Anexo:Imprimir/Camões e o amor

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ERNESTO PIRES



CAMÕES E O AMOR



(NO ANNIVERSAIO DE 304 DA MORTE DO POETA)




VENDE-SE NA LIVRARIA
DE
JOÃO E. DA CRUZ COUTINHO — EDITOR
12. Rua do Almada. 16-Porto


1884


Á MEMORIA

DO GRANDE POETA

LUIZ DE CAMÕES


CONSAGRA


ESTE HUMILDE TRIBUTO



O Auctor

Índice

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Heide gastar os olhos só a olhar-te,
A alma heide queimar no fogo ardente
Que vem dos olhos teus, continuamente,
4E assim succumbirei? a abençoar-te.

Só tenho coração para adorar-te,
Labios para diser-te quanto sente
Quem feliz se julgara, eternamente,
8Ficando, eternamente, a idolatrar-te.

No peito meu não cabe o sentimento,
Trasborda como as agoas, alteradas
Pelas raivosas convulsões do vento.

12Amado ou não, — as trovas? magoadas
Do amor e coração e vida e alento
Eu aos teus pés deponho? , — eil-as rojadas!

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Ajoelhara a negra suspirando
Postas as mãos, os labios contrahidos,
Diziam as canções dos seus gemidos
Mais do que os prantos com que estava olhando.

5Camões fitava o espaço, meditando,
Bem longe o coração, longe os sentidos;
E de seus olhos, para a dôr nascidos,
As perolas caiam, deslisando.

Um queixume da negra, compungente,
10Acordara o poeta, que sonhava
Com a patria querida e o amor ausente.

Ella co'os olhos n'elle comtemplava,
Elle co'os olhos n'ella era indifferente,
Que todo aquelle mal outra o causava.

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(SALVAÇÃO DOS LUSIADAS)


Cinzenta a côr do ceu, a noite baça,
O vento chora nas enxarcias, rude
Como grito plangente d'alaude,
4Vibrado pelos dedos da desgraça.

Além nenhuma estrella então perpassa,
E' o horisonte um lugubre athaude,
Fervem as ondas altas como açude
8Que as torrentes ás agoas embaraça.

Vem da China o baixel desarvorado,
Sulcou o mar com soffrega vontade,
11Até que o mar o fez despedaçado.

Sorrindo heroicamente á tempestade,
Paga o zelo maior do seu cuidado
13Camões, salvando á patria a eternidade.

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Não desço agora á fria sepultura,
Não roubo á morte os pavidos segredos,
Não quero desfolhar com estes dedos
4Do gelo a flôr de extranha formosura.

Não vou cingir na tua fronte pura,
Cheio de horror,—o labio e os olhos quedos,—
Por entre a noite e os tristes arvoredos,
8D'uma fatal grinalda a eterna alvura.

Deixa que viva assim em treva absorto,
Cadaver, caminhando, tristemente,
11Em demanda do meu perdido horto.

Já que ventura amor me não consente,
Que não recorde mais meu peito morto
14Erros meus; má fortuna, amor ardente.

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Quando sorria a infancia docemente
Aos olhos infantis da minha esp'rança,
Era-me o ceu azul, azul bonança
8Me enchia o alegre peito, ternamente.

Brilhante o espaço, a aurora transparente,
Brando o futuro se a illusão avança!...
Assim jámais o coração se cança,
12Mostrando á nevoa fria um sol ardente.

Pastam os olhos meigos pelos prados,
Os astros rompem sempre vigorosos
11As campinas do ceu, fortes arados.

E murcham sobre a campa luminosos
os lyrios! E' que lembram, emigrados
14Alegres campos, verdes, deleitosos.

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Inveja a noite escura e tenebrosa
A negra côr do teu olhar vibrante,
Espelho d'alma triste e peito amante,
Imagem d'uma estrella radiosa.

O teu olhar de fogo!... E' assombrosa
A luz que espalha ao de redor; distante
Se fôr um dia, caminheiro errante,
Que elle me enxuge a face lacrimosa.

Se além, na campa, os membros já cançados
Eu repoisar ao pé dos tristes lyrios
E dos funereos goivos delicados.

