, e preenchia todas as condições de segurança pela sua solidez. Não obstante, ordenou o governador que a sua guarda fosse confiada a forças duplas que tornassem impossivel qualquer tentativa de invasão ou de arrombamento. As vizinhanças offereciam o aspecto de uma praça d’armas, principalmente dos lados do norte e leste onde a vigilancia nunca seria demasiada, por offerecer o rio destes lados facil e natural accesso ao edificio.

Ás pessoas de sua intimidade que lhe manifestavam descontentamento por não ter sido preso o Cabeleira, respondia o governador:

— Ha de chegar a sua vez. Confio muito em Christovam de Hollanda Cavalcanti que ainda não deixou de corresponder aos intuitos do governo sempre que se trata do proveito da colonia.

Christovam de Hollanda Cavalcanti, que trazia, como se vê, o nome que seu pai, sargento das ordenanças, illustrára por occasião da memoravel guerra dos mascates, era o capitão-mór de Itamaracá, e achava-se a esse tempo em Goyanna.

Goyanna pertencia então á jurisdicção de Itamaracá, que deixára de ser em 1763 capitania independente, por havel-a comprado d. João V a José de Góes, para incorporal-a na capitania de Pernambuco, vendida á corôa em 1716 pelo conde de Vimioso, d. Francisco de Portugal, unico genro de Duarte de Albuquerque Coelho, 4.º donatario de Pernambuco.

Era uma modesta povoação em 1636, quando os esforços de Antonio Filippe Camarão que a defendeu com o valor que o caracterizava, não foram bastantes a tolher que ella cahisse no poder dos hollandezes, povo cheio de grandeza, e digno da admiração e do reconhecimento dos pernambucanos. Tendo-se mudado em 1685 para esta povoação a camara da capitania de Itamaracá, passou ella por este facto à categoria de villa. Em 1742 deu-lhe d. João V um ouvidor que foi substituido em 1808 por um juiz de fóra. A sua crescente prosperidade foi parte para que pela lei provincial de 5 de maio de 1840, fosse elevada a cidade.

De presente é Goyanna a cidade pernambucana de mais nota, depois do Recife, a capital, e de Olinda que figurou com brilho e bizarria inexcediveis nos tempos coloniaes.

Está em condições, não só de competir com as primeiras cidades interiores do norte e do sul do Imperio, e de se avantajar ás capitaes de algumas provincias que, por motivos de alta conveniencia, deixamos de apontar aqui, mas até de rivalizar com algumas cidades européas de que não pouco se falla nas narrações de viagens.

E si não, vejamos.

Tem um paço municipal muito decente na Rua-direita, e uma matriz e mais oito templos que podem pertencer sem desaire a uma capital.

Tem uma praça de commercio, a qual se estende desde a rua chamada Portas-de-Roma (denominação do tempo dos jesuitas) até ao Becco-do-pavão, para não dizermos até a Rua-do-meio, ou á Rua-do-rio.

Tem um theatro onde já tive occasião de ver representar-se o D.-Cezar-de-Bazan, os Dous-renegados, a Corda-sensivel e o Judas-em-sabbado-de-alleluia.

Tem cafés e bilhares, brinca o carnaval pelo inverno, toma sorvetes pelo verão, dá alguns saráos pelo natal; emfim, para estar inteiramente na moda, trata de iluminar-se a gaz, de fundar uma bibliotheca popular, e tem já fundada uma loja maçonica, denominada Fraternidade-e-progresso, a qual tem prosperado notavelmente depois das ultimas excommunhões que o publico sabe.

É uma cidade onde se pôde viver com poucos meios, porque os habitantes são hospitaleiros, os senhores de engenho fazem pingues presentes, os negociantes vendem fiado e não executam os devedores.

É plana, limpa, elegante e espalhada. Della não poderia dizer Ampére o que disse de Gotha-borg, cidade da Suecia que tanto o encantou de tarde com suas casas altas e regulares, quanto o desilludiu pela manhã sendo vista da torre da cathedral, por não ser mais do que uma rua.

Goyanna, não só tem muitas ruas, mas tambem muitos beccos, verdade seja que alguns delles sem sabida. Merecem particular apontamento as suas casas brancas que lhe dão certos ares de novidade, ou de noivado, ares que infundem indefinivel alegria no espirito do hospede. Si este é lido, entrando em Goyanna, logo sabe que não entrou por engano em Saint-Jean-de-luz, illustre cidade onde se celebrou por procuração o casamento de Luiz XIV com Maria Thereza de Hespanha, e que, ao dizer de um escriptor, apresenta uma physionomia sanguinaria e barbara, em consequencia do extravagante uso de pintarem de vermelho antigo os batentes, as portas, as gelosias das suas habitações.

Ha um proverbio espanhol que diz:

« Quien no ha visto Sevilha
No ha visto maravilha. »

Theophilo Gautier, escriptor de consciencia e bom gosto, pensa que mais justo fôra que este proverbio se applicasse a Toledo, ou a Granada, do que a Sevilha, onde nada encontrou particularmente maravilhoso, excepto a cathedral.

O poeta sergipano, doutor Pedro de Calasans, que tão cêdo foi arrebatado pelo infortunio e pela fatalidade ás musas do norte, dizia outrora, parodiando o proverbio hespanhol:

« Quem não ama Olinda,
Não a viu ainda. »

Assim será, assim é. Olinda semelha naiade gentil que adormeceu sobre arrelvado morro, os pés banhados pelo Atlantico, a cabeça á sombra das mangueiras odoriferas.

Goyanna, porém, tem tambem proverbio seu, e o seu proverbio é de tal significação, que, na singeleza em que se expressa, e de que o povo tem o segredo, insinúa irresistiveis feitiços a favor della.

Vê tu, meu amigo, como são expressivas estas reticencias duvidosas, ambiguas, deliciosamente traidoras:

« Goyanna..... ....
Que a todos engana »

Eunão conheço nenhum tão expressivo na ordem dos rifões populares.

O vocabulo — enganar — não tem nos nossos diccionarios o sentido que a intelligencia rica e lúcida do povo goyannista lhe refere; tem sómente a aceepção ingrata que todos lhe sabemos.

Mas logo ao primeiro exame se vê que semelhante accepção está muito distante da que a imaginação deste grande povo liga ao sobredito verbo, quando o emprega para exaltar o seu torrão natal.

A palavra — enganar, que faz parte do rifão, significa — seduzir, captivar, prender, mas seduzir com mil agrados irresistiveis; captivar com benignidade tão doce e fagueira, que é impossivel deixar de ficar della escravo; prender com tantas demonstrações affectuosas, com tamanha bemquerença, que em vez de buscar fugir, cada vez se sente o prisioneiro mais desejoso de estar nessa suavissima prisão, de não se desligar jámais dos seus deliciosos grilhões.

Christovam de Hollanda dirigira em pessoa, como haviam feito todos os outros capitães-móres, o seu contingente na batida das matas do seu districto.

Não tendo porém encontrado o Cabelleira, mas sómente ladrões de cavallos e negros fugidos, recolheu-se á villa em paz com a sua consciencia, é verdade, mas descontente de não ver coroados dos brilhantes successos, que esperava, os seus esforços.

Não lhe custou pouco renunciar ao empenho de pôr nas cordas, como dizia elle, o maior facinoroso que pisava em Pernambuco.

Era presumpção geral que a elle caberia, mais dia menos dia, a gloria de prender o Cabelleira que dava mostras de consagrar particular estimação ás matas de Goitá, lugar em que nascêra e que, posto pertencia neste tempo a Santo-Antão, ficava mais proximo do engenho Petribú que era propriedade daquelle capitão-mór; e pertencia então a Goyanna.

Mas o boato falso que correu a respeito da prisão do bandido pelo capitão-mór de Santo-Antão, desvaneceu toda a esperança que Christovam de Hollanda alimentava a semelhante respeito.

E que era feito do Cabelleira?

Por onde andava elle quando seu nome corria por milhares de bocas um milhão de vezes no dia; quando sua imagem enchia o pensamento de um povo que o considerava um flagello não menos fatal do que a peste e a fome que o reduziam a dôr extrema?

Dizia-se que o Cabelleira, vendo-se perseguido tão estendidamente, tinha rompido, sem deixar traços da sua passagem como costumava, o cordão sanitario, e se havia internado nos sertões de Cimbres, ou de Pajeú, donde era impossivel desentranhal-o por serem então, como são ainda hoje, quasi de todo desconhecidos esses medonhos sertões.

Dizia-se que, tomando para o norte, atravessára o Capibaribe e ganhára a ribeira do Pilar-do-Taipú, na Parahyba, a qual muitas vezes percorrêra, tendo-a deixado coberta de cadaveres e ruinas.

Correram estes boatos e outros mais que com estes se pareciam.

O certo porém é que ninguem sabia do Cabelleira, ente incomprehensivel que surgia de subito da terra sem ser esperado, e pela mesma fórma desapparccia, como si se mettesse por ella a dentro, por artes do demo, segundo alguns acreditavam, ou por ter em toda a parte parciaes, ou protectores, segundo pensavam outros que se diziam melhor informados do que os primeiros.

XIII


O Cabelleira entretanto atravessava matos, riachos e taboleiros por novos caminhos que, infatigavel e ousado, ia abrindo, em direitura ao lugar do seu nascimento.

Sentia-se attrahido para esse lugar por uma saudade infinda, por uma confiança enganosa e fatal.

Parecia-lhe que ninguem, nem a justiça dos homens nem a de Deus, na qual desde os mais verdes annos o tinham ensinado a não acreditar, teriam poder para arrancal-o desses sombrios e protectores escondrijos, dessas grutas insondaveis, perpetuamente abertas ás onças e a elle, perpetuamente fechadas ao restante dos animaes e dos homens que não se animavam a transpor-lhes o escuro limiar com receio de ficarem sepultados para sempre em tão medonhos sarcophagos.

Tendo-se afastado do pé da mata onde haviam sido vencidos e capturados em seus reductos os outros malfeitores, descreveu uma obliqua de cêrca de uma legua no rumo do occidente e desceu depois a uma distancia d’onde pudesse ter debaixo das vistas o Tapacurá, que lhe servia de guia atravéz do sertão.

Estava em pleno deserto. Do lado direito protegiam-no estendidos tabocaes e profundas gargantas de serra inaccessiveis, sem uma habitação, sem viva alma; do outro lado do rio um espinhal basto, alguns serrotes escalvados, catingas sem fim, brejos combustos do calor do sol completavam o largo amparo que lhe abria em seu seio a natureza.

Com a sêcca abrazadora essa região, que nunca fôra amena, ainda na força do verde, estava inhospita, arida, cruel.

Via-se a espaços um pé de chique-chique perdido nos alvos taboleiros, ou entre serros alcantilados, e junto do rio uma ingazeira com a folhagem coberta de sambambaia, um joazeiro solitario e sem fructo.

Seria meio dia.

Bem que o Cabelleira, pelo longo habito de jornadear por dentro dos matos, e pelo cuidado, que tinha, de escusar importunos encontros, só á sombra das arvores fazia a travessa do deserto, comtudo entraram elle e Luiza a experimentar o cansaço que o excessivo calor gera maxime durante uma viagem de muitas horas.

Luiza mal se podia ter sobre o cavallo, que nem ao menos offerecia o commodo de uma regular montaria. A marcha do pobre animal tanto mais penosa se tornava para os fugitivos quanto as forças lhe iam faltando em consequencia do longo jejum, e da puxada viagem.

Desde muito tempo affeito a viver no deserto, tinha o Cabelleira adquirido uma virtude – sobria, obra de longas privações, e fonte de admiravel heroismo; não assim Luiza, pobre menina, criada com grande affecto, e maternal solicitude.

Não tivera ella uma existencia de gozos e grandezas, mas nunca lhe faltaram os commodos que assegura a vida regrada da familia, que, embora pobre, encontra no trabalho e na economia recursos folgados para todas as necessidades e até para alguns confortos.

Á sombra de um jatobá o Cabelleira parou, e, lançando o olhar por toda a natureza, que os abraçava como a immensidade abraça um ponto:

— Estamos fóra de perigo, disse para Luiza. Esta chorava em silencio. Em seu rosto abatido, mas sempre bello transparecia a magoa profunda que lhe minava o coração, onde se reflectia a viva lembrança das scenas da noite anterior.

— De que chora, Luizinha? perguntou-lhe o bandido com doçura.

Só com a mudez e as lagrimas lhe respondeu a moça, em cujo espirito se haviam concentrado todas as sombras da tristeza, sombras espessas em que o sol em pino não póde lançar um raio de luz siquer.

— Está cansada, não é, meu amor? perguntou o Cabelleira.

— Estou para morrer. Sinto uma pena immensa no coração, e dores insupportaveis na cabeça.

— Não me queira mal, Luizinha, por eu ter sido a causa de todo este destroço.

— Não lhe quero mal; quero-lhe bem, muito bem, Cabelleira. Mas não posso esquecer-me de minha mãi, nem poderei resistir á minha desgraça, que eu considero muito maior do que a sua.

— Descansemos um pouco á sombra deste jatobá. Terei tempo de procurar algumas frutas para vossê comer.

— Não tenho fome, só tenho sêde.

— Vamos então arranchar-nos debaixo daquella ingazeira, que fica a poucos passos do rio.

Tendo-se apeiado ao pé da arvore indicada, o Cabelleira peiou o cavallo em uma baixa que formava a margem, da qual não havia desapparecido de todo a grama nascida com o ultimo inverno; e sem demora desceu ao poço contiguo para apanhar agua em uma casca de sapucaya que descobriu por acaso entre umas folhas seccas.

Notou que quanto mais se estendia a depressão do terreno para o lado do rio, mais augmentava a verdura que a revestia. Conheceu por fim que havia dado em uma vasante.

Semelhante achado pareceu-lhe cousa extraordinaria naquellas alturas invias e desertas. Mas não se tinha enganado; a região que se lhe offerecia á vista não era de todo deshabitada; alli brilhavam vestigios da mão do homem; alli havia o cunho de um esforço de que elle nunca fôra capaz, o cunho do trabalho.

Era pequena a plantação, mas tida, ao que parecia, em alta conta por quem quér que lhe consagrava os seus cuidados e vigilancia.

Estava verde, limpa, matizada de fructos. Com os ramos do gerumuseiro se confundiam as folhas lanceoladas do batateiral. Ao lado da melancia lourejava o melão, de que rescendia suave cheiro; e d’entre o entretecido de verdura formado pelo conjunto dos ramos rasteiros em que se achavam presos estes deliciosos presentes da terra, levantavam-se ao céo, de covas equidistantes, os pés de milho com seus pendões inclinados e suas corpulentas espigas, em torno das quaes se esparziam os fulvos cabellos que costumam adornar estes abençoados fructos.

É indescriptivel o prazer que sentiu o bandido ao deparar com aquelle thesouro.

