Índice
Parte I
- Introdução
- Nascimento, pátria, país e educação do piolho
- Carapuça II
- Carapuça III
- Carapuça IV
- Carapuça V
- Carapuça VI
- Carapuça VII
- Carapuça VIII
- Carapuça IX
- Carapuça X
- Carapuça XI
- Carapuça XII
- Carapuça XIII
- Carapuça XIV
- Carapuça XV
- Carapuça XVI
- Carapuça XVII
- Carapuça XVIII
- Carapuça XIX
- Carapuça XX
- Carapuça XXI
- Carapuça XXII
Parte II
- Prólogo da Parte II
- Carapuça XXIII
- Carapuça XXIV
- Carapuça XXV
- Carapuça XXVI
- Carapuça XXVII
- Carapuça XXVIII
- Carapuça XXIX
- Carapuça XXX
- Carapuça XXXI
- Carapuça XXXII
- Carapuça XXXIII
- Carapuça XXXIV
- Carapuça XXXV
- Carapuça XXXVI
- Carapuça XXXVII
- Carapuça XXXVIII
- Carapuça XXXIX
Parte III
- Prólogo da Parte III
- Carapuça XL
- Carapuça XLI
- Carapuça XLII
- Carapuça XLIII
- Carapuça XLIV
- Carapuça XLV
- Carapuça XLVI
- Carapuça XLVII
- Carapuça XLVIII
- Carapuça XLIX
- Carapuça L
- Carapuça LI
- Carapuça LII
Parte IV
- Prólogo da Parte IV
- Continuação da Carapuça LII
- Carapuça LIII
- Carapuça LIV
- Carapuça LV
- Carapuça LVI
- Carapuça LVII
- Carapuça LVIII
- Carapuça LIX
- Carapuça LX
- Carapuça LXI
- Carapuça LXII
- Carapuça LXIII
- Carapuça LXIV
- Carapuça LXV
- Carapuça LXVI
- Carapuça LXVII
- Carapuça LXVIII
- Carapuça LXIX
- Carapuça LXX
- Carapuça LXXI
- Carapuça LXXII
Tendo-me ocupado em algumas coisas sérias, nunca me renderam nada. Eu, que sempre fui muito inclinado a traduzir línguas alheias, ainda que, a falar verdade, não sei muito bem a minha, encontrando este manuscrito em poder de um Mouro, que esteve cativo em Argel, e achando os caracteres muito estranhos, porque alguns pareciam-me caranguejos, fui desenganado pelo dito Mouro, mas debaixo de muito segredo, (e o mesmo peço a todos, que este lerem) que era língua piolha, obra antiquíssima, feita no tempo em que se inventaram as esteiras. E todos sabem que as esteiras é invenção dos Orientais, e que ainda hoje são as suas camas.
Esta obra foi achada numa terra que ainda se não descobriu, mas que brevemente se espera esteja descoberta.
Pode-se supor qual seria o meu trabalho a traduzir uma língua que nem por Microscópio se vê e que não tem Dicionário, ainda que no fim desta obra eu darei um à luz, parto de nove meses do meu engenho. Mas, enfim, consegui-o, e estou tão senhor dela, que será muito difícil ao Piolho mais esperto enganar-me. Eu os desafio a todos em campo raso, e sem cabelos.
De toda a obra, o que me deu mais trabalho foi a tradução dos versos que se acham espalhados pelo corpo dela, e que constam de uns amores que teve o Piolho com uma Lêndea, e a paixão que teve por uma rapariga indiana de quinze anos, em cuja cabeça viajou seis meses, e uma Elegia à morte do Piolho, Autor desta obra, feita por um Piolho seu amigo. E é pena que eu não pilhasse mais obras deste Autor, porquanto lhe achei muita novidade, como lerão os meus Leitores, senão com aquela força que a língua Piolha tem, ao menos com toda aquela que lhe pude pôr. E eu não sou nenhum galego de pau e corda, antes sou bastante débil, por cuja causa peço esta desculpa.
A língua Piolha é toda a mesma, ainda que sejam diferentes as Nações, com a única excepção que os Piolhos das Amazonas fazem dos breves, longos. Esta língua não tem nenhuma Ortografia; usa de pevide, como as Galinhas e foi providência isto, pois se falasse tudo o que entendesse, e quisesse, não haveria língua mais impertinente. Quando a verdade é guia, a linguagem é a da natureza: tal no Piolho, que escreveu esta História, pela clareza de modo de explicar-se e simplicidade de termos. Seguiu o génio sem forçar e todos deveriam assim escrever. Creio que tenho dado a clareza que basta para conhecimento da minha tradução e trabalho; e a grande utilidade que tirará em a ler aquele que a ler andar aprendendo; pois como a obra é grande, e de todas as semanas, será muito rude se não ficar sabendo letra redonda, e sem escrúpulo se lhe poderá chamar um redondo...
A murmuração
É quente de Inverno,
Fresca de Verão
Guilganguetas na Sua História dos
Camafeus, liv. 100, p. 30000, 1. c.
Eu nasci lá para a Ásia, de um ajuntamento de uma Piolha e um Elefante, ainda que houve quem dissesse que uma Tarântula macha foi quem me deu o dia. Mas fosse ou não fosse, isso é coisa insignificante; porque como os Piolhos não têm morgados que herdar, as Piolhas têm pouco escrúpulo de que seja este ou aquele o Pai de seus filhos, ainda que não deixe de haver muitas Piolhas escrupulosas e com muitos bons sentimentos. Seja ou não seja, meu Pai desconfiou muito de eu não ser seu filho, o que não deu poucos cuidados à minha mãe, e talvez fosse a origem da sua morte. Mas é certo que ele não teve razão nenhuma, pois minha mãe me certificou, depois dele morrer, que ela não tivera dares nem tomares com outro algum indivíduo.
Nasci fora de tempo e minha mãe esteve em perigo de vida a meu respeito, porquanto eu saí, ainda que Piolho, bastante grande e largo, que muitas vezes me tomaram por Percevejo. Saí todo à minha mãe, principalmente nos olhos, no andar e no accionado.
A minha cor é cinzento-escura. Educaram-me logo à chuchadeira da cabeça, que a do corpo é só para os veteranos. Não cheguei a mamar vinte minutos. Aos cinco dias de nascido fui atacado de moléstia de olhos; abriram-me uma fonte numa das pernas esquerdas e, com efeito, melhorei, que hoje vejo quanto me basta.
Minha mãe quis que eu aprendesse línguas. Mas meu pai, que era Piolho prudente, não consentiu, dizendo que, enquanto não soubesse perfeitamente a minha, os costumes da minha casta, a obediência que se lhe devia, me não queria embrulhar em mais coisas, para no fim ficar um toleirão, sem nada saber. Ele era áspero de génio e eu não era muito seu apaixonado. Nunca lhe vi um ar de riso para mim. Jamais me tratou por tu, sempre era um Vossemecê para aqui, Vossemecê para acolá. De forma que eu não só tinha respeito, mas medo.
O Piolho que me ensinava a falar e a morder, não desgostava de minha mãe e ela também não lhe envesgava os olhos. Punha-lhos direitos. Eu pouco aprendia, porque o meu pai nunca queria assistir à lição, dizendo que, quando o Mestre estava com o Discípulo, nem o mesmo pai tinha poder no filho. O Mestre aproveitava-se do tempo e, em vez de me ensinar a mim, ensinava a minha mãe, que era só com quem falava. E havia lição que nem uma só palavra me dizia, do que pouco se me dava porque entretinha o tempo em me balouçar nos cabelos, divertimento de que sempre gostei muito. Meu pai foi percebendo que eu era uma besta e que não aprendia nada. Chamou-me de parte e pediu-me conta dos meus afazeres. Eu tinha pouca malícia e muito amor ao corpo. Contei-lhe do plano a quem o Mestre dava as lições. Ele disfarçou, pôs-me uma das mãos pela cara, deu-me um beijo e foi esta a primeira e única vez que lhe vi e mereci um agrado. No outro dia chegou o Mestre, que morava ali perto (nós morávamos na cova-do-ladrão e ele atrás de uma orelha) e meu pai despediu-o com toda a cortesia. Mas ele, não contente, entrou às satisfações, dize-tu-direi-eu, e chegaram a braços. Neste tempo, o dono da cabeça em que nós morávamos, sentiu rumor mais do que costumado e, de um golpe, acertou com ambos, que estavam encangalhados e juntos morreram debaixo da unha, aonde, por costume, nós somos justiçados pelos nossos delitos. Se é que é delito o procurarmos simplesmente o nosso sustento. Pois que nós não tiramos o sangue a ninguém para andar em sege nem sustentar vícios.
Minha mãe, cheia de aflição, e vendo em mim a causa da sua desgraça, além de eu já estar bastante robusto e fazendo bem por viver, pôs-me à vida, dando-me alguns conselhos e um abraço, de que lhe fiquei muito obrigado, porque entre nós há Pais que nem isto dão. Ela assistia, ao tempo da minha retirada, na cabeça de um Procurador de Causas, a cuja cabeça eu fui alguns anos depois da sua morte. Esqueci-me de dizer que eu me chamo - X - apesar de não ser queijo Inglês; porquanto o nome de Piolho é o geral, assim como o de Homem, mas cada indivíduo tem o seu nome particular.
A primeira cabeça onde pus o pé e o dente, foi a de um Tinhoso, e contar o modo como fui ter a ela, seria enfadar os Leitores. Basta que fiquem sabendo que fui. Se os Piolhos tivessem Retórica, assim como têm Filosofia, com que elegância e finuras eu não pintaria a minha aflição, ao ver-me num sítio tão despovoado, sem Pai nem Mãe, nem aderente, nem cabelos, sem segurança alguma, em risco de ser apanhado e visto. Mas oxalá que eu nunca dali tivera saído. Não há trabalho sem refúgio. Este Tinhoso benfeitor tinha a maior basófia em dizer que tinha piolhos, por isso mesmo que não tinha cabelos. Quantas e quantas vezes me pôs ele o dedo em cima e, deixando-me fugir, dizia: Escapou-me por um triz; é incrível os piolhos que tenho. Ao princípio assustava-me. Mas depois, conhecendo-lhe a balda, dormia e chuchava a sono solto.
Dividi a cabeça em diferentes passeios, mas atrás das orelhas e a cova-do-ladrão eram o meu forte. Também me divertia pelo colarinho da camisa, quando a tinha lavada, mas poucas vezes. Na cova-do-ladrão era onde lhe ferrava mais a miúdo, principalmente de noite, porque, como ele dormia de costas enquanto levantava a cabeça para se coçar, escapulia eu, porque receava que, com o sono, me não guardasse o respeito que me guardava acordado. Passados dias, entrou o Tinhoso na tentativa de criar cabelo, para o que untava a cabeça com um chorume que me sabia como gaitas e nunca me vi tão rechonchudo. Porém, as unturas tais dores lhe motivaram que largou o remédio e pôs cabeleira. E daqui se originou a desgraça de eu passar a outra cabeça, como adiante direi.
A ocupação do meu Tinhoso era fazer e vender mechas, no que lucrava no seu tanto muito suficientemente para ele e para uma Tinhosa que tinha em casa. Que eu, já se sabe do que vivia. Uma das coisas mais galantes é, quando eles se catavam mutuamente, safar-me eu para o colarinho a ver touros de palanque. E tive tanta cautela que nunca me pôs os olhos em cima. Porque à tal minha senhora não lhe escapava nada, nem a mesma vizinhança. Era tão viva que sabia quantos piolhos tinha cada cabeça, e, se algum dia acertasse comigo, seria sacrificado no altar das suas unhas que as tinha grandes por todos os modos. Ele era um bom homem, à excepção de se embebedar, botar pouco enxofre nas mechas, cortá-las delgadas, sacar três em cada molhinho, safar algumas bagatelas nas casas aonde o chamavam e outras coisas deste mesmo lote. Era tão bom homem que uma vez levou um amigo à casinha por amor de meio tostão que lhe devia. Fez-lhe, já se sabe, pagar a diligência e ficava amigo como dantes. O outro foi que não quis.
A mulher criava galinhas e era tão viva que, não tendo galo, botava os ovos e sempre tirava pintos. Fazia coisas por aí além; até sabia nadar. Num dia de S. Martinho entra a mulher a meter na cabeça ao marido que mandasse pentear a cabeleira. Como era dia em que havia muitas, resolveu-se a mandar a que tinha na cabeça e era a primeira vez que tal lhe sucedia. Na ocasião em que ele mesmo a levou a casa do cabeleireiro, sucedeu eu dormir e estar agasalhado entre a coifa e o cabelo, lugar que eu tinha escolhido para o descanso desde que ele a usava. Quando acordei, senti-me sem calor, saí da toca e qual seria a minha admiração quando me vi na cabeça de pau? Fiquei aflitíssimo e até, para maior desgraça, esse dia e noite fiquei empaulado. Mas no outro, apenas o cabeleireiro lhe pôs o pente, deixei-me cair na manga da casaca e, em duas palhetadas, me pus na cabeça do dito, da qual contarei o sucedido na
Também não passei mal na cabeça do amigo cabeleireiro, pois que nele se verificava o ditado Em casa de ferreiro, espeto de pau. Jamais se penteava. A cabeça parecia um molho de carqueja e precisava de outro. Era verdadeiramente um mato bravo, cheio de muita bicharia. Já digo, não passei nada mal aqui. Só precisava o cuidado de quando ele metia o pente na cabeça, pois tudo fazia tão estouvadamente que, a encontrar-me algum dente, ficaria de espeto. Mas no mais não tenho de que me queixar, porque até passei uma vida alegre. Ele jamais penteava que não cantasse modinhas ou minuetes. E, se estava em pé, sempre andava aos saltos, de forma que, enquanto não me costumei, tive alguns sustos. Os dias que eu passava melhor eram os Domingos e dias Santos, porque, a respeito de chuchadeira de cabeça, ele tinha muito pouco chorume, à excepção de porcaria. Pois é um engano dizer que esta alimenta os piolhos. Não senhor, é conforme eles são criados. Como ia dizendo, como aqueles dias eram destinados à contradança, coisa da sua última paixão, e em contradanças dobradas nenhuma forçureira o desbancava, fazia figuras que o mais destro escultor não lhe metia o dente. Uma vez, ao fazer de um jacé, fê-lo tão perfeito que parecia um canudo. A Senhora que tinha a felicidade de ser seu par, jamais o rejeitava, de forma que chegou a ter tantos pares que ultimamente pôs uma loja de sapateiro. Mas vamos ao caso. Aos Domingos botava sobre aquela porcaria toda, pós, banha, sebo e etc. Então tinha eu o meu banquete, e os meus companheiros, apesar de que nunca me dei com piolho nenhum e, pelo sem-sabor com que passava, é que me retirei. Apenas havia ali um piolho ruço, pardo, que se chamava Adufe[1], na verdade piolho muito bem criado. Mas poucas vezes dormia na cabeça. Entrou a ter umas febres que pareciam sezões, de forma que, à noite, ao deitar, passava para o colchão que era de crina e mais fresco. Porém, teve a desgraça de se lhe meter uma ponta de crina pelo umbigo e, no mesmo instante, morreu. Eu dormia-lhe sempre no cachaço e aí tomei amores com uma pulga que sempre naquele lugar lhe saltava. Jamais nos sentiu. Dormíamos como pedra em poço e todo o tempo que ali assisti jamais tive o menor susto. Apresentei-lhe um dia uma trincadela atrás de uma orelha ao tempo que ele imaginava no método de fazer de estopa cabelo (o que teve quase concluído). Deu um irra e coçou-se no nariz cuidando que era aí que lhe doía. Se é de noite, eu passo-lhe para o nariz só para o ver coçar na orelha. Quase tudo fazia às avessas. Numa ocasião, penteando uma cabeleira, fez-lhe o chicote no topete e a marrafa[2] no rabicho. E ralhando o dono pelo engano, teimou e reteimou que estava bom, dando por desculpa: -Veja vossemecê os penteados que por aí se trazem. Conheça a moda. Não vê os chicotinos metidos debaixo da casaca, vendo-se só duas farripas e adiante caindo sobre os olhos? De forma que o homem não se quis botar a perder e pagou-lhe, e ele veio tão ufano que daqui por diante sempre teimou e fez tudo às avessas. Mas pagou-o bem porque um alfaiate fez-lhe uma casaca e pôs-lhe os quartos de trás nos dianteiros. E depois apostou com ele, que assim é que devia ser dando a sua razão que, para a cabeleira que ele tinha feito, era preciso que fosse assim a casaca. E dizia, demais a mais, que, sendo de moda os quartos de trás o mais estreito que pudesse ser, ele assentara que os devia pôr de forma que, por mais que procurassem naquele sítio os não vissem, para assim apurar a moda e chegá-la ao auge da sua perfeição. Ultimamente, num Domingo, estando numa contradança, ao cruzar o par, encontrou-se com uma Senhora e deram tão grande cabeçada que eu, que tinha fugido para a raiz do cabelo da testa, para estar mais fresco, no choque que deram, caí para a cabeça da Senhora, a qual sentindo-se dorida e algum tanto desconfiada, por estarem todos a rir, não quis dançar mais e, sem valerem desculpas, foi pedir à Madrinha que tinha vindo com ela, que se queria retirar. Eu fiz minhas tentativas de saltar ao chão, para tornar à antiga cabeça, mas como estava tudo em desordem, receei ser pisado e fui na cabeça da Senhora, na qual se verá a
Notas
- ↑ O nome desse piolho era o de um instrumento asiático, que equivale aos nossos Adufes. [N. do A.]
- ↑ Digo marrafa por ser a uma moda mais conhecida na língua em que escrevo na que traduzo. [N. do A.]
Também não passei má vida e jamais passei pelo receio do pente de bichos, que foi traste que nunca lhe foi à cabeça. Mas vi-me ao princípio num perigo iminente. O Pai da tal minha Senhora contratava em pedras[1], e esmorecia pela filha, de forma que em ela lhe doendo um dedo, doía ao pobre homem o corpo todo. A rapariga entrou a queixar-se, uma vez dores de cabeça, outra vez moimento do corpo, depois espinhela caída, constipação &c. Entraram a dizer que eram lombrigas, mas passados alguns tempos que a moléstia eram calos, e com efeito eram, que os pregou ao Pai de maço e mona. Assentaram os peritos que era preciso banhos. A menina, que estava com apetite na receita, quis logo ao outro dia tomá-los. O Pai opôs-se, dizendo que era preciso preparar o corpo. Veio o mezinheiro e disse que o preparo do corpo para tomar os banhos era despir a camisa. A menina conveio nisso e, no outro dia, apresentou-se no mar. Depois de mil bichancros e ridicularias do costume, como por exemplo: Está muito fria! Ai, que me mordeu um caranguejo! Meti uma ostra num pé! Não posso tomar o fôlego! Ai ...! Ai...! quem me acode! Perdi o fundo! etc., e outras coisas deste mesmo calibre, apresenta-me com a cabeça debaixo da água. Agora o verás: nunca me vi tão quente, apesar da água estar fria. O que me valeu foi uma coifa que a tal Senhora levava, quando não, alguma barriga de linguado me esperava. Quando me vi fora da água não o podia crer. Mas, passado este primeiro susto, reconheci em mim mais agilidade, desembaraço de cabeça, apetite de chuchar e vim no conhecimento que muita gente melhora tomando os outros o remédio.
Enfim, botei o medo para trás das costas e continuei nos banhos e cheguei a estar tão gordo que de gordo estava feio. Meus companheiros e amigos me desconheciam. Mas isto durou pouco tempo porque o Pai entrou-se-lhe a meter na cabeça que os banhos da filha lhe haviam dar nele, proibindo-lhos, sendo o prelúdio desta proibição meia dúzia de bofetões bem puxados que a tal Senhora recebeu com desgosto, apesar do Pai lhos dar com a melhor vontade. Mas isto a mim não me importa, nem tem nada com a minha história.
Assim fui vivendo até que um dia meteu-lhe o diabo na cabeça o lavá-la com aguardente. Bagatela. Julguei que dava a casca. Fiquei tão atordoado que, quando tornei a mim, não sabia onde estava. Tremiam-me as pernas, andava-me a cabeça à roda, amargava-me a boca, não fazia senão espreguiçar-me e eu cuidei que tinha uma maligna às costas. Mas não foi nada. Melhorei e melhorei celebremente por uma casualidade. A moléstia, que me tinha ficado desta bebedeira, eram afrontamentos e uma espécie como de asma. Faltava-me o ar de forma que, estando na cama, julgava morrer de aflição. Mas pouco durou isto.
Um sujeito que tinha vindo de viajar[2] agradou-se da menina. E, como o Pai lhe fechava a janela logo à noite, ela tomou a rebendita de a abrir pela meia-noite e punha-se a falar até às duas e três horas com o tal suplicante. Isto foi o que me deu vida a mim, e a ela. Aquele fresco que tomava, inteiramente me restabeleceu. A fala, já se sabe, que era para bom fim. Ajustou-se o casamento. Concluiu-se e a noite do noivado jamais me esquecerá. Tive um trabalho incrível. Em que lhes havia de dar a essas duas criaturinhas! Começa o marido, com o dedinho, a catar a cabeça da mulher. Eu que percebo isto, e o perigo em que estava, passo para a cabeça do marido. Passado um instante, larga o marido a catadela e salta a mulher a catá-lo. Torno para a cabeça da mulher e assim passaram toda a noite e eu aos saltos de cabeça em cabeça. Pela madrugada descansei alguma coisa mas protestando de me safar apenas pudesse, o que concluí no dia imediato, deixando-me ficar na cabeça do marido que, indo fazer a barba, me passei para a cabeça do barbeiro e aí fiz a minha
Notas
Não foi das melhores cabeças em que caí. Tive meus incómodos. O tal barbeirinho já endireitava o olho à coifa e tinha o maior cuidado na cabeça, quando, na verdade, era um traste que lhe não devia dar nenhum. Ele, ora em pente de bichos, ora em azeite para sacar as lêndeas, ora em pós e banha de cheiro, gastava quantos vinténs tinha. Chamavam-lhe por alcunha o Amola do que ele se picava tanto que esteve cinco vezes preso por bulhas que teve por amor deste ditério. Mas ultimamente, quando lhe chamavam o Amola, já amolava, fazia que não entendia. Era um falador eterno. Sabia quanto se passava duzentos passos em redor da loja, de forma que só pelas novidades tinha mais gente na loja que o resto dos barbeiros do bairro. Não posso deixar de contar um ópio que lhe sucedeu com um freguês dos avulsos e que achei lindo, principalmente por se julgar ele tão esperto.
Entra-lhe um dia um homem pela porta dentro, que teria os seus quarenta anos, com umas barbas de quarenta dias. Contou-lhe quarenta histórias. Disse-lhe que as suas barbas sempre as pagava a quarenta réis. Que a causa de as ter grandes era por ter prometido uma quarentena não as fazer mas que, quarenta dias a fio, as havia de barbear. Depois de o ter aquarentado por todas as formas, vira-se para ele e diz-lhe muito admirado: — Vossemecê bota as barbas que rapa no pano? — Pois onde as hei-de botar?, lhe respondeu o mestre. — Dessa me rio eu, inda tinha mais esta para ver! Vossemecê certamente está doido? Esses cabelos têm uma grande serventia e se vossemecê quer guardar-mos, eu lhos pago depois de enxutos, e bem secos, à moeda de ouro o celamim.
O barbeiro, que o único peso que tinha na cabeça era eu e o cabelo, ficou tão admirado como contente. Protestou pela conserva e o freguês pelo ajuste. Mas nestes dares e tomares acabou-se a barba e safou-se, com muitas cortesias, sem pagar nada, no que o mestre não reparou, na esperança do futuro ganho. Três meses levou o bom do homem a ajuntar cabelo e a pô-lo ao sol. E ainda que a barba fosse de graça, sempre a escanhoava duas vezes. Já tinha quase meio alqueire, apareceu o maroto do freguês. Muita festa para a festa. Então ajuntou? — Sim, senhor, não me ficou barba em claro, tenho bastante quantidade. E eu muita precisão. Vamos a isto. Logo. Primeiro vamos à barba.
Aparelha-se a cara, bota-se-lhe a barba abaixo e, depois de feita, vai o papalvo buscar meio alqueire de barbas muito limpas e enxutas. Ainda agora o tratante se entra a esconjurar: Está tudo perdido! — Pois que tem, replica o mestre, — eu fiz tudo o que vossemecê me disse. — Não senhor, faltou o principal. — Pois que é? — Era preciso que vossemecê tivesse todos estes cabelos apartados; os loiros a uma banda, os negros à outra, os ruivos, os brancos, etc. O mestre arde, vira a buscar o chuço[1] e o magarefe safa-se com duas barbas de graça e duas horas de mangação que encaixou ao barbeiro, o qual entrou num frenesi que o julguei doido. E ficou tão zangado com homem de barbas grandes, que barba que passasse de uma semana era como confissão de um ano: jamais a fazia ainda que lhe dessem um tostão. De forma que a alcunha que tinha do Amola mudaram-lha e lhe chamavam o Barba-curta. Mas sempre sou obrigado a dizer que era um dos homens mais regulares que tenho conhecido na minha vida.
Ele erguia-se pela manhã, bebia um copo de aguardente e comia o seu dente de alho. Assoava-se, lavava o rosto, tocava o seu bocado de viola. Se aparecia algum amigo, punha a viola aos outros. Era um bocadinho de língua que fazia molho de tudo. Depois afiava as suas navalhas e, se era dia de fregueses, dava-lhe uma volta, e sempre pedia a algum amigo que lhe ficasse na loja, para demorar alguém que entrasse, no caso de ele ir perto. O seu comer era sopa, vaca e arroz[2] e não se fartava de dizer aos amigos que era a sua diária. De tarde, quando não tinha que fazer, lia Carlos Magno* ou dizia mal da vizinhança. De forma que estava já tão senhor destes autores que citava as folhas e conhecia os vizinhos pelos seus nomes, ocupações e costumes. Umas inquiriçõezinhas tiradas por ele, não havia nada que lhe chegasse. Era um dos melhores genealogistas e tinha feito a árvore de geração de Judas. E dava razão por que se não comiam as maçãs de Arcipreste e não deixou de lucrar com isso.
Defronte dele moravam umas raparigas de quem ele compôs a vida. E, antes de a dar ao prelo, deram-lhe uma navalhada na cara que não deixava de lhe dar sua graça. Mas deixou de compor. Ultimamente descompunha qualquer pessoa por dá cá aquela palha. Numa dessas descomposturas que teve com um tendeiro, agarrou-se-lhe este aos cabelos com tanta ânsia que lhe trouxe uma mão-cheia deles, nos quais eu vim pegado por casualidade. E foi felicidade e esperteza minha passar-lhe para a mão antes que os botasse fora. A poucos passos estava na cabeça onde lhe encaixei a
Notas
- ↑ Zagaia, na língua piolha. [N. do A.]
- ↑ Almoçava a sopa, jantava a vaca e ceava o arroz. [N. do A.]
Que cabeça! Que cabeça! Nunca me vi tão farto. Tudo andava untado. Se os piolhos tivessem ocupação, eu não tomava outra. E até mesmo para trazer a consciência desembaraçada. Ali não há que arranhar, é vender medida por medida. Compro uma canada. Vendo uma canada. E ainda às vezes se põem linhas de casa, pois todos sabem que nas medidas pequenas sempre há quebras. E então, que homem tão escrupuloso com que eu dei! Eu conto, para pintar e conhecerem a sua boa alma, um caso sucedido na sua loja.
Tinha um caixeirinho que era um ladronete. E que fez para furtar ao povo? Na balança oposta à dos pesos, pôs-lhe, pela banda de baixo, uma bolinha de cera no fundo e, como da outra banda ia o género, já se sabe que, quanto a bola pesava, tanto ele furtava em cada peso que vendia. Vai o tendeirinho da minha alma dá com o furto. Ora que lhe parecem que ele faria? Pois eu lho digo: salta-me no caixeiro e fez-lhe confessar que tempo havia que ele fazia aquele furto. O mesmo confessa que havia cinco meses. Diz o patrão: — Pois não importa. Eu quero pagar o furto que tu fizeste ao público. Passa-me já essa bola de cera para a banda dos pesos e outro tanto tempo quero dar o de César a César. E, no mesmo instante, fez mudar a bola. Mas também mudou os pesos e continuou a pesar como dantes.
Numa cabeça destas é que é estar! Então que caridade de homem! Ensinava o público a ser económico, tirava nos molhos de carqueja ramos para fazer mais e dizia: — Quanto mais grandes são, mais gastam. Os queijos, para serem mais frescos, punha-os em parte onde houvesse água para receberem aquela humidade; e ainda que entravam mais no peso eram menos salgados. Manteiga sempre a pesou em papel grosso e sujo. Tinha uma receita para disfarçar o vinagre que ninguém diria senão que era água. Medida de azeite era como alcatruz, sempre tinha buraco no fundo. Medida de pau, toda tinha dois fundos, o natural e outro pela banda de dentro. Cebolas, era um pasmo! Ninguém fazia molhos com mais elegância. Tinha a habilidade de transformar o sebo em manteiga. Também se aquele não está no céu, mal por nós. Tinha a pachorra, só para fazer bem, de andar procurando ovos que estivessem chocos. Comprava-os a trinta réis a dúzia e vendia cada um por um vintém, quando muito por vinte e cinco, um ovo e um pinto.
Ouviu dizer uma vez a um médico que a aguardente secava e mirrava a gente por ser um espírito muito forte. Olhe lá, não a tornasse ele a vender sem lhe botar primeiro uma terça parte de água! Está na neve: Sabem o que ele fazia ao arroz para lhe tirar a pedra e não entrar no peso? Lavava-o, esfregava-o e botava-lhe areia e desta forma unia o asseio ao benefício. Nos feijões, seguia aquele ditado: Uma verde com uma madura. Comprava, por exemplo, os novos a oito tostões, os velhos a cruzado, misturava uns com os outros e vendia-os pelo mesmo que lhe tinham custado, isto é, a oito tostões. Não queria ganhar nada com o próximo e dava a razão, dizendo: — É alimento que só comem pobres.
Também dava crédito a alguns oficiais mecânicos. Mas não lhes vendia os géneros por mais que os vendia aos outros. Só apenas no rebate das férias é que levava sessenta por cento. Sim, senhor, é nesta cabeça que eu passei uma vida regalada. Chupava-lhe o sangue e ele nada sentia. Suponho que era por ser alheio. Não tinha tempo nem para se coçar. Mas que desgraça! Uma noite, pela volta das três horas, deu-lhe um estupor, não disse nem guarde Deus a vossa mercê. Eu apenas o senti frio, quis-me safar. Mas neste tempo chega um boticário vizinho que chamaram com muita pressa e pôs-lhe o ouvido ao pé da boca para ver se o sentia respirar. Eu, sem perder tempo, me passei para a cabeça do dito, na qual ponho a minha
Parece, à primeira vista, que eu passaria mal na cabeça de um boticário porque, se houvesse quem receitasse piolhos para alguma icterícia, não ficaria piolho vivo nas cabeças de casa. Mas onde os outros julgam o mal, aí é que eu achei o remédio. Boticário jamais dá o que se lhe pede. Por isso mesmo sempre vendem gato por lebre e nunca lhes falta nada na botica. Suponhamos nós que o Médico receitava piolhos. Que fazia ele? Ia ao leito, apanhava percevejos e analisava, dizendo: —Tanto é bicho o piolho como o percevejo. Com que se sustenta o piolho? Com sangue. Que faz o piolho? Morde. E o percevejo, que faz? Também morde. E demais, se o piolho é balsâmico, o percevejo não só o é mas também odorífero. O piolho morre, o percevejo remoça. O piolho é triste, o percevejo é alegre. A cor deste é muito mais bonita que a daquele. E concluía: — O percevejo anda por leitos recamados de oiro e damasco e quando chega lá um piolho? Nunca.
No tempo dos porcos, era o meu São Martinho, porque, como o boticário fazia banha, andava sempre limpando as mãos à cabeça. Mas esta lambedela ia-me dando que entender, porque uma vez que tinha lidado com os pós de Joanes, limpou também as mãos. Eu fui muito abelhudo, parecendo-me grangeia. Por um nada que os não como. O que valeu foi ter tido uma indigestão na véspera e entrar na receio de comer coisa doce, porque eu, a este tempo, já me sabia curar a mim próprio pela prática de todos os dias estar ouvindo casos e decisões sobre a Medicina, principalmente a um que era a vera-efígie do Doutor Sangrado.
Ele estava justo com o boticário. Repartiam os ganhos, à excepção do defunto. E o tal amigo era tão hábil na tal nigromancia de curar que teve a habilidade de receitar trinta e três receitas para um que já estava morto havia trinta e três horas, dizendo à gente da casa que era um acidente interior mas que ainda podia tornar a si e que os remédios eram para o fim de que o acidente saísse do interior para fora, o que nunca saiu. Foi com ele à cova.
Tinha também o tal boticário uma receita para olhos que era coisa nunca vista e a um seu vizinho que teve esta moléstia curou-o em três dias. Quero dizer a receita por ser coisa útil. Meteu-o numa casa às escuras e depois sacou-lhe todos os trastes da casa e pintou-lhe vários bonecos com carvão pelas paredes. Disse ao homem que podia sair, que estava bom. O doente, que não viu traste nenhum em casa, clamou que estava pior porque não via nada. Mas o boticário teimou que era mentira e perguntava-lhe: — Vossemecê não vê estas pinturas pelas paredes? — Vejo sim senhor, respondia o pobre homem. Reperguntava-lhe: — E vossemecê, antes de eu o curar, via-as? — Não senhor.
—Então para que se queixa, se vossemecê está vendo tão bem? Até vê o que não via antes da cura.
Na verdade um homem como este nunca havia de morrer. Tinha muitas receitas particulares e foi tão bruto que morreu sem deixar nenhuma aos parentes. Alguma, que se sabe, pilhou-se a dente. Também tinha uma para a espinhela caída, que era um pasmo. Fazia uma massinha e, em lugar de formar pílulas, fazia uma espinhela, secava-a, moía-a e, dissolvida em sal amoníaco, fazia-a beber ao doente, deitado da banda da espinhela. Ao fim de três horas tornavam os pós à sua primeira forma e eis o doente com uma espinhela nova. Compôs um Tratado para tirar dentes, em cinco livros de fólio, que ensinava o método de tirar as raízes sãs deixando os dentes podres de forma que, no seu bairro, ninguém tinha raízes. Um sujeito, para pôr umas de Quaresma no seu quintal, foi-lhe pedir licença. Também tinha ópio para todo o mundo. Quem queria dormir ia lá. Houve ali um sujeito que se queixava que havia quarenta dias que não pregava olho e ele, sem prego nem martelo, apresentou-lhe tanta quantidade de ópio que ainda hoje o não abriu. Todos os anos tinha um presente do coveiro da Freguesia pelo bem que lhe fazia. Nunca comprou pevide de melão e de melancia. Comprava as das abóboras que eram quase de graça e dizia: — Para que é amendoada? Para refrescar. Pois a abóbora é muito mais fresca.
Sabem com que ele quinava qualquer remédio? Com macela e nunca isso matou ninguém. Tinha um conhecimento de ervas que não lhe faltava senão comê-las. Uma vez, que um médico receitou sal inglês para uma purga, exclamou ele: — Ó tempos! Ó costumes! Não se faz caso senão dos gêneros estrangeiros. Pois não há-de ser assim. Fez a purga de sal português e o pobre doente esteve a beber água todo o dia. Sobreveio-lhe uma febre à noite e no outro dia foi para a Eternidade. Mas à portuguesa. Na verdade, tinha coisas muito galantes. Um remédio que ele tinha para defluxos ajudava-os a cair no peito e depois, então, é que os levantava, se podia. Também tinha um remédio para pólipos que, dentro de meio minuto, secava pela raiz pólipo e nariz. O que lhe valia era um amigo Poeta que tinha, que lhos fazia depois de cera, para os doentes não ficarem com defeito.
Um dia, trazendo-lhe o tal duas dúzias deles, entrou o boticário a teimar que um não prestava e o Poeta a dizer que era o melhor. E pondo-lho na cara, disse: — Para um homem assim da sua idade, com barrete na cabeça, está-lhe pintado. Que faz o boticário? Põe o nariz no Poeta, saca o barrete e põe-lho também. Eu, que tinha estado a ouvir a conversação e morria, havia muito, por estar numa destas cabeças, passei muito depressa para o barrete e com o mesmo para a cabeça deste Virgílio, que é o assunto desta
Quem tal adivinhara, que nunca a tal cabeça fora! Ele não tinha nem para si, quanto mais para os outros. Se me demoro ali, dou cabo da pele ou fico doido ou tísico. O amaldiçoado nem cama tinha. A única coisa que tinha à farta eram quinze ou dezasseis moças que namorava. Um bom Letrado não tinha mais que fazer, que o bom do homem a responder a escritos. E então tudo grátis. Só uma vez lhe vi ganhar um tostão por uma notícia de toiros que fez em prosa. Uma vez fez-me tomar um banho por um consoante que lhe faltou. Esquentou-se tanto que mergulhou três vezes a cabeça na água.