Pago serei então de meus martyrios,
Se, juncto a mim, teus olhos magoados
Forem-me, ali, os derradeiros cyrios.

II

Os olhos que me deram na existencia,
Com seu gentil fulgor de virgindade,
Umas vezes amor, outras saudade,
Renascendo-me a paz na consciencia;

Olhos cheios de vida e de innocencia,
Revivos de perfume e suavidade,
Olhos de tão formosa claridade
Que escurecem do ceu a transparencia;

Talvez sejam ainda os companheiros
Da melodia heroica de meu canto,
Meus amigos sinceros, verdadeiros.

Talvez!... Mas se podér a sorte tanto
Que os affaste de mim, que os derradeiros
Suspiros meus orvalhem com seu pranto.

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Tudo se abraça n'este mundo, creia!
O mundo é sonho passageiro, breve,
Se além a sorte a sina nos descreve,
Tambem o amor impelle a nossa ideia.

Abraça o mar, bramindo, a branca areia,
O zephyro que, á tarde, vae de leve
Pelo norte a voar, abraça a neve,
Abraça a chamma um corpo que incendeia.

A hera abraça o tronco que, elevando
Os braços para o espaço, os entrelaça
No doce arfar da naturesa, brando.

O raio abraça o cedro que estilhaça,
A lua abraça o mar, se está brilhando,
Só o meu peito, amor, a não abraça!

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Senhora de minh'alma, a suavidade
Dos teus labios gentis tornou-me á vida;
Tinha a esperança morta e já perdida
E deu-lhe um beijo teu vitalidade.

Passou a dor mimosa da saudade,
Surgiu no oriente a aurora apetecida,
Brotou a flôr, ha muito emmurchecida,
A bella flôr d'alegre mocidade.

Agora canto o sol, as philomelas,
O vasto mar, as lucidas estrellas,
A noite escura e a branca luz da alva.

Lasaro resurgi da terra fria,
Abrindo o olhar já baço á luz do dia...
——E' que um beijo, senhora, tambem salva.

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E' assim como o rosto de Paulina,
Cruelmente por Nero perseguida,
Aquella flôr que estimo mais que a vida,
Flôr gentil de face purpurina.

Nas suas folhas leio a minha sina;
Talvez cheia d'amor, talvez florida
Renasça a fé, n'esta alma, dolorida,
D'aquella flôr á nota sibyllina.

Quando poisar d'ausencia o escuro manto
E se ouvir, n'uns timidos harpejos,
O meu remoto e solitario canto,

O' brisas que passaes por estes brejos,
Estou a ungil-a com saudoso pranto
E a reanimal-a com ardentes beijos.

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Não sei se sabes quanto amor eu tenho,
Guardado dentro d'alma, com fervor,
Como um crente que estreita um Santo Lenho,
Juncto do coração, cheio d'ardor.

Em bem guardal-o ponho grande empenho,
Intacto como o Lenho do Senhor;
Hasde sentil-o que tambem convenho
Que arde em teu peito um semelhante amor.

Escuta, ao longe, escuta essa harmonia,
Cantam os rouxinoes, nos arvoredos,
Banhados pela lua que irradia.

Confiam, mutuamente, os seus segredos...
——Ai, vem tambem contar-me a melodia
Dos teus sonhos d'amor, d'amor tão ledos.

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Tu tens no coração todo o perfume
Que me embriaga a alma, docemente,
Que m'a eleva voando, mansamente,
Por ceu azul sem mancha, nem negrume.

Tu és, senhora, o alevantado cume
Da montanha do amor, onde vou, crente,
Curvar-me de joelhos, reverente,
Pelo poder que o teu olhar assume.

E sempre a adorar-te ficaria
Se soubesse que dentro do teu seio
Um affecto por mim rebentaria.

Assim, vivendo num cruel receio,
Topando a noite aonde espero o dia,
Talvez não ache da ventura um veio.

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Heide lembrar-me sempre, com saudade,
D'aquella noite gelida de inverno,
Em que poisaste, amor, o labio terno
Sobre o meu labio frio. Na anciedade

De enclausurar do amor a immensidade
Dentro do peito meu, o amor eterno,
Que ora nos salva e outr'ora dá o inferno
Aos sonhos bons da franca mocidade,

Sonhei coisas divinas, myst'riosas...
No aroma sideral do beijo ardente
Sorvi o alento das sensiveis rosas.