Tinha a seu alcance com que matar a fome cujos effeitos, começava a sentir, e tinha um presente que offerecer á sua companheira, extenuada de fadiga.

Separar do pé com a faca, duas melancias, e quebrar algumas espigas foram operacões que o Cabelleira praticou em menos de um minuto. O estalar do milho despertou um rapazito que, achando-se alli para enxotar as maracanãs que destroem os milharaes, adormecêra ao calor do dia na extremidade da vasante debaixo de uma latada formada pelos ramos de um pé de maracujá que, com a frescura do solo, se mostrava verdejante e florido.

— Ladrão! Ladrão! gritou o rapazito com valor e força superiores aos que o seu corpo e estatura promettiam.

E armado com um páo, investiu contra o Cabelleira, que a inesperada apparição deixára um instante perplexo com parte do furto em uma mão, e a faca núa na outra.

O rapaz ganhou em poucos passos a distancia que o separava do bandido, e descarregou sobre a cabeça deste, sem dizer tir-te nem guar-te, o páo que trazia alçado. O Cabelleira em represalia atirou-lhe um golpe com o intuito de cortal-o de meio a meio, intuito que foi burlado por Luiza que lhe havia pegado do braço a tempo de evitar a desgraça imminente.

— Cabelleira! Queria fazer uma morte ainda? Meu Deus, abrandai-lhe o coração.

— Luizinha, eu não sei bem o que queria fazer, disse o moço cahindo em si. Mas este dorminhôco deu-me com o seu graveto como si eu fosse algum pinto.

— Quero-lhe muito bem, meu amor, acrescentou a moça com a profunda ternura que, quando verdadeiramente quer e sente o que quer, a mulher sabe ter no olhar, no gesto, na voz. Mas quando o vejo como agora de arma em punho, ameaçando com certeiros golpes, quaes são os seus, a vida de alguem, sinto tão grande dor, que vossê não pode comprehender o meu padecimento.

Cabelleira inclinou os olhos ao chão, metteu a faca na bainha e deu o andar com os fructos debaixo do braço.

— Para que traz vossê estes fructos comsigo? perguntou-lhe Luiza. Elles não nos pertencem, e não podemos apossar-nos, contra a vontade de seu dono, daquilo que não é nosso.

— Que vamos comer? perguntou muito naturalmente o mancebo.

— Comeremos o que nos der o mato. Deus está em toda a parte, e não se esquece dos que invocam a sua protecção.

Cabeleira submisso e humildemente depôz as frutas no chão sem mais reparo. Quanto ao rapazito, guarda da vasante, bavia desapparecido desde que ouvira pronunciar o nome, que de sul a norte significava, para grandes e pequenos, roubo e atrocidade.

Nova sorpresa os esperava na margem, onde o bandido foi dar com dous individuos que de pé o olhavam do alto de uma pedra, tendo um delles pelo cabresto o ardego alazão, já livre da pêa com que o atirára ao campo o Cabelleira.

Defronte da arvore, a cuja sombra os fugitivos haviam descansado, formava o terreno uma grande ribanceira.

Os desconhecidos estavam ahi com a frente voltada para a vasante, o lado direito para o continente, e o esquerdo para o rio, que nessa altura era largo e profundo.

— Parece que vossê veiu enganado, camarada, disse o Cabelleira, saltando em um minuto aos pés daquelle que tinha pela mão o cavallo. Este animal não lhe pertence.

— Este animal é meu no céo e na terra. Ha dous dias o furtaram do meu roçado no Angico-torto. Puz-me na batida do ladrão, e finalmente vim dar com o meu cavalo. Elle é meu, tão certo como estou aqui. Tem o meu ferro na anca direita, e vossê o póde ver, si ainda nãose quiz dar a este trabalho.

— Pois o que eu lhe digo, camarada, é que fosse elle de quem fosse, por mais homem que seja, ninguem será capaz de tiral-o do meu poder.

— Isto agora é que havemos de ver, disse o desconhecido, batendo mão da faca que trazia no cós da ceroula e fazendo-se prestes para lutar pela reivindicação da sua propriedade.

— Monta no teu cavallo, Marcolino, gritou o outro desconhecido ao companheiro; monta no teu cavallo e vai-te embora, que eu só sou demais para lamber este cabra.

Ainda bem não tinha acabado, quando cortava os ares um corpo semelhante a tronco de arvore que o furacão arrebata ás florestas e arroja a distancias incommensuraveis. O fanfarrão fôra jogado com todos seus bellicos aprestos dentro do poço pelas mãos possantes do famoso matador.

— Cabelleira! gritou Luiza, correndo ao lugar onde em menos de um instante se passára a inesperada scena.

Marcolino, que a esse tempo se achava montado no alazão, tendo ouvido este fatal appellido, deu de pernas ao cavallo e fugiu, evidentemente aterrado como si a seus pés houvesse visto cahir um raio.

O Cabelleira, entretanto, tinha corrido ao pé da ingazeira onde havia deixado o bacamarte quando se apeiára. Mas não logrou leval-o ao rosto para disparal-o, como pretendia contra o fugitivo, porque Luiza, unindo-se com elle, e buscando arrancar-lhe a arma das mãos, lhe disse com voz magoada, entre exprobração e pranto:

— Porque não me tira a vida de uma só vez, Cabelleira?

Dir-se-hia que Luiza estava possuida de um espirito angelico.

— De hontem para cá, proseguiu ella, tem jurado milhares de vezes não derramar mais sangue sobre a terra, e milhares de vezes tem quebrado seus juramentos! Sempre que falta á sua palavra, atravessa sem o suspeitar o meu coração com sua faca. Não demore mais o meu penar, mate-me de uma vez. Perdôo-lhe a morte, por Deus lhe juro, por Deus que nos está ouvindo no meio desta solidão.

Luiza tinha-se insensivelmente ajoelhado aos pés do bandido, e lhe abraçava as pernas com mostras de irreprehensivel affecto. Dos olhos rolavam-lhe lagrimas como contas de rozario espedaçado.

Estatico, e confuso, não achou José palavras para responder á exprobração e rogativas que aquelle coração generoso dictava inspirado pela piedade de uma alma grande e terna.

— Não me falle assim, Luizinha, respondeu emfim o bandido, levantando-a e abraçando-a. Quando eu a vejo chorar, sinto-me enfraquecer; quando vossê me pede alguma cousa, sou incapaz de negar-lh’a, ou de resistir á sua vontade.

— Mas de que serve o que me diz, si não se esquece da sua vida tão triste e infeliz? Cabelleira, porque não se ha de tornar brando e terno como Luiza? Olhe. A morte está mais perto de mim do que....

— A morte! exclamou o bandido.

— Sim; dentro em pouco eu o deixarei, mas emquanto não nos separarmos, poupe-me estas scenas que me traspassam o coração. Quando eu desapparecer de seus olhos, não se considere só no mundo. No lugar que meu corpo deixar vasio ao pé de si, ha de ver sempre à alma benevola e amorosa da pobre Luiza; ella o acompanhará por toda a parte para inspirar-lhe os bons pensamentos e aconselhar-lhe a pratica das boas acções. Porque não me dá à consolação de reconhecer em vossê desde já um espirito arrependido dos passados erros?

— Ah! Luizinha! Vossê me abranda com suas palavras, em sua presença eu me considero uma criança.

— É Deus que me ajuda a quebrar seus impetos, a moderar sua colera. Elle ha de ouvir todos meus rogos, ha de inspirar-lhe horror ao sangue e aos instrumentos que o derramam.

Cabeleira, como si tivesse recebido nestas palavras um aviso celeste, replicou:

— Não levantarei mais minha mão contra ninguem, Luizinha. Quer uma prova desta resolução? Veja. É a maior que lhe posso dar.

Tirou o fuzil e a pedra do bacamarte, os quaes metteu na algibeira da vestia.

E por um desses sublimes impulsos que só visitam o homem uma vez na vida, arremessou a arma dentro do rio. Este acto foi seguido de outro que o completou e confirmou. Batendo com a faca sobre uma pedra que ficava na ribanceira, fez saltar dentro da agua metade da folha de aço que tinha cortado o fio de muitas vidas preciosas, e feito correr muito sangue innocente sobre a terra.

O bandido obrou estas duas acções com tanta fé e grandeza d’alma, que Luiza correu a elle dominada de peregrina commoção, e o apertou em seus braços.

Só o deserto foi testemunha desta grande scena, porque elles estavam, como havia pouco, sós.

O menino que guardava a vasante havia desapparecido logo que ouvira pronunciar o nome do Cabelleira.

Os dous desconhecidos, um salvo das aguas, outro salvo do tiro imminente, tinham corrido a refugiar-se no seio da espessura.

— E agora, Luizinha, terá ainda alguma cousa que dizer de mim? perguntou José com ingenuidade infantil.

— Os meus rogos foram ouvidos por aquelle que dalli nos vê e ouve como pai misericordioso. O medo que eu tenho agora, é que as tropas o peguem e o roubem de meus braços! Oh! fujamos já deste lugar Quem sabe si aquelles homens não correram a denuncial-o! Misericordia, meu Deus! Que fazemos ainda aqui?

Puzeram-se no mesmo instante a caminho na direcção do occidente.

XIV


O sol chegou ao horizonte, e as sombras começaram a cobrir a vasta solidão.

O Cabelleira parou ao pé de um serrote, e escutou.

Um ruido estranho vencia a distancia e vinha echoar aos ouvidos dos fugitivos.

— Estamos perto, disse elle. Não ouves este barulho? São as aguas do Tapacurá que cahem no Capibaribe. De madrugada atravessaremos este rio, e si bem andarmos poderemos estar depois de amanhã a esta hora em Goitá, terra do Cabelleira.

— Ai! disse a moça. Não posso mais.

Tinha as faces em braza, e os olhos, injectados, accusavam a febre ardente que a consumia desde a noite anterior.

— Não esmoreças, meu bem; disse o mancebo. Havemos de ser felizes.

— Onde? Neste mundo? perguntou ella com incredulidade. Na terra não ha felicidade, Cabelleira; na terra só ha dores e prantos, saudades e remorsos.

— Pois eu te mostrarei que se póde ser feliz no deserto, no fundo das brenhas. Não matarei mais a ninguem, meu amor. Bem dentro da mata virgem, em um lugar que só eu conheço, ha um olho d’agua, que nunca deixou de correr. Junto deste olho d’agua ha uma chã, no fim da chã um bosque, e por detraz do bosque uma montanha immensa que rompe as nuvens. O olho d’agua nos matará a sêde todo o anno; na chã levantarei uma casinha de palha para nós; no meio do bosque abrirei um roçado que nos ha de dar farinha, macaxeira, feijão, e milho com abundancia; e quando a secca fôr muito forte, como esta, subiremos á serra, e ahi passaremos dias melhores.

— Si assim fosse.. Si assim pudesse ser... balbuciou Luiza.

— Porque não?

— Porque? Porque a desgraça ahi está para desmentir o seu sonho, Cabelleira.

— Olha, Luizinha. Os homens me deixarão logo que eu não os offender mais. Não sei ainda trabalhar, mais hei de saber. Tu me ensinarás, e eu aprenderei.

O Cabelleira disse estas palavras com a ingenuidade e doçura de uma criança. Luiza não se pôde conter; correu a elle, e pela segunda vez o apertou em seus braços e cobriu com as suas lagrimas. Elle abraçou-a e beijou-a com a effusão do primeiro amor, que, depois de longamente adormecido, desperta de subito com as energias que cresceram durante o somno, e se fizeram forças invenciveis.

— Alli adiante, disse o Cabelleira apontando para um embastido de arvores que apparecia ao pé de um serrote; poderemos passar a noite, a nossa primeira noite de noivado.

Luiza estremeceu, e suspirou. Si não se tivesse arrimado ao braço do bandido, teria cahido.

— Triste noivado, Cabelleira, triste noivado, que se cobre de prantos e luto.

— Não te amofines assim. O Cabelleira não é mais o assassino, Luizinha. O ladrão, o matador já não está aqui ao pé de ti. Quem aqui está é um homem que quer ser um homem de bem.

Deram o andar para o lugar indicado.

A este tempo o sol tinha desapparecido, e o horizonte estava já envolto nas sombras precursoras da noite. Nem leve brisa movia as folhas dos matos mudos e quêdos.

Os perfis das arvores solitarias desenhavam-se, no fundo do pavoroso ermo, como perfis de phantasmas.

Os fugitivos entraram no embastido, e depois de alguns passos deram em uma clareira, especie de asylo reservado pela natureza aos peregrinos que vagam sem rumo e sem guia.

Uma fogueira foi logo improvisada para terem luz durante a noite e evitar que se aproximassem as onças cujos uivos medonhos começavam a repercutir nas quebradas e gargantas das serras.

Procurava o mancebo galhos seccos para entreter o fogo, quando, ao pé de uma arvore que se levantava a um lado da clareira, deu com uma tosca cruz de pau cravada na terra.

Era quasi noite, e, no meio das sombras crepusculares, confundiu elle ao principio, o emblema da redempção com um tronco de arvore cortada por algum viajante transviado, ou despedaçada pela tormenta.

Quando reconheceu o sagrado emblema, o Cabelleira, suspenso pela sorpreza, sentiu-se abalado ao mesmo tempo por uma commoção desconhecida. No lugar occupado pela cruz tinha elle assassinado um anno antes um marchante de gados para lhe roubar o dinheiro que trazia da feira em Santo-Antão.

O bandido voltou o passo atrás horrorizado e correu em busca da moça, gritando, como um menino:

—Luizinha! Luizinha!...

A moça, afflicta sem saber por que, lançou-se ao seu encontro e o recebeu em seus braços.

— Ninguem te ha de tirar daqui, disse ella, suspeitando que o queriam prender. Não, não, tu me pertences. Deus ajudou-me a pôr-te no caminho do bem. Ninguem tem mais o direito de te perseguir.

— Eu o vi lá outra vez, Luizinha. Elle olhou-me silencioso e triste.

— Elle quem? perguntou ella.

— O marchante; o velho aquem assassinei para roubar. Lá está elle com os cabellos brancos ensopados em sangue.

— Meu Deus! meu Deus! exclamou a moça. Commetteste ainda um assassinato, Cabelleira? Meu Deus, quanto sou infeliz!

— Não, não foi agora; faz um anno; foi alli, junto do jatobá. Olha; não vês aquella cruz de pau enterrada no chão? Foi ahi que matei o sertanejo.

É impossivel descrever a commoção de ambos. O sitio, a hora, tudo concorria para dar á impressão uma intensidade que ia ao fundo do coração, á medula dos ossos.