Noutra ocasião começou uma carta de amores por estas palavras: Para alcançar a vossa paz preciso envenenar o meu coração. E ficou tão satisfeito que quatro ou cinco noites não dormiu e não lhe escapou amigo a quem não lesse este bocado. Era uma miséria! E era felicíssimo nos primeiros versos, mas já encalhava nos segundos. O seu forte era pé quebrado, de forma que coisa inteira, diante dele, tinha muito perigo. Tudo fazia de improviso, até o comer. Deram-lhe uma vez um mote... deixe ver se me lembra... ah, sim, era
A quem quis, quis.
Glosou-o optimamente. Eu não me lembra senão o fecho que acabava:
A quem não quero, não quero,
A quem quis, quis.
Trabalhava sobre um Poema épico que era a vida do primeiro gato dos Tártaros e já tinha três cantos. Ultimamente tinha comprado um galo para lhe cantar os outros. Tinha também composto a musa universal e andava procurando assinantes, mas ninguém assinava. Outro livrinho, que ele compôs, intitulado Versos em prosa, era um chefe-de-obra, merecia dado à luz. Compôs uma Tragédia em que a primeira morte que aparecia em cena era o Empresário. Depois iam morrendo, pela sua ordem, os Actores e Actrizes todas de forma que um Comparsa, que atiçava as luzes, é que vinha dar parte de que se tinha acabado a Tragédia. Num outeiro que ele teve, aí é que foram canas! Nenhuma cabra salta nem chega aonde ele chegou! Um mote que lhe deram:
Cupido fechou os olhos
Vendou-se por duas formas.
Fez maravilhas, abismou tudo, tudo estava com a boca aberta. Um surdo ficou rouco de dar palmadas. Fechou-se o outeiro com este verso:
Cupido trincou Marília,
Nunca a chaga se curou.
Ai, senhores, fez versos que ninguém lhes meteu o dente. Meteu aqui o roubo de Helena, quando fugiu para Páris e as três maçãs de estanho provando que não podiam ser de ouro pela sua descoberta ser muito posterior. E não houve outro remédio senão tudo ir-se embora e ele ficou no campo, a berrar. Passei fomes, mas passei bocadinhos bons. A uma Senhora que ele estimava mais que o seu dinheiro[1], e que lhe escreveu uma carta que começava: E me não quis fazer o que eu lhe pedi, pegou na pena, bateu na testa, pôs os olhos no tecto e respondeu de repente: E lhe fiz o que a Senhora me pediu. Ora peguem-lhe lá com um trapo quente. Façam-no melhor! Pobre era ele, mas juízo!, ali não havia que arranhar.
E uns banhos que ele compôs para uns noivos seus conhecidos! Vossas mercês cuidam que começava por quer casar? Não senhores: Gil Grego e Maria dos Ais[2] pretendem unir-se com o atilho do santo Matrimónio, para o que querem casar! Fazia tudo assim. Não se ligava a exemplos nem a costumes.
Nunca comeu a horas competentes. Comia quando tinha que. E era muito parco, comia poucas vezes. Nunca comprou calçado feito, mas sempre por fazer. Aos sapatos nunca chamou sapatos. Mudou-lhes o nome de patos em gansos, chamava-lhes sagansos. Igualmente ao casacão tirou-lhe o cão e pôs-lhe cadela. Tinha muita esquisitisse boa. Tinha um cão que é quem lhe fazia a cama e esfregava a casa, apesar do mau cheiro que lhe deixava. Tinha um criado de azulejo, na escada, que se conservou muito tempo sem uma mão. Todo o seu engomado era de imprensa.
Fez um romance a um cágado e uma Elegia à morte de um caranguejo que assim como o caranguejo na vida andava para trás, na morte ninguém lhe passou adiante.
De coisas pequenas é que ele fazia as grandes. Teve uma borbulhinha atrás de uma orelha, como a cabeça de um alfinete. Pois tanto mexeu e coçou que a chegou ao tamanho de um ovo.
Noutra ocasião pegou num pobre homem, que não era nada, pô-lo acima das nuvens, fez-lhe um retrato, chamou-lhe quantos nomes quis. Enfim, desfigurou-o, que ninguém o conhecia por tal senão ele. E isto só porque se capacitou que tinha cara de homem de bem. Vejam lá, que tem a cara com o coração! Eu conheci um Piolho com uma cara de diabo e as obras eram de um Alexandre. Vamos ao caso: este pobre homem morreu de um enchimento de estômago, por um jantar que lhe deu um avarento. E contarei o caso, lembrando primeiro, porque faz muito a esta história, dizer que o tal Poeta tinha uns magníficos cabelos e que o avarento usava de cabeleira. Chamava-se o avaro Tadeu, era casado, tinha filhos e mulher, que ainda viviam, apesar das mil fomes que passavam no ano. E vossas mercês contarão quantas eram por dia, que eu não sei quebrados, portanto não me meto com isso.
Entrou este homem, a peditórios da filha e da mulher, a querer fazer uma função em casa e isso em respeito a ter-lhe morrido uma avó que lhe tinha deixado oito mil réis de renda. Enfim, o avaro, depois de muitas dúvidas, muitas demoras, muitos itens, resolveu-se a fazê-la mas com a obrigação de que não havia de gastar mais de quatro mil réis. Aceitou-se o partido, dispôs-se o brinco que havia de constar de seu chá e depois ceia. O que valeu muito ao Poeta ser o chá primeiro, senão morria mais depressa. A ceia constou de abóbora-menina com raiolos e arenques de fumo com farinha-de-pau. O Poeta foi convidado para encher o melhor da função pois já se sabe que função sem poeta é o mesmo que baptizado sem padrinho. E ele fez, nessa noite, versos lindos e até parece que adivinhava a morte, pois um verso que lhe deram, fechou-o:
Hás-de-me encontrar no campo
Onde os mortos vão viver.
Fez também um soneto todo em quartetos, botando os tercetos para trás das costas, que teve muita novidade. Pintou um tanque botando água que muitos chegaram a ir beber por lhes parecer que o estavam vendo correr. A uma Senhora que estava na função e metia um olho pelo outro, numa décima que lhe fez lhos pôs direitos como um fuso, e até lhos fez bonitos. E mais estavam ali pessoas que diziam que não podia ser, como se a um Poeta fosse impossível pegar no Colosso de Rodes e metê-lo pelos becos de Alfama[3], se ele quisesse. Enfim, chegou a hora minguada da ceia. O Poeta, que, sempre em dia de banquete, tinha véspera de jejum esquentado dos versos, e da fome, meteu-se na farinha. E ainda que a ceia era muito concisa, ele também era muito verboso e não deu tempo aos outros. Meia hora não era passada, entra numa aflição de estômago. Fizeram-lhe uma esfregação com melaço quente, deram-lhe a beber umas panelinhas de queijo e dentro de três horas se pôs no estado de não passar mais fomes nem fazer mais versos. Mas nesta última não fez falta que, graças a Deus, ainda cá nos ficaram muitos que os fazem pelo mesmo gosto.
O Avarento, apenas o vê morto, pega numa tesoira, salta-lhe no cabelo e corta-lho, em cujo eu também saí pois que, no defunto, nada tinha a fazer. Se ele me não podia sustentar vivo, que faria morto? Deixei-me ir a buscar nova sorte, ainda que com bastante medo não me encaixasse em alguma gaveta onde tivesse o dinheiro e em que não me desse nem o ar, o que assim sucedeu. Mas não a mim, porque ele quis ter o gosto, antes de o guardar, de ver se lhe ficava bem ao semblante para mandar fazer uma cabeleira. Chegou a um espelho, pôs o cabelo na cabeça, de cuja aberta me aproveitei para ficar (ainda que não muito contente) na cabeça deste Avaro. Pois que podia eu esperar de um infeliz que se deixava finar por não gastar o seu dinheiro? A vida deste desgraçado se verá na
Notas
- ↑ Nunca o tinha. [N. do A.]
- ↑ Nomes dos contraentes [N. do A.]
- ↑ Ponho aqui becos de Alfama para melhor inteligência dos meus Leitores, porquanto no original falava-se num beco que havia na Transilvânia, chamado Beco. [N. do A.]
Todos, neste mundo, têm o seu pedaço de mau caminho. Que cruz que eu tive com este Avarento! Não lhe escapava fôlego vivo, tudo era vítima da sua ambição. O caso estava em que não custasse dinheiro em cujas circunstâncias eu me achava. Ele não comia quase nada. Não tinha síria, andava caindo em pé. E então, tão pressentido, que qualquer leve mordedura que eu lhe desse estava em cima de mim. O único refúgio que tinha, para lhe sacar algum sangue desse pouco que tinha, era quando contava o dinheiro, que então não sentia. Todo o seu cuidado era que o não sentissem e gastava nisto horas e horas. A vida deste desgraçado era tristíssima. Nunca na vida fez coisa boa à excepção de morrer que todos lho louvaram e agradeceram. Tinha somitigarias inteiramente novas e podia compor neste género, apesar dos bons autores que tem havido. Teve a habilidade de ter uns sapatos dezanove anos sempre com as mesmas caras. Tudo tiveram novo à excepção dos rostos. Sempre cuspia nos calções e dizia ele que era modo de durarem porquanto criavam uma codeazinha que, além de amaciar, conservava o tripe. Tinha um colete que vestia sobre a carne que, creio, era da fazenda com que Dejanira vestiu Hércules, porque apenas o envergava no corpo metia também o diabo pois entrava logo num frenesi e numa comichão que lhe durava as suas três horas. De forma que a mulher e os filhos andavam sempre à espreita se ele já o tinha vestido. E não havia tradição que ele desse um real a ninguém, depois de o ter no corpo.
Quando queria arrotar fechava a boca e dizia que aquele ar era substância que saía e não tornava. Uma das filhas esteve doente, no meu tempo, e um Cirurgião conhecido receitou-lhe um vomitório que custou trinta réis e que a rapariga devia tomar no outro dia. Mas tendo a felicidade de ter uma cólica na véspera se pôs no estado de o escusar. Mas o bom Pai não esteve pelos autos, arrumou os pés à parede gritando que o dinheiro não se havia de perder e destruir, e que ao Boticário o não querer tomar outra vez que havia de ter paciência e mamá-lo. O que assim lhe sucedeu, e esteve de cama mais de um mês, hoje vai, amanhã vai.
Nunca comprava couve que não fosse espigada, só porque era mais comprida. Sebo, que as velas derretiam, ia para a panela e chamava a isto descobertas económicas. Alface, para ele, nunca teve folha velha. Arroz nunca precisou escolhido. Peixe, nunca lhe tirou escama, nem guelra. Dizia: Como Deus o criou. Caroço de cereja e de ginja sempre foi abaixo. Cacho que trazia uva podre, chamava-lhe passada. Peixe podre nunca lhe cheirou mal e sempre respondia: Podres tenho eu os meus pecados. Era traste de toda a conta. Jamais teve indigestão pessoa que ele sustentasse.
Defumava-se em carqueja e dizia que a alfazema era nociva, que o cheiro mau era como os amargos que faziam melhor estômago. Durava-lhe um barril de água vinte horas. Bebia da mesma forma que os galegos tomam tabaco por cheirador, chupava por sovina. A água com que se lavava tinha seiscentas serventias primeiro; ao depois lavava a boca, a cara, as mãos, o cachaço, os peitos, o lenço do tabaco, os pés, e botava-a por fim num craveiro e muitas vezes coava-a e servia-lhe no outro dia.
Tinha um criado universal, era uma Enciclopédia. Logo pela manhã, era comprador, depois copeiro, daí mordomo e passava a cozinheiro. De tarde, servia de engomadeira, à noite, de escudeiro e seguia, no outro dia, a mesma derrota. Tinha dois dias livres na semana, segundas e quintas, que pedia esmola para ajuda do seu vestuário porquanto o ordenado era pouco e nunca lho pagavam. Até era somítico com isto, porque, ao menos, podia prometer-lhe muito visto não lhe dar nada. Mas era tão escrupuloso que nem assim. Disseram-lhe uma vez que era bom para calos cera-bela. Sabem o que ele fez? Ajuntou a cera dos ouvidos para pôr nos calos e o mais e que se achou bom e, daí por diante, nunca mais consentiu que pessoa de sua casa lavasse as orelhas. Andava-lhes todos os dias tirando a cera dos ouvidos para fazer velas e, quando eu saí da sua cabeça, já tinha meia oitava.
Na cama punha lona em cima do lençol para lhe durar mais o lavado. De uma vez, pôs uma filha na rua porque lhe quebrou um copo. Quando fazia a barba, em lugar de sabão punha-lhe greda para amaciar. Tinha um barrete branco tão sujo que tinha criado, por fora, uma espécie de cortiça. Podia dar qualquer cabeçada com ele que não entrava dentro. O seu divertimento era fazer alcofas e torcer linhas e ganhava muitos bons vinténs. Fiar é para que nunca teve jeito; não se fiava nem em si. E outra coisa que ele tinha: aos Domingos, chamava os filhos e punha-se com eles a apanhar moscas para comer e dizia-lhes que era o mesmo que tremoços. E estavam tão mestres todos que, por fim, já as apanhavam com a boca.
Teve uma desordem com um vizinho que era outro sovina e de todos os quatro costados. De palavras foram às mãos. Fez-lhe uma arranhadura na cara. Querelou dele mas acomodou-se com quatro moedas que lhe deu, depois do que ninguém o podia aturar. Andava-se mesmo metendo para que lhe dessem, para assim ganhar a sua vida. Mas durou-lhe pouco o ganho, que lhe deram uma estocada que esteve à morte. Gastou na cura mais de oito moedas e ficou-lhe um reportório para toda a vida. Um ratinho feito de molho de alho era para ele um dos melhores acepipes. Comprava carne de vaca a dez réis. Passados alguns meses é que descobriu que era de cavalo, porque prenderam o preto que lha vendia, cuja prisão ele lamentava. No tempo dos melões era o seu regabofe por amor das tripas que, dizia ele, eram muito melhores que as de carneiro. Gostava muito de gaivotas e, de pena, era só o que comia. No tempo dos marmelos era a sua ceia. Dois marmelos chegavam para toda a família.
A sua ocupação era emprestar dinheiro sobre trastes. Mas era muito cheio de caridade a esse respeito. Não emprestava senão a quem tinha fome para assim socorrer o seu próximo e juntamente porque lhe dava quanto ele queria de usura. O seu fato e de sua família era todo comprado na feira da ladra e já um filhinho pequeno começava a estar tísico.
Um dia que jantava (que eram poucas vezes) não ceava e andava a gritar por chá de macela que não queria morrer de indigestão. Um caso que lhe aconteceu com um destes amola-tesouras. Chama-o um dia a rogos da mulher, para lhe amolar uma tesoura, que além de muita ferrugem e pouco aço lhe faltava um bico. O pobre homem foi-lhe preciso, fazendo a ponta a uma, encurtar a outra para ficarem iguais, além de que gastou muito os ferros para lhe tirar a ferrugem. Apenas o meu amigo Avaro vê a tesoura naqueles termos, entra a gritar que lhe tinha destruído a tesoura, e isto uma tesoura de Guimarães! O mais antigo traste e o melhor que tinha em casa! Que lha tinha deixado curta e magra! E foi tal a gritaria que não deixou dar ao homem a sua razão. Pôs o ofício às costas e foi dando às trancas e ele ficou à porta da rua com a tesoura na mão, fazendo uma tal declamação sobre a danificação da dita que se juntaram quantos rapazes tinha o bairro a dar-lhe surra, do que ele fez pouco caso porque apenas tinha tempo de chorar a sua perda.
Mas, sobre todos os casos que lhe sucederam, o mais decantado foi o que lhe aconteceu com um Dentista. Doía-lhe a ele muito um dente que lhe tirava só o dormir. Porque o comer isso tirava ele mesmo a si. Resolveu-se a sacá-lo e, já se sabe, um dente para ele eram dois porque, ter que dar dinheiro, era tirarem-lhe um dente da boca. Enfim, depois de muitas dores, muitas consultas, muitas resoluções, foi a casa do Barbeiro. Senhor Mestre, quer-me tirar um dente? —Todos, meu senhor, com todo o gosto. É de baixo ou de cima? — Do meio, senhor Mestre. — Qué-lo descarnado ou de uma vez? — Como é ele mais barato? — O preço é o mesmo. — Então que diferença faz vossemecê dessas duas perguntas? - É que descarnado tem mais dores, mas menos perigo. — Pois, assim como tem mais dores, devia levar menos dinheiro! Enfim, quanto é o último porque vossemecê mo tira? — São seis vinténs a tarifa e o brio de cada um... — Quem pode ter brios, cheio de dores? Pois senhor, eu sou um pobre homem, é o primeiro dente que tiro. Faça-me vossemecê o favor de tirar este a contento e, se eu gostar, pagarei os mais pelo preço que vossemecê me diz. O Barbeiro riu-se. Manda-me sentar o freguês, salta-lhe nas costas e arranca-lhe um dente queixal. Ele, que se vê com o dente são fora, ficando-lhe o podre, começa num berreiro, blasfemando contra o mestre. Ao que este respondeu muito sossegado: — Vossemecê não queria o dente fora a seu contento? — Sim senhor. — Pois eu tirei um também ao meu. Se lhe não serve, não volte cá mais que eu não perco muito no freguês. Acomodou-se porque lhe disse um que ali estava que podia querelar por ter havido sangue, e esta era a sua balda para ver se ganhava o seu vintém. Mas não teve efeito por esta vez por não ser prática haver querela por dente fora não sendo tirado com pedrada. Foi então a outro que lhe sacou o podre por um tostão tomando-lhe em desconto uns botões da camisa. E estando cansado de estar numa cabeça tão insignificante, além das fomes que também passava e sem ter meios alguns de ir a outra cabeça, resolvi-me expor a vida para me salvar, passando a um pescoçinho que ele tinha e trazia muito sujo na acção de ele o dar à lavadeira. A qual metendo-o na roupa e pondo-a à cabeça, eu lhe passei para ela, que apesar de trazer carapuça lhe fiz de sobresselente a
É ofício de lavadeira mais do que muita gente lhe parece. Precisa-se de uma grande memória, saber mentir e saber furtar. Não cuidem vossas mercês que é aí qualquer oficiozinho de droga! Não digo que seja um ofício que para o servir dê água pela barba; mas, pelos joelhos, quase sempre. Passei nesta cabeça uma vida de Capote. Só duas ou três vezes por ano tirava a coifa da cabeça e assim mesmo rapei frios de bom lote com a história das madrugadas. A tal era casada com um saloio que de quando em quando lhe dava bons socos, no meio dos quais eu me achava muitas vezes, porque o seu forte era atirar-lhe à cabeça.
A tal lavadeira era muito governada. Havia vinte anos que era casada e tinha casa e nem uma só única vez a tinham visto no Fanqueiro a comprar fazenda branca. Apesar disso andava sempre muito lavada e mais o seu homem. O que é o aninho! Ela lavava muito bem e tinha muita freguesia. E então o modo com que ela tinha repartido a roupa dos fregueses! Sempre lhe ficava uma ou duas cargas dela lavada, em casa, para se ir servindo. E assim dava volta por todos e todos se serviam. Mas ela não era de tudo, era de algumas coisas como v. gr. lençóis, camisas, anáguas, ceroulas, meias, lenços de assoar, de pescoço, alguma saia, alguma coberta, toalhas, panos, guardanapos, &c., e assim começava o ano e fechava o ano.
Mas era muito desgraçada. Nunca lhe furtaram camisa velha, sempre era nova. O que a ela lhe sucedia era se a obrigavam a pagar (o que poucas vezes acontecia) sempre a pagava por velha. Era tão governada que, tendo o marido alporcas e sendo-lhe preciso fios, sabem o que ela fazia? Cortava uma tira ao comprimento das toalhas de mãos, tornava-as a embainhar e daqui tirava fios e ataduras. Também, se não fora a sua agência, era uma pobre de Cristo. O marido ao Domingo sempre trazia camisa de punhos, véstia e meias lavadas, tudo fino. Graças à mulher que cuidava no seu asseio. Ela amassava em casa e já tinha adquirido os seus três moios de sacos sem fazer maior peso aos seus fregueses porque não tinha senão furtado um a cada um. Parece que lhe crescia a roupa nas mãos. Trazia a roupa aos fregueses, e ficava-lhe roupa. Verdadeiramente, era como diz o ditado: Roupa de franceses. Tinha lenços de assoar que, ainda que ela e o marido viessem a ser os mais ranhosos da sua Freguesia, nunca se haviam de assoar à mão.
Também em algum dia de função alugava o seu camisote a um vizinho que não tinha lavadeira em casa. Numa palavra, era roupa que lhe caía em casa que também lhe não caísse no corpo. E outra coisa que ela tinha! Todos os dias vestia camisa lavada. Função que ela teve boa foi uma cheia que houve na sua terra. Veio abaixo aos fregueses como uma Madalena dizendo que se lhe tinha ido embora muita roupa, que o resto lá estava junta, que a fossem seus donos buscar. Que uma houve freguesa que chorava com ela. Todos lhe perdoaram o perdido. Ganhou na cheia em que muitos perderam mais de cem mil réis. E louvava a Deus por a ter ajudado para dar o dote a uma filha que estava para casar. E dizia, muito satisfeita: — Quando as coisas são para bom fim, tudo vai direito.
Tinha muita felicidade no seu oficio. No fiado, que lhe davam para curar, tinha ela uma advertência que poucos têm: sacava de cada meada um novelinho para a poder curar melhor. E no fim da cura, tinha de dízima as suas duas arrobas de fiado que inculcava a uma das freguesas mais abastadas dizendo que outra, cheia de precisão, a vendia. E desta forma lucrava muito, não furtando quase nada. E tinha a cautela, antes de trazer a teia, de prevenir as freguesas, dizendo-lhes: — Não sei que linhos são estes de agora que quebram tanto.
Nunca enjeitou roupa. Quando era muita e não a podia lavar, deixava-a em casa de um Pasteleiro onde era o seu rendez-vous. E o dono ficava muito contente por lhe ter levado a lavadeira a roupa, quando ela ficava de empate até à volta da dita, que assim mesmo suja muitas vezes servia aonde a deixavam. Tinha tão boa consciência que, perdendo uma vez uma camisa já velha e rota, teimou em pagá-la à dona que, por lhe fazer equidade lhe disse que bastavam seis vinténs! Pois não quis a minha lavadeira. Teimou e deu um cruzado-novo, dizendo: — Ainda que era velha, servia corno nova e então busquemos o meio termo do valor de uma camisa.
Todos lhe louvaram a acção e a verdade. Mas daí a três meses perdeu duas de holanda que valiam bem uma moeda cada uma. E deu a mesma razão e o mesmo cruzado-novo, que assim como tinha pago a outra por mais, esta devia ser pelo mesmo pois que era casualidade o ser melhor. E que já agora ficava aquele preço estabelecido a respeito do artigo camisas. Então isto não é igualdade? A respeito de meias, não só as lavava mas também as palmilhava levando por tudo cinco réis. E mais chegou muitas vezes a palmilhar com meias alheias, da terra para Lisboa e de Lisboa para a terra.
Sim, senhores, isto não é graça é a pura verdade. Por casa nunca usava de sapatos, sempre andava só com meias e dizia ela que lhe saía muito mais barato. Todas as portas do interior da casa tinham lençóis por cortinas. Nunca usou de rodilhas na chaminé, ou guardanapos, ou toalhas. No seu tanto, tratava-se com muita decência. Mas eu, cansado de andar entaipado debaixo de uma coifa, buscava todos os meios de me pôr ao fresco. Até que a sorte me deparou um. Foi que um dia que veio à cidade, indo a uma loja de bebidas tomar um copo de café, tirou a carapuça para a qual eu tinha a cautela de passar à espera de qualquer ocasião. Deixei-me ficar em cima da banca donde passei para o tabuleiro dos bolos e, daí, para o armário em que pouco me demorei. Porque metendo o dono da loja, à noite, o lenço do pescoço no dito, passei a ele e no outro dia ao pescoço do tal tratante e no mesmo instante à cabeça, à qual fiz a
Também não era das piores esta cabecinha. Este tal dono da loja já tinha sido caixeiro de três. Era examinado na ordem e ricaço. Ninguém sabe o que é comprar água nos barris e vendê-la aos copos: é um maná. Este meu amigo então pegava em tudo o que era ganhuça, já se sabe, licitamente, e sabia bem do negócio. Açúcar, nunca o comprou senão àqueles que o furtavam, bem entendido, mais em conta. Valha-me Deus, a gente não há-de ser tola! Fazia café de alfarroba torrada que ninguém o conhecia. Antes era gabado pelo coberto, sem fazerem a descoberta. Tinha uma casa na qual lhe vendia uma criada velha o chá já fervido, mas ainda muito capaz. E não lhe tirava o suco (como diz certo Autor) sete vezes. O mais que chegava era a cinco, e ainda o vendia depois para tirar nódoas.
Fazia cevadinha e misturava-lhe farinha de favas que fazia muito boa união, além de lhe dar o gosto. O chocolate era a melhor coisa que ele tinha. Botava-lhe graxa de forma que era gordo e substancial. Tinha uma receita de fazer pão-de-ló sem ovos. Que muita gente que jejuava, (desta pouco escrupulosa), tomava a sua xícara de chocolate e o seu pão-de-ló e ficava jejuando.
Fazia um licorzinho de amora que era uma suspensão! Então e jeito para acarinhar fregueses! A isso ninguém lhe chegava. Vendia logo pela manhã os seus dois pintos de aguardente. Daí entravam os almoços que era um nunca acabar. Havia muitos que nunca almoçavam em casa. Era-lhes mais fácil, quando tinham só um tostão, deixarem toda a família em jejum, que assaz com um tostão de pão matariam a fome, só por virem para o botequim conversar e tomar o seu café com a sua torrada. O que é o costume! O ponche, à noite, era o chafariz d'El-Rei com todas as suas bicas. Não havia mãos a medir. E então que gritaria! Ah, senhor Manuel, mais forte! Outro acolá. Menos aguardente. Outro dali. Bote-lhe capilé. Venham bolos. Venha licor. Ob rapaz, paga-te... Era um temporal desfeito e uma parte iam sem pagar, outros mandavam assentar. E o malditinho do negócio era tão seguro que sempre se ganhava. Então que histórias se não contavam ali! Que novidades! Que mentiras! Que desaforos! Era um gosto.
Ia ali um que tinha namorado todas as moças daquele bairro. Sabia-lhes os nomes, as idades, os teres, os pais, as faltas, os acréscimos. Que guapo rapaz para fazer um mapa da Índia! E andava por ali perdido! Também havia outro que era muito esperto. Não lhe escapava lenço. já por fim dava vontade de rir ver todo o mundo a queixar-se e a assoar-se à mão porque havia alguns que em lhe furtando o primeiro ficavam logo nesse estado. E outro que inculcava onde havia partidas com Senhoras que davam o seu chá, cantavam modinhas e faziam as suas rifas! E outro que secava a gente para lhe assinarem uma obra que ele queria imprimir, intitulada Arte de sacar dinheiro. Que julgo seria obra muito perfeita porque ele tinha muito jeito. Ainda pilhou alguns. Mandou-a imprimir em Salamanca, por ser mais barata a impressão e estava-lhe tirando as chapas um Albardeiro. Ha-de ser bonita obra depois de acabada. Queira Deus que fique bem encadernada. Também ia lá um que ensinava a dançar e tinha botado grandes discípulos. Um macaco que dançava na corda, ele é que o tinha aperfeiçoado. Fazia décimas com os pés e andava compondo a segunda parte da fofa por pontos (já tinha três na cara de uma navalhada que lhe deu um discípulo que era muito seu amigo e uma boa alma) e tudo com os pés. O dono da casa aprendia a fazer peloticas e já estava muito adiantado. Raras vezes perdia quando jogava e sabia fazer tombar os dados para onde queria, sem os chumbar. Eu digo o modo, que pode ser que sirva para algum miserável não cair. Quando queria que mostrassem menores metia os maiores debaixo de água, isto é, só metade do dado. E quando queria que servissem, tirava-os, limpando-os muito bem. E enquanto o osso conservava a humidade, que sempre era a sua meia hora, tombavam para ali. E ainda que os queixosos os partissem, nada achavam. Sabia fazer muitas coisas destas. Tinha um anel com seu espelho em lugar de retrato, virava-o para a palma da mão e com um baralhinho de cartas a jogar a lasca, vendo todas as que estavam por baixo, nem um cavalo de cortesias o fazia melhor numa praça. Mas, enfim, tudo isto lhe tinha custado dinheiro para o saber e todos devem ter prendas em que se fiar se lhes suceder uma desgraça. Era verdadeiramente um refinado brejeiro sem mistura alguma. Ali não havia joio nem ervilhaca, era trigo de Prioste. Tinha começado por garoto, era garoto e havia de acabar em garoto. Com bem o digamos. Também não era escrupuloso. Se lhe levassem uma lámpada a vender, sendo barata, não perguntava de que Igreja era. Tinha trinta anos, tinha-se confessado vinte vezes e vinte vezes tinha estado no segredo por bagatelas. Mas Padre e Ministro nunca tinham ouvido da sua boca senão um não senhor. Podem supor que tal era a bestinha! Pobre não entrava na sua loja que não levasse esmola, nem também rico que não saísse pobre.
Ali havia toda a qualidade de isca e de anzol, de forma que ultimamente já era homem de bem, já tinha dinheiro, e ninguém perguntava como ele o tinha adquirido. E nisto acho eu razão. Cada um adquire-o como pode ou lhe deixam, uns com mais, outros com menos trabalho. Já tinha quatro botes seus e estava para pôr uma taberna. Aos Domingos pedia para a caridade e fazia-a muita gente. Também tinha duas seges de aluguel e quando eu me retirei da sua cabeça, andava para pôr uma loja de barbeiro para vender barbas pelo grosso, isto é, fazenda atacada.
A loja ia ali um Procurador de causas, homem já velho, de cabelo seu espigado. Tratava-lhe de uma demanda de interesse. Levava horas e horas a conversar com ele. Eram tão amigos. Um dia de anos foi o tal lá jantar. já se sabe, muito comer, muito beber. Depois de jantar foram ambos para a cama, dormir a sesta. Logo reconheci o tal Procurador, que era o mesmo em cuja cabeça minha mãe me tinha parido. Os mesmos animais têm amor à Pátria. Eu não me pude vencer. O gosto de tornar aos lares onde tinha visto a primeira luz e chuchado o primeiro sangue, me meteu cobiça de passar àquela cabeça a que servirá a
É escusado dizer que a experiência me tinha posto no estado de fugir de todos os perigos a que estão expostos os tristes piolhos. Mas, apesar dela, eu me vi uma vez nas mãos do meu Procurador, que por caridade (que ele tinha muita) me tornou a largar, dizendo: — Vive, desgraçado, vive. Tira-me o sangue que quiseres que não me faz falta.
A criação pode muito e creio que era amor que este homem me tinha; e a eu poder ser seu filho, nesta ocasião o julgara.
Nesta cabeça e nesta casa havia de tudo. Os presentes ferviam. Não comeriam as partes peru pelo Natal, mas ele vendia-os. Era muito hábil no seu ofício, nunca perdeu causa. Quem as perdia eram sempre os seus constituintes. Levava meia moeda por mês, mas bem empregada. Uma assinação de dez dias na sua mão era para dez anos.
Nunca pagou casas e se os senhorios lhe armavam demanda, muitas vezes pagavam as custas. Quem quisesse uma quinta que não fosse sua, não era mais que ir ter com ele. É certo que passava por alguns incômodos de ir à cadeia mas não se ganham trutas às barbas enxutas. Ele, por fim, sempre saía. No meu tempo esteve lá uma vez mas foi uma injustiça que lhe fizeram, segundo lhe ouvi dizer. Vejam vossas mercês porquê: por vender uma demanda! Dizia ele então: — Senhores, porque não prendem quem a comprou? Neste mundo tudo é um negócio. Hoje vendo, amanhã compro. Assim como eu vendi uma, posso comprar outra. Então, desta forma, ninguém mais venderá nem comprará.
Mas, enfim, a parte compôs-se por não perder tudo. Recebeu meio preço da venda e o juiz, que lhe queria ir ao fole, não teve tempo. Saiu para a rua e continuou no mesmo negócio.
Fazia muitas destas e tinha muito juízo. Noutra ocasião fez suspender uma execução mais de três meses com outra galantaria. Fez um escrito de dívida em nome de um fulano, tirou-o em pública-forma e veio com uns embargos de terceiro. O Autor clamava que era falso, que nem tal homem conhecia, que não devia nada a ninguém. A verdade deixava-se ver, mas era preciso correr os seus termos. Entretanto, o réu juntou dinheiro e tudo ficou em paz. Quantas vezes dizia ele consigo mesmo: — Eu merecia estar nas galés pelo que tenho feito. Era muito espirituoso. Tinha muita habilidade.
Noutra ocasião sumiu um feitinho. Era uma bagatela. Sobre uns vinte mil cruzados! Tinha o original escrito de dívida que nunca mais apareceu. E fez toda esta obra com a despesa de meia moeda recebendo seiscentos mil réis da parte. Cuidava nas demandas de um usurário que nunca emprestou dinheiro senão a quarenta por cento com hipoteca e fiador, e a noventa sendo a risco. Girava com trinta mil cruzados. Pois dentro de dez anos deu-lhe o meu Procurador conta do principal, e juros, e esteve sete vezes na cadeia e uma na Trafaria. E ultimamente acabou doido no hospital. E dizia então cá o amigo: — A usura sempre acabou mal.
Foi Tesoureiro de uma Irmandade e quando acabou o ano não se precisou mais daquele lugar.
Fez umas benfeitorias numas casas, tão bem feitas que no fim de dois anos para pagamento delas não chegou o chão, a obra velha, a nova e outras casas que arrematou e ficaram-lhe ainda devendo quarenta mil réis.
Achou uma vez uma bolsa de coiro com um quartinho. Pôs escritos e deu-a a seu dono. Era assim o seu génio.
Quando a parte não tinha dinheiro e a demanda era certa, punha-o da sua algibeira. Contanto, porém, que lhe fizessem uma procuração geral para ele poder cobrar o principal e custas. E podiam-se botar a dormir que tratava da causa como sua.
Numa destas demandilhas de setecentos e tantos mil réis, cobrou-os e foi levá-los à parte, juntos com o seu rol e ainda à parte lhe ficaram onze mil e tantos réis, que era o que restava das despesas que se tinham feito.
Mal de muita gente se não fora este bom homem!
Cuidou também do casamento de uma órfã que tinha três mil cruzados de dote. Querem ver o que ele fez? Emancipou-a, procurou-lhe noivo, pôs-lhe os banhos na Igreja, pôs-lhe a sua casinha, asseou-os, e por fim casaram. Pôs-lhe a loja de barbeiro, que não lhe faltava nada, e ficaram-lhe devendo só quinze moedas que ele lhes perdoou para que Nosso Senhor lhe perdoasse os seus pecados.
Fazia na verdade muito bem! Andou tratando do livramento de um preso que, dizia ele, se se demorasse na cadeia morreria. E, com efeito, pô-lo na rua, ainda que de pouco lhe serviu, porque depois de solto morreu de fome. Pois quanto tinha e não tinha gastou na soltura. E chamava-lhe o Procurador um ingrato, que não lhe tinha agradecido nem por palavras, nem por obras, tanto trabalho que tivera com ele.
Ficou por Tutor de um menor que quando chegou à idade não foi preciso emancipar-se. Tudo estava destruído e gasto. E chamava-lhe seu filho, que lhe devia a educação por tantos desvelos e cuidados que lhe tinha dado. E, ultimamente, capacitou-o de que era bom ir para a Índia. Fez o enxoval num dia e partiu no outro. Todos os anos lhe mandava o rapaz uma carta com uma comissão de pragas (que nunca lhe caíram) pelo bem que lhe tinha feito. Por fim já não as abria.
Só a defuntos fez ele três testamentos, que todos foram válidos. Depois casou com uma viúva que tinha três filhos e bastantes bens. Deu cabo da viúva, dos filhos e dos bens e ficou muito enxutinho.
Mas, enfim, depois de tantos trabalhos fez uma alicantina de trinta mil réis. E quem tinha escapado de tantas borrascas, afogou-se à vista de terra. Deu com um juiz sábio e recto. Pregou-lhe com os ossos na cadeia e lá deu terra e passou com toda a decência para o cemitério. Mas eu safei-me antes para a cabeça de um preso que se mostrava muito seu amigo e que esteve ao pé dele até dar o último suspiro da vida. E nesta infeliz cabeça é que eu vou fazer a
Este miserável era um dos criminosos que mereciam bem a compaixão dos homens. Era jogador, ladrão, vicioso, enfim um homem depravado. Mas debaixo de todos estes defeitos tinha um coração bem formado.