Depois ouvi, ao longe, meigamente,
A' tua voz, n'umas canções saudosas:
——Eu heide amar-te muito e eternamente.

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Do teu olhar a doce claridade
Deu novo rumo á minha triste vida,
Abriu-me a alma á luz da immensidade,
Tornou-me a esp'rança ha muito foragida.

E hade talvez, atroz preversidade!
Lançar de novo a alma redemida
Entre os fataes escombros da saudade
Essa que foi por mim compadecida?

Mostrar o sol a quem vive na treva
E lançal-o, depois, á noite escura,
Fugir de Adão a delicada Eva...

Senhora minha, se é assim tão dura
A consciencia que d'amor me enleva,
Será eterna a minha desventura.

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Eu tenho os olhos gastos por chorar-te,
Por tua ausencia eu trago o peito anceado,
Procuro-te no espaço illimitado,
No mar, na terra, emfim em toda a parte.

Embora a mente julgue divisar-te
No seio d'uma estrella, illuminado
Ou d'uma flor no calix perfumado,
Nem sei aonde vá para adorar-te.

Tudo me falla em ti!... Ninguem me escuta
Se busco em ti fallar, visão perdida!
De dôr assim o coração se enlucta.

Immaculado amor, pomba fugida,
Da sombra aonde estás termina a lucta
A quem por te não ver morre na vida.

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Não sabe com certesa o que é ciume,
O que é sentir no peito, em vida, gelo,
Pegar no coração e contorcel-o,
Subir da raiva e do odio ao negro cume.

Não sabe o que é do amor o ardente lume...
Sonhar um vasto ceu e comprehendel-o,
Para ver, cruelmente, desfasel-o,
Na sombra da illusão, voraz negrume.

Não sabe, não, senhora!... ai! se o soubesse,
Se o podesse antever, se o comprehendesse,
Estrangulando a vida, á voz do amor...

Por mais cruel que fosse não daria
A uma alma, irmã da sua, essa agonia
Vendo-a morrer em convulsões de dor.

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Se a morte me extinguir a mocidade,
Cortando o fio de penosa vida,
Julgar-me-has uma illusão perdida,
Haverá dentro em ti uma saudade?

Buscarás descobrir, na immensidade,
Quando a noite passar enegrecida,
Uma estrella serena e dolorida
Que te falle de mim, da eternidade?

Ou antes, esquecendo antigo enleio,
Extinguirás de vez, dentro em teu seio
A lava enorme d'um passado amor?

Se fôr assim, em noite tenebrosa,
Tu hasde ouvir minh'alma lacrimosa,
Magoadamente a suspirar de dor.

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Com oiro fino e pedras recamado,
Outr'ora um rei de Hungria deu o throno,
Para dormir um passageiro somno
D'uma donsella no regaço amado.

Ao ver o rei assim apaixonado
Sorria a corte com sinistro entono!
Neto de heroes vencido... ao abandono...
——Ai, quem em tal houvera então pensado.

Se fôra rei daria o throno, a gloria,
A c'roa, o manto, a fama, a patria, a historia,
O paço, as cortesãs e o sceptro bello,

Não por dormir um somno d'innocencia
No teu regaço, em morbida indolencia,
Mas para me enforcar no teu cabello.

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Se escuto ao longe a timida harmonia
Da tua voz vibrante, modulando
Um cantico d'amor, ou suspirando
Em requebros profundos d'agonia;

Bebe minh'alma, então, a melodia
Que o labio teu, assim, vem distillando
E sabe Deus se, ali, sempre ficando
Minh'alma de beber se fartaria.

A tua voz serena é mais suave
Que o colo branco e puro d'uma ave
Que o seio mais gentil d'uma rainha.

Ai, viesses tu cantar, eternamente,
Sorrindo ou soluçando, docemente
Dentro do peito meu, ó alma minha!

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Se a crua morte te arrancar um dia
Dos braços meus, ó pomba estremecida!
Irá no teu caixão a minha vida,
Do meu amor a doce melodia.