— Estou me lembrando de tudo, proseguiu o bandido. Eu estava sentado, com o clavinote atravessado nas pernas debaixo daquelle pé de pau. Ouvi as pizadas de um cavalo, e o estrallar de garranchos e cipós que se quebravam. Metti-me um pouco mais para dentro, a fim de ver, sem ser visto, quem é que vinha. Eu estava com fome, e não tinha dinheiro nenhum. «Si fosse um homem que trouxesse dinheiro — pensei eu — estava muito bem»!! Neste momento o cavalleiro passou por diante de mim. Trazia chapeu novo, um gibão de panno-fino azul, botas lustrosas e esporas de prata; montava um cavallo russo-pombo, gordo e passeiro. Conheci logo que era um marchante. Levei o bacamarte ao rosto, e quando o cavalleiro quebrou alli à direita para tomar o vau do rio, fiz-lhe fogo na cabeça. Corri com a minha faca na mão ao lugar onde elle havia cahido. Estava morto; a balla tinha-lhe entrado ao pé da orelha direita e sahido acima do olho esquerdo. Ambos os olhos estavam da banda de fóra, o cabello e a barba nadavam em sangue. Tirei-lhe um maço de patacões que trazia em um dos bolços do gibão, o punhal apparelhado de prata, os botões de ouro, o relogio e as esporas; e metti-me no mato virgem.

Luizinha mal pôde ouvir esta historia que foi rapidamente contada, com vivas e medonhas côres.

— Misericordia, Senhor! exclamou ella.

— Elle lá está, Luizinha, de pé, com o chicote na mão, olhando para mim com seus olhos mortos, á flór da cara.

A moça meditou um momento.

— Vamos; disse por fim, encaminhando-se para a sepultura; vem comigo.

— Oh! não; aquella visão me aterra. Nunca tive tanto mêdo, eu que vi immensos cadaveres banhados em sangue aos meus pés.

— O medo passará em um instante, Cabelleira.

— De que modo, Luizinha?

— Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz.

— Rezar?

— Assim que tiveres rezado um padre-nosso e uma ave-maria em tenção do morto, sua alma desapparecerá de tua vista. Vamos, Cabelleira.

O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia, com seu vestido azul e seu lenço branco, passado em torno do pescoço, o anjo da prece na solidão.

Ajoelharam-se ao pé da cruz, Cabelleira com a face quasi occulta por seus longos cabellos negros, Luiza com a cabeça erguida, e os olhos postos na frouxa claridade do sol que se desvanecia na abobada celeste defronte delles a cruz resequida, solitaria e muda testemunhava aquella seena com a solemne indiferença dos symbolos sagrados que é muito mais expressiva e eloquente para os seus crentes do que as vozes da mór parte dos sacerdotes da respectiva religião.

— Reza, Cabelleira; disse a moça ao matador assombrado.

— Ai, Luizinha! Não sei rezar! disse elle com voz tão sentida e magoada que indicou a pena profunda que lhe cortava o coração.

Elle estava na realidade commovido até ás entranhas. Superexcitado pela falta de alimentação, pelo cansaço da jornada, pelo calor do dia, pelas recordações que o affligiam de envolta com o remorso incipiente, via a cada canto a terrivel visão reproduzida na clareira, na selva, nos ares, finalmente em toda a parte aonde volvesse os pavidos olhos.

— Eu te ensinarei, redarguiu Luizinha. Dize comigo.

A moça principiou então em voz alta o padre-nosso.

A voz do bandido, ao principio titubante e temerosa, foi-se pouco e pouco animando, e elevando.

Quando houveram de passar á ave-maria, o Cabelleira tinha já os olhos pregados na cruz, e a fé, que começava a germinar em seu espirito, elevava-o insensivelmente a regiões desconhecidas, onde, sem que elle pudesse explicar como, lhe davam a respirar confortos que só podiam ser celestiaes.

Da ave-maria passaram á santa-maria e desta á salve-rainha.

Em cada uma das palavras destas orações achava o bandido uma belleza nova e insinuante que lhe despertava delicioso sentir.

Seu espirito, que durante vinte annos só conhecêra idéas de sangue e morte; seus ouvidos, affeitos a escutarem palavras licenciosas, insultos, arrogancias, queixumes e maldições; recebiam agora doces expressões que annunciavam uma consoladora existencia superior.

Do pavor, que trouxera aos pés da cruz, passára a uma fortaleza de animo quasi invencivel.

Antes de se levantar volveu os olhos em torno de si e não viu mais a visão que o amedrontára, havia pouco.

— Oh! Luizinha,como é poderosa a oração! disse elle. Minha mãi, que tantas vezes pôz as suas contas nas minhas mãos, bem sabia que a oração tem mais força do que os homens e vence todas as armas! É por isso que me ensinava a rezar a mim que só aprendi a tirar a fazenda e a vida dos meus semelhantes.

Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira.

Depois de offerecidas estas orações, levantaram-se os fugitivos, e foram depôr cada um seu beijo aos pés da cruz do ermo.

No bandido já não havia o assassino, havia um espirito contricto, um coração cheio do temor de Deus. Uma mulher fraca, tendo ao seu serviço unicamente a benevolencia natural, a perseverança, as lagrimas e um passado quasi desvanecido, havia operado uma conversão com a qual poderia legitimamente orgulhar-se um verdadeiro apostolo do christianismo.

Co a sua luz suave enchia o deserto o astro das recordações e da saudade. O céo estava azul e estrellado. As brisas da noite começavam a mover as folhas do bosque, onde os silvos das cobras, os pios das aves erradias, os uivos dos animaes carniceiros formavam lugubre e medonha orchestra.

Luizinha cahiu em uma especie de somnolencia e pouco depois sentiu perturbação mental, e veiu-lhe delirio, durante o qual deixou escapar palavras desconnexas. A febre que a devorava tinha augmentado com a excessiva fadiga, e com a intensidade das impressões do dia. Cabelleira estendeu por cima della a sua vestia de couro, e, profundamente commovido, foi sentar-se ao pé da fogueira para não a deixar extinguir-se, e para impedir que se aproximassem as onças que não cessavam de ulular em derredor delles, ameaçando devoral-os. A vida no deserto está exposta a perigos, que mal comprehende o que não nasceu no meio delles; só os compensa a liberdade que se depara em qualquer dos gozos que ahi se logram.

Pela madrugada elle adormeceu ao peso da fadiga, e ao silencio que foram fazendo em torno de si as féras. Quando acordou era quasi dia. Os passarinhos cantavam com o enthusiasmo que desperta em todos os corações o raiar de um dia de verão no seio da natureza.

Seu primeiro cuidado foi saudar aquella a quem devia a resurreição de sua alma, outrora em trevas afflictivas, agora inundada do suave clarão da piedade christã.

— Luizinha, acorda, disse elle. A manhã está fresca. Os passarinhos cantam. A viração tem os cheiros do deserto.

Aproximou-se de Luiza, tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio, e depoz-lhe nos labios um beijo de amor. Os labios da gentil menina estavam frios, seu corpo gelado. Luiza não pertencia mais a esta vida.

Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dôr que atroou a immensa solidão como urro de touro selvagem.

— Morta! Morta! Luizinha!

O cadaver da moça escapou-lhe dos braços, mas logo o bandido cahiu de joelhos aos pés desse corpo inanimado, com o qual tinham fallecido todas suas esperanças e felicidade,

— Luizinha, responde-me, disse elle. De que morreste, meu amor?

Levantou-se, deu alguns passos à esmo, tornou ao leito de ramos que tinha servido de leito de morte á virgem dos seus pensamentos.

Pegou-lhe das mãos, que beijou uma, duas, innumeras vezes, examinou-as, examinou o rosto da infeliz, e só encontrou ahi os vestigios do transito final. Tudo estava acabado para ella. Foi esta a verdade cruel que elle viu traspassado de uma pena que se não descreve, e que só elle sentiu nesta vida.

Sentou-se no chão, e suspendeu o cadaver para atravessar sobre os joelhos. Um galho da arvore que com sua folhagem havia abrigado a moça durante a noite, afastou-lhe o lencinho branco que lhe envolvia o pescoço, e indiscretamente descobriu aos olhos do consternado amante seus seios virgens.

Ao vel-os, soltou este nova exclamação de dôr. A chamma que Luiza, para salvar Florinda do incendio, transpuzera a noite anterior, havia deixado uma só chaga no lugar onde a natureza tinha-a dotado com um cofre de graças e perfeições peregrinas.

— Queimada! Oh! Luizinha, que soffrimento não foi o teu! Que dores não supportaste em silencio, desgraçada criança! E como fico eu sem ti, meu amor? Ai de mim, Luizinha! Ai de mim!

O animo varonil, que sempre se mostrára inteiro e immoto, agora agitado por commoções tão violentas, dobrou-se emfim e deu larga prova da fragilidade humana. Dos olhos do bandido irrompeu uma torrente de lagrimas. Soluços, como de animal bravio, escaparam de seu peito e echoaram pela immensidade ainda em grande parte adormecida. Havia quinze annos que esses olhos não choravam diante dos mais tristes e lastimosos espectaculos.

— Que noivado o meu! É o noivado do assassino! Oh! meu Deus!

De repente do lado do rio soou um clarim.

Á dôr succedeu o susto, e depois o terror no animo do desgraçado mancebo. Só, sem armas, arrependido de toda sua vida de crimes, que restava ao Cabelleira naquelle doloroso transe?

O clarim soou mais perto, e com as vozes deste instrumento chegou aos ouvidos do mancebo um retintim de espadas e facões que indicava, junto com as sobreditas vozes, a existencia de um corpo militar por aquellas bandas. Andava de feito por alli um dos piquetes do regimento de Christovam de Hollanda, o qual, depois de ter batido algumas matas suspeitas, se recolhia á villa, d’onde havia partido na noite immediata.

Cabelleira depôz o cadaver de Luiza sobre os ramos, e afastou-se para dentro do mato não sem novo sobresalto, á vista do risco em que se achava.

Depois de ter desapparecido, voltou novamente, e suspendeu em seus braços o corpo com o intuito de conduzil-o comsigo para dentro da espessura. Mas quando ia a entrar ahi com os tristes restos do seu thesouro, um homem appareceu na extremidade da clareira. Era o Marcolino que, havendo-se encontrado com o piquete ao cahir da tarde anterior, relatára o que havia acontecido junto da vasante, e se offerecêra para o guiar no rumo do fugitivo.

Este, vendo que a sua vida estava em perigo, e que a perda de um momento podia ser-lhe fatal, resignou-se a deixar o precioso despojo, e internou-se de uma vez no mato.

Com pouco uma companhia de soldados penetrou no pouso onde Marcolino já havia dado com o corpo de Luiza.

— Cheguem, cheguem depressa. Dormiu aqui o assassino. Alli está a fogueira ardendo ainda, e aqui a sua propria companheira, que elle deixou morta. Ah malvado!

Os milicianos rodearam o cadaver de Luiza sobre cujo rosto não seria difficil descobrir ainda vestigios das lagrimas do desgraçado mancebo.

— Perverso! Perverso! exclamaram alguns delles indignados do que viam, mas não sabiam.

— Não satisfeito de ter matado mulheres e meninos no fogo, veiu tirar aqui a vida a sangue frio áquella que o quiz acompanhar.

— Não percamos tempo, observou Marcolino. Elle deve estar perto daqui. Vamos, minha gente, vamos descobrir o assassino emquanto elle não nos escapa.

— É verdade. Alto frente. Toca a corneta, Tiririca.

— Não toques, que si o Cabeleira nos ouvisse, ninguem mais lhe punha o olho em cima, quanto mais a mão.

— Si não fosse esta corneta, já tinhamos pegado o cabra; observou Marcolino.

— Qual cabra nem meio cabra. Aquelle que tem de pegar o Cabelleira está ainda por nascer.

E entraram na espessura.

XV


O Cabelleira desappareceu no mato como desapparece o peixe no seio da corrente caudal.

Os milicianos, bem que homens igualmente rusticos, e conhecedores das florestas, não tinham todavia o longo uso da espessura, uso que, ainda neste particular, tornava superior a elles o valoroso malfeitor.

Espalharam-se em differentes direcções, a esmo, sem plano, e por isso sem probabilidade de bom resultado.

O piquete não era numeroso,e vinha quasi debandado quando o encontrou o Marcolino que denunciou o ponto onde havia deixado o fugitivo.

Poucos deram credito ás palavras do matuto, e só por desencargo da consciencia alguns se prestaram a dar a busca que elle propôz, e que, a seu parecer, não podia deixar de sortir o desejado effeito.

Gastaram quasi o dia inteiro na diligencia.

Por fim, dissuadidos de descobrirem o assassino, cada um tomou o caminho mais curto para sua casa, dando alguns ao diabo o Marcolino por têl-os feito andar para dentro e para fóra do mato inutilmente, e acreditar em esperanças que não se realizaram.

— E veiu vossê fazer-nos perder mais um dia, compadre Marcolino, disse um dos milicianos, aborrecido e fatigado do infructifero lidar. Nem vossê chegou a ver o Cabelleira. Viu algum tangedor de cachos compridos, e já pensou que era o mameluco.

— Eu não digo uma cousa por outra. Vi-o com estes olhos que a terra fria ha de comer. Fallei com elle como estou fallando com vossê agora. Lá o elle ter voado como passarinho, ou ter-se mettido pela terra a dentro como tatú ou jararaca, é caso á parte.

— Vossê viu periquito e cuidou que era arára ou canindé, replicou o miliciano.

— Compadre, vossê está fazendo pouco em mim. Ora deixe-se disso, que eu não sou de lérias, como vossê bem sabe. É tão certo que vi o Cabelleira, que até lhe tomei o cavallo que elle me havia furtado, o meu alazão.

— Pois então, póde montar no seu alazão e voltar á casa. Dê lembranças á comadre Maria e lance a benção a meu afilhado Cazuza. Si encontrar outra vez o Cabelleira, dê-lhe um abraço por mim, um beliscão e uma boquinha.

— Eu, si tivesse ainda o meu alazão, juro-lhe que havia de desencavar o Cabelleira, ou com a vida ou com a morte.

— E que fim levou o seu quartáu?

— Espaduou de muito andar. Parece que desde a hora em que o maldito demo o tirou do meu quintal não soube mais o que era comer nem beber, e andou n’um cortado.

— Si vossê quer servir-se do meu cavallo castanho, elle nos está alli ouvindo. Desta vez estou fallando serio.

— Onde está elle?

—No sitio do Felisberto, aonde o mandei com um costal de mandioca.

— Pois aceito, meu compadre, a sua proposta. Hei de mostrar-lhe que o que digo, digo. Si eu não descobrir neste matão, ou por estas beiradas de rio o Cabelleira, hei de saber noticias delle seja onde fôr. Tambem de uma cousa tenha vossê certeza: quando ouvir sua mulher dizer: — « Ahi vem o compadre Marcolino no cavallo castanho » fique logo sabendo que, si eu não deixei o Cabelleira na embira, o deixei no buraco.

Os dous matutos achavam-se na margem esquerda do Capibaribe.

Na margem opposta levantava-se, entre umas laranjeiras e uns oitiseiros, uma casa de bom parecer. Era a casa de Felisberto.