A sua educação e os seus parentes eram os factores desta obra e eles não tinham perdido um instante de o fazerem desgraçado. Quantas vezes ele, cheio de remorsos, chorava suas culpas em que de novo caía pelo hábito e pela precisão! O que sente remorsos ainda pode levantar-se. Este preso era bem-nascido mas pobre. Os parentes abandonaram-no e para colorirem esta má acção, fizeram o verniz de outra muito pior. Levantaram-lhe testemunhos para se desfazerem dele. Mas nem por isso tinham ânimo, pois com qualquer despesa e preparo que lhe fizessem, por sua vontade mesmo o tirariam diante de si. Mas, não senhor, queriam tudo de graça. E ao miserável, ninguém o ouvia senão outros semelhantes. A sua voz era de burro, que não chega ao alto. Pelo contrário, os parentes opulentos tudo quanto diziam dele era verdade. E diziam todos à boca cheia que o não queriam em casa, que era um ladrão.
O pobre homem, vendo-se sem nada, e com este título e muito acanhado de génio! A educação, tendo sido fraca, e a sua precisão sendo muito forte, entrou a rapinar bagatelas. O ânimo era pouco, a fome muita. Achou sócios, fez número e entrou a passar melhor. Achou nos ladrões mais amor que nos parentes. Começou a embebedar-se, tomou tabaco de fumo, passou a outros vícios e em pouco tempo se fez o homem que diziam. E foi à cadeia.
Eis aqui a cabeça onde passei algum tempo. Estava quase nu, nunca catava a cabeça (nem os presos catam senão o corpo) e é preciso muito cuidado nesta parte, porque até os apanham para os vender. Eu não sei como este pobre homem vivia em tanta indigência, sem cama e sem socorro. A caridade era o seu único refúgio. E todos sabem que este nome de Caridade já está muito gasto, mal se lhe percebem as letras, apesar de que há muito quem faça a caridade. Assim mesmo vivia alegre e exercitava os vícios quanto lhe cabia no possível. Sempre estava a jogar. Preso novo que entrava, nessa mesma noite era roubado para a bebedeira. Mas esta qualidade de furtos entravam no geral. Sabia fazer petições que eram capazes de fazer chorar um seixo.
Pedia esmola à grade, com todos os anexins e galantarias. Uma madrugada, me lembra a mim, que estava ele com o braço estendido pela grade fora, quase chorando, a dizer: — Ora lembre-se deste pobre preso, metido nos ferros de El-Rei, morrendo à pura necessidade, cheio de bichos e misérias, criado para melhor sorte, que Nosso Senhor lhe livre os seus filhos, se os tiver, de tamanha desgraça! Passa um pobre homem de bom coração, que teve dó da perlenga, mete-lhe seis vinténs na mão e vai-se. Ora que lhe há-de dizer este brejeiro? Entra a chamá-lo: — Sio, sio, ah senhor? O tolo do homem olha para trás. E ele pergunta-lhe com todo o descoco: — Onde os furtaste esta noite? Cá te espero com brevidade.
Era deste lote o amigo. E uma peça que ele pregou a um preso novato, alguma coisa cismático? Enquanto ele dormia fez-lhe um refego nas costas da véstia. Acorda o homem e pergunta-lhe logo o maroto: — Tens alguma coisa? — Não, lhe respondeu. — Pois tu estás a modo de inchado. Tens a cara opada.
Entra o homem a apalpar-se. Vai a vestir a véstia. Não lhe chega a abotoar-se e capacita-se que estava inchado. Não comeu dois dias nada de uma ração que lhe vinha de fora, que o outro dava com ela em baixo, até que o desenganaram, por descargo de consciência, porque estava quase doido.
Sabia tudo o que deve saber um preso de enxovia. Sabia furtar, fazer bolsas e tirá-las. Fazia cigarros, vendia tabaco, fazia petições e cartas de amores. Sabia décimas de cor, histórias de arrieiros, toda a qualidade de jogo. Batia com a cabeça na parede, sem lhe doer. Dava bate-cus, fazia meia. Arremedava gota-serena e se houvesse encarte de brejeiro a ninguém pertencia primeiro do que a ele. A única coisa em que falhava era quando contava a sua vida. Dizia a verdade com as lágrimas nos olhos e todo o dia os remorsos o atacavam, até que tornava à mesma. Ultimamente, quase sempre, quando podia, estava bêbado. E eu aborrecia-me o estar numa cabeça que não discorria e andava procurando ocasião de safar-me, até que adoeceu, e mais outros que passaram para a enfermaria. Ele ia encostado com a cabeça ao ombro de um quadrilheiro que o conduzia e para o qual eu passei, ainda que não muito satisfeito, e aí fiz a minha
Tal cabeça, tal sentença! Triste hora! Antes estar na cabeça de um defunto e ir para baixo da terra ser comido por outros bichos maiores porque já se sabe que o maior papa o menor. O tal amigo era capaz de enforcar o pai e botar o cordão à mãe. Vejam que faria se me apanhasse! Quase posso dizer que não dormi nada todo o tempo que aqui existi e a todos os instantes me julgava morto.
Ele também pouco dormia. Fazia a sua fortuna em beber. Era um dos melhores tonéis do bairro. Tinha muito amigo contrabandista que ele mesmo entregava, quando podia. Era tão destro no agarrar que todos os dias tinha as suas três mãos-postas, ainda que algumas vezes também lhas puseram na cara, do que não fazia caso se, com a outra lhe davam os seus dezasseis tostões. Neste género de oficio era muito capaz. Sucedeu-lhe um caso muito galante.
Pilhou ele uma vez um ratoneiro que se ocupava em apanhar pássaros mansos, assim do tamanho de perus, galinhas, patos, &c. Botou-lhe o cordão, amarra-lhe muito bem o pulso ao seu e vem-no encaminhando para a casa dos pobres onde se abre a porta a todos que querem entrar e mesmo aos que não querem.
O tal ladrãozinho, numa campanha que tinha feito no Pinhal da Azambuja, tinham-lhe cortado uma das mãos bem por cima do pulso, no lugar da qual tinha uma de pau muito bem feita que atava com fitas por cima do cotovelo. Trazia-a sempre calçada com sua luva estufada, de forma que quem a visse não diria que era de pau. A esta mesma mão é que teve o quadrilheiro a desgraça de amarrar à sua. O magano foi metendo a outra mão pelo seio. Desatou as fitas, desembaraçou-se de tudo o que tinha postiço e, de repente, se vê o meu belo quadrilheiro com um grande bofetão e a mão, apartada do corpo de quem lha deu, agarrada à sua.
Se vossas mercês vissem o quadrilheiro a sacudir a mão da sua e a gritar por quantos Santos havia que lhe acudissem, que tinha prendido o diabo e sempre, sem perder tempo, na sacudidela, até que desmaiou. Olhem que não viam um bocadinho de galhofa o mais gostoso! Até que enfim, rodeado de gente, com dois barris de água que lhe tinham botado diferentes pessoas, tornou a si, desembaraçou a sua mão daquela, sempre com tremedelas, e andou mais de quinze dias tão apoquentado que eu mesmo tinha dó dele. Passados tempos melhores vendeu a mão ao dono e foram muito amigos. Que isso tinha ele: não era odiento. Sucederam-lhe os seus fracassos muito bons.
E então, que bom coração! Uma ronda feita por ele, ninguém ia à cadeia. Só se não traziam dinheiro. Que a verdade manda Deus que se diga: ele era tentado com este metal e mais não tinha sido criado com ele. E se algum seu companheiro fazia a sua obrigação, como devia, e lhe era mandado, tinha-lhe raiva e dizia: — Nem tudo se leva à risca. Sim, senhores, isso tinha ele, não era muito amigo da verdade e quem a queria fazia fraco negócio com ele.
Foi uma vez à cadeia por uma coisa bem insignificante. Ele e outro apanharam dois porcos que iam fazendo víspere. O homem que os trazia ajustou com eles que lhes daria um e que lhe deixassem o outro. Aceitaram o partido reparando bem naquele ditado: — Antes uma ruim composição que uma boa demanda. Escolheram o melhor porque o homem ali não tinha voz activa, nem passiva, e ficaram todos menos mal. Mas daqui nasceu a desordem. Meu patrão quis logo a metade que lhe pertencia e o outro queria guardar a sua para o entrudo, que vinha perto. E dizia, com razão, cá ao meu: — Mate você a sua ametade e deixe-me cá a minha que eu a matarei quando muito bem me parecer.
Não quis, houve bulha, soube-se o caso e a causa da contenda. Tomaram-lhes o porco e pregaram com ambos na cadeia (que também não eram muito asseados) onde jazeram os seus quarenta dias, saindo depois com todas as honras e privilégios. E julgo que nunca mais teriam contendas, ainda que fosse sobre a divisão de um mosquito. Também teve um pequeno dissabor por deixar fugir um preso. Mas nisto não só teve ele toda a razão porque o preso, indo preso por nada, deu-lhe alguma coisa. Ora todos gostam que lhe renda o ofício. Isto é uma verdade.
Tinha um cordoeiro muito seu amigo a quem, apesar da amizade, tinha pregado duas vezes na cadeia. E para que o não pregasse terceira, dava-lhe todo o cordel preciso para a sua ocupação. Ainda mesmo que lhe fosse preciso corda para o enforcarem, dava-lha com toda a vontade, só para se ver livre dele. O que é ter amigos, que nada lhe falta! Assim fui vivendo nesta cabeça, se isto se lhe pode chamar viver. Até que uma madrugada prendeu um saloio, que levava com toda a cortesia amarrado, a mostrar-lhe a cadeia. Mas o tal saloio era homem de forças desmedidas e apresentou-lhe uma cabeçada com tanta força que quase todos os piolhos da cabeça do quadrilheiro lhe passaram para a sua, onde eu fui incluído. Ficou o homem tão atordoado que teve tempo o saloio de se desatar e pôr ao fresco. Eu, a pena que tive, foi não lhe ver a cara com que ele ficaria quando tornasse a si e não visse o preso. Mas apesar disso fui-me com toda a vontade para fazer a minha
Ora eis aqui me vejo eu na cabeça de um homem curto de nós, cara redonda, cabeça grande, o nariz do tamanho de uma bolota, poucas farripas e muita lêndea, sua camisa lavada e colete encarnado, véstia cor de água-pé, calções de bélbute, ligas encarnadas e umas botas cor de tabaco simonte. Eis aqui o meu adónis. Simples como um, malicioso como trinta. Tinha o seu burro, a sua mula, uma irmã e eu com meus companheiros. E tinha prometido casamento a três vizinhas. Eis aqui a sua família havida e por haver.
Trazia uma horta de renda. Oh, oh, esquecia-me dizer que também tinha um cão que lhe ladrava nela. Tinha uma vinha sua e uma casa de que pagava dois ovos de foro. Depois comprou quatro cabras que lhe davam duas canadas de leite de cujo almoçava ele e mais a sua família. Fazia queijos e vendia três canadas por dia! Criava um porquinho de meias, mas no meu tempo nunca o trouxe com sapatos.
Era tão destro no contar que num quarteirão de tomates, contados cara a cara do comprador, furtava oito. Sabia dar um golpe com um dedinho no braço da balança, que tombava para onde ele queria. Uma pêra podre na sua mão, mostrava-a por todos os lados aos fregueses sem nunca lhe verem a moléstia. Quando vendia laranjas, sempre trazia o seu quarteirão bom para partir e dar à prova dos fregueses. E então o ar com que ele o fazia! Ora prove, prove. Uma laranja não me faz rico nem pobre. São da China! Há-de comprar pior e mais caro! São do ramo! Doces como um torrão de açúcar! A casca é uma folha de papel! É de qualidade sem caroço! Este pomar é regado todos os dias! Enfim, tais perlengas dizia que se livrava de vendedor primeiro que os outros. A sua balda e estribilho certo era dizer a tudo: — Arre para aqui. De forma que falasse a quem falasse, a poucos passos lhe encaixava o arre para aqui, o que, de uma vez, lhe custou umas poucas pauladas.
Sabia tomar uma pitada de tabaco com tal jeito que levava as suas duas oitavas. O caso estava em que a caixa onde ele metia os dedos as tivesse. Vinha duas vezes na semana à cidade e levava tabaco para toda. Nunca bebeu vinho que lhe custasse dinheiro e dizia que uma única vez que o tinha comprado, lhe tinha feito mal. Sabia ler e comprava os seus entremezes que lia na terra, à noite, e juntavam-se-lhe as vizinhas e os vizinhos, de modo que entre eles era um homem de letras e consultado nos casos mais sérios do território. É verdade que tretas tinha-as como ninguém. Tinha o seu par de tostões tesos de forma que já tinha comprado uma casaca e um espadim, para ser compadre de um vizinho seu. E já emprestava os seus dois cruzados-novos aos amigos. Todos os anos ia a uma festa que se fazia ali num lugarejo perto, em que mostrava a sua bizarria. Bailava o fandango trocado, cantava a desgarrada ao desafio que ninguém o desbancava. Tocava a fofa em pontos, na viola. Jogava o pau. Quando queria bem a alguma moça, dava-lhe a sua bofetada e beliscão que lhe fazia vir as lágrimas aos olhos. Enfim, era saloio de tom. Sabia todos os chistes; tinha sido bem-criado. A mãe deu-lhe de mamar três anos. Numa destas funções a que ele era costumado a ir, foi convidado para ver uns toiros e umas comédias. Brincou-se muito e houve ciúmes por amor de uma saloia que não quis bailar senão com ele. Puxaram-se paus e racharam-lhe a cabeça. E eu por uma negra que não fiquei defunto. Mas o que mais se chegou e lhe atou a cabeça foi um cómico das tais comédias que se representavam. Eu, que tinha visto tosquiar todo o lugar da ferida e que tinha ouvido votos que o rapassem, safei-me para o tal Actor e fiz-lhe a minha
Era uma cabeça de motim, a tal cabeça, que não dormia nem deixava dormir. Toda a noite era uma gritaria a decorar o papel e a accionar defronte de um espelho. Vejam lá se é preciso, quando há natureza, estar com aqueles preparos! Ele não tinha graça nenhuma e assentava piamente que o espelho é que lha havia de dar. Na noite em que eu lhe passei para a cabeça, fez o papel de Belisário. Dizia então o povo: — Quem te cegara deras, bêbado! Era cómico por força, contra a vontade de Deus. O único papel que lhe vi desempenhar bem, era um em que ele não falava nada. E até levou palmas. Mas indo a agradecer com uma cortesia, fê-la com tanta graça que logo lhe deram pateada.
Também, se não tivesse outro ofício, morreria de fome. Mas pintava, e nisso tinha muito gosto. Pintou uma casa a um amigo que, depois de pintada, mandou-a o amigo caiar e ficou linda com cinco mãos que lhe deram. A paisagem era o seu forte. Pintou um quintal com suas couves e alfaces, umas roseiras e uma esponjeira no fim que era mesmo estar tirando as esponjas. No entremez do Esganarelo é que ele desbancou porque, como tinha perto de setenta anos, ninguém o viu que não dissesse que era um velho perfeito. Também cantava a sua ária e era muito afinado. Desconfiava por qualquer coisa.
Era casado com uma dançarina que, pelo seu modo, juntava muito boa companhia em casa. O seu chá era gabado pela qualidade e pelo bem feito. Mas a teima de decorar é que me matava. Tinha uma memória de galo. Nunca vi coisa assim! Pedia seis mil e quatrocentos, — como agora —, dava uma volta, pois já tal coisa lhe não lembrava. Era uma miséria de forma que na cena nunca sabia o papel e fechava a oração quando lá lhe parecia. Andava tanto na estimação de todos que o traziam nas palmas: apenas ele aparecia, ou palmadas ou pateadas. Numa ocasião quis ele dar, ou pedir, uma satisfação ao público. Chega ao princípio do Teatro, põe-se sério, e começa: — Senhores, (palmadas no caso) eu não sei... (pateada) em que ofendi... (assobio) este... (u, u, u) respeitável... (laranjada). De forma que tomou por melhor partido nessa noite retirar-se e não dar gosto de aparecer. Noutra ocasião vestiu-se de Arlequim com o vestido de Sultão. Mas que trabalhos não passou ele com um Benefício que fez! A tragédia era intitulada Fogo numas casas e o entremez O Cachimbo Fidalgo. Que injúrias não passou ele ao passar os bilhetes!
Um tratante recebeu um e não lhe deu nada. Ele de novo lhe rogou se lhe dava alguma coisa. Deu-lhe um assobio com a boca e disse-lhe que não valia mais. Poucos passou a dinheiro, foram a troco de fazenda. O barbeiro tomou-lhe um por um mês de barbas. O sapateiro pelos tacões de três meses. O alfaiate por uns fundilhos. E assim os demais, &c. Não era muito feliz no ofício, não. Um elogio que fez ao Cão dos Tártaros, e mesmo em língua de cão, foi o que recitou melhor.
Depois pôs aula de cómico para ensinar. Vejam como havia ele de ensinar o que não sabia! Mas a isso dava ele a sua razão, ainda que de cabo-de-esquadra. Que, muitas vezes, de mestres que não sabem saem grandes discípulos. E quantos discípulos havia que podiam ensinar os mestres? Ainda que eu não sei se isto é verdade. Outro barbarismo dizia ele, ainda muito maior, e era: — Que mestre não queria dizer que sabia mais que discípulo mas sim, que devia saber mais. Numa comédia que se fez no meu tempo, intitulada Quiquiriqui, fez ele de primeiro-galã. Mas, por um defluxo que teve, entrou nas últimas récitas. Outro cómico entrou nas primeiras e levou aplauso, o que não sucedeu a ele. Pois picou-se tanto disto que o mandou citar para um juramento d'alma, para dizer em sua consciência se era melhor do que ele ou não.
Atabafou-se isso porque o empresário declarou-lhe que não prestava para nada e que o botaria fora se entrasse com histórias. Entrou também na idéia de compor um entremez mas não serviu. Vendeu-o a um cego que o cantava pelas portas. Entrou também no gosto de maquinista (ele, coitado, desejava ganhar a sua vida) e fez algumas coisas menos más. Num, em que era preciso transformar um homem em burro, fê-lo muito bem e só com o simples trabalho de pôr as mãos no chão, e tudo gritou: Bravo, bravo, bravo. E foi a primeira vez que ouviu louvor. Noutro lugar da mesma peça, em que era preciso que um cão vivo morresse no momento em que um mágico o dissesse, pegou-lhe pelo rabo e apenas se disse morre, bate-lhe com a cabeça no bastidor e morreu. Para isso tinha seu jeito. Para que uma mulher parecesse homem, vestia-a de homem, de forma que o empresário estava tão contente com ele que o pôs fora sem lhe pagar. A mulher tinha-lhe fugido. Ele, desconsolado, saiu por ali fora, encontrou um amigo que era escudeiro a quem contou a sua desgraça. Ele consolou-o, deu-lhe de cear essa noite e dormiram juntos. Mas ao levantar, pela manhã, eu não quis ser mais cómico, deixei-me ficar escudeiro, para tratar da minha
Também se os piolhos houvessem de ser escudeiros, era vida que eu não tomava, se acaso todos a passam como este a passava. A ama era capaz de apurar a paciência ao diabo. Chamava-o na roda do dia as suas trezentas vezes. E então para quê? As vezes para perguntar--lhe se tinha cobre, que lhe comprasse tâmaras. O comer não era muito. Mas o dinheiro era muito menos. Às veres esperava ele que se acabasse de botar uma tomba nas botas para poder sair com a Senhora. Era vício ter escudeiro. Ela não tinha nem para si. A sege, os lacaios, os machos, o escudeiro e ela eram um gabinete de História Natural no reino animal. A caixa da sege tinha uma pintura de Rafael. Tudo naquela casa era raro, o mesmo comer e o dinheiro.
Tinha uns brincos que os tinha dado Eneias a Dido quando se despediu dela (que há votos que ele se despedira) e tinham já bastante ferrugem. O trabalho diário deste pobre homem era erguer-se com as estrelas no céu, cujas via até ao meio-dia (era regalia da casa). Chamava o criado da traseira para alimpar as bestas por fora, que por dentro andavam elas sempre como um espelho. Assistia a dar-lhe a ração, que era duas xícaras de chá com suas fatias. Em dia de anos, já se sabe, sempre havia bolos. Os moços almoçavam café de cevada e a ama chicharros. O jantar muitas vezes disfarçava-se, que ninguém o conhecia.
Punha-se depois a jogar o gamão com uma criada de casa que nunca falhava. Botava muito, havia suas gritarias. Acudia a Senhora e descontava-lhes na soldada o motim que lhe faziam. Houve mês que ainda eles lhe ficavam a dever os seus dois tostões cada um. Dava querena às botas com cuspo, com tanta quantidade e força que havia bota que lhe levava meio quartilho de cuspo, (e isto era um homem que não tinha substância nenhuma). Ele é que governava a casa, mas isso não lhe levava dois minutos. Também cobrava as rendas que juntas às de um ano não chegavam para uma anágua.
Ali tudo era providência! De tarde saía para fora com a Senhora. As bestas estavam tão bem-criadas e eram tão políticas que ajoelhavam mal viam a Senhora. O macho das varas era muito alto e o da boleia muito pequeno. O boleeiro, para anão, não lhe faltava mais do que sê-lo. Era uma coisa galante! Quando ele puxava pelo fiador ao macho das varas, levantava este a cabeça, virando-a para o lacaio, e ficavam boca com boca, que pareciam que iam conversando ou beijando-se.
O escudeiro ia num cavalo galiziano, sempre aos saltos. A Senhora a gritar com o criado que fosse mais devagar, o que lhe era impossível, só se parassem de todo; o cavalinho da boleia às vezes pegava-se (tinha-me esquecido de dizer que o da boleia era cavalo) de tal forma que era preciso o boleeiro, o moço, o escudeiro, a Senhora saltarem todos no cavalinho e a nada o bruto se movia. De uma vez, lembra-me que estivemos parados cinco horas a fio, até que o cavalinho lembrou-se lá de seu moto próprio ir para casa e fomos: era célebre! Em passando por carro que levasse palha, punha-se na traseira e ninguém dali o separava. Era muito amigo do campo. Folhinha verde que visse na rua era sua. Conhecia o comer pelos ares, nem que fosse criado com ele. Tinha uma laje em casa que estava toda gasta de a lamber, para refrescar, e dar uso à língua. Mas, enfim, deixemos a vida do cavalo e vamos à do criado. À noite jogava os centos com a Senhora, no que havia primeiro um cento de cerimónias primeiro que se sentasse, como v. gr.: — Senta-te! — Não me sento. — Não teimes. — Hei-de teimar! — Soer eu que mando! — Isso é outra coisa. E depois de muita volta para aqui, volta para acolá, sentava-se o criado numa cadeira que não tinha assento nenhum. Tinha sido uma valdevinos. Havia um baralho de cartas tão sebento que, numas luminárias que houve no meu tempo, puseram-se duas cartas de oito e de nove, em cada janela, acesas, e duraram até se apagarem. Acabavam o joguinho, ceavam. No tempo das beldroegas sempre havia um caldinho destas ervas para a Senhora de que ela era muito apaixonada. E os seus craveiros nunca tiveram outra coisa senão beldroegas. A família tinha farinha-de-pau por conta, mas água a olho quanta quisesse.
Depois ia o pobre criado deitar-se numa cama a que tinham posto esta alcunha, porque se parecia alguma coisa com ela. Não lhe faltava para ser vera-efígie senão colchões e lençóis. Não tinha tempo de fazer caso das mordeduras que eu lhe dava porque apenas se deitava, saltava um destacamento de pulgas com ele, que lhe punham o corpo que parecia uma fazenda que há, chamada sal e pimenta. Gastava o homem quantas forças tinha para agarrar no sono e nem assim podia. Lá pela noite velha punha-se a roncar e a assobiar, fungando pelo nariz de tal sorte que muitas vezes acudiu gente, julgando que se tocava a fogo. De madrugada acordava e seguia-se o trabalho da véspera. Depois que chegou de Coimbra um sobrinho da Senhora que era Filósofo, como havia tanta falta de quartos e de camas, como de tudo o mais, dormia o tal sobrinho com o meu Escudeiro. Eu andava com gosto de morder numa cabeça filosófica, ainda que fosse só com presunção de o ser tal, qual esta, para onde passei, e fiz a minha
Isto sim! Isto é que era cabeça! Nem Diógenes antigo, nem Diógenes moderno lhe chegavam aos calcanhares! Não fazia caso de nada e nada tinha. Passava sem tudo o que não tinha e não tinha nada. Uma vez que viu beber num tanque um burrinho pequeno, sem precisar de mãos para levar a água à boca, nunca mais quis beber senão metendo a boca na água. E custou muito a capacitá-lo de que devia servir-se das mãos. Queria andar com elas pelo chão. Era um homem conhecedor das coisas e desprezador delas. Não lia nem estudava e dizia: — O Filósofo nasce feito. Nunca se penteava. O seu fato, em lugar de escovado, era rapado.
Lavava a cara duas vezes no ano e igualmente vestia uma camisa lavada. 0 seu traste favorito era capote. Parava na rua, ainda que fosse para ver um cão brincar com outro. — O Filósofo deve ser observador, dizia ele, não lhe deve escapar nada útil. O inútil é que deve separar de si. Que é comer bem?, dizia ele. Que loucura é esta dos homens trabalharem com tanto cuidado, por fazerem diferença de bacalhau à galinha? De sege, a andar a pé? De tudo a mediania. Que loucura, pobres meus iguais! O comer, em passando da garganta para baixo, tanto importa comer palha como pato. A baeta abafa mais que a seda. A sege faz o homem como espécie de centopeia, que precisa muitas pernas para andar, e todos fugimos dela, como peçonhenta. Mas reparava eu no meu Filósofo que, se o convidavam para jantar, sempre comia do melhor que vinha à mesa.
Quando comprava capote, escolhia boa fazenda. E à noite, se encontrava sege ao recolher a casa, punha-se na traseira para não ir a pé. Que diabo de Filosofia é esta?, dizia eu comigo. Não faz nada do que prega; não tem ofício de Missionário; não lhe dão nada por isto. É mania! E vê-lo falar numa roda de gente! Tudo estava caladinho: ele ora emendava os costumes presentes, ora louvava os passados (não entendia uns nem outros). Definia o que era o Teatro, o Passeio, o jogo, as Assembleias, os Amigos. Parecia um destes enxota-moscas e poeira, dos Mercadores, que têm muitos ourelos, todos de diferentes cores, a sacudir para aqui e para acolá. Pois diante de Senhoras! Isso era bailar as tripecinhas: era miserável a que falava.
Dizia uma, por exemplo: — Eu gosto de versos. Saltava-lhe logo: — Que são versos, minha Senhora? De que serve uns soneto bem feito? Que lucro lhe acha ou que lucro tira o que o fax, gastando muitas vezes um dia inteiro a aparar a pena, a bater na testa, a pôr os olhos em alvo e outras vezes no tecto, a morder a língua, a fazer caretas, a dobrar papel, a sacudir a pena. E sai no fim de tudo isto com catorze versos que lhe chamam "soneto" que, ou não prestam ou se prestam não lhe prestam para nada? Não era melhor ocuparem-se em ser Filósofos, em conhecerem o coração do homem pela fisionomia, a encontrarem a pedra filosofal, (que o não ter aparecido é por falta de diligência), o Elixir universal e outros bens, a bem da humanidade? Coisas sérias, minha Senhora, coisas sérias.
Se outra dali dizia que gostava da contradança, agora o vereis. — Que é a contradança? Que são contradanças? Dança é uma palavra que está viciada pelos tempos. O seu próprio nome é "Pança", inventada, na era de tal, por um homens que tinha uma barriga muito grande; cujo apelido ficou à sua descendência e da qual dizem que descendia "Sancho Pança". Este homem, que não podia mexer-se, por causa do bandulho, vendo que o andar muito lhe fazia bem, entrou nos dias de chuva, em que não podia sair, a dar saltos pela casa. E para fazer isto mais suave, fazia também saltar a gente de sua casa. Vieram os vizinhos, gostaram da asneira, porque se juntavam homens com mulheres e entravam todos às noites com o tal baile a que puseram o nome de <<pança>>, em louvor e aplauso do autor.
Um sujeito daquele sítio, e que não sabia bem escrever, mudou de terra e levou o tal divertimento consigo. Entrou a fazer convites por escrito e em lugar de um P punha um D, que justamente fazia dança. Esta palavra agradou e até tinha mais semelhança. Pegou e ficou e hoje os mais cordatos assim lhe chamam. Ora eis aqui tem vossa mercê a origem da dança e da palavra.
Ultimamente foi isto passando de tempos a tempos até que veio tempo que muitos donos de casa não queriam a dança em casa; mas esses mesmos dançavam nas casas alheias ao que diziam as raparigas de casa: — É contra a dança, e dança. Destes contras e destas danças é que se originou a palavra "contradança". Eis aqui a origem da contradança e da palavra. A origem das constipações, das tísicas, das janelas abertas fora de horas, de muitos casamentos em que aos oito dias há contradança de arrocho, ou de fome, e outras bagatelas mais que não conto por não ser importuno mas que são notórias.
Eu, foi no que achei juízo ao meu Filósofo, porque com efeito não acho muito acertado o andar todo o dia a pular porque também a mim me dá incómodo. Muita gente dirá: — Que lhe importa lá ao piolho que a cabeça aonde ele anda, morde e lhe dá sustento, salte ou não salte? Mas é porque não discorrem, porque eu lhe perguntarei: — Que importa lá morar numa casa velha que esteja caindo, que não tenha telhado nem reparo de janelas? Um senhorio mau, uma má vizinhança? Dá-lhe isto incómodo ou não? Pois assim é o piolho quando acerta numa má cabeça. Mas vamos ao fio da história.
Eu também sou alegre e gosto da galhofa, mas em termos. Que se contradance num dia de anos, num dia de festa, num dia em que houve um alegrão na casa, que se juntaram os parentes e amigos. Vamos adiante, é bem feito e útil. Mas pôr-lhes Deus a cabeça pegada ao corpo e eles todos os dias andarem com ela por esses ares, que me parecem papagaios que os rapazes botam ao ar, servindo-lhes o corpo de rabo e o peso para não virar a cabeça para baixo! Mas eu a fugir da história e a meter-me com o que não me importa! O tal Filósofo tinha coisas muito boas apesar de que não usava de nenhuma.
Algumas dívidas que tinha não lhe davam cuidado. Um Filósofo não se embaraça com bagatelas e assim não pagava a ninguém. O seu gosto era ser procurado pelos credores. Nunca os vi levar nem má palavra, nem dinheiro. Nunca os desenganava, eles mesmo é que se desenganavam por si, de forma que já lá não ia ninguém, nem lhe tiravam o chapéu. O seu divertimento diário era ir ver correr a água a um chafariz que lhe ficava perto da casa. Gostava daquela teima com que de dia e de noite estava a correr e dizia e até teimava que aquele chafariz era um verdadeiro Filósofo que tinha procurado um sistema de viver, de que nunca mudava, e que até era um Filósofo filantrópico, porque, apesar de estar sempre a correr, todo o mundo o achava parado, e ele pronto a socorrê-los com a sua água para lhes matar a sede, ao que nunca faltava, sem escolha de pessoa. Antes quase sempre aos pobres é que a prodigalizava porque os ricos davam-se pouco com ele, sempre bebiam vinho e os mesmos pobres iam lá por necessidade, por falta dele. E, certamente, se Baco fosse tão esmoler que se fizesse visível a quem o quisesse, os chafarizes ficavam a pedir esmola. Havia tal que a mesma barba havia fazer com vinho.
De uma bulha que um aguadeiro tivesse com outro, tirava ele uma filosofia para estar filosofando todo um dia. E de uma vez (ele era cheio de caridade) que dois aguadeiros jogavam aos socos, a ponto que já os narizes começavam a fazer chouriços, e saltando um suspiro fora do barril a um deles, que o tinha cheio, entrou outro a gritar: — Olha aquele suspiro! Vai o meu Filósofo enfia, traça o capote, e vai acudir aos galegos porque entendeu que diziam que estava para dar o último suspiro (como ele ao depois confessou). Tanto que soube o que era sossegou-se, que isso tinha ele. Era dividido em duas partes, metade sossego, metade raiva. Era muito tentado com metades.
Uma vez perguntando-se-lhe qual queria, se saúde, se dinheiro, respondeu: — Metade numa coisa, metade na outra.
Deu uma vez uma queda e não deu com metade do corpo no chão. Morava na rua da metade e ultimamente vivia de metade com outro filósofo. Pagava a metade das casas e se havia uma sardinha para a ceia, dava metade ao seu amigo e companheiro. Eu, se pusesse alcunhas, punha-lhe o metade.
Mas quando vi que ele era Filósofo chapado foi uma noite que um vizinho lhe deu uma roda de cachações compridos. Ver o sossego e a fleuma com que ele levou aquela remessa! O vizinho prometeu-lhe mais e ele, com toda a cortesia, e o chapéu na mão, lhe disse que não tivesse incómodo, que eram suficientes aqueles. O vizinho arde, salta-lhe outra vez em cima, bota-lhe dois dentes fora com um murro, o que ele, muito humilde, lhe agradeceu por lhe ter sacado neste caso um que tinha podre e outro que sendo vizinho devia estar combalido. O homem enraivece-se, pisa-o a coices, o que ele também lhe agradeceu porque estava muito precisado de estar uns dias na cama, mas ao que não se resolvia. Porém, agora, visto o moído em que se sentia era de necessidade o fazê-lo. Até que o vizinho se pôs o rir e entrou aos abraços a ele e a perguntar-lhe donde nascia tanto sossego. De ser Filósofo, lhe responde, e entrou a capitá-lo, que fosse Filósofo, o que o outro fez, e ficaram ambos Filósofos com a única diferença de ser um passivo e outro activo.
Tinha uma mesada todos os meses, de um sujeito que nunca lha deu nem lha mandou dar e, atendendo ao bom pagamento, andava na última miséria. Ia ali a casa um pobre pedir esmola, por teima, pois que nunca lha deram. E uma noite, que chovia muito, pediu se lhe davam agasalho. Disseram-lhe que sim, dividindo-se em duas metades o que havia de comum.
O Filósofo deu metade da casa e o pobre metade do alimento que levava, que eram doze fatias de pão, ou galhofas, como eles lhes chamam, seu bocado de queijo, três sardinhas de espicha e sua pinga. E foi a única vez que o meu Filósofo não deu metade, deu por inteiro toda a vontade que tinha de comer. De forma que quando o pobre lhe quis acudir já o comer estava fazendo cozimento no estômago. O patrão Filósofo, depois da ceia, deu-lhe metade da sua cama que o outro aceitou e eu estimei, porque apenas se deitou, eu fui-me à cabeça do pobre, como cão a bofes, e antes quis um pobre sem ser Filósofo do que um Filósofo pobre. Ao erguer-se, pela manhã, deixei casa e dono, sem levar saudades, e fui pôr no meu pobre a
Tomaram muitos ricos passar como passava este Pobre! Era negociante de pobres. Andavam pobres a pedir esmola por sua conta. Tinha Borrador, Livro de Razão, Livro-Mestre e Auxiliares; três Caixeiros e uma Caixeira vendiam fatias de pão para dezasseis casas de pasto de que tiravam guapa sopa.
Ensinava o método de pedir esmola muito e muito melhor que o Mestre Gusmão de Alfarache. Tinha um mapa com todos os bairros, ruas, becos, etc., e tudo tinha dividido pelo ano. Tinha o nome de todos os que eram esmoleres, assim como os nomes e ocupações daqueles que só o davam atacando-os por balda certa, como era v. gr.: — Senhoria! Meu fidalgo! Assim como é gentil na terra o seja no céu!, ou estar senhora à janela com ele, ou defronte, e outras coisas desta categoria.
Compôs um pequeno tratado intitulado: Método de pedir esmola a torto e a direito. O qual descrevo aqui por me parecer útil se algum dos meus Leitores cair em pobreza ou a mandriice lhe der vocação para isso. Porque é bem certo que, a não ser coxo, cego ou muito velho, ela é quem conduz à relaxação da pedintaria.
Método de pedir esmola a torto e a direito,
pelas diferentes classes das pessoas.
Depois de se erguer, o que deve ser ainda com luzes acesas (apesar de ser cego), beberá o seu golo da aguardente, e comerá o seu dente de alho bafejando depois muito bem a parede para lhe tirar o cheiro da boca, porque não digam os esmoleres que logo pela manhã vai bêbado.
Pensará o seu cão, se o tiver, sendo-lhe preciso fingir-se cego. Se tiver moço, lhe dará logo depois do almoço dois bofetões bem puxados e, depois, com muito amor o industriará do trabalho daquele dia, repreendendo-o dos erros do passado, pois que nunca faltam. Terá a cautela de meter na algibeira trinta moedas de cinco réis e outras tantas de três réis por amor do câmbio. Mil e duzentos em trocos pequenos de meios tostões, e três vinténs, e seis mil e quatrocentos em trocos de ouro. Porque no caso que haja quem queira trocar uma peça (já se sabe, vindo por portas travessas), não lhe falte troco para vir para o cofre moeda inteira, pois sempre é dinheiro que alegra o olho e faz melhor conta ao contar.
Nunca lavará a cara em casa, mas sim no chafariz, o que mete muito dó, e muitas vezes os mesmos aguadeiros (o que parece impossível! ) caem com os seus cinco réis. E se passam mulheres e é tempo de Inverno, entram a chorar e a lamentar o pobrezinho, dizendo: — Coitadinho, talvez que nem água tenha em casa! E, com tamanho frio! Bem-criado foi ele!