Quando sentires collada a terra fria
Sobre o gelado peito e comprimida
A nivea face que a beijar convida
E que continuamente beijaria;

Hasde ouvir minh'alma, suspirando,
Muito de manso, como um tenue alento,
No canto triste do nocturno bando.

Escuta, então, meu lugubre lamento...
No ceu, serena, a lua irá passando,
Por sobre a terra gemerá o vento.

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Quando longe de ti te vejo perto
E te abraço, nervoso a todo o instante,
O' minha bella e carinhosa amante,
Não sei se sonho ou se estou disperto.

Por teu olhar d'amor sempre coberto
Junto de ti quando de ti distante,
Ouço-te a voz gentil e sussurrante,
Ouço jurares-me o teu enorme affecto.

Em tudo que me cerca e me rodeia
Eu vejo a tua imagem carinhosa,
O' minha doce e terna Dulcinea.

Falla-me em ti, a madresilva e a rosa
E tudo a quanto eu levo a minha ideia...
Vejo-me preso em teu amor, formosa!

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I

Eu não escalo as rochas de granito,
Eu não transponho as vastidões do mar,
Nem vou rasgar o ventre do infinito,
Passo a existencia, inerte e sem pensar.

Não sei se Deus existe, ou se é um mytho,
Imposto á crença para atormentar
Da humanidade o largo peito afflicto,
Em noites de negrume, sem luar.

Vivo n'uma anciedade indefinida,
Cheio de Raiva, ensanguentado e vil,
Sem mesmo comprehender o que é a vida,

Ai! talvez seja um lugubre covil,
Uma passagem horrenda e dolorida
D'um mundo mau a um outro mais gentil.

II


Talvez seja uma ponte arremessada
D'um nada a outro nada incomprehensivel,
Talvez seja uma nota não tangivel
Na harpa pelo Destino dedilhada.

A vida... talvez seja uma enseada,
Onde aporte, na furia inconcebivel
Dos elementos mil do Incognoscivel,
Noss'alma, sem timão, desarvorada.

Deixae livre correr a phantasia,
O' sabios que arrancaes á terra fria
Os mysterios de toda a immensidade...

Que a morte, poderosa como o incendio,
De vós rirá, com forte vilipendio,
Levando-vos talvez á Eternidade.

Esta obra há sido completamente validado.

Ouço dizer, ha muito, que a saudade
Aviva n'alma os grandes sentimentos,
Engrupando n'um só os pensamentos
Que se reunem, além, na immensidade.

Deixei-te um dia em triste soledade,
Parti, cheio de dor e de lamentos;
O pobre coração, entre tormentos
Luctando com raivosa anciedade.

Voltei tempo depois:——O sol raiava,
Sorria a primavera, e ostentava
O agreste breijo a perfumada flôr.

E ao ver-te, novamente, ó doce amante,
Disse a teus pés cahido e murmurante:
——Bemdicta a naturesa e o teu amor!

Esta obra há sido completamente validado.

Eternamente fria, inamovibel,
Materia alevantada á luz da vida,
Não sei se me será doce guarida,
Se para mim será um impossivel.

Ausculta-se, não pulsa. É insensivel
Aos sonhos meus, á minha voz sentida,
Gelada, sempre fria, incomprehendida
Do amor é uma nota não tangivel.

E tem no olhar vibrante o eterno fogo
Que se propaga a alma e fere logo
Enlaçando n'um aro o coração.

——Ama?——Eu não o sei! Extranha amante!
Illapidada assim como um brilhante,
Talvez da naturesa aberração.

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O delicado aroma do teu seio
Enche-me o coração d'affecto puro,
O peito me embriaga em doce enleio,
Brilha de luz e amor o ceu escuro.

Ai, quanto mais o aspiro, mais anceio,
Quanto mais temo, mais estou seguro
De que hade ser o aroma de teu seio
Que hade raiar de sol o meu futuro.

Os oleos santos dos passados cultos,
De myrrha, e nardo, e rosa, oleos sepultos
Na fria escuridão da antiguidade;

Não tinham mais perfume delicado
Que o seio teu gentil e perfumado,
Seio gentil d'eterna suavidade.