Elles atravessaram a váo o rio, e foram ter á graciosa habitação, que no meio daquelle deserto attestava a existencia de uma civilização rudimentar no lugar onde havia cahido, sem tentativa de proveito para a sociedade que o succedêra, o gentilismo guarany digno de melhor sorte.

Do alto onde fôra construida a habitação via-se o rio que corria na distancia de umas dezenas de bráças, e desapparecia por entre umas lages brancas no rumo de leste; do lado do occidente mostravam-se as lavouras de Felisberto desde as proximidades da casa até onde a vista alcançava.

Felisberto applicava-se quasi exclusivamente á cultura da roça. No perimetro de vinte leguas em deredor era o lavrador que desmanchava mais mandioca no fabrico da farinha, que era de tão boa qualidade que competia no mercado do Recife com a farinha de Moribeca, já então afamada. Havia annos em que elle mandava para o Recife cêrca de 200 alqueires.

Um negro, uma negra, duas negrotas, e tres molecotes filhos dos dous primeiros faziam prodigios de valor na cultura das terras. Amanheciam no cabo da enxada e só se recolhiam quando faltava uma braça para o sol se esconder no horizonte. Estes escravos viviam porém felizes tanto quanto é possivel viver feliz na escravidão. Não lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem, e nos domingos trabalhavam nos seus roçados. Em algum dia grande faziam seu batuque, ao qual concorriam os negros das vizinhanças.

Quando o Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre de assucar do engenho Curcuranas, teve a feliz idéa de ir estabelecer-se naquelle sitio que comprára com algumas economias que lhe legára um tio que vivêra de arrematar dizimos de gado. Essas economias deram-lhe tambem para comprar duas moradinhas de casas e o negro André. Com a negra Maria, que a mulher lhe trouxera em dote, casou Felisberto o seu negro, na esperança de que em poucos annos a familia escrava estaria augmentada, e por conseguinte augmentada tambem a fortuna do casal. Essa esperança foi brilhantemente confirmada.

Felisberto não estava em casa á chegada dos dous matutos. Havia ido á villa a negocio e ninguem sabia quando elle estaria de volta.

Elles tiraram para a casa de farinha, que ficava a um lado da casa de morada, e apresentava nesse momento um aspecto que não era o usual.

Estava-se fazendo farinha para ser a toda pressa mandada ao Recife, onde a grande falta que havia deste genero, assegurava pingue lucro ao vendedor.

Fructos do trabalho honesto e esforçado, o qual é sempre favorecido pela Providencia, não tinham sido de todo destruidos pela grande secca os roçados do Felisberto. Elle já enumerava muitos prejuizos, mas olhando em torno de si via ainda muito com que cortar na tremenda crise que reduzira o geral da população da provincia a extrema penuria.

Era quasi noite, e ainda chegavam animaes com caçuás cheios de mandiocas que eram despejados nas tulhas já formadas destas raizes.

Mulheres sentadas pelo chão ou em cepos, ao pé dessas tulhas, tiravam as mandiocas uma a uma, e as iam raspando a quicé, e, atirando depois dentro de cestos que eram conduzidos para junto das rodas a fim de serem ellas passadas pelos ralos que circulam estas.

A casa-de-farinha não era mais do que um vasto alpendre aberto por todos os lados e coberto de palhas de pindoba.

No centro via-se o forno onde tinha de ser cozida a massa já apertada pela prensa e livre da manipueira. Parte della porém, tanto que sahia do pé das rodas, era lavada em gamellas e alguidares onde deixava o residuo ou gomma para os bejús e tapiocas.

A prensa estava armada a um dos lados do alpendre; no outro viam-se as duas rodas que não cessavam de gyrar. Quando cansavam os matutos ou escravos que as moviam, eram logo substituidos por gente fresca.

Os dous matutos, alli bem conhecidos, foram saudados pelas pessoas que estavam trabalhando, e, como é costume em taes occasiões ainda hoje, trataram elles de concorrer gratuitamente com o auxilio dos seus braços descansados, o que a muitos não deixou de ser agradavel.

— Venha para cá, seu Marcolino. Pegue no veio da roda, e desmanche-me esta mandioca que está custosa de acabar, disse um.

— E eu ponho de boa vontade em sua mão, Marciano, este rôdo. Não precisa mecher muito a massa; o forno não está muito quente e não ha risco de queimar-se a farinha, disse outro.

— Prepara os bejús, Mariquinhas, disse o Marciano a uma rapariguinha morena e cacheada que, com as mangas arregaçadas, lavava em um alguidar uma porção de massa.

Mariquinhas sorriu e continuou no seu trabalho que lhe absorvia toda a attenção.

Pouco depois chegaram dous cunhados de Felisberto, que tinham feito parte do regimento volante da freguezia.

— Então que fizeram? perguntaram muitos a uma voz logo que os viram entrar.

— Nada. Vossês pensam que pegar o Cabelleira é o mesmo que raspar mandioca, ou comer farinha molle?

— Não o viram nem com os olhos, seu Quinquim?

— Qual, senhor! Cabelleira de minha vida!

— Encontramos muita onça, e muita cascavel, mas do Cabelleira nem novas nem mandado. Ha quem diga que elle a esta hora já está nos sertões dos Cairirys.

— Qual Cairirys, senhor! Amanhã hei de dar com esse dunga, disse o Marcolino.

— O compadre Marcolino jura que o viu hoje junto das cachoeiras do rio, acrescentou o Marciano.

— Mas não nos mostrou o cabra durante todo o dia, respondeu Agostinho.

— Está bem, senhores, não fallemos mais nisso. Os senhores estão desfazendo agora no meu dizer, talvez amanhã a cousa já seja outra. Eu sou um pé rapado, é certo, mas muito verdadeiro.

— Ninguem duvida de sua palavra, Marcolino.

Um negro que estava mettendo lenha no forno, virou-se então para o matuto, e, de improviso, lhe dirigiu este verso:

Vosmecê, seu Marcolino,
Vai atraz do Cabelleira?
Si quizer pegar o cabra,
Monte na besta fouveira.

Ainda bem não tinha terminado o seu repente, quando um caboclo que, a um canto do alpendre estava lavando em um côcho uma porção de mandioca, se sahiu com esta resposta:

Monte na besta fouveira,
Ou no cavallo cardão,
Não ha de pegar o cabra
No meio desse mundão.

Reinou então silencio no alpendre para só se ouvirem os dous repentistas. Estava travado um desses desafios que são tão communs nos sertões do norte, e, muitas vezes, pela facilidade das rimas e originalidade dos conceitos, chegam a offerecer versos que podem figurar entre os mais primorosos monumentos da litteratura natal.

O negro replicou:

Si vossê gosta do bicho
Porque rouba, e mata gente,
Veja que alguem não lhe tire
As orelhas p’ra presente.

O caboclo respondeu:

Mette, negro, a tua lenha
No teu forno, caladinho;
Mas não te mettas com homem;
Podes ficar sem focinho.

O negro:

Eu que sou negro nas cores
Mas não negro nas acções,
Si fosse atrás do malvado,
Cortava-lhe os esporões.

O caboclo :

Para o negro que se mette
Onde não lhe dão entrada
Não tem faca o Cabelleira,
Tem uma peia ensebada.

O negro:

Eu respeito a meus senhores
E senhoras que aqui estão;
Mas porém não levo em conta
Quem não teve criação.

O caboclo:

Caboclo do pé da serra,
Criado á beira do rio,
Eu sempre tratei com gente,
Porque sustento o meu brio.

O desafio, tão bem encaminhado, foi interrompido pela chegada de um cavalleiro. Era o Felisberto que voltava da villa.

A lida na casa-de-farinha continuou não obstante até alta noite entre risos e cantigas.

O luar inundava o vasto pateo do sitio, e ia pratear as margens e aguas do Capibaribe.

Viração intermittente agitava as folhas das macahybeiras e dendezeiros que se levantavam pela extrema das terras de Felisberto.

Cortava os ares o suave murmurio das aguas casado com o canto monotono dos curiangos, que pulavam pelos caminhos.

Pela madrugada, o Marcolino montou no cavallo castanho, atravessou o rio, e metteu-se no vasto deserto, ainda adormecido. Como quasi todos os homens rusticos, era caprichoso, e entendia que si não cumprisse a sua palavra, solemnemente empenhada, ficaria sendo o ludibrio de todos os que o conheciam. Preferia a este extremo, morrer de fome e sêde no mato, ou comido das onças, cousa em que, para bem dizermos, pouco cuidava, Todas suas idéas estavam voltadas para um centro unico: descobrir o Cabelleira. Era este o seu ponto de honra.

Sabendo que o Cabelleira ordinariamente quando se ausentava das matas de Santo-Antão, apparecia nas de Páu-d’-alho, tomou a direcção desta povoação.

Páu-d′-alho fazia então parte da freguezia de Iguarassú, da qual foi desmembrada em 1799 para ser elevada á freguezia por proposta do visitador Joaquim Saldanha Marinho, nome que traz hoje com invejavel brilho um dos maiores espiritos que conta o Brazil moderno. Passou villa por alvará de 27 de julho de 1811, e a comarca pela lei provincial de 5 de maio de 1840.

Marcolino subiu pela margem do Capibaribe, e antes do meio dia entrou na povoação que fica em terreno plano á beira deste rio. Nada lhe constou a respeito do Cabelleira.

Demorou-se o tempo estrictamente necessario ao descanso do cavallo, e quando o sol quebrou pôz-se novamente a caminho para Goitá, que fica quatro leguas distante de Páu-d’-alho, e nesse tempo era um lugarejo de nenhuma importancia, pertencente a Santo-Antão.

Ha loucuras transitorias que por tal modo revolucionam o espirito do homem, que O tornam capaz, assim de grandes baixezas, como de virtudes impares. Feliz aquelle que, sob a influencia de loucuras semelhantes, põe os seus esforços e sacrifícios ao serviço da humanidade ou de uma causa nobre.

Marcolino estava possuido de uma dessas loucuras.

Sem o pensar nem querer, tinha fatalmente arriscado a sua palavra, o seu brio, a sua honra. Estava apaixonado pelo lance, e era inevitavelmente arrastado a seu destino.

Deixando mulher e filhos, em duelo com a necessidade, vinha, como um cruzado, um peregrino, um apostolo do bem, ou um visionario em busca de um ente que fazia tremer povoações inteiras, que preoccupava o governo, que apparecia como phantasma, e desapparecia como uma sombra.

Este ente tinha á sua disposição o mato para o receber, os echos para o avisarem da aproximação dos que o buscavam, os rios para encherem depois de sua passagem, as grutas para o esconderem, a natureza emfim para o disputar tenazmente aos homens, ao poder publico, ás leis, á justiça, ao proprio Deus segundo parecia.

Á tardinha Marcolino estava no logarejo. Debalde perguntou, debalde indagou. Não houve quem lhe désse novas do famoso bandido.

Ahi pernoitou, mas não dormiu.

Muito cêdo metteu-se nas matas.

A cabo de dous dias, consumidos sem resultado, entrou a cahir em si. A razão tinha-se libertado da hallucinação que a prendêra em suas rêdes d’aço. Á sua doce luz reappareceram os caminhos que as trevas da paixão tinham encoberto aos olhos da victima do sonho fatal.

Marcolino cahira em si no meio do deserto, ouvindo o rugir das féras, lutando com a fome.

Desanimado, envergonhado da sua fraqueza, resolveu voltar ao seio da familia.

Então a imagem dos filhos e da mulher lhe appareceu na mente. Elle teve saudades da casa e quiz partir á mesma hora; mas conhecendo os perigos á que se expunha; si o fizesse, aguardou sofrego a madrugada. Quando os horizontes começaram a desmaiar, e o brilho das estrellas a embranquecer, Marcolino pôz-se a caminho,

Estava inteiramente outro.

A vergonha cobria-lhe o rosto, o medo dominava-lhe o espirito, na consciencia doia-lhe o remorso de haver, sem o menor interesse pessoal, desamparado mulher e filhos nas garras da miseria.

O dono da casa onde elle havia pernoitado dous dias antes, ao qual devia, além desta, outras muitas obrigações, dera-lhe uma carta para ser entregue por elle ao senhor do Engenho-novo que de presente faz parte da freguezia de Páu-d’-alho, e pertencia naquelle tempo a Goyanna.

Quando Marcolino chegou a Páu-d’-alho, o cavallo estava cansado da viagem, e do máo passar durante ella. Para levar a carta a seu destino, teve o matuto de caminhar a pé. Elle viu nisso uma nova tribulação com que a sorte o punia da sua loucura.

Ao anoitecer, de um alto por onde passava o caminho antes de sahir da mata que cercava o engenho pelo lado do sul, viu elle um homem correr gacheiro e cauteloso pelo asseiro a fóra, e entrar adiante no cannavial.

Marcolino por um triz não cahiu fulminado de espanto, sobresalto e satisfação ao mesmo tempo.

Tinha reconhecido nesse homem o Cabelleira.

XVI


A fome obrigára o bandido a deixar o mato, como obriga as aves a emigrarem, e as féras cervaes a deixarem seus covis.

Havia cinco dias que elle partira de Santo-Antão, e tres que não comia sinão os escassos fructos que lhe dava a macahybeira, o ananazeiro bravo, o jatobá do deserto.

Uma tarde em que a fome e a fadiga o tinham prostrado, viu d’entre umas touceiras de taquára onde se recolhêra para cobrar animo, um cavalleiro que, havendo atravessado o rio, de força tinha de passar a poucos passos delle, em um cotovello formado pela picada.

O cavalleiro era um velho e parecia-se mais com uma mumia do que com um ente vivo.

Tinha a pelle grudada nos ossos, e seu corpo apresentava angulos e rectas de dureza esculptural.

O cavallo não tinha melhor parecer do que seu senhor. Era uma armação ossea, informe, pesada, cadaverica e triste.

Trazia o velho tão cahida a cabeça para diante, que quasi chegava com o queixo recurvado ao cabeçote da cangalha. O cavallo, parecendo ceder à mesma lei que o cavalleiro, por vezes varria com os beiços coriaceos o pó do caminho. Essa lei era a lei da fome.

« Este velho, pensou o Cabelleira, traz pelo menos farinha nos caçuaes. Vou tomar-lh’a para mim, e si elle não quizer entregar-me a sua carga, corto-lhe a garganta. »

Empunhou o pedaço da faca, unica arma que lhe restava do terrivel cangaço de outr’ora, e quando o velho confrontou com elle, saltou-lhe ao cabresto do cavallo. Este parou de muito boa vontade, emquanto seu dono, sem se mostrar aterrado nem sobresaltado, disse ao bandido:

— Guarde-o Deus, meu senhor, — saudação que até bem pouco tempo se ouvia no sertão.

Quando estava para fazer a terrivel intimação, sentiu o Cabelleira faltar-lhe força para suster o cabresto, tremeram-lhe as pernas, vacillaram-lhe os pés. Seus olhos tinham dado com a imagem de Luiza, de joelhos na beira do caminho com as mãos postas, os olhos supplicantes, tristes, e chorosos, voltados para elle. Pareceu-lhe até ouvir as seguintes palavras:

— Não o mates, Cabelleira.