É preciso advertir que a pobreza não faz a porcaria e pilha-se muitas vezes nisto, que não parece nada, o seu vintém. O ter lugar certo é coisa muito precisa e é o que faz ter crédito entre os outros pobres porque é o mesmo que ser homem de loja aberta, sem passar pelos dois meses de cortesia que tem o ano. Eu conheci um senhorio de casas que nunca queria fiador das suas, senão esta qualidade de abonadores.
O pobre nunca deve entrar em loja de bebidas, senão só para pedir uma gotinha de água quente para aquecer o estômago. Vinho, deve-o ter por junto em casa, tendo nisto três conveniências: ser melhor, mais barato e não o verem beber. Deve-se embebedar logo à noite, para pela madrugada estar pronto para a sua ocupação, sem ter dela vergonha, porque nenhuma ocupação é má, se rende, e se aquele que a ocupa não a sevandija. Não deve ter amores senão com outra pobre. Em ocasião de ajuntamento de pobres, deve repartir o pão que tiver, com os outros, e três ou quatro moedas de três réis, dizendo publicamente que para aquele dia não precisa mais nada. Que isto lhe dará grandes créditos e os que o presenciarem ficarão com o olho nele, e tem moeda de cinco réis todas as vezes que o encontrarem.
À esmola de enterro e dia certo de semana com barulho, deve andar os seus caixeiros cobrar esta letra, que tem o privilégio de nunca ser recambiada. E só deve ir pessoalmente um ou dois dias na semana por casa dos seus devotos, a cujas portas rezará sem pedir e só, sim, perguntará pela saúde dos donos da casa. Ainda que falhe a esmola um mês, nunca deixe de ir que há-de ganhar em tresdobro. Se houver filhos pequenos, faça-lhes muita festa e diga à mãe: — Meus pais criaram-me com muito mimo. Mal sabiam eles que eu ainda mendigaria às portas alheias! Quando vejo inocentes nos braços de seus pais, sempre peço a Deus que os livre de semelhantes trabalhos.
E apenas lhe vir as lágrimas nos olhos, ou voz truncada de compaixão, peça-lhe logo uma camisinha para consolar o corpo, que nesta ocasião é capaz de deixar o marido sem ela, só para lha dar.
Aos Domingos e dias santos, de tarde, dia próprio de estar muita gente à janela, reparta com algum cão que encontrar o pão mais duro que tiver, comendo também ao mesmo tempo, que não deixa de servir. A homem com cara de bem e bom cristão (que ainda há muitos) peça simplesmente esmola pelo amor de Deus. A um rapaz de quinze, até vinte anos, de-lhe senhoria e peça-lhe esmola pela sua saúde e não entre lá pela alma de seu pai e de sua mãe, se no outro mundo os tiver. Porque um rapaz até essa idade, com fumos de nobre, e algum dinheiro, não lhe importa lá pai nem mãe.
Outra coisa a advertir. Se o dito viver muito aparelhado não será mau dizer-lhe: — Ora dê-me um vintenzinho para pão! Que por isso mesmo que lhe pedem muito julgam que lhe conhecem a grandeza e os teres e dão muitas vezes o seu meio tostão, e não lhes fica às vezes nem para uma pada, que em eles andando muito asseados por fora, também o andam por dentro. A negociante mais taludo peça pelos que andam sobre as águas do mar, que nosso Senhor os traga a porto e salvamento, porque quase sempre têm interesse em algum navio. Se o vir com cara de usurário, — que isso não tem nada que conhecer, há-de ser muito alto, ou muito pequeno, muito magro ou muito gordo, sempre extremos; o nariz grande, ainda que isso algumas vezes tem a sua falha; mas há mais alguns sinais que não falham, como é trazer sempre chapéu debaixo do braço, ser muito macilento, palavras cheias de açúcar, ensinar remédios caseiros, espantar-se de qualquer coisa, e outras coisas mais que na língua Piolha têm tanta força que não é possível traduzi-las —, a este tal pedir-se-lhe-á esmola para que Nosso Senhor o adiante nos seus negócios ainda que melhor será não perder tempo com ele. A estes que têm cara de bom coração (que também é fácil de conhecer pela fisionomia), diga que tem fome, que lhe dêem para um bocadinho de pão. Aos que tiverem cara de pais de família, peça para alimentar cinco filhos, que ainda hoje não comeram nada de lume. A uma mãe com cara de propósito, levando filhas adiante: — Que Deus lhes dê uma boa sorte e uma boa ventura. A preto: — Que Deus o livre de cativeiro. A mulher de venda: — Pelas almas. A soldado: — Que assim como tem escapado de tantos perigos, o livre Deus de seus inimigos. A homem oficial: — Que Deus o livre de maus vizinhos do pé da porta, doenças e enfermidades, perigos e trabalhos e lhe dê saúde na alma e no corpo. A lacaio: — que o livre de quedas. A marujo: — por Nossa Senhora da Penha. A rapariga: — que Nosso Senhor a case cedo com um rapaz tão gentil como ela. A homem rico, faça que não o vê, que isso não tem meio termo. Se é esmoler, não precisa que lhe peça. Se não o é, nada lhe arranca, é perder tempo.
Nada de caldo que isso é sevandijar-se. É lá para os aprendizes. Mas é preciso passar por esta Academia de que se tiram muitas luzes. Outra coisa que me esquecia: nunca assoar a lenço. Mão, parede ou capote de companheiro, se é verdadeiramente cego. Não trazer dinheiro nos remendos que isso é coisa muito trivial. Deve-se trazer um pau grosso que em cima tenha a sua concavidade tapada com um taco de pau da mesma cor e no centro pode haver algum dinheiro. Aqui é o lugar mais seguro porque ninguém lhe importa o pau do pobre, antes todos fogem da bordoada do cego. E se é preciso ir para fora da terra e lá aparece um negócio que faz conta, como duas pipas de azeite, alguma carne ensacada, &c., não haja falta de dinheiro. E mesmo se é preciso matar a um homem (que um pobre deste calibre há-de ser capaz de tudo), e por isso seja preciso passar-se a outra terra, que vá um homem seguro.
Nada de morar com outro pobre que seja mestre na arte. Casamento, apartamento. Cão, moço, vizinho &c. Também é preciso cuidado no tomar do moço, não seja simplório; velhaco e mais velhaco, próprio para o ofício. Lá pobre que precise e que peça por verdadeira necessidade, nada de amizade com ele. Isso são uns pobres e quase sempre são tolos. Botam a perder o ofício. Nada, nada.
Se derem uns feijões, ainda que sejam azedos e de quinze dias, botá-los para a tigela, dando tempo a que se julgue que se comeram. E dizer em cima (lambendo os beiços) que lhe souberam como gaitas.
Para a outra vez dão galinha, se a têm. E se o não fizer assim, hão-de dizer-lhe, quando for bater àquela porta: — Quer feijões? Não há-de querer, que é pobre grave. Deve também haver um adelo fixo para lhe vender o fato velho que lhe deram, que ainda que lho pague por menos é melhor que, indo a muitos, correr de plano entre todos que vende fato e ser apontado a dedo, o que faria um grande desfalque na negociação.
Há também uma descoberta que eu não devia nem queria aqui pôr, por ser muito nova, e de muita utilidade. Mas pessoas a quem sou obrigado e mostrei esta minha tradução, tanto instaram comigo que fizesse esta caridade que não tenho outro remédio senão estendê-la neste papel. Pois olhem que é coisa de grande suposição. Vá, que bem me custa. Enfim, vá. Pedir pelas portas onde for, que lhe dêem um bocadinho de papel sujo que é para a primeira coisa que lhe lembrar.
Isto é uma coisa muito grande. Sei de um pobre que tirou num dia dois arráteis de papel que vendeu pelos seus oito vinténs. Isto é muito fácil de dar e dá muito de si. Coisa de tocar e cantar não serve para nada. Isso é para os primeiros seis meses, depois fica-se às moscas. Boa retórica e boas máximas, que é o sólido. Catar os bichos na rua também não serve de nada, é uma porcaria que não mete cobiça nenhuma de favorecer e perde-se o tempo. Fazer chagas, isso era bom para outro tempo. Hoje há meninos muito espertos que até das verdadeiras zombam. Torno a lembrar: retórica, sistema e boas máximas, que nestas ratoeiras poucos escapam. Não comprar nunca gulodices e se alguma vez cair nisso, sempre comprá-las pelo moço e que não lhas dê senão em casa. Porque, quando muito, se as vêem comprar põem a culpa ao moço.
O pobre, mestre do seu ofício, deve fazer este cálculo: que se é a Capital que ele habita, tem um milhão de almas, e dentro de dez anos tem tirado dez réis de cada pessoa; porque quando cem mil não dêem, têm os outros cem mil dado três e quatro vezes e, desta forma, tem ele de capital cinco contos de réis que, a ser muito perdulário, deve ter gasto um em dinheiro e de fundo tem os seus dez mil cruzados, fora os negócios que tiver feito. Quem pode lá julgar que um pobre tira por mês trinta mil réis? Como eles se enganam! Há mês de mais. Tenho tido Quaresma de oitenta mil réis, fora a roupa, negócio e venda de fatias. Deve também ter cuidado de morar em casa de porta de rua e que seja em beco, para que não saibam quando sai nem quando entra &c.
Eis aqui a obra que o meu pobre deu à luz, fora muitas coisas mais que ele ia ideando e que ainda não tinha escrito. E o mais é que eu estava tão acostumado à pedintaria que, apesar de não ter sido criado com aquela choradeira, já não estranhava e receava ficar numa vida lânguida. Razão por que fiz tenção de passar daquela cabeça, o que fiz num dia em que ali foi um Preto que lhe costumava fazer a barba e cortar-lhe o cabelo. O que fazia de sua curiosidade, porquanto era outro o seu ofício, como direi quando lhe talhar a sua carapuça. Mas como ia dizendo, foi uma noite o Preto cortar-lhe o cabelo e fazer-lhe a barba e durante ela tive eu ocasião de lhe passar para a véstia, indo-lhe logo imediatamente para a cabeça a fazer-lhe a
Pedro se chamava o Preto. Tinha os seus cinquenta anos mas não o mostrava muito. Tinha casado com uma branca porque havia então muita falta de pretas, a qual se ocupava em fazer fatias de parida. Ele caiava. Mas era um Preto tão cordato que andava fazendo diligências para entrar para o cais do carvão e ser carvoeiro. Mas eram-lhe todos opostos apesar da grande razão que dava, que lhe parecia mais próprio que os brancos caiassem e que os pretos acarretassem carvão. Mas apesar de tão bem arrazoado nunca obteve nada, nem creio que o conseguisse porque os outros também davam a sua cartada, dizendo que era ocupação que sempre tinha andado por gente branca.
Continuava com o mesmo ofício mas com bastante desgosto e mesmo não tinha o melhor jeito.
Por mais insignificante que seja o ofício, é preciso haver natureza. Umas casas caiadas por ele! Era o mesmo que forradas de papel pardo. Mas tinha mais ofícios, como já disse: barbeava e penteava um cabelo curto menos mal; botava o seu tacão; vendia fuzis e pederneiras. Jogava a espada da sua cor, no que tinha seus discípulos e tão bons que já davam bote no mestre.
Tinha um filho chamado Tomé que já sabia ler e escrever e muitas coisas mais e tinha apenas vinte e cinco anos. Seus pais tinham tido muito cuidado na sua educação. Também já começava a caiar e tinha muito mais propensão. Trinta réis de cal na sua mão dava três demãos numa casa. Era uma das crianças mais espertas que eu tenho visto. Dizia os nomes de todas as pessoas que iam à casa e pessoa que visse uma vez, raras vezes lhe escapava que não a conhecesse. Já daquela idade se penteava, vestia, despia, dormia sem precisão de ninguém. Era galante criança! E seus pais, no seu tanto, traziam-no muito asseadinho. Mas eu vivia muito aflito porque não me entendia com aquela qualidade de cabelo e mais de uma vez me vi no perigo de quebrar as pernas. A única coisa que tinha a meu favor era dormir sempre em lã mas nunca vi pós nem banha. E, além da fome, trazia sempre uma nuvem negra sobre o coração, que não sabia o que me adivinhava. Dera tudo quanto tivesse, se o tivesse, por me ver livre dali, o que consegui numa função da Atalaia, passando para a cabeça de um gaiteiro que ia no mesmo barco e que se foi deitar junto do Preto a dormir, debaixo da coberta. Eu fiquei contente porque o tal gaiteiro usava de carapuça e, tendo a sua bastante velha, eu lhe fiz uma nova, que é a
Eis o Piolho gaiteiro! E gaiteiro com poucas férias, principalmente Domingos e dias Santos, e despedidas de galegos para a terra, que não havia oitavário. Era um sopro contínuo em que andava aquele corpo todo e cabeça. Quantas vezes de noite ele estava a soprar com quanta força tinha, parecendo-lhe que estava na folia? Havia dia que tinha cinco e seis funções. Ele, então, era brioso, nunca queria ajustar e com tudo ficava contente, contanto que houvesse bastante vinho, o que raras vezes deixava de haver.
Fomos a uma função aonde não teve a boca desembaraçada nem um minuto e isto sem dar uma palavra, ou gaita ou copo. Também bailava tocando que, entre eles, é mais primor. Todos os mais galegos chamavam-lhe por Senhor. O que é a dependência! Teve uma molestiazinha de pouca entidade. Pois enquanto o não deixou, nunca o deixaram os amigos, nem os oferecimentos sinceros que algumas vezes chegaram ao fim. E bem sabem vossas mercês que homem pobre e sem dependência morre como o espargo do monte.
Função de arranchar nunca se fazia sem ele e a sua gaita. Tinham sítio certo onde iam tocar todos os domingos, o que fez muita diferença aos senhorios, porque perderam as casas muito o seu valor. E ultimamente chegaram a estar com escritos todo o ano, até que os donos se queixaram e os puseram dali para fora. Mas eles requereram que lhe marcassem sítio para tocar a gaita. Não sei o que surdiu mas eu parece-me que tinham razão porque logo se concedeu e permitiu o toque da gaita, — o mais antigo de todos os instrumentos. Devia haver sítio para se tocar que não se havia de ir com nenhuma máquina aerostática tocar por esses ares. Também há gente impertinente, ainda que muitas vezes não seja impertinência, é inveja de não saberem tocar, porque nestes instrumentos há poucos músicos e quase nenhuns curiosos. Eu, a ser juiz deste requerimento, dava-lhe a serra de Sintra e a Trafaria, sem prejuízo de terceiro, ficando-lhe o direito salvo para requererem para o antigo, no caso de terem justiça.
O pobre gaiteiro, vendo que não tinha aonde tocar e estando acostumado àquele exercício, entrou a emagrecer que ninguém o conhecia. Despediu um rapaz que lhe tocava tambor e entrou a tocar num machinho que lhe dava muito coice de forma que se aborreceu logo dele. Os amigos aconselhavam-lhe que tocasse berimbau mas ele escandalizou-se disso porque era um instrumento de preto e cada vez ia a pior. Até que aprendeu a tocar piano, e forte, e era um gosto vê-lo ao cravo. O que nunca pôde entender era a razão do nome. Porque chamando-lhe piano acabava em forte, e isto deu-lhe que fazer e quase ia endoidecendo. E porque um dia, estando neste argumento, passa pela rua uma mulher apregoando chocos frescos, o gaiteiro, que já estava esquentado por não entender o que era piano forte, ficou muito pior com os chocos frescos, clamando e gritando: — Se eles são chocos como são frescos? E se eles são frescos, como são chocos? Levaram-no então para fora da terra, a tomar ares. Lá pôde tornar à gaita, que de todo o desvaneceu e restabeleceu do estado em que se achava. Que, na verdade, metia dó. Ultimamente casou com uma rapariga que se agradou dele pela prenda. Ela tocava pandeiro que era uma suspensão, de forma que naquela freguesia, em aparecendo o casal, todos saíam à porta, a vê-los e a recebê-los, e era função certa. Mas, passados tempos, todos estavam satisfeitos e já pouca saída tinham. Vieram para a Corte. Ele resolveu-se a ensinar. Pôs escritos com uma gaita pintada em cima, acudiu muita gente a ver, entre os quais foi o caixeiro de uma loja, o rapaz mais prendado daquele tempo. Procurou logo o gaiteiro, ajustou-se para lhe dar lição de madrugada por ser esta a hora de não incomodar a sua vizinhança. Mandou-lhe fazer uma gaita muito boa e destinou-se o primeiro dia da lição. Eu, que tinha ouvido o contrato, e desejava passar para fora daquela cabeça pelo costume em que me tinha posto de viajar, — e a mania de escrever a minha história, por me parecer que seria a primeira que aparecesse depois da minha morte, tendo a fortuna de ir cair em mão capaz de me entender e traduzir —, tratei logo na véspera da primeira e dita lição, quando o gaiteiro se deitou, tendo a gaita ao pé de si por amor das bruxas, aonde também tinha a nova, do novo freguês, apenas o vi dormindo, de pôr-me ao fresco. Encaixei-me na franja da nova gaita do meu gaiteiro que, não falhando de madrugada, levou a primeira lição e, apenas ele pegou na gaita, eu não me descuidei de lhe passar para o corpo e, por conseguinte, para a cabeça, lugar do meu destino, onde de novo me ocupei na minha
Era um dos rapazes mais curiosos do meu tempo. Sabia dançar toda a qualidade de dança, e ultimamente fez dançar o patrão. Tocava todos os instrumentos, mas nas marimbas era o seu forte. Jogava todos os jogos, fazia habilidades, bailava na corda, representava, sabia línguas, andou na picaria. Só a aprender a tratar com Senhoras gastou ele dois anos e um poderio de dinheiro. Verdadeiramente, era mais sócio que caixeiro. Eram três interessados na loja: o patrão, ele e a gaveta. A última quebrou às duas palhetadas e como era o sócio principal, podem vossas mercês ver corno ficariam os dois! Mas sempre o mais culpado foi o sócio gaveta pelo seu bom génio. Que se ela não se deixasse persuadir e abrir tantas vezes quantas o meu caixeiro queria, não lhe havia de suceder esta desgraça porque eles tinham muito bons ganhos. Foi uma quebra sensível a muita gente e não só aos que eles ficaram devendo, mas mesmo àqueles a quem eles davam a ganhar. Uma sege, em que cá o meu patrão andava Domingos e dias santos, todos da casa choravam, à excepção das bestas que tiveram folga das corridas porque ele, já se sabe, andava sempre de trote. Da mesma forma que o negócio, que foi um sopro.
O pobre patrão não o podia crer, que era um homem chão e verdadeiro, sem saber prendas, e tudo era, com as mãos na cabeça, perguntar-lhe: — Como foi isto? Ao que ele respondia que não lhe desse cuidado, que no melhor pano caía nódoa, que não era caso que so a ele tivesse sucedido. E consolava-o, dizendo-lhe que muitos havia que tinham quebrado as suas cinco vezes e que estavam tão inteirinhos que não se lhes percebia nada. Mas o patrão não o tiravam da sua aflição. Cá o caixeiro pouca pena tinha porque estava cheio de graças e de prendas para lhe servirem de espeque à desgraça. Ora a gaveta não dava já um copo de limonada por mais que a espremessem porque o tal caixeirinho tinha-a metido numa imprensa, tinha-lhe feito dar tudo. Para encurtar razões: o patrão quebrou, a gaveta foi para o lume, que bem o merecia, e estava tão seca que ardeu num instante e não botou fumo porque já tinha fumado tudo.
Eis aqui em que pararam estes três sócios, tudo por culpa da desavergonhada de uma gaveta. O patrão, atendendo ao bem que o tinha servido o seu caixeiro, pô-lo logo na rua. Este pediu-lhe uma atestação do seu zelo que ele não lhe quis passar, respondendo-lhe que era notório, que não precisava de mais testemunha autêntica. Ainda se achava com a sua meia dúzia de peças e algumas dividazinhas que lhe deviam de fazendas que tinha dado da loja e estavam bem paradas. Mas nunca o tinha querido dizer ao patrão pelo não afligir e guardou esta aflição para si, o que não deixou de lhe valer.
Além disto, ele achava-se com disposições e jeito para pregar a sua meia dúzia de calotes e tratou de negociar neste género, mas sem sócio, só por sua conta e muito principalmente por conta daqueles a quem os pregasse. Continuou na mesma vida, à excepção de ir tirar dinheiro à gaveta. Pois, como já disse, e vossas mercês estarão lembrados, morreu queimada para que não houvesse mais notícias de tão mau indivíduo. O primeiro a quem pregou o calote foi a si próprio porque em poucos tempos se viu descalço.
Casou, por fim, visto estar tão bem estabelecido e houve uma função na boda, que nem que ele tivesse vindo das Índias a porto e salvamento com duzentos mil cruzados de seu. Pouco durou este alegrão porque barriga vazia não tem alegria. A Senhora sabia dançar mas depressa se aborreceu da prenda. Dançavam-lhe as tripas na barriga, com fome. Ele também pouco caso fez da casa e poucas vezes lá ia, de forma que o senhorio, vendo que ela lhes não era precisa, botou-os fora e por não lhes pôr o fato na rua, meteu-lho no Depósito. Levou tudo um galego, por um nada, que não tinha reserva de bens. A mulher foi servir e ele, que não servia para nada, deixou-se andar por aí até que soube que um Ministro tinha a incumbência de mandar alguns sujeitos capazes para Moçambique. Não tinha empenho para ele, mas nisso foi tolo, porque se lhe falasse e lhe contasse a sua vida e merecimentos, do pé para a mão era logo servido. Porém, ele pecava em ser vergonhoso, até que uma ocasião quis ver o que tinha dentro uma carteira de um amigo: achou-lhe duzentos mil réis. Naquela ocasião estava precisado e o amigo tinha mais dinheiro fora aquele. Receou que, se lhe pedisse, dissesse que não, porque era tentado com esta palavra. Agarrou no dinheiro, deixando-lhe a canteira. Houve testemunhas desta galantaria que, por felicidade, foram ter à mão do juiz que tinha a incumbência, na qual ele desejava e merecia ser empregado. O que conseguiu em duas palhetadas. E eu, sem me poder escapulir, fui de gargalheira e muito à cortesia, para o navio. O que me custou muito porque nunca tive tenção de embarcar. Mas, enfim, isto foi com tanta pressa que em menos de duas horas me vi no mar largo. Ah, senhores, quando perdi a terra de vista não sei como não morri de pasmo! O caixeiro tinha bojo para tudo. Apenas o soltaram, entrou a pensar no modo como melhor daria conta da nova ocupação em que o empregavam. E eu é que não pude mais nem cuidar no sustento.
A lembrança de perder a Pátria; o andar sobre as águas do mar onde há tanto risco; a morada de uma cabeça que apenas tinha o nome de cabeça; tudo isto me lançou em tanta melancolia que desejava morrer. Depois, para acabar de me mortificar, entra o enjoo comigo e um fastio mortal. Meu patrão entrou no mesmo estado, ambos estivemos às portas da morte. E então é que nos lembrávamos, ele do que tinha feito e eu do mal que fiz em passar para a sua cabeça. Tomámos ânimo, porém, e eu entrei na esperança de que, chegando ao porto para onde íamos, poderia ficar em alguma cabeça daquelas que tornassem no navio e desta forma tornar à minha Pátria. Com esta idéia fui passando mais alegre. O meu tratante melhorou. Meteu-se com um marujo que tinha trinta viagens no corpo. Vejam que tal seria o melro! Era um assombro. Passados alguns tempos, tanta amizade tomaram que dormiam ambos juntos. E nesta cabeça, apesar de não ser muito boa, é que fiz tenção de me fazer na volta. Chegámos, depois de muito incómodo, à praia desejada, mas não saltámos nesse dia em terra. E, por minha desgraça, nessa noite apartaram os presos, ficando por consequência meu patrão sem dormir com aquela cabeça que eu tinha escolhido para a minha passagem. Passei toda a noite aflito e ansiado. No outro dia, pela manhã, desembarcaram os incumbidos para irem para terra. Mas o meu marujo teve licença para acompanhar o seu amigo preso.
Chegámos à terra, entraram a despedir-se e sou obrigado a dizer: o caixeiro tinha o coração mais duro que o marujo. Nem uma lágrima botou e o marujo caíam-lhe pelas barbas abaixo. Salta-me nele aos abraços que não havia quem o apartasse. Eu aproveitei-me desta ocasião e fiquei na cabeça do marujo que tornando para bordo comigo, eu logo por amor do frio, apesar de ter barrete, lhe fiz a
A vida de marinheiro é trabalhosa. Mas a de piolho em cabeça de marinheiro é muito mais. Em fazendo sol, ou não havendo que fazer, já se estavam a catar uns aos outros. O meu marujo não botava pós mas dava azeite no cabelo em tanta quantidade que, no que respeita a passadio, não tenho que me queixar. O pior eram as chuvas, que ele apanhava a pé firme. As vezes vinha para baixo que parecia um frango ensopado e eu, piolho de molho. Mas apenas se deitava, dormia de forma que, às vezes, para acordar, eram-lhe precisas duas arrochadas de quem o governava, o que lhe sucedia muitas vezes, porque o tal, que lhas dava, era muito liberal. Eu era só quando dormia porque de dia estava num contínuo medo de ser apanhado.
O tal marujo tinha duas mortes às costas, mas não lhe faziam peso nenhum. Andava muito direito com elas. Vejam que escrúpulo teria ele para matar um piolho que lhe mordia e chuchava o sangue, se era capaz de matar um homem por divertimento, quanto mais quem o ofendia. Chamavam-lhe o Catita, de alcunha, e era chibante. Não tinham muitas graças com ele. Em pondo a mão na ilharga, o pé adiante, o chapéu entre os olhos e dizendo um não quero, arreda tudo para trás, fugia-lhe tudo diante. Tomava a sua bebedeira como um homem e, depois de variado, era preciso cuidado com ele, que era capaz de arremeter com a figura da proa. E sabia bem do ofício.
Uma noite estava ele ao leme, veio um temporal, inchou o mar que parecia um hidrópico. Grita-lhe o mestre: arriba. E foi ele, orçou. Vimo-nos em papos-de-aranha, mas não foi coisa de cuidado. Esteve tudo para morrer afogado.
Contava uma história de um casamento que lhe quiseram fazer em pequeno, que era da gente escangalhar-se com riso. Tinha muita graça, muito dito bom, sabia muita história. E uma que ele contava de umas arengas que tinha tido com um defunto que, ao entrar para a cova, não quis encolher os pés e não cabia ao comprido! Chegou-lhe a dizer com todo o desembaraço que ou se encolhia ou o matava outra vez. E era capaz disso. O defunto não havia ter graças com ele.
Uma ocasião furtou-lhe um companheiro o biscoito, o vinho e a água daquele dia. Foi ele, pediu-lho. O outro teimou que o não tinha furtado. O tal era capaz de matar um por dá cá aquela palha. Mas cá o meu era capaz de matar um cento por dá cá aquela aresta. Os outros entram a dizer-lhe que se fosse queixar. — Para que?, respondeu o meu, se eu posso amanhã furtar o mesmo, ou mais. Era assim, pagava-se pelas suas mãos. Não era de cerimónias. Era já tão conhecido no navio que, faltando alguma coisa, logo se punha a boca nele e todos lhe chamavam pelo seu nome.
Uma tigelada feita por ele, era comer e gritar por mais. E então sabia gastar dinheiro como qualquer, fosse seu ou fosse alheio. Era coisa em que ele não reparava. Deram-lhe uma pouca de fazenda para vender e repartir os ganhos que houvesse. Eu, deu-me vontade de rir quando o dono se despediu dele, não se despedir da fazenda. Vendeu-a logo pelo primeiro dinheiro que lhe deram e não houve parente pobre. E sabem o que respondeu quando lhe perguntaram por ela? — Enjoou, não chegou a acabar a viagem. Outra que lhe sucedeu, estando ele bêbado. Quis fazer um cigarro. Saca um bilhete de cinco mil réis, rasga metade, faz o cigarro, acende-o e começa a fumar. No outro dia, que estava desempoeirado da cabeça, acha só metade do bilhete, arde, cuida que é peça que lhe pregaram. Mas os outros o capacitaram que o tinha rasgado para cachimbar. Então ele ficou muito senhor de si e disse: — Os outros não fumam o seu dinheiro? Pois eu fumei o meu. Então que tem? Tinha alma! Ainda que, às vezes, era muito desalmado. Só uma única vez o vi fazer uma acção de caridade, salvando um fôlego vivo que tinha caído ao mar, um peru. Disse o Mestre: — Quem o for buscar, é seu. Fazia bom tempo, despe-se, bota-se a nado, agarra o peru com os dentes e teve o gosto de o salvar. Mas apenas chegou a bordo, matou-o logo, antes que desinchasse, dizia ele, que estava assim mais gordo e deu com ele abaixo ainda engrolado. Numa ocasião fez de dentista com um camarada, botou-lhe com um murrozinho dois dentes fora. E quando o quiseram castigar desculpava-se que lhe tinha tocado apenas com dois dedinhos, que não julgava fazer-lhe tanto mal.
Era um bom moço no seu tanto de marujo! Por um quartilho de vinho que lhe dessem, dava dois bofetões em qualquer pessoa que lhe apontassem. Facada é que era mais cara. Tinha adquirido, com a sua agência, quarenta e tantos pares de fivelas de prata que vendeu pelo peso. Pelo custo é que nunca quis vender nenhuma, que a vendê-las uma pessoa lhe tomava logo todas.
E outra ocasião em que ele estava também bêbado e entra com outro a dizer-lhe: — Dou-te dez mil réis por cada piolho que me achares, contanto que eu é que os hei-de matar. Nunca, nunca me vi em tanto perigo. Se me sangrassem naquela ocasião, não botava pinga de sangue. E então não tive tempo para nada. No mesmo instante se lhe bota o outro à cabeça. Mas um, que estava à ilharga, que era piolhoso, disse-lhe ao ouvido: — Eu tos dou para ele os matar. Então, o que catava não lhe importava a cabeça, fazia que mexia e quando o outro achava algum, dava-lhe de olho. O tratante agarrava nele e dava-o ao outro para o matar e assim lhe sacou algumas quinhentas moedas de dez réis. Era para ver, quando ele se levantou da catadela, como ele estava consolado, dizendo: — Estou livre desta comichão. Tinha a cabeça perdida com piolhos. E mais de oito dias não pôs mão na cabeça a coçar-se. O que pode a imaginação, ou a boa-fé em que a gente está com qualquer coisa, ou com aqueles que nos enganam! Por isso é bom desconfiar de tudo.
Assim fui passando a suspirar pela hora em que me visse em terra firme. E desde então fiquei sempre desconfiado que o tal inventor das casinhas que andam sobre a água não era boa peça ou, ao menos, não era muito amigo dos outros homens. Safa com a tal invenção! Antes andar pelo ar, que, ao menos, se se quebrar uma perna anda-se com ela assim, ou põe-se-lhe uma de pau. Mas o tal colchãozinho, que é tão mole que engole a gente, e dá com ela em vaza-barris! Safa, torno a dizer, cá para a terra onde anda a raposa!
Uma madrugada ouvi eu muita gritaria, mas não pude saber o que era. Porque o meu patrão em não estando de serviço, nada o desacomodava, ainda que lhe dissessem que ia ao fundo. Acordou lá quando lhe pareceu e ele quis. E eu num frenesi por saber o motivo daquele alvoroço. Até que ouvi dizer que se avistava terra.
Deu-me logo um desmaio de contentamento. E o que me valeu foi estar borrifando e o meu marujo ir acima sem chapéu para ver terra. Aqueles borrifos fizeram-me tornar a mim e nunca tive um igual contentamento. Pulava-me o coração no corpo. E a única coisa que me fez cair em tristeza, foi a lembrança da cabeça em que eu iria cair. Pois que os conhecidos todos do meu marujo haviam de ser da mesma enxárcia. Deixei tudo ao tempo.
A terra ia-se aproximando ou, para melhor dizer, nós íamo-nos aproximando da terra. Veio um escaler a bordo onde vinha um homem de meia-idade, cabelo seu, as pernas alguma coisa inchadas. Procurava pelo dono do navio, o qual veio logo ao portaló. Muita festa para a festa. Boa viagem. Suba. Sim, senhor. Mas o homem não podia. Mandou-se abaixo dois marujos, que fossem reforçados e na escolha foi incluído o meu, que fez de chibante, na forma do seu costume. Agarrou no homem, uniu-o a si, e apresentou com ele em cima. Eu não me descuidei um momento desde que se chegou a ele e tratei de mudar de morada mesmo sem saber para onde ia, mas só com o interesse de ir para terra, no que demorou pouco o meu gotoso. Porque era esta a sua moléstia. Desceu outra vez encostado ao mesmo e eu a fugir para o lado oposto, parecendo-me que ele me conhecia e tornava à mesma cabeça de que tinha escapado. Viemos para a terra e eu para casa do meu novo senhorio, para lhe fazer também a sua Carapuça.
Il est plus facile de tromper le monde, que de le détromper.
Lettres de Lord Chesterfield à son Fils.
Tenho decidido fazer um prólogo no início de cada tomo desta minha tradução. Alguns julgarão isto loucura. Mas deixa-los julgar. Se repararem bem no primeiro folheto, eu lá lhe disse que o fim era encher papel. Logo que é este o fim, o caso está em ir escrevendo a torto e a direito. E eu sou como algumas mulheres de venda que o primeiro mês, enquanto estão envergonhadas, respondem bem aos compradores, mas em se avezando, cada resposta é uma carretilha. Assim estou eu. Os primeiros quatro folhetos fizeram boa viagem, perdi o medo ao mar, adeus minhas encomendas. Hão-de me aturar tudo quanto me vier à testa, tudo hei-de dizer. Só hei-de ter muito cuidado (e mesmo é do meu génio) não escandalizar ninguém. Hei-de ir pondo as minhas carapuças mas não quero conhecer os fregueses e antes hei-de perder meia dúzia delas, que talhá-las para nenhum indivíduo em particular. Só tenho a encomenda de uma dúzia para cabeça certa, que me está custando bem o fazê-las, e são todas para mim; que eu não sou daqueles, —com bem o digamos—, que tenha só um defeito: tenho uma dúzia. Isto é, meus conhecidos. Sabe Deus se vossas mercês me descobrirão uma grosa. Também, quer descubram quer não, se vossas mercês tiverem boa língua hão-de calar-se e ter dó de mim. E se a não tiverem, ainda que lho peça, é perder o meu tempo. Antes me levantarão por obséquio algum testemunho, que isso quem tem má língua trata essas coisas de bagatelas; um testemunho que ponha um homem no estado de opositor à forca; uma mentira que tira os bens à gente e outras frioleiras destas, não valem nada nem são coisas de suposição. Quem perde lá o sono com estas ninharias? Isto não é coisa que faça mal a ninguém, nem dá nem tira, é o mesmo que prata quebrada e roupa branca. Com isso se hão-de achar, vão vivendo que não vão mal. Não percam o costume que alguém lhes dará os agradecimentos. O ter má língua é o mesmo que andar a cavalo por ofício: mais dia menos dia, sempre dá queda ou leva coice. Ele, também, se fossem todos de boa língua era urna desordem! Nem havia nada que dizer! Até mesmo não se precisava fala, para quê? Para dizer, Fulano é honrado? Isso pelas acções se conhecia. Não senhor, bom é que hajam destas tesourinhas que se vão amolando no corpo da gente... Mas que tem isto com o Prólogo? Ora eu sempre sou bem miserável a escrever. Em me descuidando, estou com a minha favorita. Adiante. E falo dos que têm má língua como se eu a tivera boa! Ninguém se conhece. Essa é a verdade. Vamos a começar outra vez o Prólogo.
Meus senhores, altos e baixos, gordos e magros, — creio que estão todos incluídos e cada um tome o lugar que quiser. Aqui não há sol nem sombra, todos hão-de ver a função pelo mesmo preço e não há-de haver portas travessas. Não tenham medo que ninguém entra de graça. Aqui não há sócios. Há um só a ganhar. Que o ganho também não há-de dar para carro triunfante. A festa há-de ser pobre... E que lhe parecem esta? Aqui outra vez desviado do Prólogo! Não importa, torno a começar. Suponham suas mercês que é o Cavaleiro que está fazendo as cortesias aos assinantes e o cavalo não quer recuar (que eu também não tenho grande lição de picaria). O cavalo é aprendiz e talvez que muitos com quem eu fale, de vossas mercês, não sejam Mestres. Agora sim, vou-me ao Prólogo como gato a bofes. Prólogo. Senhores críticos, eu julgo que vossas mercês estão de acordo comigo. Vossas mercês certamente dizem: — Não presta para nada a obra. Quem meteu na cabeça a este bolas falar diante de gente, falar em público? Ele não sabe português, não tem erudição, não tem engenho, enfada, repete, fusta &c. Eu estou também pelo mesmo e o mesmo tenho dito a mim muitas vezes. Perdem o seu tempo se escreverem sobre essa matéria, e se se resolverem a fazê-lo, desde já lhes louvo a acção. Fazem muito bem. Queira Deus que pegue e tenha boa saída. Vossas mercês são muito mais capazes, têm muito mais juízo. Enfim, têm tudo quanto vossas mercês quiserem de mais e eu ficarei com tudo de menos que os Senhores ordenarem, contanto que não me peçam dinheiro. Que isso ainda ninguém levou à boca de mim, não só porque o não tenho mas ainda por outras circunstâncias maiores.
Ora eu estava com vontade de dar um conselho, por dar alguma coisa, mas tenho medo que me venham ao fato. Mas, enfim, vai. Não é meu. É de um livro impresso que tem letra redonda. Não o direi bem ao pé da letra porque tenho pouca memória. Se faltas de memória fossem erros de entendimento, aquele que fosse mais asno do que havia de saber muito. Está na tinta. Se ele fosse como cem, eu havia de ser como mil. Mas deixemo-nos de histórias e vamos ao que importa e ao tal conselho.
Não vou falar a respeito desta minha obra, que é coisa tão pequena, que só merece porem-lhe os olhos de compaixão. É uma coisa tão pobre... Mas que posso eu mais aniquilá-la e mostrar-lhe a sua insuficiência? Tendo-lhe chamado pobre, basta. Este nome pobre é pior que o de cão danado. Todo o mundo lhe foge e ninguém lhe dá nada. E aos cães alguns lhes põem água para se certificarem. Mas ao pobre não há dúvida, logo que se diz pobre é danado perfeito, nome sagrado para ninguém lhe bulir, mas infeliz para ser socorrido. Eu achava razão a um Médico, lá da Ásia, que em lhe caindo pobre nas unhas, requiescat in pace. E dizia ele que era um benefício que fazia ao mundo e ao pobre, concebido desta forma: — O pobre aflige o mundo; o mundo é o tirano, do pobre. Quem mata a este salva a ambos. Ora esperem, meti-me a Missionário. Vejam que tem isto com o conselho que eu ia dar. Vou a isso.
Para ser Poeta é preciso ter nascido Poeta, é preciso génio. Para ser Crítico é preciso gosto, é preciso ter nascido Crítico. Os talentos de um e de outro são um dom do Céu. Há muitos poetas que têm cabedal mas não são capazes para fazer obra alguma. Agora, quando se une o génio e o cabedal, então se vê o primor da Arte e da Natureza. Assim é o Crítico. Para o ser, precisa de olhar muito para si, ver se tem gosto e se tem cabedal para a obra. E olhe que aqui não lhe vale crédito. Há-de mostrar que o cabedal é seu e adquirido pelo seu trabalho. Aqui não vale deixa de parentes, nem testamentaria, nem roubo, ainda que mate o roubado. Hão-de o apanhar com o furto nas mãos e dizerem-lhe quem é o dono. Com que, senhor Crítico, tome o meu conselho. Faça exame de consciência, recolha-se a si mesmo, indague os seus teres, meça bem a extensão do seu génio, do seu gosto, das suas luzes. Sonde bem até onde chegam os seus conhecimentos, ponha-lhe uma baliza e não dê um só passo adiante. Olhe que têm havido muitos que tendo passado algum tempo por instruídos, por quererem dar um pique ao passo adiante do que sabem, têm acabado bem miseravelmente, e até perdido o que tinham adquirido.
A toleima pega logo no fim do juízo e, senão, repare vossa mercê que eu lhe faço um exemplo não para que melhor o entenda, mas para melhor me explicar. Suponha vossa mercê que vosssa mercê tem juízo com o valor de trinta, e que até este número ninguém tem que lhe dizer. Em tudo acerta, tudo conclui, tudo arranja, e, enfim, tem merecido a atenção do público. Pois apesar de tudo isso, em vossa mercê querendo ser como trinta e um, começa logo a toleima e no instante se lha conhece porque passou o termo e um só fez esta desordem toda. E aqui tem vossa mercê como um discreto até trinta, começa a ser tolo se quer ser trinta e um.
A natureza prescreveu justos limites a todas as coisas. Se vossa mercê sabe o Abecedário até à letra M, não se meta, nem tenha inveja àquele que o sabe até à letra P. Olhe para trás e console-se, que muitos não passam do A, e não queira que a este A lhe juntem mais três letras e lho digam na cara.
Venho a concluir que no criticar é preciso três coisas: gosto, juízo e cabedal. E pode-se-lhe juntar sem nojo a quarta, a de conhecer bem a matéria do que vai criticar. Esta minha obra não está nessas circunstâncias. Coitadinha, ela não vale nada, não merece a pena de algum sábio a ler senão por um simples passatempo, sem lhe importar os erros, apenas gostando do génio. Suponham que é uma donzela pobre, mas feia, que anda pedindo esmola para se amparar, que, se alguém lha dá é com a mão para trás e cara para banda, louvando-lhe a acção e chamando-lhe consigo enorme. Assim é esta obra. É donzela, é primogénita, é desamparada, é feia mas, comunicada, não deixa de ter sua graça. Eu tenho visto em letra redonda muitas piores, e terem muito boa saída sem haver por onde entrar com elas. Mas muitas vezes têm um padrinho que as ajuda, um Compadre que lhes dá a mão, um nome alheio, &c. Esta minha vai moura, não leva padrinho, nem nome, simplesmente papel e letra redonda. Comprem-na se a quiserem comprar. Eu não a hei-de meter à cara de ninguém, nem gabá-la. Porque eu não a pretendo casar e o que aqui está, no odre veio. Se lhe serve, dá-se o troco do dinheiro. Se não serve, saúde. Se vossa mercê pode passar seta ela, eu também passarei sem vossa mercê e há muita gente que sabe ler e sabe muita letra. Eu tenho um criado de servir, Galego de nação e génio, que veio há pouco da terra e dou-lhe menos um cruzado cada mês por lhe deixar ler a Gazeta e explicar-lhe o que ele me quer perguntar a respeito dela. E o maroto, às vezes, tem que perguntar as suas duas horas. Com que, sim senhor, há já quem leia. Não hei-de sentir muita falta com a falta de vossa mercê.
Outra coisa tenho eu mais a dizer: Senhor ou Senhores Críticos, que não sejam vossas mercês daqueles que dizem mal de uma obra de manhã e a gabam de tarde. E alguns que nem a lêem e decidem dela! Outros que apenas a começam, botam-na para a banda e avaliam logo do seu merecimento! Olhem vossas mercês que o bom Médico não se contenta só com o tomar o pulso. Manda botar a língua de fora, apalpa, pergunta se dorme bem de ambos os lados, se teve bostelhas na cabeça, em pequeno, e lhas recolheram para dentro. E ainda assim, não decide. Faz as suas experiências, dá algum remédio, deixa passar vinte e quatro horas e reconhece a moléstia. Com que façam vossas mercês o mesmo ainda que vejam um nome ridículo na obra e um princípio baixo e jocoso. Não a desprezem por isto. Demóstenes também ria, e por essa mesma boca de riso saíam as orações as mais eloquentes. Não desprezem vossas mercês a obra do pobre, olhem que debaixo de uma ruim capa se encontra um bom bebedor. Pode ser que o Leitor seja um sábio e encontre numa obra de nada o que ignora. Pode ser que o Leitor seja um verdadeiro homem de bem, e encontre numa frioleira o modo de se livrar de um engano em que caíra pelo seu bom e honrado coração; pode ser que o Leitor seja um perverso e que, envergonhando-se do que lê, mude os costumes; e que uma simples, e ao parecer insignificante leitura, torne ao seu dever um cidadão que já estava contado de menos na Pátria. Sim senhores, é preciso cuidado no tratar das coisas que, não parecendo nada, são, às vezes, de muita monta. Tudo no mundo tem dois lados: Alexandre bebia vinho, embriagava-se, mas ninguém lhe chamou senão o Herói da Ásia e o Conquistador do Mundo. Vejam que dois lados tão opostos. Uma obra pode ser cheia de galantarias e extravagâncias que provoquem o riso e, ao mesmo tempo, ser cheia de lição. A mordidela de Tarântula, que é mortal, cura-se tocando o fandango. O remédio amargoso, que é dado em massa, disfarça-se embrulhado em oiro e o doente não lhe desagrada ver o que se mastigasse o afligiria muito e cura muitas vezes a moléstia sem sentir a repugnância do remédio. Igualmente o jocoso quando vai servir de embrulho à verdade, que se diz, que muitas vezes aproveita, rindo-se e gostando o que lê. Nada mais de conselhos a este respeito, façam lá o que quiserem. Vamos a falar de outra matéria, em que também entra um conselho que lhes quero dar, e vem a ser:
Que vossas mercês todos compreendam esta obra porquanto não lhes fazendo isto mal nenhum, me faz a mim muito bem e animam-me para eu ir ocupando o tempo, pois graças a Deus não tenho muito que fazer nem muita vontade (que eu tenho alguma propensão para a preguiça). Mas se eu entrar a ver dinheiro pelo meu trabalho, não sou tão tolo que não continue. Como até agora, por mais que trabalhe, não me têm dado nem os agradecimentos, que gosto hei-de tomar ao trabalho? Enfim, comprem vossas mercês que eu quero fazer a experiência, se a minha preguiça é natural ou desconsolação e eu lhes darei parte do sucesso. Mas creio que se me vejo com dinheiro sou capaz de correr monte e
Vale.
O meu gotoso não passava mal, tomando por desculpa a gota, ainda que não lhe passasse dos pés. A única coisa com que a curava era com o cabelo do mesmo cão. Gota e mais gota. A gota que tomava por cima, como era mais que a gota que tinha por baixo, fazia aquela peso sobre esta e não a deixava subir para cima daquela. Isto é uma razão clara, que qualquer a entende, por isso não me canso mais em explicá-la. Ali pelo mês de Março é quando o tosquiavam mais as dores, que na verdade eram insofríveis. Dava às vezes cada berro que parecia um boi no matadouro. Eu, na verdade, tinha dó dele e ele também o tinha de si. Sempre estava de dieta, não comia senão carne e peixe. Tinha o ofício de Inquiridor, porque tinha dois criados a quem sempre estava perguntando quanto se passava na vizinhança. E dizia ele que era a única coisa com que disfarçava as dores (era remédio simpático). Pessoa que o ia visitar, vinha cansado da inquirição que ele lhe fazia. Muitos desejavam já de boa vontade que a gota lhe chegasse à língua, mas disso havia poucas esperanças, porque a de baixo, como já disse, estava embaraçada de subir, e a que ia pela boca, ia com tanta velocidade e jeito que nem à língua chegava.
Tinha também uma fábrica de curtir e curtia dores como ninguém. Mas tinha pouca extracção. Uma Parteira é quem lhe comprava algumas lá para as suas freguesas quando as precisavam, e alguém que comprava para algum presente. Mas elas para isso não prestavam. Eram como as bichas más, que não pegam. Que a pegarem as tais dores, não havia ninguém a fazer melhor negócio do que ele. Que gosto não seria poder a gente enviar uma dor a um amigo ou a qualquer pessoa a quem fosse obrigado? Um estupor que fosse, quanto mais uma dor! Eu não sentia moléstia nenhuma, vivia muito à minha vontade. Estava como caseiro de quinta que é o verdadeiro dono. O meu gotoso não lhe importava a cabeça para nada e mesmo para nada lhe servia. Ele tinha outras coisas de muito mais interesse e cuidado. Um negócio em que ele andava metido, se o conseguisse tinha feito a sua fortuna. Era o de fazer pastéis de enxúndia de galinha e tinha morto, por amor disto, mais de mil e já tinha reduzido a enxúndia a nata. Andava vendo se fazia das penas manteiga e já as tinha também reduzido a leite. A coisa estava por um triz.
Era um grande Químico. Tinha feito de arféloa camurça e mandado vir, por sua conta, cem pipas de melaço para apanhar moscas, para cujo fim compôs um tratadinho do modo de as apanhar sem meter prego nem estopa. Também se não fora as dores que ele passava, era um dos homens mais cheios de coisas novas e boas. Já sabia o modo de pegar a gota em pano, que é das melhores coisas que têm aparecido neste género. Em ele morrendo, há-de ter muito valor, é mesmo um original. Mas de nada lhe serviu tanta habilidade. Uma noite foi atacado tão fortemente que o julguei morto. Ficou de cama muito tempo. Vinham alguns amigos diverti-lo, fazer-lhe companhia e jogar com ele.
Entre estes vinha um rapaz muito bem-feito e muito bem desempenado. Era-lhe obrigado e, diziam as más-línguas, havia de ser seu herdeiro. Mas era um jogador acérrimo, não podia estar sem jogar. O gotoso dava-lhe imensos conselhos e ele fazia-lhe mil protestos que todos lhe esqueciam mal que dali saía. Uma noite, indo cear com ele, chamou-o ao pé de si e entrou a tratá-lo de filho (que muitas línguas, como já disse, diziam que sim) e o amor que lhe mostrava dava-o bem a entender. Mas isso é questão, fosse ou não, sua alma, sua palma. Quem boa cama fizer, nela se deitará, nem isso tem coisa nenhuma com o que eu quero dizer. Se não chora o penitente, para que chora Fr. Tomás? E suponhamos que era seu filho? Deixá-lo ser. Que temos nós com isso ou que nos importa? Gastámos alguma coisa com a criação ou somos seus padrinhos para tomar conta na criação? Olhe que é forte história! Há gente que em tudo se mete. E a mãe, diziam não tinha maus bigodes. Mas, enfim, tivesse ou não tivesse, seja ou não seja seu filho, sei que o pôs ao pé da cama. E eu não estava para ficar com a gota porque, já disse, diziam que se pegava. E demais eu nunca tinha tido dores, nem de cabeça, e tinha andado sempre com as minhas pernas sem inchação. Safei-me para a cabeça do filho... torno com o filho, vejam! Que me importa a mim se é filho ou não! Safei-me para a cabeça do tal mocetão e pus-lhe a minha
Têm vossas mercês visto que eu tenho andado suficientemente por más cabeças. Mas como esta deste jogador, nenhuma. Esta era a quinta-essência das más cabeças. Não tinha tom nem som, nem esquerda nem direita, não se levava nem por bem nem por mal. Era uma confusão. Ninguém se entendia com ele, senão algum usurário. E ele não se entendia senão com algum que jogava.
O jogo era o seu comer, a sua moça, a sua quinta, o seu tudo. Não comia a tempo, não dormia a horas. Não cuidava em coisa nenhuma que lhe fosse útil. A sua família constava de um moço, um cão e eu.
Os dois primeiros, quando ele perdia, ficavam muito contentes. Mas eu é que o pagava porque entrava num frenesi e numa comichão que parecia doido. Eu estava sempre num contínuo susto, pois se me encontrava com alguma unha, tinha azar certo, apesar de não ser eu o que jogava. As avessas, o moço e o cão, que estavam alerta e apenas o viam entrar (lá por essa alta noite, já se sabe), fitavam os olhos nele, para conhecerem se tinha perdido. Que, a ser assim, tinham folgança certa que constava chegar o moço e perguntar-lhe. — Vossa mercê quer cear? Quero uma bala, era a resposta. Belo, dizia o moço consigo, temos ceia à fidalga. — Então quer que se esfrie ou que de novo acenda o lume para estar pronta quando vossa mercê quiser? — Não me deixarás, besta? Come-a, vai-te deitar e deixa-me. — Quer que lhe descalce as botas? — Não te irás com a breca diante de mim?
Ia-se o moço e o cão e mamavam a ceia do tolo. Daí a bocado tornava a saltar na cabeça com tanta força que eu julgava que a queria arrancar. Fechava-se a cena com um passo mui galante. Ia para o pé da cama, abria-a, chamava o cão (que lhe chamavam Noruega por ter vindo da América). Vinha o cão, acenava-lhe ele que saltasse para dentro da cama. Saltava o tal Noruega, abafava-o muito bem dizendo-lhe dorme, dorme. — Mereces mais dormir aí do que eu. Tu tens muito mais juízo, muito mais propósito, és muito mais honrado. Eu sou um desavergonhado, um tratante, um ridículo. Anda, dorme, dorme onde eu devia dormir. E isto afagando sempre o cão por cima da roupa e ele ia-se deitar sobre uns trapos onde o cão costumava dormir alguma noite em que ele não perdia. Eis aqui a função que tínhamos quase todas as noites, de que eu nada gostava pelos incómodos que passava. E porque até tinha dó dele. Porque é preciso advertir aos meus Leitores que, ainda que eu seja Piolho sou dotado de um bom coração, e ainda que fosse criado (sendo hoje do que vivo) a chuchar sangue, chucho quanto me basta para o meu sustento e não sou como muitos que por aí há, — e mais não são piolhos nem barbeiros —, que levam coiro e cabelo. Acordava de noite o meu pedaço de asno suspirando e sempre com a mão na cabeça e daí entrava a falar só consigo: — É muito, é muito! Dezoito azares sucessivos fiz com os dados na mão. Fui apontar à banca, pilhei dezasseis valetes na direita e aproveitei todos! Mas eu é que sou o tolo. Se sigo as damas, cairiam oito na esquerda e levava a banca à glória. Eu é que não sei jogar, não tenho que me queixar da minha infelicidade. Que tem a sorte com ser eu um asno? Encho-lhe o chorrilho e quando ele fazia azares, retirava o dinheiro. Eu não só sou infeliz, mas até venturoso. Não aproveito a ocasião. Que culpa têm os dados e as cartas disso? Mas não importa, eu tomarei emenda. Não hei-de perder mais que uma peça até quinto azar. Não hei-de arredar vintém. E sortes, ainda que façam um cento, não me hão-de levar mais que uma de três vinténs cada.
Eis aqui como o diabo, ou para melhor dizer, o vício, o enganava de novo. Levantava-se, acendia a luz, punha-se à banca com o copo na mão a jogar consigo só. Então estava galante. Sacudia o copo, botava os dados e dizia:
— Seis e cinco? Sorte. Não me pilha mais de três vinténs, não senhor. Cinco e dois? Outra de três. Seis e az? Mais três. Seis e cinco? Irra, é muito botar de sortes. Vai uma de doze. Quatro e três? É forte coisa, até ensaiando-me a brincar. Isto é sina, isto é fado, isto é uma bala que me atravesse.
Tornava a deitar-se o endemoninhado, mas sem sossego. Volta para aqui, mexidela para acolá, cabeça te valha e, ultimamente, apenas luzia o buraco, ei-lo levantado, e logo eu, o moço e o cão entravam numa roda-viva. Fazia duas e três cartas a mandar buscar dinheiro, que às vezes todas iam também para a direita, porque não vinha nem vintém. Apenas traziam em resposta, boas palavras como v. gr.:
Meu rico amigo do coração. Quanto ao dito custa-me não poder remeter-lhe o que me pede mas morreu-me minha avó ontem, para cujo enterro foi preciso pedir dinheiro hoje.
Muitas vezes tal avó não havia, nem morreu e quando morresse ia enterrar ao cemitério. Outra trazia em resposta:
Cordial amigo. Perdi ontem trinta peças de resto, que devo infalivelmente dar hoje, quando já não tenho nem a quem pregar uma, razão por que não posso passar por esta que Vossa Senhoria me quer pregar.
Tendo começado por cordial, acaba por Cicuta. Outro, que é mais verdadeiro, responde:
Como quer que lhe remeta mais dinheiro, se vossa mercê me tem faltado a tudo o que comigo tem ajustado? Mas que muito é que faltasse a mim, se a si mesmo já vai faltando.
Depois destas e doutras iguais respostas que são recebidas com dois bofetões no moço, dois pontapés no cão e quatro murros em mim, entra a passear a sua meia hora, esfregando a testa, como Médico que quer receitar, quando o doente está em perigo. É outra vez chamado o moço mas já com muito melhor modo do que fora despedido, apesar de que ele tem muitas dúvidas na vinda pelas tornas do costume. Mas, enfim, resolve-se, chega-se e depois de algumas palavras entre os dois, como:
— Vossa mercê para que me deu? Que culpa tenho eu do outro não lhe mandar dinheiro?
— Tens razão, anda cá, tem paciência, não sabia o que fazia &c. Vai-me a casa daquele esfolador, que empresta dinheiro sobre trastes, — dando, ao mesmo tempo, conselhos que se não botem a perder!, para que se empenham!, vossas mercês, para que gastam mais do que têm!, e outras orações, juntando também aquela de levar oito tostões por cada moeda contanto que o traste não esteja lá mais de um mês, e valha o tresdobro! —, leva-lhe este relógio de ouro que te empreste duas peças por oito dias, no fim dos quais, a não ires tirá-lo, o poderá vender mandando-me o resto, que há-de ser pouco ou nenhum. Que ele guarda-me tanto respeito que poucas vezes tem comigo demasias!
Parte o moço em continente, não se demora nada, porque o tal amigo é prontíssimo em dar dez sobre o valor de trinta, como já disse. Eis o meu jogador já de outro ar. Já não se lembra senão que vai ganhar e divertir-se. Dá oito vinténs ao moço para as despesas da casa porque ele nisso é muito económico e torna para o fadário muitas vezes sem almoçar. Os amigos estão à espera dele para o meterem na atafona. Tapam-lhe os olhos, põem-lhe a cabeçada e azorrague em cima e o toleirão sem perceber, nem doer-lhe. Se eu tivesse forças, eu, eu é que havia de lhe dar com um bom chicote. Enfim, acabada a tarefa torna para casa com a limpeza da véspera. Torna o moço a mamar a ceia, o cão a dormir na cama e o maruto com as mãos em cima de mim e comichão dobrada! Que tal é a vida para um pobre piolho que não é jogador nem tem vícios, nem outra coisa de que viva, nem outras quintas senão o pobre casco de uma cabeça e de uma cabeça tal como esta, que não sabe às quantas anda. Pois já lá vai o relógio mas, apesar disto tudo, nada de emenda, graças a Deus! Entra-se-lhe a meter na cabeça que tinha muita roupa branca e chama o moço para que lhe vá vender uma dúzia de camisas ainda em folha, para acudir àquele grande vexame em que está, de não ter dinheiro para o jogo. Que lá para comer e pagar dívidas, isso não tem maior pressa. O caso é acudir ao indispensável. O moço entra a grunhir, que não conhece adelo!, que será preciso fiador! O amo enraivece-se e o princípio da venda começa por dois bofetões. O moço larga a roupa, começa a fugir, bota a gritar, diz que lhe pague, e este que lhe pegue na roupa para lha ir vender. Por fim, voltam às pazes e vai o fato à rua e daí à feira da ladra onde é vendido por menos da avaliação, atendendo a não haver fiador e pode ser furtado. O que justamente é, pois que ainda não está pago e furtar por força ou por estratagema, creio eu que tudo é furtar, ainda que eu nisto não posso falar nada, pois não há tradição que nenhum da minha raça morresse enforcado por ladrão. E chuchar sangue não sei que seja crime, que eu não mato ninguém para lho tirar e tenho visto muitos matarem um porco, com todo o vagar, para melhor lhe sacarem o sangue só porque gostam de chouriços. Numa palavra, cada um no que foi criado. O cavalo come cevada, o pombo ervilhaca, o passarinho, alpista; o piolho chucha sangue &c. E uma vez que se vive é preciso que se sustente, contanto que eu, para me sustentar melhor, não seja preciso que morram seis à fome, não senhor. O seu a seu dono, vivamos todos, cada um com o que lhe pertence. E sempre eu a embaraçar-me com coisas que não vêm ao caso! Tomara perder este maldito costume! Mas tarde será, tomei esta manha de minha mãe que, para dizer "fulano é mau" dizia primeiro mal do seu Avô e seguia até encalhar nele.
Enfim, vinha o dinheiro do fato que tendo custado cinco moedas ficava reduzido a seis mil réis. O que são os tempos! Comia-se alguma coisa e, untando-se de novo o meu jogador com esta pequena parcela, transformava-se em lobisomem e tornava para o fado que muito pouco tempo durava. Pois já se sabe que, em gastando o azeite, apaga-se a candeia por maior que seja a torcida. Tal sucedia ao meu fulano, que ainda que a vontade de jogar fosse um Gigante, o dinheiro era um Pigmeu. Tornava a casa e, então, a sua maior pena era já não ter ao menos com que comprasse uma corda para se enforcar, de que eu seria, com boa vontade, o carrasco. Porque matar um jogador é o mesmo que matar um lobo e até se lhe devia dar quatro mil réis pela cabeça. Sim senhor, o vício do jogo é o vício que abrange em si os outros vícios. E eu o provo. O ser ladrão é mau, mas é ser ladrão só; ser matador ainda é pior, mas bem pode ser um homem matador e não ser capaz de ser ladrão; ser mentiroso, ninguém se fia nele e a perda é só sua; ser bêbado é um vício alegre e nessa ocasião se podem fazer mil coisas boas. Um bêbado entusiasma-se às vezes num herói, umas vezes é liberal, outras vezes valente, algumas Poeta e quase sempre engraçado &c., mas o jogador é um animal que começa logo por fazer mal a si. Gasta o que tem, pede o que não pode pagar, furta quando se lhe acabam esses dois meios e está pronto para toda a qualidade de má acção só para ter dinheiro e encher o vício, o vício que reúne em si todos os outros. Que tal o divertimento? Chicote e mais chicote. E eu outra vez a encalhar no diabo da murmuração. Ora protesto que não me hei-de chegar mais à costa, hei-de me pôr ao largo que nem sequer hei-de avistar terra.
Este pobre jogador chegou ao ponto de andar descalço. Ocupava-se em fazer alguns recados e quando esses produziam algum vintém, imediatamente o ia jogar. Eu andava tão desconsolado que, contra minha vontade, passei para a cabeça de um Galego, de uns poucos que viviam na mesma casa com o tal meu tareco em cuja cabeça eu era o único morador, pois até os mesmos piolhos o tinham deixado. Uma noite de luar em que dormiam, fiz esta passagem e nela verão a
Se eu sei que o Galego era de canga eu não ia à tal cabeça por coisa nenhuma. Porque eu sempre fui muito tentado com a cova-do-ladrão, o que aqui não podia fazer senão de noite, pois de dia era um lugar de muito risco para amor do chouriço. E, demais a mais, o tal cuidava na cabeça e não deixava de ser pressentido. E, então, nunca se embebedava, e até era impossível, porque ele bebia o seu almude sem tirar o chapéu e um quartilho, que bebesse de água, já estava doente. Mas em toda a sua vida só uma única vez o esteve. Era muito amigo de vinho, sem o qual nada fazia. Quando veio da terra, tinha-lhe dito o pai que nada fizesse sem lhe pagarem, que tivesse cuidado em o não enganarem. E tomou tão bem a lição que, na vinda, tendo apenas oito anos, encontrando um homem a cavalo que teve dó dele pelo ver a pé, e tão criança, perguntando-lhe para onde ia e respondendo-lhe que para Lisboa, lhe disse: — Queres tu vir a cavalo comigo? — Sim senhor, lhe respondeu ele, muito contente. — Mas vossa mercê quanto me dá? E como o homem teimou em lhe não dar nada, pois que bastante era o benefício que lhe fazia, ele também teimou e antes quis vir a pé que a cavalo, não ganhando nada. Daqui podem conjecturar se teria dinheiro ou não. As suas funções consistiam em vinho e era um dos maiores devotos deste licor. Nunca quis amo certo; quem sucedia, quem pagava mais e antes queria três vinténs que meio tostão. Por dez réis deixava um freguês. Comprava uma ração a um donato por meia moeda por mês e comiam três dela. Quando eu lhe passei para a cabeça, tinha ele comprado fato novo e cama, tinha cortado o cabelo e era a segunda vez que fazia a barba. Andava trabalhando na obra de umas polainas que esperava acabar dentro de um ano e que eram as mais historiadas que eu tenho visto. Tinha já as suas quatro camisas e, mandando para a terra dinheiro por três vezes, estava-se aprontando para lá ir só para o fim de dar uma maçada na mulher por ter emprestado a burra a um primo para a jornada de uma légua. Acabado este negócio, voltava. O que lhe dava tanto cuidado, — que muito pouco dormia —, na consideração de que o andava ganhando e mourejando para o primo lá lhe montar na burra. Um amigo é que foi causa disto, que lhe veio meter estas onzonas na cabeça. Nunca ninguém lhe pilhou um recado de graça, ainda que fosse freguês de ano. Só uma única vez lhe vi perder quinze réis ao pilha e, vinte e cinco ao truque e dois vinténs que botou de sortes, e por um és-não-és que não se enforca. O que lhe valeu foi não ter corda de graça. Pediam-lhe oito vinténs por uma cordinha que não era suficiente. Deixou-se disso. Comprou um pandeiro por trinta réis e era o seu divertimento. Mas não tocava diante dos amigos, tangia sozinho e dizia a isso: — Se se querem divertir, que gastem, que também eu fiz o mesmo.
No que ele andava com muito gosto era em comprar um relógio e andava no ajuste de um que lho davam por três mil e duzentos. Mas era um relógio muito criança, ainda não andava, só se andassem com ele. E já prometia três mil réis e deu arrancos quando os prometeu, porque reflectia: — Com três mil réis compro eu uma quinta com sua estrebaria e tenho quinta e casa. Mas o relógio era só para dar figas aos da sua freguesia, porque só o Abade e um tal Alonso é que o tinham. Eu andava com muito medo da tal ida à terra e andava fazendo todas as diligências para me safar. Mas não era possível pilhar ocasião porque, na tal casa, aonde assistia, não havia senão companheiros do mesmo lote e ofício e o tal tratante do jogador. Mas lá a essa cabeça não tornava eu nem que me matassem. Se eu lhe tinha um ódio mortal! Enfim, nesta espera levei um bom par de dias sempre à espreita de uma nova cabeça, sem ser possível encontrá-la, e a jornada cada vez mais a aproximar-se, de forma que eu já tinha botado o coração à larga e resolvido de ir até à Galiza. Neste tempo recebeu o Galego uma carta da terra em que lhe pediam que levasse um freio para a burra, umas campainhas para os bois e alguns pregos para segurar tacões. Entra-me o amigo com estas compras e trava-se de amizade com um ferro-velho que também era muito boa vasilha. Era ferro-velho de ofício; era velho de idade e sabia-lhe a boca a ferro velho. Entre as compras e os beberes fiz eu a minha passagem, e com ela a minha
Não desgostei desta vida e não é tão pobre como mostra o cabedal. Não faz vista mas é sólida. É negócio de seis por cento. O tal ferrozinho velho transforma-se em ouro e prata muito nova. Um lugar de ferro-velho, que não parece nada, é uma coisa de muita dependência e de muitos conhecimentos e amizades. Um negócio destes, para ser perfeito, precisa conhecer tudo que é ratoneiro ordinário e tem muita mecânica que não se aprende facilmente. É preciso teoria, prática, génio e uns grandes conhecimentos. É um ofício que compra a ferramenta de todos os ofícios. Ora já se vê que é preciso saber-lhe os nomes, a serventia, etc. O que não precisa é saber-lhe preço, porque isso é tarifa. O que custa dez réis, vende-se por três vinténs. É do Regimento.
Outra regra geral: toda a fazenda que se compra este ano é para vender para o que vem. Esta prevenção é porque se for alguma coisa furtada, ninguém tem a pachorra de andar dois anos a fio a ver se a encontra e se a chega a ver, passado um ano, ou não lhe lembra ou não a conhece e passa o roubo impunemente. Porque o tempo tudo consome. O tal, em cuja cabeça eu estava, tinha caixotes e caixotes de pregos que lhe vendiam, sobejos de obras, já se sabe. Mas só punha amostras no lugar e se alguém ia comprar, então é que se declarava com eles, que tinha mais em casa. E uma vez me deu a mim vontade de rir. Veio um que andava fazendo umas casas, compra-lhe uma boa porção de pregos para as acabar, cujos pregos eram sobejos da mesma obra para que ele os queria. Tinha sido curiosidade de um sujeito que os tinha vendido por lhe parecer que já não eram precisos.
Uma vez fez ele uma galantaria de que eu também gostei. Veio um maroto vender-lhe um par de fivelas que valiam bem quatrocentos e oitenta, pelas quais ele deu trinta réis. Não quis ter o dinheiro empatado na forma do costume e disse a outro companheiro que estava à ilharga: — Pega lá nessa fivela, põe-na no teu lugar que eu ponho esta no meu. Se ta quiserem comprar, vende-a barato que ele cá virá caira comprar a outra. E se aparecer o dono, como há só uma e lhe furtaram duas, passa adiante.
Saiu como ele o pintou. Apareceu um, pega na fivela, pergunta-lhe se tem a irmã. Respondeu-lhe que não mas que lhe dará aquela barata e que será muito fácil achar a outra. Vende-a por trinta réis. Oh, que fortuna! Logo mais adiante encontra a companheira. Mas por mais diligência que fez não a levou por menos de doze vinténs. Dizia-lhe então o comprador: — Quer-me vossa mercê dar um tostão por esta e ficam-lhe irmanadas? — Não senhor, que é muito nova e nós não podemos ter aqui senão trastes velhos ou desirmanados. Enfim, se quis fivelas, custaram-lhe treze e meio. Não houve mais remédio.
Traste que lhe viessem vender, em não sendo furtado, não tinha fé com ele. Era quezília que tinha tomado. O negócio já ia passando a mais. Já comprava seus trempes. Mas no que ele fazia melhor negócio, era em chaves. Tinha chave que lhe davam por ela as suas quatro moedas. No meu tempo, vendeu ele uma por oito, a um filho-família que estava com gosto em saber o que o pai tinha fechado num armário cuja chave nunca fiava de pessoa nenhuma. Mas o meu ferro-velho tantas lhe deu à mostra que acertou numa, de que ambos ficaram muito contentes à excepção do pai, porque dentro de poucos dias pôde fiar a chave de todos e o filho botou a sua fora, pois já não lhe servia para nada. Tinha perdido o gosto dela.
Também comprava o seu relogiozinho. Se era de prata, dourava-o. Se era amarelo, mudava-lhe a caixa e o mostrador e, muitas vezes, o dono andava-lhe com a mão por cima, e se acaso se queixava que lhe tinham furtado um por aquela mesma figura, respondia-lhe ele com uma cara mui simples: — Antes de ontem me vendiam aqui um assim, mas era de prata. Eu lá coisa de prata, sem me darem fiador, nada! Pobre de mim, mas graças a Deus, o meu capote muito redondo. Há vinte anos que contrato nisto, porém, nunca me foi preciso greda porque nunca me caiu nódoa, apesar de que muitas vezes cai no melhor pano.
O homem estava embasbacado de ver tanta virtude em tamanha pobreza. Mas acomodava-se lembrando-se que debaixo de uma ruim capa se encontra um bom bebedor. Porém, sempre lhe perguntava: — E vossa mercê lembra-se de quem lho vendia?
— Sim, senhor. Conheço-o de vista como as minhas mãos. Passa muitas vezes por aqui.
Ainda por cima, ia-lhe o pobre homem pagar o vinho, deixava-lhe dito onde morava e que lhe agarrasse o ladrão quando por ali passasse, que ele veria os seus agradecimentos. Pobre tolo! Nunca mais o vi! Nunca mais por aqui passou! Suponho que embarcou!, foi a resposta que teve e ainda em cima perdeu três meias canadas de vinho. Então que tal lhe parece o negócio? É bom ou não? Tomaram-no muitos! Ao menos é melhor que andar por aí feito vadio, sem ofício nem benefício. É ganhar a vida publicamente, não há nada às escondidas, a loja está toda à mostra e recolhe-se para casa num carrinho de quatro rodas[1]. É negociação com decência. Mas virando agora o negócio para outra face, que trastes não se encontram ali, em conta e precisos, e que não fizeram falta nenhuma a quem se furtaram? Por exemplo: um homem que tem trezentos mil réis de renda e que faz de despesa em sua casa um bom conto de réis, faz o seu cálculo e diz: — Se eu gasto mais do que tenho e vou vivendo, porque hei-de eu andar a pé? Quem gasta um conto, gaste mais uma história!
Compra o seu rabão, prepara-se de selim e freio e toca a choutear. Mas passado algum tempo acabam-se o milagre e os calotes. Vão-se vendendo os trastes. E, neste meio tempo, vai lá um, furta os estribos e vai vendê-los. Ora que falta faz uns estribos a quem não tem sela? Ou que falta faz a sela a quem não tem cavalo? E mesmo, que falta faz o cavalo a quem é cavalo? Ora eis aqui está um furto que não faz falta nenhuma. E vem lá um que quer pôr sege de aluguer, ou arenques para alugar e isto para ganhar a sua vida e que lhe faz mais conta comprar uns estribos baratos. Além deste caso, mil do mesmo teor e forma seguinte. Senhores, tudo tem tempo, forma e lugar: furtar a tempo, furtar em forma e saber escolher o lugar. Isto não escandaliza ninguém. Agora às avessas: furtarem a sela tendo eu ainda o cavalo. Isso é uma asneira, que é fazerem-me andar em osso. Pelo contrário, furtarem-me a cabeleira quando eu já tenho o cabelo crescido, é fazerem-me um favor, que é tirarem-me diante dos olhos um traste que fazia o meu aborrecimento. Mas eu sou miserável, a cada instante me desvio do caminho. Larguei o ferro-velho e vim-me meter em cavalarias altas. Mas eu já desço e torno à vaca-fria para a qual o meu ferro-velho tem muito espeto, que todos tem comprado por dez réis de mel coado. E não cuidem vossas mercês que há só ferro coado, também há mel.