Esta illusão era effeito da sobreexcitação nervosa, produzida em todo o seu organismo pela falta de alimentos, pela dôr moral que lhe causára o transito da moça, ou talvez pela profunda revolução que antes de ter ella fallecido havia obrado nos seus instinctos, idéas, e habitos, o sentimento destinado a redimil-o do erro, e do crime — o amor.

Foi tão profundo e violento o abalo que experimentou ao ver aquella doce effigie (a qual elle julgava ter desapparecido para sempre de seus olhos), que irresistivelmente lhe escaparam dos labios estas palavras:

— Não o matarei, meu amor; não o matarei.

Mas não foram sómente as palavras que lhe escaparam violentamente dos labios; dos olhos lhe saltaram tambem lagrimas espontaneas, que elle não pôde reprimir.

E como para dar plena satisfação áquella doce imagem que se atravessava diante delle no momento em que um crime estava a ser commettido por sua mão, Cabelleira atirou dentro de uma grota que ficava do outro lado da picada o resto da arma de que estivera pendente a vida do pobre velho.

Este, acordando novamente do profundo abatimento que pesava sobre todos seus membros, dirigiu outra vez a palavra ao bandido:

— Camarada, estou prompto para servil-o.

— Ha tres dias que não boto na minha bocca um punhado de farinha, disse José. Traz vossê ahi alguma cousa que me queira dar para comer?

— É seguramente meio dia, meu senhor, disse o velho erguendo a custo os olhos ao sol para se certificar da hora; amanhã pela manhã fazem quatro dias que este corpo velho, que o senhor está vendo, não sabe o que é comer. Dou a Deus por testemunha da minha verdade.

— E que é que traz dentro destes caçuás? perguntou-lhe o Cabelleira.

— Póde vero que trago. Nada. Tinha uma filha solteira, outra viuva e tres netinhos. Veiu a peste e levou-me as duas filhas em menos de oito dias. Não tendo recurso nenhum para acudir ás minhas necessidades, sahi a pedir. Fui á casa de meu compadre, que mora na Ladeira-grande; o compadre tinha morrido das bexigas, e a mulher estava para entregar a alma a Deus; o gadinho que possuia desapparecêra com a secca; alguma criação que ficára no terreiro, tinha sido comida pelos magotes de gente, que vem ahi em retirada, cahindo aqui, morrendo acolá de fome, só de fome. Achei no pateo da propriedade este cavallo velho, que me vai arrastando até á casa. Sabe Deus si lá chegarei, ou si não ficarei no caminho, sem ter visto meus pobres netos ainda uma vez antes de morrer

— Está bom, meu velho; vá seguindo seu caminho. Vossê é mais necessitado do que eu.

— Não da graça de Deus, senhor, disse o velho.

O Cabelleira entrou de novo no tabocal.

O abalo que a visão lhe causára, o espectaculo de miseria que lhe descrevêra o velho, miseria muito maior do que a sua, deram-lhe forças para proseguir na peregrinação.

No dia seguinte entrava elle nas matas de Goitá, seu mundo virgem, em cujo seio, talvez pela razão de lhe consagrar entranhavel affecto, se considerava o mais seguro e feliz dos mortaes.

Deitou-se e dormiu.

Quando acordou sentiu que comsigo havia acordado, mais devoradora e cruel, a fome que o tinha prostrado por terra na vespera.

Depois de ter levado quasi todo o dia em vão á caça de algum fructo sylvestre, deu com a vista, no meio de uma aberta que fazia a mata, sobre os estendidos cannaviaes do Engenho-novo.

Da lomba, onde havia parado, desceu rapidamente á orla da floresta.

Era quasi noite.

Alongou os olhos pelas immensas quebradas onde a canna acamava, e só viu um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes.

Ah! elle podia passar mezes dentro desse mundo sem que o vissem, e sem risco de ser devorado por animaes ferozes. Era uma região amiga a que se lhe abria diante dos olhos.

A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da fortuna e riqueza de um vasto imperio; essa planta abençoada que dalli punha á sua disposição nutritivo e precioso succo offerecia-lhe tambem protecção á sombra da sua basta folhagem. Podia elle, pobre foragido, refazer as forças no seio dessa solidão generosa que lhe daria a sorver licor suavissimo, como o que mana de um seio maternal.

Cabelleira, rapido como um jaguar, pôz à cabeça de fóra do mato, olhou, observou, e, nada vendo, atravessou o asseiro e penetrou no cannavial.

Achando-se já dentro, voltou-se e observou de novo. Não viu viva alma. Do outro lado do asseiro estava a floresta virgem, d’onde elle havia sahido. As sombras do lusco-fusco cobriam as montanhas, as quebradas, os valles, todo o retiro emfim. Em torno delle, e além das folhagens, além das planuras até onde pôde chegar com a vista e com as ouças, só viu a solidão profunda, só ouviu o silencio absoluto da natureza.

Ia adiantada a noite quando elle terminou sua refeição.

A lua discorria suavemente, entre castelos de nuvens, na vasta campina celeste, e a viração ciciava brandamente no cannavial onde deixava as fragrancias que, como abelha da noite, trazia do páo-d’-arco da mata proxima em suas azas subtis.

Cabelleira pôz nos hombros as ultimas das cannas que quebrára e tomou a aberta por onde havia entrado. Mas foi logo obrigado a voltar sobre seus passos para não ser visto por dous negros do engenho que estavam defronte da abertura da camarinha.

O cannavial não tinha sómente esta sahida. Mas qualquer dellas para onde encaminhou seus passos se lhe mostrou tomada por escravos do engenho.

O Cabelleira achava-se tão longe de pensar que o guardavam, que acreditou, para explicar o que seus olhos descobriram, que os negros faziam quinguingú ao luar como de costume.

Deitou-se, e o somno que dormiu foi profundo e reparador. Si tivessem penetrado no lugar onde elle adormecêra tel-o-hiam prendido sem difficuldade, como si fôra uma criança.

Raiou emfim o dia com seu cortejo de luz e movimento.

O sol acordou o bandido com um raio que lhe enviou por entre a folhagem. Não para sahir, mas unicamente para observar, o Cabelleira aproximou-se, sem fazer ruido, da primeira abertura que se lhe offerecêra. O que então viu deu-lhe idéa da triste realidade que elle estava longe de suspeitar, mas que o abraçava como um circulo de ferro. Não estavam guardadas as sahidas por negros como durante a noite, mas por sentinellas militares. Cêdo seus olhos reconheceram que uma linha compacta de soldados cercava todo o cannavial, d’onde não poderia sahir um rato contra a vontade delles. [1]

Oh! como appareceu carregada aos olhos do infeliz mancebo aquella doce natureza, onde acreditára que poderia estar ao abrigo da perseguição dos homens, e da fatalidade da sorte!

— Estou perdido para sempre, pensou elle. Cercado por todos os lados, sem companheiros que me auxiliem na evasão, sem uma arma com que possa abrir passagem entre os que me cercam, não poderei salvar-me.

Seu espirito cahiu em profunda meditação.

O cannavial estava litteralmente sitiado. No mesmo instante em que soube, pór bocca de Marcolino, que o Cabeleira tinha passado do mato ao cannavial, o senhor do Engenho-novo reunira a fabrica passante de trezentos negros e os mandára pôr-se de guarda ao bandido.

Sem perda de tempo expedira o proprio Marcolino com uma carta participando o facto ao capitão-mór que se achava já então no seu engenho Petribú, e pedindo-lhe promptas providencias.

Uma companhia completa de milicianos achava-se ainda de ordens ao capitão-mór que tinha em mente dar novo varejo nos matos, por occasião de sua volta a Goyanna. Essa companhia partira incontinente, tendo á sua frente Christovam de Hollanda, para o lugar onde se tinha de verificar a importante diligencia. Ordens terminantes foram expedidas durante a noite aos coroneis de ordenanças que se achavam mais proximos, a fim de que, antes do amanhecer, se achassem com fortes partidas no lugar indicado.

Um inimigo poderoso que houvesse batido ás portas da freguezia, não teria motivado o movimento de tropas que se verificára nas doze horas daquella noite com promptidão que faz honra á disciplina militar daquelles tempos.

Pela manhã as paragens contiguas ao ponto assediado, figuravam um pequeno campo de batalha. Cêrca de duzentas praças achavam-se alli reunidas, porque o assedio fosse sustentado com todo o rigor militar.

Ao cahir da tarde um official offereceu-se para penetrar no cannavial com doze homens de sua escolha, assegurando que o bandido não viria a contar victoria.

Christovam de Hollanda, tendo ouvido os seus coroneis sobre a proposta do destemido official, considerou-a inconveniente por dar occasião á luta pessoal, da qual poderia resultar a morte do bandido.

Não havendo, para conseguir-se a rendição deste, outro meio que o assedio, foi este resolvido por unanimidade.

O Cabelleira tentou mais de uma vez illudir a vigilancia das guardas durante a noite, mas em vão. Antes de escurecer essas guardas eram reforçadas, e a vigilancia dobrava na proporção das facilidades que naturalmente a noite offerece para a evasão.

Passaram-se dous dias sem resultado. Ninguem, durante esse espaço de tempo, havia visto o prisioneiro. Começou-se a desconfiar de sua existencia dentro do cannavial.

Marcolino foi interrogado pela segunda vez, e declarou que tinha visto o bandido entrar alli, só e sem armas.

Esta ultima declaração veiu augmentar a desconfiança geral. Não se pôde, com razão, explicar que o famoso assassino se houvesse despojado, para penetrar alli, de suas armas no momento em que mais se expunha á acção da justiça.

Marcolino, á vista destas considerações, às quaes nada teve que oppôr, começou a descrêr de si mesmo e a acreditar que seus olhos o tinham enganado. O desanimo, a tristeza, a vergonha, que já o haviam deixado, volveram a abatel-o novamente.

Christovam de Hollanda excogitava já um meio de sahir com honra da situação em que se via, quando lhe lembrou mandar arrasar o cannavial.

Todu a fabrica foi chamada em continente ao lugar onde as foices afiadas tinham de abater em poucas horas a ridente floresta que durante quasi tres dias servira de pittoresca muralha ao Cabelleira.

Elle ouviu do centro da espessura onde estava, com o sangue frio, que é natural aos homens affeitos aos perigos, o rumor, ao principio afastado, depois mais proximo, da queda dessas touceiras abençoadas a que devia o franco asylo que nunca encontrára entre os seus semelhantes.

O circulo foi-se estreitando gradualmente em torno do prisioneiro, com a rapidez de um incendio que ao mesmo tempo avança da circumferencia ao centro.

Á proporção que as camadas iam cahindo aos golpes dos possantes segadores, eram logo retiradas a fim de que se tivesse sempre desobstruida a passagem, e facil fosse o accesso ao ponto objectivo.

As linhas militares, que mantinham o assedio, acompanhando o decrescimento do espaço que desapparecia aos olhos dos circumstantes, tornavam-se gradualmente compactas, fortes, impossiveis de romper.

Ao principio acreditou-se, não obstante o que dissera o Marcolino, que o Cabelleira não estava desacompanhado.

A cada momento esperava-se ouvir a detonação de uma descarga de dentro contra a força que cercava o ponto. Quem não se considerou exposto ao punhal, á bala, á morte, julgando ter atravez de frageis plantas, um inimigo, si não uma companhia de inimigos amestrados na pratica de todos os crimes?

Chegou emfim o momento dos negros descarregarem suas cortantes foices sobre o ultimo rénque de touças — aquelle que separava do campo arrazado a vasta camarinha em que se acoutára o bandido.

Desappareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circumstantes; as duas superficies — a exterior e a interior — uniram-se como por encanto; o Cabelleira surgiu d’entre as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora confundidas com as palhas seccas, imagem, como aquellas, do seu perdido poder.

Serena e resignada tristeza cobria-lhe o rosto queimado pelo mesmo sol que naquelle momento lhe beijava a face onde haviam deixado indícios das suas garras a dor moral e a fome. Cahia-lhe sobre os hombros a basta onda de cabellos, cacheados ao longe, e mais negros do que a barba escassa e nova que attestava a sua pouca idade. Seu trajo era simples: véstia de couro surrado, camisa e calça que deixavam ver, atravez dos rasgões, o corpo de côr branca. O Cabelleira estava descalço, e tinha a cabeça coberta por um chapéu de palha de pindoba.

Quando se achou de subito em presença da multidão, levou instinctivamente a mão ao chapéu, e descobriu-se.

Os mais animosos que haviam corrido a pôr-lhe as mãos para segural-o, tomando o gesto respeitoso que bem denotava o bom natural do bandido, por uma ameaça, ou meneio de aggressão, recuaram amedrontados.

Christovam de Hollanda Cavalcanti, sustentando os foros de uma estirpe que já se havia ilustrado em 1710, e que no Brazil independente estava destinada a figurar com o brilho, que sabemos, aproximou-se do bandido e com o ar e geito grave que lhe davam a nobreza e a autoridade que revestia:

— É vossê o Cabelleira? perguntou elle ao mancebo.

— Saberá v. s. que sou eu José Gomes, respondeu elle sem hesitar nem subterfugir

Uma centena de vozes confirmou esta resposta franca, completa, e propria do seu grande animo.

— José Gomes, disse-lhe Christovam pondo a mão direita no hombro do mancebo, vossê pelos enormes crimes que tem commettido, está preso em nome da lei, e vai responder perante a junta-de-justiça.

Então, em conformidade da ordem dada por elle, um toque de corneta, que atroou a solidão, annunciou que o criminoso tinha cahido nas mãos dos agentes da força publica.

— Gonçalo Paes, disse Christovam voltando-se para o seu ajudante, mande soltar o matuto, que denunciou o criminoso. Si este não fosse encontrado dentro do cêrco, o denunciante pagaria com tres tratos de polé a humilhação á que me houvesse exposto perante o governador. Como se verificou a sua declaração, será recompensado pelo regio erario, e recommendado á munificencia d’el-rei nosso senhor.

Meia hora depois, Marcolino montado em fogoso cavallo baio, desappareceu, com ar e geito de quem alcançou grande victoria, no caminho de Santo-Antão, a levar a noticia de uma prisão que salvára a sua honra, e com que elle se considerava coberto de gloria.

Notas do autor editar

  1. A trova popular diz:

    Meu pai me chamou:
    — Zé Gomes, vem cá;
    Como tens passado
    No cannavial?»


    — Mortinho de fome,
    Sequinho de sêde,
    Só me sustentava.
    Em canninhas verdes.

    « — Vem cá, José Gomes,
    Anda me contar
    Como te prenderam
    No cannavial.

    — Eu me vi cercado
    De cabos, tenentes,
    Cada pé de canna
    « Era um pé de gente. »

XVII


Grande concurso de povo tomava uma tarde uma das embocaduras da Rua-do-amparo da illustre villa de Goyanna.

Depois de algum tempo chegaram de longe, do lado do Barro-vermelho, ao ponto da reunião os sons de um clarim, que logo cessaram para deixarem ouvir os rufos de um tambor.

A este signal, sofregamente esperado, alvorotou-se a multidão. As mulheres compuzeram seus lenços no pescoço, os lençóes na cabeça, os cabeções de rendas, então muito em uso. As mãis conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham pela mão; os pais foram occupar seu posto, que não mais desampararam, ao pé das consortes e filhas, que se mostravam temerosas do que poderia vir a acontecer, porque, em muitos dos circumstantes, á curiosidade se substituiu logo o terror panico, difficil de vencer, e sempre contagioso e pegadiço.

A Rua-do-amparo contava então uma só casa de sobrado.

Via-se na varanda deste d. Leonor, mulher do capitão-mór Seus bellos olhos estavam voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão e borborinho. Entre os anneis dos seus negros cabellos brilhavam ricas flores de ouro e coral, semelhantes a malmequeres e pitangas. Um vestido de seda azul, com ramos de rosas brancas que lhe subiam da fimbria á cintura, deixava adivinhar as fórmas admiravelmente correctas da nobre senhora, cuja gentileza impunha a todos preito com que se não daria mal uma princeza. A seu lado mostravam-se outras senhoras pertencentes ás primeiras familias da villa.

De repente ouviu-se de novo o clarim, a quem coube a distincção de annunciar a entrada da tropa com o grande prisioneiro.

A soldadesca rompeu por entre a multidão, e encaminhou-se á casa do capitão-mór.

Este vinha á frente do batalhão, e montava sua cavalgadura de estimação ricamente ajaezada. Ao lado do capitão-mór mostravam-se alguns coroneis de ordenanças.

O prisioneiro apparecia no centro da tropa. Sua physionomia estava triste; mas não tinha a carregada expressão da perversidade, nem o vil abatimento da cobardia. Seu passo, posto que forçado, era firme, qual devêra ser o de um homem de poderosa organização, aos vinte e quatro para vinte e cinco annos de idade.

Faltava porém a esse homem a promptidão nos movimentos physicos a que por innumeras vezes devêra sua salvação. Uma corda de couro crú prendia-lhe em differentes anneis os braços, poucos dias antes prestes a levar a destruição e a morte a afastadas regiões.

Poucos foram os que não tiveram os olhos arrazados de lagrimas quando viram escravo de uma cadeia ignobil o infeliz moço, que, ainda hontem, tinha a immensidão a seu dispor, e era livre como as féras no deserto. A presença do infeliz despertára a piedade de quasi todos os espectadores.

Naquelle tempo a cadeia de Goyanna não tinha a solidez da que se vê presentemente na Rua-direita. Era uma casa de um só pavimento a que faltavam quasi todas as condições de segurança e hygiene que as penitenciarias modernas reunem.

Viam-se em suas janellas não grades, mas varões de madeira. Muitos criminosos conseguiram evadir-se quebrando alguns desses varões. Nem é de admirar que taes fossem as condições da cadeia publica daquella villa em 1776, si ainda hoje, com excepção das capitaes e de algumas cidades interiores de mais nota, se apontam localidades importantes e até sédes de comarcas que não têm melhores prisões que as do tempo colonial.

Não só pela manifesta incapacidade da prisão publica, mas tambem por não confiar de ninguem a guarda de um réo dos quilates do Cabelleira resolveu Christovam de Hollanda têl-o em sua propria casa durante o tempo que fosse necessario para os preparativos da jornada ao Recife.

As primeiras autoridades de Goyanna reuniram-se á noite em casa do capitão-mór, que a tuba da fama começou logo a apregoar como o salvador da provincia.

Emquanto essas autoridades praticavam da questão do dia – a prisão do malfeitor, este, no pavimento inferior, de que uma parte lhe fôra dada por menagem, entregava-se a fundas cogitações.

Um soldado, que delle se compadecêra, o tinha persuadido a ir passar alguns momentos no quintal, a fim de se divertir de suas idéas tristes. O Cabelleira sentára-se a um canto, á sombra de uma cajaseira.

Em qualquer parte para onde volveu os olhos só lhe appareceram guardas que não perdiam um só dos seus movimentos. Ergueu os olhos acima dos altos muros que o cercavam, e deu com a vista nas bellas estrellas que tinham sido suas companheiras no deserto. Aquelles astros saudosos, guias leaes e constantes do filho da liberdade, não allumiavam agora nesse filho sinão o escravo da justiça que qualquer criança poderia impunemente insultar.

Lembrou-se de Luiza, cujo cadaver não lhe havia permittido dar á sepultura o instincto da propria conservação, o mêdo irresistivel da morte que o impellira para o seio da floresta antes que elle houvesse cumprido este piedoso dever.

— Ah! Luizinha! pensou elle. Si eu tinha de cahir alguns dias depois no poder da justiça, porque fugi então sem ter primeiro posto teu corpo ao abrigo dos urubús, ou dos cães de caça? Ah! meu amor, perdôa minha crueldade, perdôa minha ingratidão.

As lagrimas saltaram-lhe dos olhos em impetuosa torrente.

— De que choras, Cabeleira? perguntou-lhe o soldado que delle se mostrára compassivo. Estás com mêdo da morte?

— Não, não tenho mêdo de morrer, disse elle. Estou chorando de me haver lembrado da unica mulher, a quem, depois de minha mãi, quiz bem nesta vida.

— Qual mulher? Será a que deixaste morta junto das cabeceiras do rio?

— Essa mesma. Vossê a viu?

— Sim, eu a vi. Mas que bem poderias querer a ella, si foste tu proprio, Cabelleira, que a mataste?

— Não, eu não a matei; ella morreu, ella mesma, quando se considerava feliz comigo, e quando eu via nella meu maior prazer, minha maior dita. Ah Luizinha, tu bem sabes que eu te queria muito bem, muito! Que pena tenho eu quando considero que te perdi para sempre, que te deixei no deserto, que os carcarás furaram teus bellos olhos, que os urubús despedaçaram tuas carnes, e que os anuns, pretos como meu coração, esvoaçam por cima de teus ossos!

Os soluços embargaram a voz do desgracado.

— Si é por isso, não chores, Cabelleira. O corpo de Luizinha não ficou ás aves nem aos animaes do mato.

— Não ficou?

— Eu o enterrei com minhas proprias mãos.

— Vossê?

— Eu e mais outro companheiro.

O bandido correu ao soldado para o apertar em seus braços em signal de reconhecimento. Mas a corda que os prendia pelos lagartos tolheu que elle lhe désse esta demonstração.

— Não tem que me agradecer, disse-lhe o miliciano. Eu vi Luizinha menina. Vossê não me conhece, mas eu tambem o vi pequeno; e si sua prisão estivesse em minhas mãos, nunca ella se teria feito.

O soldado afastou-se do Cabelleira para que este não lhe visse as lagrimas que de quatro em quatro estavam banhando suas faces.

— Não se afaste, camarada, disse-lhe o prisioneiro. Tenho certeza de que vossê não me quer mal, e por isso quero pedir-lhe um favor. Não sei como poderei passar esta noite com a tristeza que tenho. Poderá vossê arranjar-me uma viola ?

Pouco depois ignotos sons, que estão acima do maior elogio, levaram melancolia e saudade ao coração de todo aquelle de quem se fizeram ouvir.

Fôra já servida a ultima refeição, e os hospedes se haviam retirado a suas casas. Era tudo mudez na rua e vizinhanças.

Os sons mellifluos que já haviam imposto silencio aos soldados chegaram ao terrado da casa de Christovam como uma torrente de celestiaes melodias, que lembraram a harpa de David, ou a lyra de Amphião. Estas melodias commoveram o capitão-mór e sua joven senhora, que iam ficar dentro em algumas horas separados de novo.

— Como são tristes os sons desta viola! disse elle. São as ultimas despedidas de quem está a entrar no reino da verdade.

— Mais me entristecem estas palavras suas, Christovam, disse dona Leonor. Si nós o pudessemos salvar

— Que diz, Leonor? Elle é um grande assassino. Sua mão tem derramado rios de sangue innocente. Os monstros não têm entranhas mais cruas do que as delle.

— Pobre moço! Para attestar que seu coração não é tão máo, nem siquer lhe vale a expressão de bondade que tem no rosto! Escute, Christovam. Conversavamos aqui ha pouco eu e dona Catharina; Gonçalo Paes estava ao nosso lado. Sinão quando vieram trazer-nos delicias e despertar em nós saudades commoventes os sons que o prisioneiro extrahe com rara delicadeza de seu inspirado instrumento. Dona Catharina manifestou então grandes desejos de o conhecer.

— E que fizeram?

— Descemos ao quintal acompanhadas de Gonçalo. Assim que nos viu, elle levantou-se, e nos saudou respeitosamente. « Continúe a tocar, Cabelleira » disse-lhe eu. « Ah senhora, mal posso pegar na viola. Além disso eu não sei tocar cousa capaz, senhora minha. Mas estes sons grosseiros podem melhorar si vossa senhoria, por sua bondade, mandar que me afrouxem um pouco estes laços. A corda penetrou-me na raiz das carnes, e tira-me toda a acção. » Fiz signal a Gonçalo para que satisfizesse o pedido do prisioneiro, mas Gonçalo hesitou.

— Fez bem, disse o capitão-mór.

— « Póde fazer sem susto o que minha senhora manda, sr. tenente. Cabelleira não fugirá porque está cansado de viver » disse o prisioneiro. Faltam-me expressões para lhe dizer, Christovam, o que ouvimos então. Notas de orgam inspirado não dizem os mysterios, as melancolias que se debulharam da viola do desgraçado. Vendo-o tão moço, tão artista e tão infeliz, todos nos sentimos commovidos da sua sorte; e elle, elle o prisioneiro, chorava e soluçava como uma criança.

— Basta, Leonor, disse Christovam abalado com a narração que acabava de ouvir.

Dona Leonor, sorprendendo este sentimento do marido, propoz-se tirar delle o maior proveito para o infeliz. Atirou-se a Christovam de Hollanda, e o cobriu de afagos e carinhos.

Fez mil rogativas para que se amerceasse da sorte do Cabelleira. A seu entender, alguns annos de prisão bastariam para que elle se corrigisse e emendasse.

— Mas quem diz que não será esta a pena que se lhe vai impôr? perguntou o capitão-mór.

— Não o disse já o senhor, Christovam? Sou eu que lhe peço que dê escapúla ao infeliz.

— Escapúla, Leonor, escapúla! exclamou Christovam. E minha honra, e meu dever?

— Elles não ficarão manchados com um acto de humanidade. Todos dizem que a máos conselhos e funestas instigações deve o Cabelleira o ter commettido tantos crimes. Pois bem; aquelle que o aconselhou e instigou á pratica desses crimes, o verdadeiro criminoso, lá está para responder pelo que fez, e mandou filho fazer. Sua condemnação servirá de exemplo á sociedade e ao proprio filho delle; mas a condemnação deste será uma grande injustiça, e o céo não permittirá jámais que para ella concorra Christovam Cavalcanti que sempre trouxe limpo o brazão que lhe legaram seus avós.

O capitão-mór levantou-se com a pallidez na face. A poderosa dialectica da consorte o havia feito sentir mais alterações na alma do que seus proprios carinhos no coração. A verdade sobre o Cabelleira era justamente aquella que sua mulher havia resumido em meia duzia de palavras vivas e violentas.

Depois de ter dado alguns passos pelo terrado, Christovam caminhou para dona Leonor, que o não tinha perdido de vista.

— Tudo o que disse é verdade, Leonor: mas sou eu acaso juiz? Não sou mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi um criminoso, para o qual, si a mim competisse julgal-o, teria eu uma condemnação mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora não o tenho eu. Si usasse de semelhante faculdade, Christovam dei Hollanda teria lançado sobre seu nome honrado uma mancha indelevel.

Tendo dito estas palavras, Christovam de Hollanda recolheu-se immediatamente a seu gabinete em companhia de Gonçalo Paes.

Quando a lua appareceu no céo triste e pallida como os anjos dos sepulchros, a tropa recebeu ordem para partir no mesmo instante. O capitão-mór precipitava a jornada que havia dilatado para o dia seguinte.

Pouco depois a tropa moveu-se. Dona Leonor, anjo de amor e de benevolencia, deixava cahir nesse momento, em silencio, algumas lagrimas, limpidas como sua alma.

A respeitavel senhora tinha saudades do esposo que novamente se ausentava, e pena do infeliz, que a morte attrahia a si na fórma de um patibulo, e em nome da lei.

XVIII


Chegou emfim o momento da extrema provação.

Ainda não tinha decorrido um mez, quando se ouviram os duros sons das crebras marteladas, que annunciavam à população do Recife o proximo e fatal fim dos delinquentes. Levantava-se a forca no Largo-das-cinco-pontas.

Pela segunda vez este instrumento de supplicio sobresaltou os animos e encheu de dor os corações na villa heroica.

Por grandes que sejam as offensas que a sociedade tenha recebido de um dos seus membros, a razão publica sente-se abatida diante da sua punição por meio da morte natural.

A memoria dos primeiros supplicios estava quasi de todo apagada do espirito do povo. Realizaram-se elles durante a administração do governador Henrique Luiz. Haviam decorrido da sua realização trinta e oito annos, tempo mais que bastante para que se oblitere da tela do pensamento a imagem de semelhantes representações.

Os pernambucanos lembravam-se porém ainda em 1776 do muito que custára a esse governador sentenciar á morte alguns criminosos.

Uma provisão régia de data de 20 de outubro de 1735 tinha creado em Pernambuco a junta-de-justiça-criminal, a mesma que em 1776 julgou o Cabelleira, seu pai e os demais réos que sabemos.

Havia-se reunido em conformidade da citada provisão na casa da camara aquella junta, composta do governador, dos ouvidores de Pernambuco e Parahyba, do juiz-de-fóra de Olinda, e de um dos ouvidores que tinham servido na primeira das sobreditas provincias. Apezar das razões mais de humanidade, do que de estado, expostas por Henrique Luiz, a maioria condemnára os criminosos a serem justiçados no patibulo. Henrique Luiz, o benemerito, o modelo dos governadores portuguezes, passára pelo desgosto de lavrar a sentença de morte que feriu primeiro a elle que aos condemnados.

No julgamento do Cabelleira e dos demais presos a inviolabilidade da pessoa humana fôra melhor comprehendida e respeitada pela junta, da qual só um membro opinára pela pena capital.