Mas já que falei em vaca e espeto, lembra-me por isto o cozinheiro de cuja cabeça eu andava ao cheiro havia muito tempo. O tal ferro-velho tinha uma filha com quem um cozinheiro vizinho desejava fazer panelinha, quero dizer, queria casar. Ia à casa, tinha-a pedido ao pai, o qual tinha dado o seu beneplácito e a filha o sim, três vezes.
Uma noite juntaram-se os dois para fazer a partilha do ferro que havia de caber em dote à tal futura. E, nesta ocasião, eu fiz de taxa e preguei-me na cabeça do cozinheiro, tirando-lhe o barrete e pondo-lhe a
Notas
- ↑ As caixas onde metem este trem costumam ter quatro rodas para a facilidade de se conduzirem. [N. do A.]
Quem está acostumado a escaldadelas, não faz caso da mordidela de um piolho. Passa-se uma vida bela na cabeça de um cozinheiro. Deus me livre de um vadio! Quanto mais a cabeça em que a gente anda tem que parafusar e em que se ocupe, tanto mais seguro vive o pobre piolho. Esse, creio que nem sabia que havia piolhos no mundo. Uma só vez o não vi coçar, nem tinha tempo.
Ele era cozinheiro de uma casa abundante e a sua vida era trabalhosa. Era obrigado a ir para a cozinha meia hora antes que os criados se levantassem, para poder aparar os comestíveis sem barulho. Aparava a carne para trazer a fêvera para casa e deixar a gordura e os ossos para o amo, para poder fazer uma boa sopa. A fêvera da vaca é desenxabida, não dá gosto nenhum. Aparava o presunto para o mesmo fim, o toucinho, a couve, o carvão, a manteiga, numa palavra, aparava tudo que havia em casa. A única coisa que o não vi aparar foi umas pancadas que lhe quiseram dar. Fugiu-lhe com o corpo e não as aparou. Ah, sim, também me esquecia: não aparava penas, nem aparava chuva. Enganei-me. Havia muita coisa que ele não aparava. Sustentava com estas aparas a sua casa, e a do sogro, e vendia para uma taberna. A sua ração dava-a por esmola a um brasileiro que lhe dava seis mil e quatrocentos por mês. Tinha o seu par de vinténs juntos e bem adquiridos. O amo estava contentíssimo com ele e dizia que o seu Brás não o deixava por coisa nenhuma. É certo que ele pagava-lhe muito bem, porque não tendo nunca recebido nem real, já se lhe deviam dois anos de ordenado e ele não abria a boca e, muitas vezes, emprestava as suas dez moedas para o vexame da casa. Onde se encontram destes criados presentemente? Está brincando! O que ele andava nas diligências, era de ser também mordomo e se o conseguisse, dizia ele: — Em quatro anos há-de ser meu amo meu criado, se quiser passar. E havia de ser, porque em ele proferindo uma palavra era um axioma.
Mas que paladar que tinha o bêbado! Não havia ninguém que o não gabasse! Afogava um repolho sem lhe apertar o pescoço, que o podiam comer os Anjinhos! Fazia pudins de caroços de azeitonas que lhe deram muito caroço! Burriés de molho à pantana, só ele os fazia. O que ele não sabia fazer, eram espargos, e mais deixou muitas vezes os criados, ao jantar, como o espargo do monte, sem lhe chegar nada. Pois morcelas azedas! Isso era comer e gritar por mais! E salada! Fazia tudo em salada.
Uma noite me lembra a mim que ele fez uma ceia que todos andavam a gritar pela ceia. E apesar de andar de amores com a tal rapariga não se descuidava de nada, que há pessoas que em andando desencabrestadas, não lhes lembra senão o tal namoro. Cá este, não senhor; todo o tempo que eu morei nele, sempre o vi erguer de madrugada para ir cuidar nas aparas, e nunca o vi uma só manhã beber uma xícara de café ou chá. O seu almoço era umas sopas de panela com o seu bocado de presunto, duas rodas de paio, quatro ovos e três quartilhos de vinho. E andava magro, era doente do peito! O que é a constituição! A tal rapariga, com quem ele estava para casar, também tinha convulsões e febre contínua. Mas diziam os Médicos que não era nada, que em casando talvez que logo morresse.
O que a mim me dava mais cuidado era o casamento. Porque eu já estava escaldado de uma catadela que tinha sofrido com uns noivos e que já contei a vossas mercês. Tinha protestado comigo que não havia de assistir ao tal casamento, ainda que eu cuidasse de passar para uma cabeça de alhos, se não houvesse outra e, por isso, estava de olho vivo e prestes para fazer a minha mudança a todo o custo, ainda que me botasse de uma janela abaixo.
Os negalhos; iam-se apertando e eu sem achar cabeça, isto é, cabeça que me contentasse, que cabeças havia muitas, tais e quais. Mas umas não gostava eu delas e outras não podia lá chegar senão com a boa vontade, — a qual me podem agradecer —, e os bons desejos. Mas quando eu mais descuidado estava, aparece um Estudante que era da terra do cozinheiro e ainda seu parente em longitude. Procurou-o logo, chamou-lhe tio. Ele tinha prosa e era tratante. O outro gostou de ver ao pé de si um parente que tinha laivos de Doutor e que falava como um papagaio.
O tio perguntou ao sobrinho qual era o forte dos seus estudos. Ele respondeu-lhe que língua de Preto e Retórica e que sabia língua dos cavalos perfeitamente, porque um filho de Gulliver fora seu condiscípulo, que lha ensinara em recompensa de ele lhe ter ensinado o jogo do pião. Com que, nestas circunstâncias, o tio ficou de pedra e cal, e assentou de nunca mais separar de si este Sábio, assim como eu tinha assentado de sair da sua cabeça apenas pudesse.
O tal estudante nunca largava o tio. Mas eu larguei-o e quis ser piolho estudante e ir a uma cabeça onde houvesse miolos. Eu queria provar de tudo e, uma noite, em que o tio contava ao sobrinho o seu casamento, neste entretenimento em que me pareceu que estavam descuidados, desci pelo cozinheiro abaixo e subi pelo estudante acima, até lhe chegar à cabeça para lhe pôr a
Vou falar de um estudante que tendo os seus trinta e cinco anos, tinha gasto trinta nos estudos, como vou a dizer.
Seu pai, que não se tinha descuidado na sua educação, apenas lhe contou cinco pregou com ele na escola. Tinha tanta habilidade e aplicação que aos catorze sabia ler, escrever e as quatro espécies. Louvado seja o mestre que tanto trabalho teve com ele! Passou para o Latim onde estudou os seus dez e, para alcançar o passe houve muitos empenhos, apesar de que o mestre pôs-lhe um passe. Foi para o Grego e aí fez maravilhas. Ficou um grego perfeito. E, então, em muito pouco tempo! Só em seis anos. Na Retórica andou três e na Filosofia dois. Passou para a Universidade, foi reprovado em tudo. Vendo-se tão adiantado, deixou-se de estudos e ficou com a alcunha de estudante que bastante lhe custou, que para a adquirir gastou todo o tempo que disse. Daqui se pode julgar que não era qualquer cabeça e muito tentado com livros. No dia que eu lhe passei para a cachimónia, vendeu ele a Prosódia e o Quintiliano para comprar Bertoldo, umas comédias e umas pinturas do jogo do pau.
A mãe morria por ele e dizia que juízo como o do seu Michael não havia, que estava muito adiantado, que era a sua consolação. Que já não se lhe dava o morrer pois que via o pequeno naquele estado. E ela tinha razão, que ele em algumas coisas ninguém lhe punha o pé adiante.
Quantas vezes chamava ele tola à mãe e ela respondia a rir-se: — Ele que o diz bem o entende. Ela tinha tido muito cuidado na sua educação mas ele também lhe pagava bem, essa é a verdade.
Sabia todos os jogos: Pião, bilharda, concora, passarás-não-passarás, escondidas, bassourinha, punhete, carapeta-da-sécia, chinquilho, lasca, truque, covinha, chapas, seve, oito-primeiro-que-treze, quinze-nove, pacau, burro, o estenderete, &c.
Vamos agora a habilidades de mãos. Sabia Moer taco, fazia rabos-levas, abanicos de papel, seges, gaitinhas, bonecos, corações, moinhos de vento, casas de papelão &c.
Agora as dos pés: dançava o solo de London, sabia cortar calos, dava o seu coice, bailava as tripecinhas, punha-se nos bicos dos pés, sustinha-se nos calcanhares, &c.
Agora de corpo: catava o seu piolho, matava a sua pulga, apertava o seu percevejo e assoprava depois os dedos &c.
Da cabeça já dei conta dos seus estudos e não pode haver de tudo. O que falhava na cabeça supria bem no resto do corpo. Nem todos são para tudo. Que culpa tem ele do pai lhe mandar ensinar coisas para que ele não tinha jeito? Todos nascem com uma propensão e o caso está em acertar-lhe com ela. Os pais têm a culpa de torcer as inclinações aos filhos. Se o pai do meu estudante o põe logo a garoto, que assombro que não seria! Vejam lá! Ele sem educação nenhuma para este fim quanto estava adiantado.
Tinha condiscípulos que não sabiam senão metade, qual quê metade! Apenas sabiam o que os mestres lhes tinham ensinado. Mas cá destas artes do meu não pescavam nada. Tinham seguido os estudos com brio, tinham feito a vontade a seus pais. Estudavam na carreira de serem úteis à Pátria. Cá, não senhor, seguia outro trilho. Recolhia-se pelo meio da noite, não jantava em casa, zombava do pai, ralhava com a mãe, dava nas irmãs. Isto era outro melro, era capaz de tom. Taful, moço de gosto, tinha amigos, conhecia muitas senhoras, tinha sociedade, bebia as suas quatro garrafas, cachimbava, etc.
Tinha distribuído tão bem as horas do dia que nunca tinha que fazer coisa que lhe fosse útil, nem a si, nem aos seus semelhantes. Que rapaz! Que moço! Que pérola! Então o pai e a mãe concorriam muito para isto e estavam tão contentes por verem a esperteza do pequeno que, às vezes, dizia o pai: — Parece impossível que este rapaz saiba tanto sem ter estudado nada. Replicava a mãe: — E que amigos que ele tem adquirido! Conhece meia cidade! Ele, se casar, há-de fazer boa escolha, que ele tem juízo. Tornava o pai: — E é o que eu desejo ver, para assentar. — Pois não!, triplicava a mãe, ele está uma criança. Com estes louvores, o rapaz crescia a palmos e os vícios às varas. Mas todos andavam contentes e satisfeitos, que era o principal.
Um dos amigos entrou-lhe a meter na cabeça que visto ele ter jeito para tudo, que faria bem se aprendesse a lapidário, visto ter lapidado tão bem os pais e a falta de meios para sustentar os vícios. Porque o cabedal dos pais estava expirando, pois que tinha sofrido uma moléstia todo este tempo.
Não teve muita dúvida, mas faltava-lhe o ânimo, e ele mesmo dizia: — Eu, por astúcia, sou capaz de furtar um milhão, mas cara a cara, pôr uma faca aos peitos duvido que saia bem. O certo é que muitos, se não furtam, não é por falta de ânimo.
Enfim, a precisão crescia, o caso era sério, resolveu-se à vida e já sacava o seu lenço com a maior limpeza do mundo e isto sem mais estudos. E dizem que é preciso estudar! História! Tomara-lhe eu jeito e propensão. Isto de livros é uma seca e não deixa nada. Quem burro nasce, burro fica. Nem eu sei de que sirva um homem ter uma grande livraria. Ouvi dizer uma vez, a um de muito boa cabeça, que tinha comprado, por doze vinténs, um livro de novelas cujo lhe servia para ler. E lhe servia para toda a vida, era o caso. Dizia ele: — Quando eu chego à última página do livro já me não lembra nada do principio e quando torno a começar não sei nada do fim. Então para que preciso eu mais livros que um?
Isto é que é ser um homem arrazoado e de juízo. De que diabo serve estar a ler, a ler, se eu não entendo o que leio, se me não fica nada na cabeça, ou, se acaso fica, e entendo, não sigo as máximas úteis e honradas? Quanto a isto, louvo eu o meu estudante, que não se cansava em coisa de que não tirava utilidade.
Mas que péssimo costume que eu tenho de escrever, que fujo da estrada para ir meter a cabeça nas casas alheias e depois entrar a badalar! Hei-de vencer a poder que eu possa!
Enfim, furtava o seu lenço, já ia metendo as mãos nas algibeiras sem o sentirem e o negócio ia dando de si. Mas tudo tem seus contras. Um tolo, que se chamava seu amigo, e que lhe soube da prenda entrou a aconselhá-lo. Que aquilo não era vida. Que se emendasse. Que podia dar desgostos a seus pais, etc.
Gabo-lhe a pachorra. Perguntara eu a esta gente para que se metem com as vidas alheias? Que lhe importam que cada um seja ladrão ou não seja? Para que metem a foice na seara alheia? Quando a gente quer um conselho, paga-o. Se o pede a um amigo, escusa-se, dizendo: — Mais sabe o tolo no seu que o avisado no alheio. Quando a gente não o pede nem o quer, então vêm estes abelhudos dar a sua colherada. Que lhe importa a ninguém se eu tenho bons ou maus costumes? Cada qual enterra seu pé como pode. Metam-se lá com a sua vida. Catem-se, que não lhes há-de faltar que espiolhar. Está forte a história! Sempre tive aborrecimento a gente entremetida.
O tal amigo, com estes conselhinhos, entrou a suster o meu estudante que, receoso de que isto passasse de boca em boca, pôs-se a caminho, andando por diferentes terras, vindo a parar na casa onde eu pela primeira vez o vi e lhe ferrei o dente. Os pais não tardaram muito atrás dele pelo muito amor que lhe tinham e pelas saudades que lhes apertavam. De novo se ajuntaram e aí é que soube quanto tenho dito.
O estudante tomou amizade com um velho de bom tempo, boa têmpera e bons miolos. E desde que ganhou este conhecimento, eu tive sempre vontade de lhe ir à cabeça. Ainda que ele não tivesse muito cabelo, eu tinha muito apetite em lhe ferrar.
Um dia que passaram por mar para ir a uma função, o estudante enjoou, entrou a lançar fora. O velho segurava-lhe a testa, em cuja ocasião eu lhe passei para a cabeça e é ela a causa da minha.
Novo prólogo, novas coisas a dizer, novas as desculpas a dar ainda que não há muito de que as pedir, porque eu não meto a obra à força; ponho-a à venda, como já disse. É certo que poderão dizer: — Quem o obrigou a compor? Mas eu posso-lhes responder: — E quem os obriga a comprar? E se nós entramos no dize-tu-direi-eu, então não acabo a obra, e uma de tanto interesse como esta, principalmente para mim se a comprarem, e para aqueles que quiserem abafar a cabeça com a sua carapuça. E mais agora, de Inverno, que é uma consolação. E estão muito baratas, havendo folheto que tem seis carapuças, fora o prólogo, e ei-las aí a menos de trinta réis. Além disso, todas são muito folgadas, andam as cabeças muito à sua vontade, mesmo aquelas que não têm vontade de as trazer. Mas não entre eu a embaraçar-me com coisas de pouca entidade, como me sucedeu no prólogo passado, que me desviei umas poucas de vezes dele. Fiz um prólogo de duas varas de comprido e duas polegadas de largo. Nada, sério.
Esta minha tradução ou original, ou como vossas mercês lhe quiserem chamar, (que eu estou por tudo, uma vez que me desenganei, que todos têm costas, pena de serem defeituosos), há-de ser bastante volumosa, pois há-de botar a quarenta volumes e, por consequência, há-de ter quarenta prólogos, na forma da minha promessa a que não sou capaz de faltar. Mau é que eu tenha prometido. O outro dia prometi eu quatro cachações a um amigo, por causa de umas histórias que tive com ele, e lembrando-me daqueles versos de Camões
Quem no mundo quiser ser
Havido por singular,
Para mais se engrandecer,
Há-de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometer,
pus-lhos logo a cavalo no cachaço e ainda fui tão brioso que lhe dei quatro ou cinco de mais, e não esperei pela resposta. E mais, ele queria dar-me os agradecimentos. Torno a dizer: mau será prometer, pois não falto. O que eu nunca prometi foi casamento, mas se o chegar a prometer, a um homem que seja, sou capaz de casar com ele. Nestes termos, não desço da burra. Hei-de pôr um prólogo em cada tomo para o que já tenho feito quarenta e quatro. E faço o mesmo que os poetas cirieiros. Pego num avulso e encaixo-lho no frontispício.
Como aqui se não precisa de consoante, não há muito trabalho. Agora, se acaso não caírem bem, quem comprar a obra troque os prólogos e ponha cada um em seu lugar competente e muito à sua vontade. Ou, se lhe parecer, não o leia. Quantos comprarão livros que podem trazer veneno por dentro, que lhes faça mal aos olhos! Mas não os vêem senão por fora e conforme a encadernação assim os gabam. Cada um do que gosta. Tenho visto casas que, por fora, têm uma arrogância de autor e, por dentro, são casinhas de fazer pó de sapatos. Tornando, porém, ao nosso propósito, o que eu lhes posso segurar dos prólogos, é que os podem comprar e ter em casa sem sustos; que não são furtados; são todos muito meus e eu muito seu dono, e de vossas mercês, se forem servidos, e que lhes faça muito bom proveito se os aceitarem, isto é, por dinheiro.
Parece-me que não será mau tornar este prologozinho a tratar dos senhores Críticos. A matéria é grande, ainda que eu talvez a toque mal. Mas se assim suceder, não é culpa do instrumento. Sou eu que o não sei temperar e não toco a compasso.
Primeiro que tudo vou falar de uns certos duendes que também são críticos, mas andam pelo ar. Não chegam a pôr os pés no chão, fazem as suas fosquinhas mas em não se lhes tendo medo, não tornam a aparecer. E sei um remédio que não falha para estes amigos. Recipe: prólogo e mais prólogo com eles.
Sucede muitas vezes, porque há de tudo, haver uns críticos por negócio. Por exemplo: um que pilhou alguma coisa a dente (sem ser erva) e a vai encaixando por sua. Outro furta uma obrazinha, muda-lhe os pés para a cabeça e como ela vai com o corpo todo, ei-la aí vai! Deixá-la ir que eu não lhe pego. Outro vomita quatro palavras em mau português, (assim como nós), e fica tão inchado que parece um hidrópico de eloquência, e vai passando-as a dinheiro. Deixá-las passar! Vão estes amigos, vem outra obra pela proa, dão-lhe caça e querem metê-la a pique, receando falta de venda à sua, sem primeiro indagarem se a nova pode passar, se é menos má. Que engano! Se é má, melhor para a sua. Se é boa, ainda melhor, que não há tanto quem a entenda e menos quem a compre. Tenho visto quatro e cinco tendas juntas e todas venderem e se é em calçada, a última na descida é a que vende mais, porque o criado de servir não passa dali, vindo debaixo, ainda que a outra logo de cima tenha menos ranço na manteiga ou mais barata de preço. Que isso têm eles, não olham lá para mais cinco réis, menos cinco réis. Com que, Senhores, quem faz obras más não tenha medo por isso, nem lhe importe as que saem. Sai um com um piolho que ferra nas cabeças; sai o outro com um carrapato que se agarra à carne. Hei-de gostar de ver e não hei-de esmagá-lo. Até mesmo se me morder de leve, hei-de rir, e se me emendar algum vício hei-de chorar pelo não ter emendado antes que ele mo denunciasse.
Com que, senhores Críticos de alcunha, deste género deixem sair o que sai. Olhem para a rua dos algibebes e vejam que estão uns ao pé dos outros e todos dão saída à fazenda. O caso está em que a obra seja do trinque, que não metam obras velhas por novas. Que isso também não se atura e a gente não é cega nem tola.
Eis aqui dos tais duendes que eu digo. As avessas dos Escritores e Tradutores sábios e hábeis, de quem há bastantes no reino, e que certamente dizem "a obra que vos dou é minha". Se vós, bons críticos, tendes que emendar, emendai-a e eu vos fico agradecido. Se traduzem, explicam-se da mesma forma mas não temem nem lhes importa que os outros escrevam. Antes gostam que os génios se desenvolvam.
Igualmente o homem bem-educado. Nunca toma os rasgos de sátira como dirigidos a si. Se encontra alguma coisa que lhe toca, emenda-se e gosta da lição.
As Máximas de La Rochefoucauld, e os Caracteres de La Bruyère são obras preciosas. O primeiro, grande observador e conhecedor do coração humano, satirizou com firmeza fazendo a sátira dos cortesãos. O segundo, pintor hábil de costumes, forçou os originais a envergonharem-se e a corrigirem-se. Com que, se é certo haver defeitos, que mal faço eu em contar esses defeitos?
Quem me pode proibir que, passeando eu por um sítio onde está uma casa mal delineada e defeituosa, tire da minha pena de lápis e lhe faça a cópia para depois a mostrar a quem bem me pareça ou a todo o mundo? Onde está aqui o escândalo? Se eu desenhei o que é patente a quem o queira ver!
Se eu encontrar um homem doido na rua e disser simplesmente: — É doido. Ofendi-o? Quanto mais eu pinto um doido mas um doido que eu não conheço. Eu pinto um homem com defeitos, mas não sei quem é este homem. Conheço-lhe o vício, mas não sei onde ele é morador. Se aparece esse homem e grita que eu falei dele, a culpa é sua porque se deu a conhecer. Eu não disse: — Este terreno é bom para couves. Eu disse: — Aqui está a semente que há-de produzir couves. Se alguém lhe quis pegar e a semeou no seu quintal, tenho eu culpa de lhe nascerem? Se eu chamar algum destes e lhe disser: — Vá-se vossemecê botar no mar. Irá ele? Não. E suponhamos nós que vai. Não se perdeu nada, que era um tolo, porque foi.
Senhores críticos, que vossas mercês censurem a obra quanto ao que é meu, concedo. Quanto ao objecto, nego. O que eu digo é oiro. O estro terá, embora, muita liga mas a essência não a perde. Eu falo verdade e esta nunca precisou de enfeite. O Livro dos costumes é um tratado completo. Traçar o triste retrato da sorte da humanidade, para marcar as diferentes épocas que a política faz na felicidade pública, é um serviço que eu faço à minha Pátria. Este género de história, ainda que não sirva para os presentes, porque a sabem, instruirá os vindouros dos costumes dos séculos passados e fá-los-á conhecer o que poderão ser pela experiência do que têm sido.
Eu poderia inventar uma novela (talvez) cheia de beleza e de lances. Mas que se tira de um livro que nos conta uma viagem pueril onde a verdade é sacrificada ao maravilhoso e o útil ao agradável? Onde se nos conta tudo isto que nós podíamos muito bem ignorar sem inconveniente e que de nada nos importa sabê-lo? De que serve pintar uma estéril e brilhante expedição que fez a glória de um navegador ardiloso e que, ainda a ser certa, tanto mal teria feito à humanidade? Eu vou por caminho mais sólido. Os génios medíocres não se apartam nunca das estradas. Eu o sou. Sou muito pouca coisa. Se me tiro do caminho direito, perco-me. Nada de atalhos. Verdades é o que escrevo, costumes é quanto pinto. Digam, embora, o que quiserem, o que nunca poderão dizer, nem os vindouros nem os meus contemporâneos, é: — Este Autor mentiu. Poderão dizer: — Foi um tirano que escreveu, rindo-se dos defeitos da humanidade. Mas o meu coração não tem esse vício, porque eu tenho-os e choro uns e outros. Segui este estilo para ver se me liam e oxalá que nunca tivessem passado por mim muitas práticas do que escrevo. Quantas e quantas vezes, desviando-me de um erro vou cair em dois! E quantas e quantas vezes as minhas circunstâncias me têm precipitado? Por isso, quem ler nos costumes do tempo os vícios do seu próximo, deve ter a cautela de olhá-los com indulgência, pois se em uns são prejuízos de educação e má índole, em outros são... Dizia um dos maiores filósofos do século passado, numa carta que escrevia a um dos seus concidadãos: Vós me julgais tão ligeiramente nas minhas desgraças, que bem se deixa ver o pouco que se trata de escutar os infelizes e que quase sempre se está disposto a fazer-se-lhe um crime das suas infelicidades.
Com que é preciso bastante cautela e caridade a ler os vícios dos outros homens e fazer diferença deles. Uns não merecem desculpa; outros merecem piedade.
Tornemos à crítica. Eu não era bom para crítico porque tenho um defeito: tudo quanto leio dos outros parece-me melhor do que o que eu faço e do que é meu. Se não fossem os amigos que me lison jeiam dizendo-me que é menos mau, eu, por mim, nunca me capacitaria de tal.
Pope diz, num dos seus pensamentos: Logo que examinais um Autor, olhai, primeiro que tudo, qual foi o seu fim, porque não deveis exigir do escrito mais do que o Autor lhe quis meter.
O meu fim está visto qual foi. Se houver outro que o escreva melhor do que eu (que não precisaria muito), eu me calarei. Quando uma obra é aperfeiçoada por outro, ambos têm louvor. A doutrina de Platão foi tão sublime, tão apurada, tão extraordinária, que algumas vezes foi obscura. Pareceu pouco sólida e muitas vezes inconsequente. A de Aristóteles foi mais metódica e mais acomodada à condição humana. A comparação é má a meu respeito mas quantas vezes se compara um cavalo e um homem para demonstrar alguma coisa? Eu vou escrevendo os vícios do tempo, mas talvez sem método, sem ordem e em mau português. Se vier outro que aperfeiçoe, sempre serei lembrado como inventor, ainda que pouco inteligente. A arte de navegar está hoje bastante perfeita. Os nomes dos que a inventaram cheia de erros, andam à ilharga dos que a corrigiram.
Faço as minhas carapuças. Se as cores não são de boa escolha não é culpa minha. Não tenho melhor gosto, é quanto posso. Apeles respondeu a um artista que lhe mostrou uma Vénus adornada com ricos vestidos e que de um ar contente lhe pediu que lhe dissesse o que pensava dela: — Eu vejo que não podendo fazer a tua Vénus bela, a fizeste rica. As avessas eu, não posso enriquecer as minhas carapuças mas são bem talhadas. Tenho boa tesoura mas não coso bem e a minha obra, verdade seja, é mais de descoser.
Basta de pregação. Vamos a concluir: a obra não tem ido mal e eu estou muito obrigado ao público porque a vai comprando apesar dos poucos anúncios que dela se têm dado e da pouca diligência para a sua extracção, e os assinantes serem-no de sua livre vontade. E para que fiquem mais certos que se não querem iludir, daqui por diante basta que dêem os seus nomes e que mandem buscar o folheto pelo competente preço dos assinantes. E quanto basta e é quanto
Vale.
Estou posto num velho que tem os seus setenta no bucho mas com todos os vícios de um rapaz de vinte. Namorava com todos os ff e rr, punha cor, de noite emprensava as mãos e a cara, metia as pernas em talas para as endireitar, punha dentes postiços, fazia a barba duas vezes no dia, penteava o cabelo, (o que não deixava de me dar algum incómodo), trazia laços nos calções, anel no dedo, dois relógios, medalha de senhora entre o colete e a camisa, óculo ao peito suspendido em cordão preto, lugar efectivo na ópera, meia dúzia de escritos notados ao acaso e ao acaso dados, trocos miúdos para pobres, pratas taludas para terceiros, peças de seis e de quatro para chocalhar. Enfim, era um modelo do que já se sabe, etc.
Tinha uma senhora por quem morria e ela também morria pelo ver morto porque ele era alguma coisa impertinente e em tudo o era. Vê-lo vestir era um gosto. Era sempre no meio de dois espelhos e dois criados pelos lados. E primeiro que lhe ficassem as coisas à sua vontade, eram canas. Nunca calçou sapato sem calçador. Para calçar as meias deitava-se ao comprido no chão, puxava-lhe um criado por elas e outro arrochava-lhe bem a perna para não fazer rugas. Para os calções, tinha um aparelho no tecto com dois moitões. Desciam abaixo dois cabinhos que tomavam os calções pelos lados do cós e então içavam os criados até ficarem no seu lugar. E era um gosto vê-lo calçado. Sua camisa de holanda, véstia de cetim bordado, casaca de meio punho, óculo de punho, luneta, chapéu redondo, chibatinha e eis aqui um velho virado de dentro para fora, que ninguém diria senão que era em folha.
Tinha então um rapaz que lhe vendia todos os dias, por oito tostões, duas dúzias de escarros, para ele poder escarrar às moças, com força, que ele já não tinha senão saliva. Lá escarro puxado, para se ouvir, não podia, não tinha substância e em se lhe acabando aquela quantia ou se recolhia para casa, ou mandava um criado com toda a pressa buscar mais dois tostões deles, que eram meia dúzia. E muitas vezes não estava em casa o vendedor e ele queria sempre que fossem frescos. Se não fosse um homem rico não podia sofrer as despesas que fazia. Dava dezoito vinténs por dia a um poeta para lhe fazer as encomendas dos versos, que lhe davam as senhoras (que infeliz arte!, o que vendia os escarros ainda ganhava mais).
Tinha flatos e sempre andava a arrotar e, em se lhe acabando estes, tinha então um sujeito que lhe vendia arrotos. Punha-se então o velho a arrotar fidalguias, quintas, carruagens, criados, dinheiro, etc. Era um arroto contínuo, porque o tal sujeito, que lhos vendia, tinha para filhos e netos.
Já não ouvia bem. Mas não queria dar o braço a torcer e então era um gosto ouvi-lo conversar. Perguntava-lhe uma senhora: — Que anos tem? Respondia ele: — Se lhe quero bem? Ainda o duvida, ingrata? Abra-me este peito! Veja este coração e verá o seu retrato escrito e escarrado nele.
A senhora ria-se e ele saltava de contente. Estava tão capacitado que todas lhe queriam bem que ninguém passava a sua vida mais satisfeito. Que também há muito moço que vive no mesmo engano e que julga que uma senhora esmorece por ele e ela, muitas vezes, esmorece pelos seus vinte e cinco. E se aparece mais um, dizem que um quarteirão é vinte e seis, o usual, e não o botam fora. O que eu lhe louvo, porque é muito melhor haver por onde escolher. Presentemente também não há muito. É tudo petinga.
Depois de tantos trabalhos, entra o bom velho a querer casar. Ora isso foram canas, foram mosquitos por cordas. O namoro, os ajustes, as cerimónias que houve de parte a parte, não há tinta nem papel que chegue para escrever essa história, razão por que não me demoro aqui. Que eu não tenho génio de deixar as coisas por acabar, isso não, ou não principiar, ou dar-lhes fim. Contarei simplesmente algumas coisas que caibam no possível, como são:
A noiva queria trazer para casa cinco irmãs pequenas e três primos já grandes por ter sido criada com esta família e custar-lhe muito apartar-se dela. O velho remoía o queixo e tudo era dizer: — Pois não pode passar sem os primos? Se ao menos fosse um, mas três, e três alarves. Que mesmo sustentados a palha e cevada haviam de fazer muito boa despesa. Houve sobre isto suas histórias, mas a noiva arrumou os pés à parede, que sem esta cláusula não dava o seu consentimento. O noivo também embirrou e o mais que chegou a conceder eram dois, até que deu uma convulsão na senhora. Ele também teve faniquitos e ultimamente concedeu-lhe, cheio de lágrimas, uma comunidade de primos e primas que ela tivesse. Tornou a si, deitou-lhe uns olhos cheios de ternura e o velho ficou tão transportado e contente que, nessa noite, teve uma cólica que ia dando cabo das bodas. Houve também, daí a dois dias, outra dúvida que não deixou de ter o caldo entornado outra vez e versava sobre que libré haviam de trazer os lacaios. Ele queria as suas; ela queria as dela. Ultimamente o noivo resolveu que o boleeiro traria as suas e o da traseira as dela. Ela teimou pelo avesso e entrou-se a pôr nos bicos dos pés e a gritar que quando aquilo era antes de tomar posse dela, o que seria depois; que raivas não lhe meteria no corpo. E isto em cima de casar com um homem velho, baboso, tolo, enfeitado, etc. Então é que ele desmaiou deveras. Escumava que nem um arrátel de sabão em pouca água. Tornou a si, virou-se para ela e ela virou-lhe as costas. E cada um foi para a sua banda. Mas o pobre velho veio para casa e toda a noite não pôde pregar olho com o sentido na moça. Elas sempre são o demo, essa é a verdade! Em se andando com o sentido no casório tudo vai pela água abaixo. Não houve outro remédio senão, pela manhã cedo, ir-se-lhe botar aos pés, pedir-lhe perdão. E fê-lo erguer o dedo para o ar. O miserável estava por tudo e tudo se fez quanto ela quis. Não houve partilha de libré. Enfim, assentou-se de pedra e cal que ela faria o que muito bem lhe parecesse sem jamais ele lhe ir à mão e em algumas coisas nem sequer ser ouvido. Dobrou-se a pensão dos alfinetes, ajustou-se mais um criado e ela ainda muito de manto de seda. Quanto pode a velhice que é acompanhada de toleima e vício! Oh!, também ajustou que nunca havia de sair fora com ele, nem a pé nem em sege, sem ele primeiro lhe dar meia moeda. Vejam que esperanças tinha o basbaque da vida que havia de passar com a mulher. Eu não quis esperar para o noivado pois, como já disse, fiquei escaldado de um e prometi que na minha vida, enquanto eu pudesse, nada de noivos. E a cabeça do velho também estava seca, era morrer de fome. Ali, de cabeça, tudo era miséria.
Um dia apareceu por casa uma cigana e entrou a meter na cabeça do velho que lhe queria ler a buena-dicha; que, pelos olhos, conhecia que estava enamorado, que lhe queria dizer se havia de ser feliz com a sua dama. Tocou-lhe na tecla e ele deu logo mão, pés e corpo todo e, depois de lhe dizer muita arenga, disse-lhe que era preciso puxar-lhe por dois cabelinhos da cabeça. Eu não desgostei da puxadela. Passei para a cigana, só pelo gostinho de lhe saber da vida, de cuja faço a
Eu cuidava que uma cigana era uma mulher bem-feita, bonita, belo modo, bom juízo, uma boca cheia de riso. Que, unindo ao gracioso a verdade e a singeleza, encantava a gente. Mas, não senhores, a tal cigana era uma mulher setentona e bastante comilona (como diz o Doutor Alcalá ), alta, seca de carnes e condição muito bem talhada para esqueleto. Bastante negra e alguma coisa enxovalhada e suficientemente capaz para desmamar um cento de enjeitados. Creio que não preciso dizer que era feia. Tinha uns dentes grandes, cor de abóbora-menina, com as gengivas verdes que lhe davam muita graça.
Sabia muita história, muita perlenga, muita toleima, muita asneira, próprias para enganar crianças e não gente grande. Não tinha graça nenhuma e já ninguém caía nas suas arrioscas. Pegava na palma da mão, entrava a contar linhas e fortunas. E se o padecente que estava ouvindo se descuidava, furtava-lhe alguma coisa. E nisto é que consistia toda a sua sabedoria.
Era ladra do quinto voto. Se fosse preciso, sacava umas ceroulas a um homem sem lhe bulir nos calções. Entrou a contar tanta léria ao tolo do velho, que tossia de gosto e duas vezes o vi engasgado. Entrou-lhe a dizer que havia de casar cedo, que a mulher havia de ser muito formosa. Dizia ele então, às gargalhadas: — É verdade, é verdade, adivinhou. Que lhe havia de guardar uma lealdade que havia de ser um abismo. (Quem a abismara a ela, mais à mãe que a pariu!) E se ele queria saber isto com todas as veras, ela tinha a raiz de um cancro que com ela adivinhava tudo e que não se lhe dava de a vender. Então é que o velho ficou com a boca aberta, capaz de dar quanto possuía só por tal prenda. Entrou logo no ajuste e no modo com que se adivinhava. No ajuste se compuseram, no mais tratou-se de fazer a experiência, que começou assim. Diz-lhe ela: — Eu hei-de adivinhar quanto vossa mercê traz no pensamento e sente no coração. Primeiro que tudo, mande vir um copo de água e umas brasas com alfazema. Mande recolher todos aos seus quartos, as janelas fechadas, as portas da rua abertas e quatro velas acesas. Mande vir tinteiro e papel, retirem-se todos para dentro, feche as portas para lá e em eu dando três espirros, saiam, abram as janelas, e leia o que estiver escrito no papel. E se não for tudo verdade, eu corto a cabeça. Mas é preciso cuidado em não espreitar, senão tudo se perde e o mesmo é preciso para quando vossa mercê a fizer, depois de eu lhe ensinar.
Fez-se tudo como a arengueira quis, estando todos com a boca aberta e eu vendo em que parava aquela tramóia. Que foi apenas a cigana se viu só na casa, e com todos fechados, sacou as velas dos quatro castiçais (que eram de prata), pingou sobre as bancas onde as segurou, agarrou numa bandeja de prata que estava sobre a banca de um tremó e depois escreveu sobre o papel estas palavras: — Levo quatro castiçais e uma bandeja. Desceu pela escada abaixo, pôs-se ao fresco e eu com ela, que senti bem não ver a espera dos três espirros, mas creio que ainda iria a horas, porque lá estarão à espera pois ainda não se deu o primeiro. E então, adivinhou ou não adivinhou? E é o que tal cigana sabia fazer. Era uma embusteira redonda.
Andei nesta vida de enganar gente um par de meses muito bons e confesso que vivia tão desconsolado que nem me lembrava morder-lhe. Andava a modo de tolo e tão magro que receava cair numa tísica. E o mais é que não dava no modo de sair dali para fora.
Ela vivia com uma companhia de ciganos e ciganas, todos da mesma oficina e da mesma pobreza. Tinham uma velha que é quem lhes ensinava as alicantinas e que era abelha-mestra. Um homem, nas suas mãos, saía espírito de vinho, era um alambique. Todos os dias, à tardinha, vinham as ciganices pequenas para tomarem a lição que constava de enganar o mundo, quero dizer, a gente que nele vive, que o mundo não é ninguém capaz de o enganar. Mas, com efeito, a arte de enganar gente, quanto a mim, tem chegado ao seu auge. Ensinava-lhes as tramas para furtar trastes e uma das coisas que a velha mais recomendava, era que furtassem, ainda que fosse um esfregão da loiça, uma meia sem companheira, enfim, que não devia escapar nada. E concluía: — O valente, é preciso que tenha jogado a pedrada, que tenha levado muito coque e que se tenha exercitado em pequenas coisas.
Tinham também consigo uma cigana de treze para catorze anos, linda como o sol, e tinha o maior cuidado em lhe ensinar a fazer redes para armar aos homens. E, com efeito, ela não precisava muito de ensino, porque, além da propensão, tinha uns olhos que, se ela jogasse o Voltarete, tinha sempre os matadores nas unhas. E queriam-na casar com um cigano que parecia o Zápete : tão negro, tão feio, tão magro, tão ladrão, tão tudo! Que enorme coisa! E o demo da rapariga gostava dele. Quem me dera saber a razão por que a maior parte das raparigas formosas caem sempre nas mãos destas caras, que parecem toucinho de ranço (mal por mim, se assim não fosse). Mas elas, verdade seja, quase sempre têm esta escolha. Em sendo bonitas, não se pode dizer por elas: —Escolheram como os seus narizes! Isto é regra geral, todos desejam o que não têm. Uma rapariga que não tem nada de feia, que há-de ela desejar? Uma coisa que seja feia. Mas sempre é mau, havendo por aí rapazes que parecem de alcorça, pelo dengue a açucarado. Eu tenho visto alguns que se os não ouvisse falar, pareciam-me de gesso, pelo bem-feito, e de cera, pelo brando. Outro dia, vi eu um destes, tão lindo e tão amorado, tão não sei como que era preciso uma grande fé para a gente se capacitar de que era homem. Era branco, falava de esguicho e tinha a marrafa tão encrespada que parecia cão de água, e de muito boa raça. Todo o resto do fato valia menos que o feitio. Feliz tempo! Tempo de economia, que se faz uma casaca com duas terças de pano! Tudo se vai adiantando bem. Deus pague a quem nos mete tanto em casa e que, ensinando-nos tantos modos de poupar, nos deixa sem real. Ora, senhores, porque não haverá um hospital para tolos, assim como o há para doidos? Mas a despesa havia de ser grande. E que casa se não precisava! E até talvez eu fosse lá ter, porque ainda que piolho tenho minhas toleimas muito boas e manias como ninguém. Mas aqui tornei eu, insensivelmente, a fugir da cigana para me ir meter no que não me importa. É forte balda! O que eu precisava era arrochada, que é o que merece quem se mete com as vidas alheias. Enfim, eu estava nas redes que ensinavam à rapariga para apanhar homens. Vejam se para apanhar homens se precisam de redes! Eu conheço alguns que não precisam nem redes nem isca. Até vão pelo cheiro e por qualquer malha caída de uma meia. Mas vamos ao caso antes que eu me desvie outra vez. A rapariga tomava lições e tinha ciganices que ninguém lhe escapava. Havia tal que, pedindo-lhe ela esmola, lhe dava o coração. Que, é certo, que também os há que é mais fácil darem o coração que um vintém. E isto em razão, porque o coração já ninguém lho quer e dinheiro não têm real. Ensinavam-lhe muita cantiga de cor e ela cantava menos mal. Era quase a cigana de Cervantes pela beleza e pelo espírito. Neste meio tempo morreu a velha com alporcas e a cigana onde eu morava era a imediata sucessora a este morgado. Por consequência, foi-lhe conferido o grau de abadessa, com todos os privilégios e isenções, sem pagar nada. Começou logo no ensino desta mocidade e, com efeito, ela não era menos se não era mais. O certo é que a rapariga adiantou-se tanto neste tempo que era admiração de todos. E a tal minha patroa, que era capaz de tirar pão das pedras, entrou a ensinar-lhe que não devia rir sem primeiro lhe darem dinheiro. Lição que ela tomou tão bem que, por fim, ganhava dinheiro a rir e cá a minha velha a fazer chorar. Era muito rara a casa onde punha o pé que não ficasse chorando por ela e a procurassem com toda a eficácia. Ela é que se escondia e não queria aparecer mais. O que é ser uma pessoa comedida! Fez-se em pouco tempo tão conhecida que não teve outro remédio senão pôr os pés dali fora, antes que a recolhessem contra vontade.
Levantou campo e eu não tive outro remédio senão acompanhá-la. Passou para a Espanha e, no caminho, tivemos nossos incómodos que foi de uma queda que deu de um burro abaixo e de que quebrou a cabeça de cuidado. Pobre de mim, levei a viagem toda, entaipado entre fios e panos, por cuja causa não posso dar notícia de vista, senão de alguma coisa que ouvia e isto era muito pouco, porque sobre os panos e fios ditos havia uma coifa e um lenço. Enquanto não esteve boa a ferida, vi-me e desejei-me. Que triste vida passei perto de três semanas, não de passar mal mas de aflição, sem poder ver nem ouvir, sendo esta toda a minha paixão. Chegámos a Espanha e aí fizemos assento uns quinze dias. Mas, ciganas, naquele país, não fazem grande fortuna. Por acaso, fomos a uma estalagem onde estava um Português que ficou louco de amores pela rapariga. E cá a minha santinha não perdeu vaza, conheceu-lhe a paixão, indagou pela qualidade do sujeito, soube que tinha mais de peso que de feitio. Entrou a meter-lhe à cara a cara da moça, pôs-lhe a virtude no Céu, a honra nas estrelas e disse-lhe que era filha bastarda do Adamastor, pelo grande que a pôs, mas que era preciso aquele disfarce por certas razões e o pobre homem comeu tudo. E pareciam-lhe papos-de-anjo. Deu logo mostras de namorado, deu dinheiro, e recebeu promessas. E a minha cigana, por sinais, deu licença à rapariga para que, com um sorriso, desse um ar da sua graça de que o outro ficou tão ufano que não se trocava pelo Prestes João. Assim passámos os nossos quarenta dias à regalada de moura, caindo em todos o miserável, sem nunca lhe darem a mão, do que ele tomou pé para se queixar. A cigana mestra não deixava de ser sua amiga. Mas como isto era tempo de Verão, não resolvia nada até o não ver nu, no que ela ia cuidando com toda a brevidade. O dinheiro ia correndo porque tudo o que ele tinha era redondo e a cigana punha sebo nos olhos da rapariga de modo que escorregavam as dádivas sem se sentirem. Mas toda a desgraça da velha esteve em que o Português soube de tal forma agradar à moça que ela deveras gostava dele, o que, percebendo a minha velha, que tinha uns olhos de lince, se desgostou bastante e quis pôr terra em meio. Mas já tão tarde que os dois tinham resolvido fugir, e isto tanto às escondidas que o não sabiam senão aqueles que o sabiam. Já se entende: no que cuidais, cuidamos. A cigana tentou dar o último golpe e pôr-se ao fresco, para o que se resolveu desta forma. Foi ter com o Português e, depois de lhe contar uma história muito grande, que me não lembra nem o princípio nem o fim, nem coisa nenhuma dela (razão por que a não conto), concluiu, dizendo que ela estava resolvida a deixar toda a companhia e ir-se só com a cigana moça para Portugal. E como sabia que ele lhe queria bem, se as quisesse acompanhar ela estava muito à sua ordem. O tal, que era só tolo em amor, deixou-se ir à corda, disse que sim, protestou-lhe, jurou. Mas não deu dinheiro, o que a cigana estranhou muito e conheceu que o homem não estava rendido, visto não largar as armas. E vendo que não fazia mossa por aqui, deu-lhe um remoque Bernardo, dizendo-lhe que seria bom ver o quanto havia de uma e outra banda, fazerem bolsa. E que, se fosse sua vontade, ela governaria tudo, porquanto era muito económica e não tão fácil de ser enganada nas estalagens. Nisto conveio o Português e se ajustou que trouxesse a cigana tudo quanto tinha de valor, que ele faria o mesmo. E que passando tudo de dinheiro a uma bolsa e de trastes a uma mala, ela governasse tudo. Caiu a pobre, trouxe o que tinha e veio cair na rede que ela mesmo tinha armado. Nesta ida e vinda deu ele parte à justiça que a cigana o tinha roubado, untando as mãos a quem havia de fazer a diligência, e apenas ela chegou com o seu trem, e tudo se uniu na acção de ela ser a depositária, salta-lhe a justiça com a ordem. Ela grita, bota-se aos abraços ao Português, que lhe valesse, em cujos abraços eu não perdi tempo, passei-lhe para a cabeça e ela foi levada para a cadeia. E logo o amigo se pôs a caminho com a ciganita. Os meus Leitores verão nesta cabeça o homem mais cioso do mundo, cujo cioso é o objectivo da
O Ciúme não serve aos homens senão de se atormentarem uns aos outros. Arte de envenenar os prazeres, método de comer e dormir pouco, caldo substancial que fortalece a vaidade do amável sexo, enfim, remédio que nunca curou ninguém e que tem morto muita gente. Não se admirem de um Piolho falar assim. Porque eu tenho ciúmes, apesar de ser insecto, e verão, no decurso da minha vida, alguns amoricos que me trouxeram aparvoado e que não são qualquer coisa. Por isso tenho muito dó dos ciumentos e, ao mesmo tempo, muita raiva. Isto de amores, Senhores, é o mesmo que negociar. É preciso ter dinheiro, bons caixeiros, boas correspondências, conhecer a intriga, ser político, mentir com toda a verdade, semear aqui para colher acolá, conhecer os géneros, os terrenos para onde exporta e importa, os câmbios, &c. E depois de tudo isto, fortuna. Há por aí alguns indivíduos que em tendo um palmo de cara menos má, uma boa perna, um corpo bem talhado, têm assentado de pedra e cal que devem andar as moças atrás deles. Como estão enganados! Coitadinhos! A praça não se rende pela boa cara do soldado, mas sim pelo valor, pelo estratagema e pelo milagroso dinheirinho. Eu, se me demorasse aqui, tinha que dizer até amanhã e coisinhas menos más. Mas é tirar-me do fio da história e dizer mal, coisa que não é do meu génio. Deus me livre! Quem boa cama fizer, nela se deitará. Sua alma, sua palma. E demais, aonde hás-de ir, não hás-de mentir.
Partiu, enfim, o Cioso com a Cigana tendo a viagem mais trabalhosa que se tem visto. Entrou-lhe logo a pôr preceitos sem ela estar endemoninhada. Que não havia de aparecer a pessoa viva e então isso a uma rapariga que tinha muito medo de defuntos. Estas coisas entraram a desgostá-la e o amor que lhe tinha foi degenerando em ódio, que é quase sempre o que se ganha com o negro ciúme. Ora, demais a mais, todos gostam de ver objectos que lhes sejam agradáveis à vista e muito mais aqueles com que fomos criados. O ar pátrio sempre melhorou o enfermo. A rapariga estava acostumada a ver homens. Não fazia caso deles, nem para eles ria de graça, da forma que lhe tinha ensinado a Mestra. Agora que os não via senão por indulgência, alegrava-se, e já não precisava de dinheiro para se rir. Ria-se de graça e cada risada destas era uma sezão de bater o queixo no meu cioso. Acabava o frio, entrava na febre, seguia-se o delírio, amofinava-se a si, afligia a pobre moça e não havia senão choros, amuos e descomposturas. Depois seguiam-se os preliminares da paz que ficavam concluídos em doze artigos, quatro lágrimas, quatro protestos e quatro meiguices. E no outro dia começava tudo como na véspera. A moça ia-se a entisicar, o moço pondo-se héctico e eu a chuchar um sangue enfrenesiado. Iam-me aparecendo os ossos.
Ora que se lhe há-de meter na cabeça a este homem? Querer que a rapariga fosse cega para a metade do género humano. Que não visse homens. Se ele teima com ela, que não visse mulheres, tinha conseguido o negócio. Porque ela em que caprichava era que, quando ele lhe dizia: — Não faça isto, respondia lá consigo: — Por isso mesmo. E levava-o avante. Sempre fez tudo quanto ele não queria que fizesse. Pregou-lhe ópios que nem o mais hábil boticário. Eu tinha vontade de os contar mas tenho medo que me digam que os não conte. Calemos o bico.
Ultimamente deu noutra: queria que ela não soubesse ler nem escrever depois de ter aprendido. Ora isto não é frenesi que merecia azorrague? Queria que ela estivesse a chorar quando ele vinha para casa mais tarde. Mas nisto lhe fazia ela o gosto porque sempre a encontrava a chorar, mas era por ele vir tão cedo.
Quando estava em casa, andava sempre a sacudir as moscas por amor dos moscas. Enfim, o homem era uma espécie de coelho. Não consentia noutro macho em casa. A rapariga andava já tão arrenegada que, em vendo outro homem que não fosse ele, era uma alma nova que lhe entrava no corpo e estava já pronta a largá-lo e safar-se, ainda que fosse com quem fosse. E ele, tolo, parecendo-lhe que era amado e que, como ela não via outro homem, por força que havia de gostar dele. Vejam quem pode lá amar uma pessoa que lhe serve de sombra e que não olha para parte nenhuma que o não veja! Por mais que se ame, é preciso liberdade. Tanto o homem como a mulher têm ocasiões de catar a sua pulga e de matar o seu piolho (por meus pecados) e querem-se ver sós. O homem não tinha génio para amante. Amava com todas as suas forças e o tempo não está para esses pesos. As mulheres não querem amor platónico, mas também não querem um amor de forçado, sempre de braga ao pé. Meio termo, meio termo, meus Senhores, e antes de menos que de mais, que onde há menos pode ir a mais e onde há mais pode ir tocar na impertinência e as impertinências nem no amor se aturam. Eu já ouvi dizer a uma Tia: — É muito amor de Sobrinho.
Morava um vizinho paredes meias connosco, porta fronteira, servia-se pela mesma escada, tinha muito de tudo porque tinha muito dinheiro e tinha também amor à tal Cigana porque a tinha visto algumas vezes e comunicado outras, apesar das cautelas do meu cioso. Tinha bastante habilidade para se fazer querido. Mas era muito preguiçoso e aqui era o seu forte.
A preguiça vencia o amor, de forma que era preciso à moça ir ter com ele. Porque ele, apesar do muito que lhe queria, não se levantava estando bem sentado, para a ir ver. Ela, por isso mesmo, morria por ele. Nestas entrevistas que tiveram, ajustaram-se a casar, o que fizeram muitas vezes às escondidas do cioso. Mas no dia do casamento foi a mulher para casa do marido. O meu patrão veio para casa e, não achando a sua amada, berrou, botou as casas abaixo e chorava que nem uma criança de mama. Disseram-lhe onde estava, foi bater à porta do noivo, no que o dito não teve dúvida alguma em lha abrir, contando-lhe que estava casado com aquela menina. O cioso dava-se a perros. Mas o preguiçoso estava muito sossegado e seguia outro método muito diferente. Ofereceu-lhe a casa, a sua amizade, que confiava muito nele e na honra de sua mulher, que mesmo quando ele não estivesse em casa ela estava muito às suas ordens e concluiu esta oração dando-lhe um abraço. Em cujo eu passei para o preguiçoso porque gostei do seu sossego e é nesta cabeça que vai a
Esta pobre moça tinha de passar uma vida bem desgraçada. Acabava de viver com um homem que lhe não deixava a mais pequena acção livre e veio para este, que todas lhe deixava e não lhe importava nada o que ela fazia. O outro, aborrecia-o por amor de mais. Este mortificava-a por amor de menos. E nem mais nem menos eram as circunstâncias em que se via esta formosura que não encontrava um homem à sua satisfação. Só se mandasse fazer de barro, ou de cera. Eu gostava sumamente dele pela pachorra. Não lhe importava a mulher. Que ela estivesse à janela, que saísse fora, que conversasse com o vizinho, que não lhe aparecesse todo o dia, para ele era o mesmo. Não conhecia o ciúme, nem pela palavra. Era mesmo da terra, génio e costume dos que falou Camões quando disse:
Ditosa condição, ditosa gente,
Que não são dos ciúmes ofendidos.
A mulher enraivecia-se com isto o mais que podia e dizia ela a si mesma: — Não serei eu aos olhos deste homem formosa, não serei discreta, não serei bem-feita? Ele não gosta de mim. Ele não me ama. Ingrato! Morrerei desesperada. Esta indiferença é mais que morte.
Dizia eu cá com os meus botões: — Ah, que se eu fosse homem, assim como sou piolho, havia de fazer comer terra a estas minhas Senhoras, visto saber-lhes a balda. Um pouco caso, um desprezo a tempo, uma meiguice momentânea, uma indiferença com cautela, que não parecesse desprezo, uma confiança certa no seu juizo e virtude! Eu lhe protesto que havia trazê-la ligada ao amor e à obrigação, que não havia de olhar para ninguém ainda que lhe fizesse festa o Grão-Mogol. Mas alguns homens são uns tolinhos! Estão-lhes ensinando com os seus ciúmes o que elas hão-de fazer, duvidam da sua probidade. Ora isto é verdade. Se todos me hão-de julgar e chamar ladrão sem eu o ser, neste caso é melhor furtar.
Assim passavam a vida todos três: ele não lhe importando nada; ela dando-se-lhe de tudo e eu na chuchadeira e na observação. Até que ela lhe disse um dia:
— Meu marido, eu não posso viver assim.
— Pois vive de outra forma. Quem te pega?, respondeu ele. — Isso não é resposta que se me dê, tornava ela.
— Pois vê? Que resposta queres?, tornava ele. Dize-ma que eu ta darei ao pé da letra.
— Tu não me amas?
— Tu não me amas? Estás satisfeita?
— Não meu marido, não é isso que eu quero de ti. O que eu digo é que tu não gostas de mim, que não me estimas, que te é indiferente não me veres e, enfim, que ainda te não causei um só ciúme.
— Olha, mulher, eu tenho preguiça de responder a tanta coisa. Mas por te dar gosto, por esta vez sem exemplo te responderei a tudo por parcelas e então tu somarás a conta como bem te parecer, contanto, porém, que não me tornes a tomar estas contas. A respeito de eu não gostar de ti, é falso. Se eu não gostasse, não casava. Que te não estimo, é mentira, porque eu dou-te de comer. Que não faço caso de te ver a miúdo, é pela esperança e vontade que tenho de que vivas muito tempo, e como estou com tenção de que vivamos muitos anos, temos muitos anos para nos vermos. A respeito de ciúmes, não tenho de que me queixar, pois tu já não podes casar com outro senão quando eu morrer. Em eu morrendo, não me importa que tu cases e se gostas de alguém que te faça muito bom proveito. Se alguém gosta de ti, que muito bom proveito lhe faça. O homem, quando casa, não é para aborrecer o resto das mulheres, nem a mulher para aborrecer o resto dos homens. É para ter aquele homem por seu, para lhe guardar fé, para o ajudar nos seus trabalhos e ter parte nos seus prazeres. Mas isto não tem nada para viver com o resto do mundo em boa harmonia. Não, mulher, eu não confio mais em ti que tu mesma. Descansa, vive sossegada que eu não caso com outra enquanto tu fores viva. Olha, demais a mais, tu também já não estás muito para cobiçar, vais-te fazendo feia.
Oh, diabo, que tal disseste! Foi o demo em casa do alfacinha. Gritou, arrepelou-se, bateu com a cabeça pelas paredes, jurou que havia de fazer e de acontecer, botou todo o fato à rua, esbofeteou-se e não acalmou a tormenta senão com uma chuva. Pôs-se a chorar como uma Madalena, mas não arrependida do que tinha dito, porque de quando em quando tornava à mesma e o maganão do marido pedia-lhe com todo o amor que chorasse para desabafar, que aquilo era tudo melancolia.
Ele era um preguiçoso célebre. Podia-se ser piolho ou pulga em seu poder. Mordesse o que lhe mordesse, não se coçava só para não levantar o braço. Tinha dois funis por onde comia e bebia. Sempre estava deitado. À hora de comer, vinha o criado com o funil largo, metia-lho na boca e ia-lhe botando os bocados. Para beber água vinha o funil estreito. Nunca lavava a cara. Quando vinha o barbeiro fazer-lhe a barba, pedia-lhe que lhe desse uma demão de água pelos olhos e quando chovia punha as mãos de fora da janela e deixava-as ficar até fazer sol, que lhas enxugasse. Tudo quanto sentia molhado no corpo enxugava ao sol e assim, nem perdia tempo, nem lenha. Se a mulher alguma noite, de raivosa, não dormia com ele, levantava-se mais tarde no outro dia, quero dizer, erguia-se para lhe fazerem a cama. Se a mulher lhe perguntava a razão disto, respondia-lhe que tinha dormido tão consolado por ter estado só, que lhe continuasse o mesmo favor por algumas noites.
Cuidava muito pouco nos seus negócios, nunca saía para fora. E se lhe diziam que por aquele modo não podia ganhar de comer, dizia a isso:
— Quanto menos trabalho, menos como. E demais, como ele me chega para ir vivendo neste prazer de preguiça, e eu não pretendo comer depois de morto, para que é ajuntar dinheiro para mais do que preciso? Isso é tirá-lo aos que precisarem. Para o meu enterro, deixo essa incumbência ao senhorio das casas, se as quiser despejadas. Quando não, que faça o que quiser que eu não hei-de ser defunto de cerimónias, quando em vida é coisa que nunca tive. A respeito de minha mulher, pode comer dobrado depois de eu morrer, porque lhe fica uma boca de menos. Com os meus credores, que façam o mesmo quando morrerem. Com os amigos não tenho nada, porque trabalhar para amigos deste tempo é o mesmo que suster água numa peneira. Um amigo de agora o mais que faz, - se o amigo deixa alguém que represente ou dinheiro para representar-, é ir ao enterro, pegar no caixão com o lenço no nariz e a cara para a banda. E se não tem nada disto, nem lá vai, dando por desculpa que era muito seu amigo, que não se acha com ânimo de ir àquele acto; e isto quando um destes era capaz de o matar se lhe rendesse um copo de neve. Com que tenho assentado que o trabalhar muito não serve de nada para o que trabalha; é sempre para um que não trabalha nada. V. gr., meu pai trabalhou muito, deixou-me que comer. Eu não trabalho nada. Aquele que eu deixar, não lhe ficando nada, trabalhará para comer. Não senhor, o que faz a desordem de uns terem muito trabalho e outros nenhum, é não serem obrigados todos a trabalhar para comer. Estão, muitas vezes, dez ou doze a trabalhar toda a sua vida de pé descalço para um andar em sege, quando ele nasceu também para andar descalço. Mas estes abortos duram pouco tempo. Vem muitas vezes um de lá donde nosso Senhor é servido, anda a mourejar, passa por acesso a usurário, deixa um filho carregado com oitenta mil cruzados, este anda de sege, gasta o dinheiro, morre e deixa também um filho que torna a andar descalço como seu Avô. Enfim, somos terra e em terra nos tornamos.
Este era o modo de pensar do meu preguiçoso e ninguém o descia da burra. Vinha muitas vezes um amigo, teimava com ele que fosse tratar de tal ou tal negócio, respondia-lhe ele muito descansado:
— E tratando eu pessoalmente deste negócio quanto tempo me levará? Respondia-lhe o amigo, oito dias.
— Suponha você que eu morro amanhã. De que serve ter principiado o tal negócio?
— Mas podes viver, retrucava-lhe o amigo.
— Então também posso viver seis meses e o Procurador lá cuidará nisso.
— Mas, homem, o Procurador além de demorar, furta. — Deixá-lo furtar. São os pingos do seu ofício e eu não quero tirar a propina ao Andador.
Numa palavra, nunca o puderam tirar do seu modo de viver. Todas as diligências eram baldadas e eu gostava daquele modo de pensar.
A rapariga estava costumada a ver todos os semestres caras novas. Entrou-se ali a introduzir, em ar de vizinhança, um cavalheiro enfronhado em fidalguia, tolo de todos os quatro costados e ignorante por linha recta. Estas coisas todas deram no goto à moça. Ele falou-lhe em amor, ela disse que sim. Ele lembrou-lhe que seria bom fugir. Ela não lhe disse que não. Concluídos os ajustes, trataram de os pôr em execução e, numa madrugada, Bolaverunt de Galhetas.
O preguiçoso acordou, não achou a mulher, mas não lhe deu isso cuidado. Não perguntou por ela. Chegou o jantar, o mesmo. A ceia, o mesmo. Até que lhe disse uma criada:
— Senhor, a Senhora fugiu.
— Pois deixá-la fugir. Não invejo a felicidade de quem foi com ela. — Foi aqui com o vizinho Morgado.
— Deixá-lo ser. Tomara eu saber onde eles estão para lhe dar o abraço de despedida.
— Diz o moço que sabe onde eles param.
— Oh, isso agora é outra coisa. Só isso me faria vestir.
E, com efeito, assim o fez. Pôs-se a caminho com o criado e foi dar com o melro que ficou de cara amarela, visto não ter bico. Mas o preguiçoso entrou a animá-lo e a dizer-lhe:
— Não esmoreça! Vá avante! Eu não venho incomodá-lo, venho despedir-me e dar-lhe um adeus para sempre e beijar-lhe as mãos por tanto favor. Pode ir com todo o seu vagar. Dê cá esse abraço, dê outro à senhora por mim e façam muito boa viagem.
Ora confesso que desesperei vendo tanta pachorra e ao dar do abraço passei para a cabeça do cavalheiro ignorante, e em abraços passei para estas duas cabeças e nestas verão a minha
Ora, enfim, deu a moça com um homem à sua satisfação. Tinha ciúmes dela e fazia dele quanto queria. Era tão material que nunca pôde juntar três letras. Um N, um A e um O para lhe dizer um não. Estava na sua quinta. Ele era um homem dos seus trinta anos e sabia tanto como quando tinha três. Tinha laivos de nobre, tinha bens e uma ignorância tão grande que para tolo não lhe faltava uma oitava. Mas ele prezava-se muito disso pela antiguidade em que a asneira andava na sua casa, que havia o melhor de trezentos anos. E mesmo não estudavam pelo assim mandar o instituidor e ele não querer perder o vínculo. E fazia muito bem que o tempo não está para perder.
Ora o Morgado tinha mais algumas anexas que eram: ter sempre sete bestas na cavalariça, ainda que não tivesse que lhes dar a comer e nem isso era o essencial, porque muitos racionais não comem porque o não têm. Ainda se o instituidor mandara que fossem pintadas. Mas nada, cinco vezes declarara que haviam de ser vivas. Também dizia que no caso de não haver dinheiro para as comprar, as comprassem fiadas, ainda que dessem cem pelo que valesse dez. Que perdessem a sucessão, no caso de não andar de sege, ainda que fosse na traseira.
Na verdade, era muito pensionado o tal Morgadinho. Assim não queria eu, safa! Deixarem-me alguma coisa e, ao mesmo tempo, o modo de o gastar! Como se todos tivéssemos os mesmos humores. Suponhamos nós que eu tinha uma obstrução e que o meu Médico e a razão me mandavam andar a pé. Havia por força andar a cavalo? O ser pobre tem muita coisa má, mas também tem muita coisa boa. Que gosto tem o pobre em comer pão de rala? Mas come-o à sua vontade. Que felicidade é o viver cada um como pode, sem se meter em barulho. Eu, pobre piolho, nasci para me sustentar de sangue e de sangue mau. Ninguém tem que me dizer por isso. Mas se eu intentar tomar café com leite, que dirão? Que admiração não causará? Já as linguinhas más a dizer: —- Olhem lá o Piolho! Já não pode passar sem café! Ainda o outro dia o conheci na cabeça de um tinhoso! Nada, nada, cada um nos seus limites. Entre camisas e anáguas de holanda não se estranha uma pulga e a mais gentil e virtuosa donzela a busca e entre pulos a apanha, sem nojo a mata. Mas se encontrasse um piolho, despir-se-ia logo e lavaria as mãos cheia de nojo e três vezes cuspiria fora. Pois deixemos o seu a seu dono. Ande a pulga por onde andar e o piolho siga o seu destino. Por isso quero dizer: como o homem devia andar em sege, deixá-lo andar. E que tenho eu com isso, nem os meus Leitores? Eu não lhe hei-de pagar as dívidas. Que me importa a mim somá-las? Deve? Deixá-lo dever. Gasta mais do que tem? Deixá-lo gastar. Dorme mal podendo dormir bem? Deixá-lo dormir. Passa os dias aflito, podendo-os passar à regalada de moira? Deixá-lo passar. Morre mais depressa e cheio de aflições? Deixá-lo morrer; eu não tenho que botar luto. E demais, para isso andou em sege e tinha sete bestas fora ele e eu cá, a minha sege há-de ser entre duas unhas que me esperam mais dia menos dia. Nem tudo pode ir direito. O mesmo mar tem seus altos e baixos, quanto mais cá por terra!
Assim vivia o meu ignorantão, sem saber e sem sabor. Pela manhã, erguia-se entre as dez e as onze, vinha um criado vesti-lo, porque ele, apesar de ter a idade que disse, não tinha aprendido a vestir-se, apenas sabia esfregar os olhos quando acordava. Almoçava, punha-se a jogar algum joguinho útil e que não escandalizasse. Quase sempre era o sete-é-ponto e quase sempre perdia. Jantava pelas quatro horas, acabava-se o café pelas cinco, penteava-se, fazia a barba, despia-se e vestia-se, punha a sege, fazia as suas trezentas visitas e ainda lhe ficava tempo para ir a quatro ou cinco Teatros, para aparecer na praça, e no fim disto é que principiava a noite. Toca a jogar e a escaramuças. Recolhia-se das três para as quatro. Entre ceia e conversa, deitava-se às cinco e assim mesmo dormia pouco, não tendo nada que fazer. O que é saber repartir as horas!
Tinha a vista tão costumada ao sono e às cartas que, se por acaso pegava num livro, punham-se-lhe logo os olhos a chorar quando, se o livro tivesse olhos, é que devia chorar por se ver nas suas mãos (era o mesmo que um cristão em Argel).
Leu uma vez um título a um livro bem conhecido: Arte de conhecer os homens, e ficou na maior admiração do mundo, chamando herege ao autor. Dizia ele:
— É pachorra compor um livro para semelhante coisa, como se alguém precisasse de tomar conhecimento, aprender o modo. Os conhecimentos tomam-se nas partidas, no Teatro, nas funções, nos negócios &c. Eu tenho mil conhecimentos e tomei-os sem o auxílio deste autor. Para eu conhecer um homem não tenho mais que ir procurá-lo, oferecer-lhe o meu préstimo e dizer-lhe que desejo a sua amizade. Bota esse livro no lume, rapaz.
E mandou-o queimar e acabou a rir-se e a dizer:
— Se todos os autores escrevem sobre matérias tão insignificantes, têm gasto o seu tempo muito bem.
Leu também outro, que era de versos e tinha por título Verdades singelas. Também se pôs a rir, dizendo:
— Se elas são verdades, por força que hão-de ser singelas. Mas neste caso lhe achei eu razão, porque a singeleza é filha legítima da verdade. Enfim, era um homem que em lendo os títulos aos livros decidia do resto.
Leu outro que se intitulava: Arte de furtar. Então este é que ele não pôde sofrer. Clamava ele, todo esbaforido:
— Que precisão temos nós de semelhante arte, se os costumes do século nos têm dado a natureza. Valham-se da Arte os que não tiverem natureza. Faça-se embora essa arte lá para o sertão, para os Campónios, para os homens que se alimentam do trabalho de seus braços, mas não para gentes civilizadas, gentes do grande mundo que sabem de tudo, que lêem de cadeira nesta pequena, insignificante e utilíssima Arte.
Eu creio que ele lhe chamava insignificante por muito corriqueira. Agora a razão de lhe chamar pequena e que eu não pude conceber. A respeito de utilíssima, está claro. Tudo quanto é venha a nós é útil. Lá o modo não faz ao caso, cada um como pode. Para se tratar de alguma coisa, é preciso que haja essa coisa. Para haver um ofício que cuide nos ladrões, é preciso que haja ladrões. Em não os havendo, está perdido o ofício. E, demais, dizia o tal amigo:
— Eu posso ser ladrão e não ter culpa. Por exemplo, saio todo ao meu pai nos olhos, e no rosado à minha mãe. Tenho culpa disto? Não. Meu pai morreu de estupor, meu avô do mesmo e eu também vou morrer. Eu, meu pai ou meu avô tivemos culpa? Não há tísicas por geração? Pois o mesmo é tudo. Meu avô furtava, meu pai pilhava, eu arrecado tudo que encontro. Que culpa tenho eu disso? São constituições. Os perdigueiros não nascem já sem rabo, e os filhos de branco e de preta não são mulatos? Quem tem culpa disso? Quando muito castigassem o primeiro que tomou o vício. Mas aquele que o herdou! Se meu pai passou impune, como hei-de ser eu punido por ter sido herdeiro a beneficio de inventário? Quando eu tinha sete anos já era guloso, furtava os vinténs a meu pai e mentia que era uma consolação. E eles riam tanto da minha esperteza que eu julgava que tudo quanto fazia era o mais acertado.
Desta forma discorria o meu ignorante e eu gostava de o ouvir porque eu sempre fui muito tentado com a curiosidade de murmurar e mesmo é coisa que não custa muito. Mas para tudo é preciso haver princípios, é preciso criticar e murmurar para emendar os vícios e não para desordenar famílias. Um murmurar de tal forma que o mesmo cúmplice se coce e se cale para sua honra. Pois quando a murmurar se ganha dinheiro, isso é tão belo, ainda que também às vezes se ouvem muitas boas, mas valha-me Deus! Tudo tem seu desconto. Isto de ganhar dinheiro há-de ter algum trabalho. Eles falam de mim, mas de graça. Eu falo deles por dinheiro. Ora repartam esta quantia por dois e vejam quanto sai a cada um e verão que na prova fica o primeiro com trabalho e sem dinheiro e o segundo com dinheiro e sem trabalho, porque quem tem dinheiro não tem trabalho. Mas estas coisas a mim não me importam, cada um seu caminho e vivamos todos. Eu, como piolho, cá estou nos meus pequenos limites e bem claro se deixa ver que não vou pastar a terras estranhas. Vivo, por ora, do que é meu. Se precisar, — também não sou capaz de o negar —, sou um pobre e triste piolho que ainda me meto, às vezes, por costuras. São aquelas que estão mal alinhavadas. Onde há pesponto passo-lhe por cima mas sempre é preciso ter muito cuidado comigo porque eu posso ir à cabeça de qualquer e contar depois o que são por fora e o que têm por dentro, se o têm. Alerta vive a galinha e vive com a sua pevide e se lha querem tirar, usem de vinagre e alho e não lhe importem as galinhas alheias porque lhe podem ir ao galinheiro. Governe cada um o seu carro que ainda que eu conheça que a madeira não é sua e os bois são emprestados, nem por isso hei-de dar a minha picadela. Adiante. Tornemos ao nosso Morgado, o qual tinha outro livrinho que se intitulava As chaminés caídas por força do fumo, cujo livro eu traduzi e tenho tenção de o dar à letra redonda no acabamento desta minha vida, assim como uma novela original que tenho composto, intitulada A cadelinha, obra que se tiver saída é de muito pouca utilidade para os cães.
Eis aqui de que era composta a livraria do meu pedante, e de folhinhas velhas, histórias que ele gostava muito de ler pela grande notícia das enchentes e vazantes das marés. Tinha um Burro Pai que lhe tinha custado vinte e quatro moedas que era a menina dos seus olhos. Era das melhores raças e das mais antigas. Descendia de uma tal geração donde vêm também os burrinhos velhos que fazem as crianças. Ele tinha-lhe a sua árvore de geração mas eu nunca fui grande genealogista. E as árvores da geração dos burros têm muito que entender, porque nunca se lê outro nome, senão burro Avô, burro Pai, burro Filho, burro tal, burro lá &c., de forma que em lugar de árvore de geração podia-se-lhe chamar burra de geração.