Assim, no espaço de trinta e oito annos o nivel da consciencia moral subira em tres dos membros dessa terrivel commissão; mas por desgraça baixára no mais importante delles. José Cesar, desprezando o voto dessa maioria, digna de figurar nos tribunaes modernos, sentenciára á pena ultima os infelizes com o apoio de um voto contra tres, excedendo assim as attribuições do governador a quem a citada provisão conferia unicamente, no caso de empate entre os quatro membros, o direito de desempatar. Por onde se vê que entre estes dous governadores, ambos bem intencionados, embora as suas intenções fossem contrarias entre si e em seus effeitos, não mediavam sómente trinta e oito annos, mas tambem a barreira que separa das trevas a luz, do poder arbitrario, que destróe, o sentimento liberal, que edifica.

Henrique Luiz, posto que mais afastado do que seu collega, representava o direito novo de que o mesmo Portugal do seculo XVIII trasladou em seu codigo, que o honra, uma parcella no seculo XIX com applauso de todas as nações cultas. Esta parcella é a que afirma e consagra a inviolabilidade da pessoa humana.

Si alguem houvesse dito então a José Cesar que sua patria em menos de um seculo riscaria de sua legislação a pena que elle impunha com tamanho arbitrio a tres desgraçados a quem faltava a instrucção mais elementar, teria ouvido o poderoso agente da realeza metropolitana classificar como uma utopia dos sonhadores do seculo XVIII esta brilhante conquista das nossas luzes. Os tempos vingam-se, e si a humanidade algumas vezes, como as aves, rasteja e se enloda nos charcos da terra, purifica-se, como ellas, nas chuvas celestes, e eleva-se a regiões serenissimas d’onde vê a grandeza do Omnipotente nos milhões de mundos que povoam a immensidade; a sua sabedoria na harmonia que os prende; a sua bondade no sem-numero de leis, assim physicas, como moraes, que protegem os corpos e dignificam os espiritos.

Na hora em que se construia o cadafalso, uma mulher que representava cincoenta, mas na realidade não tinha senão trinta e seis annos de idade, pedia por tudo quanto ha sagrado, a uma das sentinellas do palacio permissão para fallar ao governador.

Joanna havia chegado de Santo-Antão no dia anterior, e de noite soubera que o filho e o marido tinham sido condemnados á morte. Não lhe permittiram ver os entes que pertenciam mais a ella, representante do coração por dobrado direito, do que á justiça que nesse momento exprimia uma vontade poderosa e apaixonada.

Pela manhã Joanna corrêra ao palacio para cahir aos pés de José Cesar, e rogar-lhe que lhe deixasse ver o filho. A sentinella, em resposta, perguntára-lhe simplesmente:

— Quem é vossê para fallar ao sr. governador?

— Sou a mãi do Cabelleira. Será possivel que meu filho morra sem que eu o tenha visto antes?

— Ponha-se no Largo-das-cinco-pontas, que o verá subir á forca á volta de uma hora da tarde.

— Meu filho! gritára ella em soluços. Pois hei de ver meu filho morrer na forca!

Joanna cahira com a face sobre a lage do pavimento, carpindo como louca a sua desventura.

Tendo ouvido os ais, lamentos, exclamações e gritos daquella consternada mãi, mandára José Cesar inquirir a causa do alarido. Quando lhe disseram a desoladora verdade, ordenára que em continente a mãi infeliz fosse posta em custodia até que se cumprisse a execução.

Joanna mal pudera ouvir a intimação deste cruel mandado.

— Não, não! gritára, atirando-se para fóra do palacio em estado de puro desespero.

Alguns soldados correram a pegal-a, mas em vão, porque, empregando esforços sobre a natureza, pudera Joanna escapar, não sem deixar primeiro despedaçado nas mãos de um o lençol em que estava envolta, nas de outro parte dos seus cabellos que haviam de todo embranquecido. Aquella pobre mulher fôra condemnada pela adversidade a padecer angustiados momentos, para os quaes não acharemos semelhantes no catalogo das tragedias humanas.

Ella fôra pôr-se junto da masmorra, d’onde Cabelleira, Joaquim e Theodosio, que ahi se achavam em grande recado, logo que houvessem recebido os confortos da religião, tinham de partir para o lugar do supplicio.

A esse tempo já as circumvizinhanças desse lugar se achavam occupadas por grandes massas de povo.

Quando no relogio da cadeia soou a hora fatal, viu-se desfilar entre fortes columnas militares, e a multidão os condemnados. O silencio e a tristeza que augmentam a solemnidade destes espectaculos indescriptiveis, eram de momento a momento perturbados pelos lamentos de Joanna.

— Meu filho vai morrer enforcado! Ah! meu Deus, vós bem sabeis que elle não teve culpa — dizia ella com a voz entrecortada de souços.

José Cesar, cercado dos seus privados e lisongeiros viu da varanda do palacio, outr’ora povoado pelo vulto homerico de Mauricio de Nassau, typo do mais fidalgo liberalismo que ainda transpôz aquelles umbraes, com uma especie de recolhimento qual si estivesse presenciando uma procissão, desfilar o funebre prestito, que em seu trajecto percorreu as ruas do Crespo, Queimado, Livramento, Direita, Pateo-do-terço, e finalmente parou no Largo-das-cinco-pontas ao pé do terrivel artefacto. Era uma hora da tarde.

O juiz nomeado pelo governador para assistir á execução em conformidade do disposto na provisão régia, ordenou que o escrivão repetisse a leitura da sentença. Os delinquentes ouviram pela vigesima vez, com sincera contricção, esse padrão do absolutismo colonial.

Finda a leitura viu-se o Cabelleira apparecer, quasi de subito, no estrado da forca, ao lado do carrasco.

Elle não havia vacillado na rapida ascensão nem dava mostras de abatido.

Seu rosto estava pallido, mas sereno. A cabeça tinha sido despojada do bello distinctivo a que o mancebo devia a alcunha com que seu nome chegou à posteridade.

Com um olhar longo e rapido abrangeu a multidão que se apinhava em derredor do patibulo, e proferiu, sem titubiar, com voz ligeiramente alterada, estas palavras que a tradição recebeu como herança, para transmittir ás gerações vindouras:

— Morro arrependido dos meus erros. Quando cahi no poder da justiça, meu braço erajá incapaz de matar, porque eu já tinha entrado no caminho do bem...

— Meu filho! meu filho! gritou nesse momento Joanna do meio do povo por entre o qual buscava em balde abrir caminho para chegar ao pé do cadafalso.

A esta exclamação, o Cabelleira voltou-se confuso e commovido. Um longo suspiro escapou-lhe do peito oppresso da subita afflicção. Seus labios tremulos deixaram passar estas precisas e pontuaes palavras:

— Adeus, mamãisinha do meu coração!

No mesmo instante, aos olhos da multidão profundamente abalada, a scena transformou-se como por occulto machinismo. O infeliz mancebo, que, mal acabára de fallar, tinha sido rudemente impellido do estrado para o vacuo, pendia da corda assassina, tendo sobre os hombros o carrasco que apertava com as mãos cobardes o laço suffocante. Scena barbara que enche de horror a humanidade, e cobre de vergonha e luto, como tantas outras, a historia do periodo colonial!

No meio da multidão esta scena de morte reproduziu-se no mesmo instante unicamente modificada na fórma. Entre os braços de umas mulheres do povo, pobres mãis de certo, Joanna acabára de exhalar o ultimo suspiro. O coração tinha-lhe instantaneamente estalado de dor.

Poucos momentos depois ao cadaver do Cabelleira reuniram-se os de Joaquim e Theodosio, seus companheiros na vida e na morte, na historia da provincia e nas reminiscencias do povo, de presente quasi de todo apagadas pela mão do tempo.

A noticia de tão triste exemplo atravessou as remotas paragens onde repercutia a fama do grande matador, e passou ainda além nas azas ligeiras dos versos já citados, aos quaes se devem reunir estes dous ultimos, dos trovistas pernambuca­nos:

Quem tiver seus filhos
Saiba-os ensinar;
Veja Cabelleira
Que vai a enforcar.

Adeus, ó cidade,
Adeus, Santo-Antão,
Adeus, mamãisinha
Do meu coração.

A execução do Cabelleira e seus co-réos não atalhou as de­sordens e delictos, a que se refere a provisão; não trouxe terror nem emenda aos malfeitores.

Os crimes atrozes, então muito frequentes, si têm dimi­nuído, ainda não cessaram de todo. As folhas publicas regis­tram todos os dias por infelicidade nossa muitos delles, perpe­trados no Norte, no Sul e na propria côrte do Imperio.

De que serviu pois a provisão régia? Em que consistiu o proveito da execução dos tres infelizes no regime colonial; e dos que os precederam, ou se lhes seguiram neste e no regime do Imperio?

Ah! meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado não ser mais que um crime juridico, de feito não corrige nem moraliza. O que ella faz é ennegrecer os codigos que em suas paginas a estampam, por mais liberaes e sabios que sejam como é o nosso; é abater o poder que a applica; é escandalizar, consternar e envilecer as populações em cujo seio se effectua.

A justiça executou o Cabelleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorancia e na pobreza.

Mas o responsavel de males semelhantes não será primeiro que todos a sociedade que não cumpre o dever de diffundir a instrucção, fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? [1]

Si a sociedade não tem em caso nenhum o direito de applicar a pena de morte a ninguem, muito menos tem o de applical-a aos réos ignorantes e pobres, isto é, aquelles que commettem o delicto sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade. O Cabelleira póde acaso comparar-se em culpabilidade a Lapomerais, medico illustrado, ou a esse negociante allemão ou americano, Thomaz ou Thompson, que, com intuito de enriquecer do dia para a noite, occasionou com a perda do paquete Moselle a morte de oitenta, e os ferimentos de cem passageiros?

Condemna-se á forca o escravo que mata o senhor, sem se attender a que, rebaixado pela condição servil, paciente do açoite diario, coberto de andrajos, quasi sempre faminto, sobrecarregado com trabalhos excessivos, semelhante creatura é mais propria para cego instrumento do desespero, do que competente para o exercicio da razão. Ainda em 28 de abril do corrente anno, em uma cidade da provincia das Alagôas um destes infelizes padeceu o supplicio capital. Por honra da civilização, um dos primeiros orgams da imprensa do norte, o Diario-de-Pernambuco lavrou contra essa cobardia juridica o seguinte protesto: « Registramos este acontecimento com a magoa que sôe causar áquelles que amam a patria e a humanidade a continuação entre nós da barbara pena de morte, que infamando, nem ao menos corrige. »

Arrastam os delinquentes á barra dos tribunaes ou ao pé dos juizes para serem interrogados sobre as circumstancias dos crimes que commetteram. Não devia ser assim. O interrogatorio principal devia ter por objecto os precedentes do culpado, o gráo da sua instrucção litteraria, a sua educação, os seus teres.

Á pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve a sociedade attribuir o maior numero dos crimes que pune e dos erros e faltas que não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca foi nem será jámais um elemento de elevação; ella foi e será sempre um elemento de degradação social.

A riqueza, meu amigo, é um dos primeiros bens da vida.

Quando ella resulta de um trabalho honesto, e servido por uma ambição nobre e ponderada, não podem della redundar males. Ao reverso, de uma riqueza assim adquirida, provém quasi sempre beneficios não só para aquelle que a possue, mas tambem para a sociedade.

Quanto mais medito sobre este assumpto, mais me parece que o evangelho que ensina a pobreza voluntaria, considerada pela moderna sciencia um absurdo economico, e um impossivel social, é antes um codigo de moral practica sujeito á revisão da sabedoria dos tempos, do que o corpo de leis de uma religião immutavel. A prova de que não estou em erro, eu a vou achar no exemplo que nos dão os actuaes ministros do evangelho, os quaes, muito diferentes dos pescadores da Galiléa e da Samaria que, descalços e humildes, o ensinaram gratuitamente a todas as gentes, empregam hoje todos os meios de tornar-se ricos e poderosos, e não desestimam a opulencia, começando pelos que occupam os primeiros lugares na hierarchia ecclesiastica.

Não sirvam estas verdades de consternação aos pobres.

Sirvam-lhes antes de estimulo para que trabalhem, cultivem a terra, as industrias, as artes, e possam, por seu proprio esforço, vir a ser independentes e felizes.

Notas do autor editar

  1. A seu tempo saberás, meu amigo, as minhas idéas a respeito da organização do trabalho no Brazil.

MEU amigo,

Julgo de necessidade, para clareza de alguns pontos, e tua com­preensão, aditar a carta que precede esta história.

Confirmo aqui tudo o que deixei dito no texto a respeito do meu protagonista.

Por mais extraordinário que pareça — ele na realidade não se mede pelos moldes vulgares e conhecidos — o Cabeleira não é uma ficção, não é um sonho, existiu, e acabou como aqui se diz.

Foi objeto de muitas trovas matutas e sertanejas, de episódios dramáticos e anedotas acinte engendradas para amedrontar a basó­fios importunos, e pôr em fugida fanfarrões arrogantes. Esta parte, por assim dizermos, cômica da vida do notabilíssimo bandido, será assunto de outro livro.

Se entrasse neste, desdiria da sua idéia capital, filosófica, so­cial, e obrigar-me-ia a proporções que não imaginei para o meu trabalho por me parecerem excessivas nos que afinam pela cra­veira dele.

Não obstante terem sido numerosas as trovas de que foram assunto sua vida e morte, e haver eu metido as minhas melhores forças por conseguir todas elas, ou pelo menos tantas quantas bastassem para dar, com uma notícia mais larga do célebre valen­tão, uma amostra por onde pudesse ser devidamente aferida a musa popular do norte há um século, não pude obter mais do que as que entremeei no texto.

Não me atrevi a mudar-lhe uma só palavra, uma vírgula sequer. Para o fazer, se eu o quisesse, acharia apoio nos exemplos dados por autorizados engenhos e nomeadamente por Garrett no seu Roman­ceiro.

Não quis usar desta faculdade. Fez-me escrúpulo tocar no le­gado que tem por si a consagração de algumas gerações; e como eu o recebi dos nossos maiores, assim o receberá de mim a pos­teridade, se não se interpuser, como é quase certo, entre ela e este livro o esquecimento, prêmio natural das produções míni­mas.

A parte propriamente histórica foi escrita de acordo com a se­guinte passagem das Memórias históricas da província de Pernam­buco por Fernandes Gama:

"Havia anos que um famigerado mameluco, chamado Cabeleira, um filho deste, e um pardo de nome Teodósio, ladrão mui astuto, horrorizavam esta província com seus enormes crimes. Aqui mesmo, nesta cidade, esses facínoras cometiam furtos e homicídios; mas nas nossas circunvizinhanças tinham infundido tão grande terror, prin­cipalmente os dois primeiros, que ninguém se julgava seguro. Para todos se armarem, como se uma grande quadrilha ameaçasse os bens e as vidas de todos, nada mais era preciso do que espalhar-se a notícia de que o Cabeleira se aproximava. Tudo se punha em armas, e aqueles que assim não se preveniam por timoratos, os recebiam com submissos obséquios, e se prestavam apressados a todas suas exigências.

"José César fez marchar contra esses malvados diferentes partidas militares, com ordem de os conduzirem vivos a esta cidade, e tendo essas partidas, com algum prejuízo, porque os facínoras resistiram, conseguido prendê-los, foram eles processados, e afinal condenados pela junta de justiça a morrerem enforcados; senten­ça que cumpriram quatro dias depois de proferida e subiram ao patíbulo, dando mostras de grande contrição, e arrependimento de seus delitos.

Os trovadores daquele tempo compuseram cantigas alusivas á vida e morte do Cabeleira: e ainda hoje as velhas cantam essas trovas quando acalentam os netinhos."

É de observar que pela alcunha Cabeleira, a meu parecer deve entender-se antes o filho do que o pai; e que Fernandes Gama, designando com ela este último, foi vitima de equivocação muito desculpável em um escritor que escreveu quase um século depois dos acontecimentos.

Os trovistas deixam fora de dúvida este ponto quando dizem:

Fecha a porta, gente,
Cabeleira aí vem;
Ele não vem só,
Vem seu pai também.
Meu pai me pediu, etc.
Meu pai me chamou, etc.

Enfim, quase todas as trovas autorizam crer que a alcunha pertenceu ao filho, e só a este.

Ainda outro argumento a favor desta opinião, se o que aí fica não fora mais que bastante.

A musa do povo não cantaria um tão grande assassino se nele não descobrisse algumas qualidades dignas. A musa do povo não é torpe, não exalta o sicário infame e no todo desprezível. Por este chora o povo uma lágrima ao passar por ele, e afasta-se triste e mudo, não lhe dá um lugar na sua imaginação, não lhe con­sagra uma nota do seu melancólico e suavíssimo instrumento.

Seus trenos singelos e santificadores, se algumas vezes envol­vem em si um nome odioso, é que este nome representa também alguma virtude grande, a que o sentimento do justo, inato no coração do povo, não é indiferente. O pai do Cabeleira não tinha nenhuma virtude digna desta distinção.

Os trovistas pernambucanos do século XVIII cantaram no Cabeleira, não o matador que fazia tremer populações como um cataclismo, cantaram o grande ânimo que, por desviado do bom caminho, chegou a pagar com a vida no patíbulo os crimes que a bem dizer pertenciam menos a ele do que a outrem.

Cantaram o grande exemplo que afirma a necessidade da instrução e da educação, sem a qual espíritos que poderiam chegar a ser úteis à sociedade, e legar um nome honrado e querido, se convertem em instrumentos da destruição dela e de si próprios, e deixam uma memória execrada. ou lamentável.

Estas verdades ressaltam das letras que dizem:

Minha mãe me deu
Contas pra rezar;
Meu pai deu-me faca,
Para eu matar.

Quem tiver seus filhos
Saiba-os ensinar;
Veja Cabeleira
Que vai a enforcar.

Tenho para mim que a morte do Cabeleira, não obstante os seus imensos crimes, comoveu a sociedade que foi dela testemunha, o que só se pode explicar pela convicção nela reinante, de que o infeliz mancebo fora na prática de tais crimes, antes arrastado por uma forca estranha ao seu natural do que por este impelido. Daí o pesar inspirado pelo Cabeleira aos trovistas, e a distinção que deles me­receu, distinção que não se estendeu nem a seu pai nem ao seu par­cial Teodósio, que aliás, deram, como aquele, mostras de grande contrição, e arrependimento de seus delitos, segundo escreve Gama.

De uma carta que na entrada de março último recebi de meu amigo Francisco P. do Amaral, cuja sisudez é conhecida em Per­nambuco, onde ele exercita o lugar de oficial arquivista da assem­bléia provincial, traslado para mais esclarecimento os trechos que seguem:

"José Teodósio só pode ser comparado, por sua malvadez, com Pedro espanhol, célebre assassino dessa corte. Cometeu muitos rou­bos e assassinatos no Recife e nos arrablades".

"Cabeleira foi preso no canavial do Engenho Novo de Pau-d'Alho, pelo capitão-mor, Cristóvão de Holanda Cavalcantí. O dito engenho pertencia naquele tempo a Goiana".

"Cabeleira era natural de Glória de Goitá, que fazia parte de Santo Antão".

"Tocava viola com muito gosto, e a esta circunstância ia devendo ser solto, a pedido da mulher do capitão-mor, a qual, tendo ouvido o preso tocar, ficara com pena dele. Esta pena aumentou quando o Cabeleira lhe rogou com voz cândida, segundo me diz o meu informante, pessoa acima de toda exceção, e ainda parente daquele capitão-mor, que mandasse afrouxar-lhe as cordas. Foi atendida a súplica, e então aproveitou-se ele da ocasião para mostrar a sua grande habilidade de tocar o Instrumento".

"Foi enforcado em Cinco Pontas, precedendo na mesma oca­sião o filho ao pai".

"Contam que dirigiu algumas palavras ao público".

"Chamava-se José Gomes."



Não é de data moderna o sentimento pernambucano em desa­bono dos padres jesuítas que ainda ultimamente foram manda­dos sair de Pernambuco por ato do governo provincial com apro­vação do governo-geral.

Já em 1773 a vila se iluminara para solenizar a extinção dessa companhia. Assim a manifestação de regozijo, com que a capital de Pernambuco solenizou em 1873 o centenário da promulgação do breve Dominus ac redemptor, não foi outra coisa que a re­petição do que um século antes havia praticado o Recife.

Eis aqui os termos do bando mandado publicar pelo governa­dor de Pernambuco:

"Para demonstração da alegria que causou a toda a nação por­tuguesa a proscrição e abolição da ordem chamada da Companhia de Jesus, em todo o orbe cristão, pelo santo padre hoje reinante na igreja de Deus, de que resulta a quietação pública dos fiéis vassalos de sua majestade fidelíssima, a quem perturbaram aqueles regulares, que se constituíram Inimigos do Estado; ordeno a V. M.cês que para o dia de sexta-feira, sábado e domingo da presente semana, mandem publicar, com a maior solenidade que lhes for possível, luminárias nesta vila, com a pena que lhes parecer aos moradores que faltarem a este devido efeito.

Deus guarde a V. M.cês — Palácio do governo, 19 de dezembro de 1773. — Manuel da Cunha de Meneses. — Srs. oficiais da câmara da vila do Recife."



Freqüentes vezes usei das palavras seu e sinhá antepostas aos nomes próprios. São contrações dos vocábulos senhor e senhora, que em outras partes são representados pelas contrações sô e só. Quem conhece os costumes populares do norte, sabe que não in­vento.



Chama-se no norte jerimum ao que se chama aqui abóbora, e macaxeira ao que se chama aipim.



Arroz-doce é o arroz cozido com açúcar e leite de coco, e que as quitandeiras mercam em xícaras. É iguaria aprazível.



Pela expressão "pé-rapado", designam os matutos o sujeito pobre, o que não tem nada de seu.



Cangaço é voz sertaneja. Quer dizer o complexo das armas que costumam trazer os malfeitores. O assassino foi à feira debaixo do seu cangaço — dizem os habitantes do sertão.



Quinguinqu parece-me voz africana. É só usada nos engenhos, para designar o trabalho extraordinário feito, uma vez por outra, antes ou depois do serviço diário do campo pelos negros. Por isso efetua-se antes de o sol cair, ou depois de ter-se recolhido.



Dos beijus e tapiocas eu não poderia dar mais exata noticia do que se lê no Roteiro do Brasil, de Gabriel Soares, impresso no tomo XIV da Revista do Instituto Histórico. Diz o Roteiro:

"Fazem mais desta massa (a da mandioca), depois de espremi­da, uns filhós, a que chamam beijus, estendendo-a no alguidar sobre o fogo, de maneira que ficam tão delgados, como filhós mou­riscos, que se fazem de massa de trigo, mas ficam tão iguais como obreias, as quais se cozem neste alguidar até que ficam muito secas e torradas. Fazem mais desta mesma massa tapiocas, as quais são grossas como filhós de polme e moles, e fazem-se no mesmo alguidar como os beijus; e querem-se comidas quentes, com leite (de coco) tem muita graça; e com açúcar clarificado."

Catinga, mato enfezado e bravo, acha-se definido com toda a precisão por Gonçalves Dias, em seu Dicionário da Lingua Tupi; e é voz muito usada em todo o interior do Norte do Brasil.



Pela voz coivara designam os matutos uma figueira de grandes proporções. Encoivarar o roçado quer dizer entre eles requeimar os paus mais grossos que resistiram ao fogo da primeira queima. No texto escrevi encoivarava terra. Esta expressão não é pró­pria, e eu a empreguei no sentido translato, tomando terras pela extensão roçada ou desbravada.



Tirar uma abelha quer dizer cortar a árvore em cuja cavidade as abelhas se estabeleceram a colher o seu mel. Os habitantes do interior não empregam outra expressão para significarem esta operação.



Capuaba é casa de gente pobre, choupana desprezível.



Pela palavra cabra que freqüentes vezes pus na boca das figu­ras populares da história, não quis exprimir as mais delas o filho ou filha de mãe negra e pai mulato, ou de mãe mulata e pai negro; mas um sentido especial e muito outro deste. Cabra é também ali voz sinônima de homem, ou talvez mais particularmente de homem forte, sujeito destemido e petulante. F. é cabra danado é frase muito usada do vulgo.

Foi neste sentido que as mais das vezes me servi deste termo.



Usam-se no Norte frases muito expressivas, e que lhe são pe­culiares. Pertencem a este número as seguintes: Mostrar com, ou de quantos paus se faz jangada, quer dizer — mostrar para quan­to presta, ou o seu valor, o seu poder; fazer o bonito em poucas horas, ou em poucos momentos; concluir o negócio, ou a empresa com próspero sucesso, ou do melhor modo possível, triunfar com grande brilho; lamber o inimigo, ou valentão, fazê-lo desaparecer, vencê-lo, aniquilá-lo sem dificuldade.

O Norte é riquíssimo de expressões e frases semelhantes.



Na página 95 referi-me, por anacronismo, ao Viveiro do Muniz, o qual data de 1787, e foi formado, segundo diz Gama, do vão deixado pela terra que se tirou para reparar o Aterro dos Afogados, por ordem do governador D. Tomás José de Melo, sucessor de José César.



D. João da Purificação Marques Perdigão foi um bispo de pou­cas letras, mas de boas partes naturais.

Quando mais não fizesse, bastara a pacificação dos cabanos que a ele se deve, para ser sua memória estimada e respeitada na província.

Tratando da Guerra dos Cabanas, expressa-se o General Abreu e Lima em sua Sinopsis nestes termos:

"Depois de uma luta de perto de quatro anos, pôde o Major Joaquim José Luís de Sousa amainar as iras daquela gente; e ser­vindo-se da intervenção pastoral do reverendo bispo de Pernambu­co, chamar ao grêmio da igreja e da sociedade, em novembro de 1835, aqueles homens quase selvagens, conseguindo pelo poder e auxílio da persuasão o que não tinha podido alcançar pelo poder da força."



É de todo o ponto justo e procedente o juízo que expressei no último capitulo desta história a respeito de Maurício de Nassau, a ninguém segundo no gênio criador, no grande senso administra­tivo, e no amor da justiça e liberdade regrada.

"Durante este ano (1637) — diz José de Vasconcelos nas suas Datas Célebres — consolidou-se o domínio holandês no Brasil, em virtude das sábias medidas tomadas pelo conde de Nassau."

Vasconcelos dá em substância essas medidas, nas páginas 180 e 181 da sua obra, e não só por elas, mas pelo muito que dessa data em diante pôs em prática em todos os ramos do público serviço, vê-se que Maurício de Nassau tomara de siso o papel de administrador, e era o homem fadado para governar esse povo já então grande.

Quando em Pernambuco se achar de todo feita a luz para que estão trabalhando, entre outros, José de Vasconcelos, com seus es­tudos históricos, e o Dr. Jose Higino Duarte Pereira com a tradução de obras holandesas do merecimento do Diário de Mateus van den Broeck, e da História da Companhia das Índias que já a ele se de­vem, ficará então bem evidente a obrigação de honra que tem Per­nambuco de estimar e acatar a memória dos holandeses que muito fizeram pelo seu bem e progresso assim material como moral.

Em 6 de maio de 1644, isto é, e sete anos depois de ter aporta­do na plaga pernambucana, fez Maurício entrega do governo ao Su­premo Conselho do Recife; e a 11 dirigiu-se por terra à Paraíba a fim de embarcar para Holanda.

"Parece — diz Vasconcelos — que antes de deixar o país que engrandecera com sua sábia administração, quis ver aquela parte que ainda não conhecia.

Sai de seu palácio, em Mauricéia, a cavalo e seguido de um cortejo numerosíssimo; e atravessando o Recife vai pelo istmo até Olinda, donde pelo longo da costa seguem até Itamaracá, e de lá até a Paraíba.

Por toda parte por onde passava, recebia inequívocos teste­munhos de reconhecimento, e vivo pesar que causava a sua par­tida, de sorte que esta viagem lhe foi uma verdadeira marcha triun­fal.

De todos os pontos os moradores corriam a seu encontro para lhe dizer o último adeus. Suas exclamações eram acompanhadas dos sons dos instrumentos que tocavam o hino holandês Wilhemus­-van-Nassauven, enquanto os canhões dos fortes lhe enviavam de longe as derradeiras saudações militares.

O índio Jandovi, cacique dos tapuias, e aliado dos holandeses, enviou uma deputação na qual vinham todos os filhos seus, para ro­gar ao príncipe que, se ainda fosse possível, espaçasse a. sua partida.

Muitos negociantes considerados, e outros habitantes do pais embarcaram-se com ele por considerarem a colônia perdida com a ausência dele."

Muito tinha eu ainda que dizer sobre passagens desta história que só poderão ser bem entendidas com certos esclarecimentos e observações que, por assim dizer, as completam; mas esta carta já vai demasiado longa, e é preciso encurtar leitura. Espero ter muito breve ocasião de conversar novamente contigo, ouvindo-nos o público, e então serão supridas algumas faltas que ficam aqui por preencher.

Antes porém de pôr o ponto final, devo pedir-te desculpa, meu amigo, dos erros de que está inçado este livro. A culpa não é da tipografia, onde sempre fui tratado com a melhor vontade; pou­cos lhe pertencem; a culpa principal é minha, por não dispor do tempo e da atenção que demanda a revisão de trabalhos da natu­reza deste.

A mor parte das provas eu as corrigi a lápis, no bonde, de via­gem, às pressas. Isto não é fantasia; é a verdade.

. . . . . . . . . . . . . uma tarde na pag. 263; o sol despertou o bandido e não o sol acordou o bandido, na pag. 270; viram-se desfilar, em lugar de viu-se desfilar na pag. 297.

Fico concluindo — O Matuto —, segundo livro desta serie.

Provavelmente só o receberás em março ou abril proximo futuro.

 
Teu

FRANKLIN TÁVORA


 

Rio, setembro de 1876.