Tinha a sua carruagem de cinco rodas, quatro em que a sege montava e uma roda-viva em que andava noite e dia. Tinha duas parelhas, uma macha e outra fêmea. Tinha dois cavalos inteiros e um serrado, creio que em duas metades porque eu nunca o vi. Ouvia dizer que era serrado. Também não sei se ao comprido se à largura.
Tinha uma burra que servia a casa de escada abaixo. Nunca a vi em cima. Morava numas casas de que pagava de renda trinta moedas. Fiquei-lhe sabendo o preço pelas muitas vezes que ouvi falar nisso ao senhorio, quando lá ia visitá-lo, que era muito a miúdo. Cá o patrão estava já tão aborrecido das visitas que, as mais das vezes, negava-se-lhe. Tinha quatro criados vestidos de Arlequins, porque traziam as suas sete ou oito cores nas casacas. Tinha dois criados graves, mas os vestidos eram pouco honestos. Tinha cinco criadas, duas de almofada e três de travesseiro. Tinha um moço de cavalariça que tratava das bestas, dormia com elas e comia com elas. Quero dizer, furtava-lhe a cevada quando lha deitava mas as bestas não o deixavam dormir muito. Tinha uma Quinta de regalo do tamanho da ilha que governou Sancho Pança. O que lhe faltava era o passeio de urtigas, mas tinha-lhe semeado tojo.
Alumiava-se com cera e quando lhe pediam dinheiro para a comprar, respondia: — Sebo. Mas não se servia dele.
Basta de falar de um ignorante. Vamos a falar de um mentiroso a cuja cabeça eu fui e que era amigo do tal. Saíram ambos de sege para irem a uma função e eu não queria andar mais em sege por me não costumar mal. Passei para a cabeça do mentiroso, que a não tinha, isto é, sege. Que cabeça, tal qual, havia-a e nela vai a
A grande arte de mentir é a que entre todas as mais tem tido mais aceitação. Ela tem chegado ao último ponto da aceitação, tem sido adoptada por todas as nações com diferentes nomes. Apenas temos uso da razão, já nossos pais no-la vão ensinando com todo o cuidado e vigilância e insensivelmente nos entranhamos nela com tanto gosto que uma pequena conversa, quando não é marchetada com trezentas ou quatrocentas mentiras, é o mesmo que comer sem sal: não tem graça alguma e, a poucos passos, estão todos a dormir.
Uma criança apenas nasce é logo lançada para fora dos braços de sua mãe e da sua ternura. A ama, que toma conta dela, a julga uma carga que só a dinheiro se pode suportar. Dá-lhe o peito bem como uma cabra que foge do mungidor, apenas lhe larga a teta. Assim é a criança arrancada do carinho de sua mãe a qual, quando a cria, ainda depois a ver satisfeita e lhe ter largado o peito, a afaga, a une a si e a beija e entre meiguices dorme. E isto também nutre os filhos. As avessas, nos braços de uma ama, que logo a lança no berço, com um pé a embala para não perder a fiadura e a pobre criança é acalentada com os seus mesmos choros.
Tendo sido criada sem amor, chega a casa dos pais, estranha-os e antes quisera tornar para onde foi mantida, apesar do desalinho e indigência, só pelo nome de filha que a ama lhe dava e continua a dar, enquanto chupa alguma coisa da casa.
Chegada à idade dos cinco anos fica entregue ao cuidado de uma criada, porque a mãe não tem lá tempo para essas coisas. Tomara ela tempo para pentear-se, jogar e tratar de algumas modas. A criada vai-a tratando à proporção do ordenado. Por consequência vai sendo muito malcriada, teimosa, enxovalhada, gulosa &c. Mas a criada diz a isso: — Se aos pais não lhe importa, que farei eu, que a não pari nem vi nascer? Chega à idade de sete anos e a pobre criança não ouve senão mentir. Os criados dão Senhoria aos pais e é mentira; dá-se dom a uma amiga, e é mentira; procura um credor o pai, diz-se-lhe que não está em casa e é mentira, que ele está-se penteando e divertindo com o cabeleireiro que lhe está dando notícia das moças do bairro e, no fim, pede-lhe para tomar neve e leva o seu cruzado-novo. E o credor vai andando, que não leva real. E se quiser refrescar a boca, há-de ir beber a um chafariz porque a caridade vai estando tão apurada que já em qualquer parte onde se pede água se nega com toda a frescura. Já lá vai o tempo em que água, sal e lume era comum de todos, a qualquer parte onde se chegava. Hoje, o que se encontra de certo a cada porta, são dois ou três cães que ladrem e que botem uma perninha abaixo, de que o dono e os vizinhos se riem muito por verem a esperteza e a galantaria do cão. Algum dia só uma quinta tinha cão, que era preso de dia e solto de noite. Ou alguma casa rica para lhe guardar o coscorrilho. Agora, não senhor, já os cães não guardam as casas. Os donos e as donas é que guardam os cães.
Ora eu, agora, merecia unha! Que disparates que tenho dito! Que tem nada disto com o mentiroso de cuja cabeça trato? Eu sempre sou bem fastidioso a ler. É preciso muita paciência para me aturar. Vejam que embrulhada fiz para dizer que um homem mente! Meus senhores, perdoem, valha-me a indulgência de piolho e de piolho autor, e de autor novo. E agora vou a falar no réu mentiroso, sem me apartar mais dele.
Se as mentiras tivessem extracção por dinheiro para outras terras, que negociante não seria este! Que carregações não faria! Mas graças para sempre, já ninguém precisa deste género e todos se vão remediando com a prata da casa. O tal amigo era solteiro. Quando se lhe ia um criado (que ele era de tão bom génio que nunca os despedia e, apesar disso, era tão desgraçado que o mais que lhe duravam eram dois meses) e vinha outro, perguntava-lhe logo: — Sabes escrever, bolear, fazer chocolate e limpar botas? — Sim senhor, respondia o moço (que às vezes, ou quase sempre, ou sempre, era um refinado velhaco com o sobrenome de brejeiro e o cognome de ladrão, sem haver aqui mentira nenhuma, porque sou eu que falo, não é o mentiroso). — Muito bem. Eu costumo dar, cada mês, oito mil réis a seco. (Mentira, que não lhe dava senão o seco e por isso lhe não aturavam). O fato velho é todo teu, e o calçado, isto é, depois de me teres servido os primeiros três meses. (Mentira, porque não o serviam mais que um ou dois). É preciso que me entendas pelas acções que eu não gosto de falar muito. Por exemplo: procura-me um homem que me traz um pouco de dinheiro. Se tu me vires de beiço caído, não estou para lhe falar e tu deves logo despedi-lo. (Mentira, porque quem o procurava era para pedir-lho, que ele era tão desgraçado que ninguém lhe devia nada). Procura-me uma rapariga que não é feia. Deves logo dizer-lhe: Eu não sei se lhe poderá falar, veio agora um rendeiro trazer-lhe dinheiro e está a contá-lo. Mas eu lhe dou parte. Finges que vens dentro e manda-a entrar. Percebes o que te tenho dito?
— Sim senhor, já o outro amo donde eu saí era o mesmo. — E então porque o deixaste?
— Porque não me pagava.
— Isso não há-de a ti suceder comigo. (Mentira, que é o que sucedia a todos. Estava tão costumado a mentir e a negar que negava quantas dívidas tinha e uma só vez na sua vida não tinha falado verdade, à excepção do dia em que eu lhe fui à cabeça, que se chamou tolo a si mesmo).
Era de uma boa família e todos sabem que quem não mente não é de boa gente. Já seu quinto avô mentia, e dele até ele não tinha havido quebra na geração.
Estava uma tarde à janela, passaram dois amigos e perguntaram-lhe se morava ali. Respondeu-lhes logo que não, só por mentir, e mais precisava de falar a um deles. Mas para não perder o costume não disse que sim.
Perguntou-lhe um dia um padre se sabia ajudar à missa; disse-lhe que sim, e era mentira, que mal a sabia ouvir. Pediu-lhe que lhe fizesse mercê e o pobre nem para trás nem para diante sabia responder.
Mentia por costume e teima e estava tão acreditado que, em abrindo a boca, logo diziam todos: mente. Quem queria as suas duas mentiras de repente e não tinha mulher em casa para lhas dizer, ia ter com ele (era comer feito) e logo ali de pé para a mão lhe dava meia dúzia. Muitas vezes em quatro palavras dizia quatro mentiras e quatro asneiras e acomodava oito pessoas com pouco mais de nada.
Uma ocasião é que eu fiquei bem de uma mentira que pregou. Estava a coçar na cabeça com muita força. Diz-lhe uma Senhora. Tem muito piolho, senhor Fulano?
— Nada, minha Senhora. Tenho a cabeça limpa como uma pedra de amolar. (Mentira no caso, a limpeza era toda por dentro da cabeça). E nunca mais se tornou a coçar diante da dita. Era um gosto vê-lo com qualquer a quem ele devesse. O que lhe prometia! O que jurava! Numa palavra, o que mentia! Perguntou-lhe uma vez um sujeito: — Vossa mercê não é filho do senhor Fulano?
— Não senhor, lhe respondeu logo.
O outro, que o conhecia muito bem, tornou a instar: — Pois vossa mercê não é o senhor Fulano, filho do senhor Sicrano e da senhora D. Tal?
— Da senhora D. Tal, concedo; do senhor Sicrano, nego. — Pois a senhora sua mãe foi casada outra vez?
— Não senhor, mas eu tenho cá as minhas desconfianças que sou filho de coisa mais alta.
— Basta, basta, meu senhor, já estou calado.
E o meu mentiroso, antes quis deixar a honra da sua mãe em dúvida que a sua mentira.
O mentir é um vício que em se arreigando é uma espécie de cancro. Bota tantas raízes e tão fundadas que não se arrancam sem muitas dores. A mentira é uma planta que se semeia no coração de uma criança. Os pais regam-lha, os criados tiram-lhe o fruto, o terreno é próprio porque o coração do homem é próprio para todos os vícios, assim como para todas as virtudes. O inocente cresce. E como pode ele lançar fora de si o veneno com que foi criado e que se senhoreou de todo o coração? As bexigas ou o sarampo são moléstias anexas à inocência. O mentir não. O cavalo une a anca à parede, salta um fosso, perde o medo daquilo que mais o intimida porque lho ensinaram. O homem mente porque lho ensinaram também ou porque sempre se comunicou com quem o usava.
O mentir não é muito antigo. É do tempo que nasceu a Política e tomou a sua maior força do tempo, que os homens quiseram passar com mais do que tinham. No fim daquele tempo em que os homens que não tinham rendas para andar em sege se contentavam com andar a pé; no fim daquele tempo que as mulheres atavam um fita ao redor da cabeça e, depois de lhe ter durado um ano, a lavavam para lhe botar fora mais um semestre.
A semente Luxo é quem produziu os mentirosos. No tempo em que as Matronas romanas fiavam e teciam aos panos para seus maridos, estes maridos foram os heróis de Roma. No tempo em que o luxo e a magnificência entraram em Roma, os netos daquelas Matronas e daqueles heróis foram flautistas e rabequistas.
Enfim, tudo muda. Cada idade traz diferentes costumes e cada costume vai mudando o homem. Mas o tempo não vai mau para os piolhos. Assim é que este século é de mais luxo, de mais riqueza, de maior miséria. Mas de muito mais porcaria que os séculos passados. Meus pais me contavam que, algum dia, todos os sábados[1] ao mais tardar, se limpava a cabeça[2], lavava os pés, cortava as unhas. Hoje, não senhor! Há tal que não cuida da cabeça senão de sábado a sábado, isto é, de Aleluia. Hoje já ninguém corta as unhas. Tomaram alguns ter mais, ainda sem ter mais dedos. Isto de lavar os pés e o corpo é só de Verão, porque vão tomar banhos. Em se acabando esta moda, adeus lavagem. Mas, na verdade, é bonita moda, ao menos das mais asseadas do meu tempo e, então, é remédio para tudo. Hoje pouco custa o curar, é mandar tomar banhos. Tem dor de dentes? Banhos. Tem calos? Banhos. Tem estéricos? Banhos. Tem maligna? Banhos. Tem espinhela caída? Banhos. Está para morrer? Banhos, &c. e nem por isso morre muita gente. Quando muito duram menos, é o mais que fazem. Outro dia caiu um homem ao mar, andou perto de três horas a lutar com as águas. Trouxeram-no para terra, entraram a trabalhar nele com a máquina fumigatória e vendo um que ali estava que o homem não tornava a si, acudiu muito depressa a dizer: Metam-no em água, banhos e mais banhos que tenho visto fazer milagres com este remédio. E é verdade que sim. Eu sei de uma rapariga que se pegou com tanta fé com os banhos para o fim de casar, que ao cabo de vinte e cinco banhos tinha achado noivo e tinha casado e já estava com esperanças que o morgado não fosse à Coroa.
Que me dizem vossas mercês a tanto destempero que eu tenho dito? E ainda me hei-de escandalizar se não me lerem e não tiver saída! E coisa galante! Jamais posso contar coisa que não lhe meta a minha moralidade, como que eu fosse capaz de dizer alguma coisa. Como mal sei contar o que passo e vejo nas cabeças dos mais, também quero meter coisas da minha cabeça. E estou ouvindo, por instantes, chamarem-me pedaço de asno, ficando quem mo chamar, já se sabe, com o resto desse pedaço.
Senhores, não quero secá-los mais. Fiquem sabendo que o homem mentia muito, que o costume é mau, que tem más consequências, que se algum de vossas mercês que lerem este, tem a manha, que a deixe que não perde nada. E se não a quiser deixar, não a deixe. Se a vossas mercês se lhes não dá disso, menos dá a mim. Saúde. Eu vou agora fazer a minha carapuça para a cabeça de um que era amigo de todo o mundo. Todos eram seus amigos, (dizia ele), e ele era amigo de todos. E fiz esta passagem de cabeça numa ocasião que o tal abraçava o mentiroso e lhe apertava a mão, e lhe dava um beijo que era o cumprimento que fazia a todos. Guarde Deus a vossas mercês.
Notas
- ↑ Isto é, no tempo em que havia sábados, porque hoje tudo são dias santos para alguns, que nunca trabalham. [N. do A.]
- ↑ No tempo em que os corpos tinham cabeça. [N. do A.]
Talvez que vossas mercês cuidem que o tal homem amigo de todos era um bom homem. Pois não, senhores, era um daqueles, como lá dizem, que tinha cabelo no coração. Espreguiçava-se nos males do seu próximo. E chorava com ele, se era preciso, aqueles mesmos males.Que palavras tão doces, tão brandas. Não se lhe ouvia senão Deus o ajude!, Deus o acompanhe!, Seja tão feliz como eu lhe desejo!, Dê cá esse abraço que há tanto tempo que o não vejo! Que saudades que tenho tido suas!, Quero-lhe como a meu irmão! Não fazia senão oferecimentos mas se o procuravam não era aquela ocasião própria para o servir. Espreitava quanto se passava na vizinhança, o que no outro dia depunha, chorando a infelicidade daquela pessoa, que Deus lhe acudisse. Mas ia contando o que tinha visto. Se via uma rapariga botar um escrito da janela abaixo, contava que tinha visto um homem subir por uma janela acima. Era tão farto que coisa que visse nunca a contava senão em dobro. Recolhia-se sempre às Ave-Marias, e mais, deitava-se pelas cinco horas da manhã. Todo este tempo que mediava, ocupava-o em contemplar na sua vizinhança. Se via um pobre com uma chaga nalguma das partes do corpo, virava a cara para a banda, sem ter ânimo de pôr os olhos naquela miséria nem de lhe dar cinco réis. Ajudava muito o próximo!
Todas as crianças que via eram malcriadas e contava então o ensino que lhe tinha dado seu pai. que era uma coisa por aí além. Contava sempre histórias cheias de caridade. Se via um rapaz gostar de uma rapariga, amaldiçoava-o, que era um perdido, um mau homem, sem honra, sem fé, sem probidade. E ele tinha as suas duas ou três e não se lhe podia fiar nem a fêmea de um colchete. Era capaz de desinquietar o diabo se lhe aparecesse com boa cara.
Talhado para uma denúncia como ninguém! Se lhe pedissem que fosse jurar, que João tinha roubado uma igreja, ainda que o não soubesse, ia só para dizer bem do seu próximo e não ter ânimo de dizer que não. Se o descompunham pedia perdão de joelhos e acabava dizendo: — Pois apesar de tudo quanto vossa mercê me diz, sou muito seu amigo; tomara eu ter ocasião de lho poder mostrar, que mal sabe quanto o estimo; eu lhe perdoo de todo o coração tudo quanto me tem dito e o que me deseja, se é que mo deseja. Muito mais devo eu sofrer aos meus semelhantes.
No fim de tudo isto deu em ladrão e contarei a vossas mercês um caso que lhe sucedeu que me parece digno de ser ouvido.
Ia todas as tardes para casa de um boticário onde conversava pelo modo que tenho dito e todos o tinham por um santo. Em chegando à volta das Ave-Marias, despedia-se. Os amigos teimavam com ele que se demorasse. Mas ele não convinha e o que respondia era: — Nada, meus amigos, recolher com as galinhas. E não houve forças humanas que uma só vez o pudessem fazer recolher depois de elas dadas. Mas que fazia ele? Recolhia-se para casa, punha-se a passear e a rezar de rijo, ceava, deitava-se e em sendo meia-noite levantava-se, vestia o seu jaleco, as suas calças e metia a faca e as suas duas pistolas na algibeira. Saía pé ante pé e ia ter com a companhia de ladrões aonde estava alistado. Feitas as caravanas daquela noite, repartiam os despojos e ele nunca queria senão dinheiro. Uma bacia de prata que lhe coubesse e valesse vinte moedas, em um dos companheiros lhe dando duas em dinheiro não queria mais nada, de forma que o que lhe tocava do negócio sempre era em dinheiro. De madrugada recolhia-se muito de mansinho para sua casa, deitava-se outra vez, levantava-se pelas oito horas, tornava a passear e a rezar, saía depois. Ia ouvir missa, jantava, recolhia-se a casa, dormia a sua sesta e, em sendo quatro horas, de Verão, ia para a botica conversar com os amigos, e de Inverno saía às duas, ia primeiro tomar o sol, depois botica e outra vez casa, recolhendo-se sempre com as galinhas. E assim ia passando a vida às mil maravilhas. Mas o mundo, que já estava enfastiado de o aturar, e o diabo que queria lá um que ao recolher das galinhas estivesse em casa para descansar o cão que lhe guarda a porta, fez com que prendessem o capitão da tal quadrilha por uma galantaria mais avultada que tinham feito uma daquelas noites, em que coube ao nosso amigo de todos perto de seiscentos mil réis, (já se entende, em dinheiro). Pregaram com o capitão no segredo e ele foi logo depondo quem eram os companheiros, entre os quais entrou o meu bom homem Foi preso e vasculhada a casa em que não encontraram coisa alguma de suspeita. Encaixaram-no também no segredo mas ali não havia que arranhar. Ali não tinha o Ministro que fazer nada de confissão, apesar de que quando estava solto se confessar a miúdo. O capitão teimava e reteimava que aquele era um dos ladrões. O Ministro chamava-lhe insolente, que era mentira, que todos diziam bem daquele homem. Ao que o capitão clamava: — É falso, senhor. É um dos principais. Metam-no aqui num segredo ao pé de mim, espreitem o que eu converso com ele e verão se é quanto digo.
Assim se fez. Puseram-no paredes meias e puseram-se à escuta. Quando foi alta noite, gritou o capitão: — Ah, senhor Zacarias? — Senhor Zacarias?, respondeu o amigo. Que é lá isso! Quem me chama
— Eu, senhor Zacarias.
— Não o conheço pela voz.
— Pois vossemecê não conhece o seu amigo e companheiro Mamede? Ah, senhor Zacarias, este último furto botou-nos a perder! Nunca tal intentássemos! Mas, ao menos, negue vossemecê que eu farei o mesmo.
— Bata lá para outra porta, amigo, não é cá para esta. Se é ladrão, pague o que tem feito, mais os seus camaradas, que eu, graças a Deus, não tem ninguém que me dizer. Sempre trouxe o meu capote muito redondo.
Desenganaram-se. O homem deu uma justificação com toda a sua vizinhança e com os amigos da botica, que sempre se recolhera com as galinhas. Os outros nada provaram, antes às avessas, tudo lhe provaram. Apenas declarava a sentença que o amigo de todos saísse livre e solto com o corpo todo, e os outros que deixassem primeiro a cabeça num lugar que lhes destinaram e que dispusessem do resto à sua vontade. Tornámos para nossa casa e, por acabar esta história, sou obrigado a contar o que ouvi dizer alguns anos depois (porque eu pouco mais me demorei na sua cabeça, como verão), que quando morreu se acharam no seu testamento estas significativas palavras: Quem quiser roubar e matar a seu salvo na terra onde fui nascido, é preciso que tenha o cuidado de se recolher com as galinhas. E é assim que um maroto destes estabelece o seu crédito no bairro aonde mora e nos outros faz toda a qualidade de desaforo. Mas por onde se indaga da conduta do homem é pela vizinhança. Tem roubado nos outros bairros trinta para dar dez no céu e o negócio é maravilhoso. Este tal homem era tão gírio que quando tinha na sua rua algum doente pobre, saía de tarde para o campo a furtar uma galinha, no que era eminente, e vinha para casa depená-la, apesar de a já ter depenado à dona. E ia dá-Ia pelo amor de Deus ao doente e todos ali pela rua lhe chamavam santo e, na verdade, parecia-se com eles, mas das aparências nem sempre se tiram realidades. Tenho visto pessoas com duas rosas na cara que parecem que vendem saúde e são doentíssimas. Não senhores, não está o caso em mostrar bondade. Está em tê-la no coração. Quantas vezes a boca está cheia de açúcar e o estômago amarga como fel. As vezes dá-se um beijo e nele um bico de alfinete envenenado. É preciso cuidado com estes negociantes de palavras de caramelo feito de açúcar mascavado. Há tal que ajoelha para melhor dar uma facada. Eu conheci um que dava, por amor de Deus, um remédio para sezões e misturava-lhe vidro moído.
Mas damos por concluída a vida deste bom homem, amigo de todos, e vamos contar o modo como eu fui ter a outra cabeça. Continuámos no mesmo costume de ir para a botica e de recolher com as galinhas mas, como então não havia que fazer pelo ofício, porque ainda se não tinha metido com nova quadrilha, não tinha dinheiro, pois o que a justiça lhe tinha achado tinha sido justiçado. E, nestes termos, tentou negociar e até para mudar de vida, para ter outra que fosse mais decente e que ninguém tivesse que lhe dizer. Sentou de negociar em contrabandos para o que procurou um companheiro e achou-o de molde. A tal botica ia um homem com o semblante acarrancado, jogava à arrenegada e ele mesmo era arrenegado de ofício. Era um homem que nunca tinha sido amigo de pessoa alguma. Chamava-se Germano e era inimigo do género humano. Com este tal é que tratou a empresa e a negociação. Foram-lhe aceitas as condições e uma das quais foi que viveriam juntos para maior economia.
Veio para casa o novo dono e companheiro e eu, que tinha viajado na cabeça de um homem que era amigo de todos, tive vontade de ir à cabeça de um que não era amigo de ninguém para o que, uma noite, (que eles deixavam luz acesa), despedi-me do meu bom homem em latim e fui para a cabeça do mau, na qual faço a
Este mau homem, ou este homem que não era amigo de ninguém, não era um verdadeiro misantropo. Não gostava da sociedade dos homens e, ao mesmo tempo, não era seu inimigo. Era duro mas não exercitava essa dureza. Via sem custo uma ferida mas não era capaz de dar um golpe. Era mau mas muito e muito melhor que o bom de quem acabei de falar. O outro escondia o que era, este deixava-se ver. Ou fosse criação, ou fosse que os homens o tinham tratado mal, fugia deles. Não os acariciava mas não os iludia. Se lhe pediam uma esmola, dizia não quero dar. Mas não dizia, não posso, meu irmão, tendo as algibeiras cheias de ouro. Não era amigo mas não dizia que era sem o ser.
Jamais o ouvi rir nem chorar. Era tão áspero que nem as mulheres o amaciavam. Sempre era o mesmo tom que tinha com todos. Jamais o vi contente, mas também não posso dizer que o vi triste. Andava eu a cismar com a tal criatura e não estava muito contente de viver com ele. Poucos dias passaram que lhe estava na cabeça, quando ele diz ao cabeleireiro: — Senhor Mestre, corte-me o cabelo e dê-me com um pente de bichos. Eu não sabia o que havia de fazer e fiquei tão fora de mim que me mexi mais do lugar onde estava. Fez-se a penteadela e acabada que foi sacudiu-se a toalha na rua. Fui cair sobre um homem que passava, o qual era muito asseado e o mais amante homem daquele tempo, cujo amante é o que leva a
Caí na cabeça de um homem que me parecia muito asseado e era um porcalhão de todos os quatro costados. Tudo era aparência, à excepção de amor, porque era o mais amoroso homem daquele tempo e contarei coisas dele, galantíssimas e raras.
Tinha, ao tempo que eu lhe caí na cabeça, só catorze raparigas. Coitado! Tinha então falta delas porque ouvi-lhe dizer uma vez que chegou a ter quarenta e cinco, fora três velhas que o andavam perseguindo e que ainda não tinha decidido se lhes corresponderia ou não. Ao menos ainda as tinha no borrador.
Eu via-lhe todos os livros pertencentes a esta negociação. Eram três: borrador, carga e descarga. As catorze todas morriam por ele e ele morria por todas as catorze. Elas, entre si, é que tinham às vezes alguma escarapela', se sabiam umas das outras, mas ele acautelava-se muito nisso.
Parece à primeira vista que este homem teria muito trabalho para a correspondência. Pois não senhor, os seus escritos eram como letras de câmbio. Primeira via, segunda, terceira &c., até chegar a catorze. Em tendo feito o primeiro escrito, os mais eram cópias. E se não levasse o negócio assim, precisava ao menos quatro caixeiros. O que ele tinha era mais sócios que entravam no negócio e que repartiam os ganhos sem ele o saber. E muitas vezes perdia, que era o mais.
Mas que galante peça era vê-lo preparar para entrar na derrota do namoro! Ele era tão pobre que para lhe chover em coisa sua era preciso que pusesse o capote à janela. Tinha umas meias de seda branca que tinham sido palmilhadas sete vezes. Isto soube eu porque a palmilhadeira lho escarrou na cara, pedindo-lhe o conserto de seis vezes. Andavam já tão azuis do anil como o coração, que o trazia em contínuo ciúme; tinha umas calças muito apertadas de forma que ainda depois de feitas, o Alfaiate apertava com ele para que lhas pagasse, mas ele nisso tinha a consciência larga. Ora por não me demorar no fato, digo de uma vez, e sem mentira, que de tudo que trazia vestido e tinha guardado, posto na feira da ladra na mão de um adelo hábil não se tiravam dois cruzados-novos. Mas escova e greda não lhe eram falsas. O comer era correspondente ao vestuário. Pode-se dizer que vivia de amor. E eu vim no conhecimento que o amor é a febre que sustenta. E as noites que ele passava à vela por qualquer coisa, umas por satisfeito, outras por arrenegado! Qualquer coisa o punha nos extremos. As vezes vinha para casa tão desesperado que, ainda mesmo que tivesse de comer, não ceava nada. Punha-se então a passear e de quando em quando parava. Dava um suspiro (que era pena que não fosse o último) e entrava a gritar e a dizer: — Aquela ingrata, ir-se pôr ao pé daquele tratante depois de eu lhe ter dito que não queria, que nem lhe pusesse os olhos! Fazer pouco caso dos meus mandados! E que não possa eu vencer do meu coração e deixá-la!
E punha-se a chorar como uma criança. Forte vontade tinha eu de lhe dar com um chicote quando o ouvia soluçar. Outra noite vinha desesperado porque esperou até às três da manhã e a cachorra não tinha aparecido e esteve a dormir a sono solto. Outra noite porque não lhe tinha sido possível passar-lhe um escrito e o galego já lhos aceitava de má vontade, depois que lhe prometeu uma de seis a qual ainda não apareceu. Outra noite, porque embirrou num carro que estava a pino no meio da rua e lhe esmurrou as ventas, que sabe Deus se foi carro se foi alguém que lho fez por caridade, a ver se tomava emenda. Outra noite, porque quando chegou já foi tarde e já outro mais aguçoso estava falando com a suplicada. Nessa noite cuidei eu que se enforcava (mas nada de novo) e prometeu que havia de matar o tal madrugador. Vejam se ele não tinha tido ânimo de lhe dar naquela ocasião tão própria, como o faria daí a tempos e sem estar à vista o motivo da desgraça! Outra noite, porque tinha metido o pé numa poça e tinha sujado a meia até ao quadrado e não podia sair cedo no outro dia, porque era preciso que fossem primeiro lavadas e enxutas. E ele era tão asseado que fazia tudo pelas suas mãos e mais não tinha ninguém que lho fizesse. E uma noite que esteve a conversar com uma das catorze Marílias, e era o pai dela! Que, no fim de tudo, descompo-lo e desceu abaixo para lhe dizer um segredo. Correu tanto que, quando chegou a casa, trazia os bofes da camisa delidos e mais não eram muitos bofes. Que ele não tinha maus bofes e um coração tão bom que era de todas.
Tinha passado quarenta e tantos escritos de casamento e isso foi no tempo em que ele ainda não sabia escrever. Que depois que não tinha precisão de incomodar os amigos, havia dia de meia dúzia. E uma carta que lhe escreveu uma moça que ele, toda uma noite, não fez mais que lê-Ia, de forma que não tendo eu boa memória, fiquei-a sabendo de cor e era assim:
Senhor Manuel Pachorra.
Se não fora o muito amor que eu lhe conservo, não tornaria a pôr a minha mão em pena para lhe escrever. Porque além de meu pai me dizer absolutamente que não quer que eu me case com vossemecê; que vossemecê é um peralvilho; que vossemecê bebe a sua gota mais do que devera; que vossemecê tem por ofício andar desinquietando as raparigas honestas de casa de seus pais; que a vossemecê todas lhe parecem bem; que vossemecê, se tem ocasião, saca o seu lenço da algibeira, sem ser da sua; que vossemecê, vintém que pede não o paga; que vossemecê me há-de pôr um pau às costas; que vossemecê não me há-de dar de comer &c., eu não tenho feito caso de tudo isto porque o meu amor é maior que isto tudo. Mas que vossemecê nas minhas barbas venha namorar a contrabandista minha vizinha, para ela agora me fazer pirraças da janela abaixo, isto é que eu não posso levar à paciência. E se vossemecê não põe cobro nisto, certamente me enforco. Mande-me vossemecê a resposta pela chaminé e tenha cuidado de a não deitar a horas que o lume esteja aceso, que o que botou ontem à noite caiu nas brasas, incendiou-se e deixou-me como uma brasa, por não saber o que me dizia na sua. De vossemecê,
Afonsa.
Ele picou-se da carta e respondeu-lhe nestes termos:
Senhora Afonsa.
Se seu pai tivesse mais juizo e vossemecê não fosse tão tola, nem seu pai diria a vossemecê o que lhe disse de mim, nem vossemecê me diria a mim o que lhe disse seu pai. Mas a culpa tenho eu por não me meter com gente da minha qualidade. A honra que eu lhe queria fazer da minha mão, era em razão do amor que lhe tinha, que na verdade era um amor como nunca tive a ninguém. Mas nem vossemecê o merece, nem vossemecê sabe o que é amor, nem vossemecê sabe o que é ter às suas ordens um amante desta categoria. De hoje por diante pode vossemecê procurar sua vida, e também pode procurar pai, porque o que Deus lhe deu e que teve o atrevimento de abocanhar a minha pessoa, tenho resolvido mandá-lo para a outra vida no prefixo termo de vinte e quatro horas, a quem vossemecê dará este aviso para que se disponha para a jornada e que não tenha o trabalho de me meter empenhos porque estou resolvido. A vossemecê não a castigo como merecia, pois bem lhe basta a desgraça de descair da minha graça e perder um coração deste calibre, de que hoje nem os fígados lhe quero dar. Muito seu
Manuel Pachorra Sovaço.
Depois de tudo isto, ele sempre cedeu. A rapariga mandou-lhe dizer que o pai confessava a sua inópia e remeteu-lhe, demais, dois cortes para véstias. Fizeram logo as pazes.
Tinha também uma velha que namorava. A essa lhe pilhei eu três escritos que ponho aqui por me parecer que hão-de interessar os meus Leitores.
Primeiro
Tomo a confiança de ser a primeira em escrever-lhe porque a sua verónica tem atacado de tal forma a minha formosura, que ainda que seja indecente ao meu carácter ser eu a primeira que persuado, a paixão de que me vejo possuída não deixa pôr reparo à decência que se me deve. Vossa mercê certamente terá visto nos meus olhos, se bem tem reparado, que lhe estão dizendo amor e o meu coração, na sua presença, palpita tanto que parece que quer sair fora do peito para se lhe mostrar. Conheça a sua fortuna e o meu merecimento e saiba que é a primeira pessoa que me possui com tão pouco custo. De vossa mercê
Esmeralda.
Segundo
Cada vez se aumenta mais a minha paixão e certamente, se o amor lhe não põe limites, nem o Terreiro do Paço será suficiente para tanto amor, e mais vossa mercê tem algum bocadinho de ingratidão. Mas vossa mercê sabe a quem o faz, conhece que ainda estou muito rapariga e que estou no fogo das minhas paixões e, como esperto, conhece que uma noviça de amor custa a perder e a deixar o amante que lhe encadeou a alma. Mas não se engane vossa mercê com isso que pode muito bem a sua esquivez apanhar-me de vez, que eu, sem vossa mercê ser ouvido, entregue o coração a algum dessa roda de amadores que me andam ao socairo. Segur se, e o mais fica por conta da sua
Esmeralda.
Terceiro
Já basta de lhe aturar os seus pinotes. Se eu soubera que vossa mercê era uma alimária anfíbia, há mais tempo que eu tivera escamoteado o meu amor para outra parte. Mas a tola tenho sido eu em lhe fazer confissão e entrega dele, mas desde já lhe digo que de hoje em diante não quero com vossa mercê mais nada, e não se lembre mais dos meus extremos, que eu ponho a sua pessoa num total esquecimento. E se eu pensara que a minha memória se ocupava o mais pequeno minuto com a pessoa de vossa mercê, era capaz de a arrancar da cabeça para a fazer em mil bocadinhos. Deus guarde a pessoa de vossa mercê.
Esmeralda.
Tenho mostrado que tal era o menino e que tais eram as meninas. Mas ele sempre era muito papelão, sem lhe fazer favor nenhum. Comia ópios que elas lhe pregavam como quem comia requeijão e o mais era ele prezar-se de muito esperto e que ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha, quando lho faziam na testa sem ele o sentir. Se ele era tão papalvo que, em vendo moça, já julgava que estava morrendo por ele. Em se sorrindo para ele, ainda que fosse escárnio, já o tomava por amor. Podiam-lhe dar cacholetas que, para ele, tudo era amor e mais amor. Não estava mais na sua mão, tinha nascido para amor e para morrer de amor. Se o derretessem ou metessem num alambique, saía a quinta-essência do amor. Se o amor paga os serviços, forte comenda havia de ter o tal amor em pé.
Mas que desgraca! Que mau pago que lhe deu o amor! Quanto mais se faz, menos se merece! Meteu-se ali a namorar uma rapariga sua vizinha, que o conhecia e sabia muito bem que tal era a peia. A moça fez-lhe mil desfeitas, capacitou-o bem de que não queria nada de semelhante bandalhinho e ele a teimar. A rapariga era sisuda, de cuja qualidade era a primeira que ele encontrava. Receou que a vizinhança lhe imputasse um crime de que não tinha a mais leve culpa. O tolo teimava. Jamais a moça abria a janela que não encontrasse aquele guarda-sol diante de si. Em vez de tomar emenda, começou a dar-lhe descantes até que a rapariga se resolveu a contar tudo ao pai, tintim por tintim. O pai, que era um homem honrado e de bem, mas com um tal entusiasmo de valente, que tinha comprado todos os livros que a sobrinha e a ama de D. Quixote tinham secado ao tio; e a filha, que além de filha lhe parecia uma Helena na formosura e uma Lucrécia na honra, não fez nada, salva tal lugar, Sábado de Nossa Senhora é hoje. Pegou na durindana, pôs-se de parte. Vem o miserável com a guitarrinha e outro que fazia versos da mão para o pé, entra a afinar a garganta e cá o meu paizinho a afiar a espada. E quando ele começava a abrir a boca para entoar a modinha, desentoa-lhe o outro uma cutilada com tal ânsia que se o pilha parte-o de meio a meio. Mas teve a fortuna que, quando levantava a espada, caiu-lhe ao meu amorudo a escaravelha da viola e, quando a cutilada ia a pino, virava-se ele para a ir apanhar (já se sabe, a escaravelha). Não foi nada, bagatela. Tocou no chão com tanta ânsia que partiu, de lés a lés, cinco pedras da calçada. Feriu lume e pegou fogo num cão muito peludo que estava ao pé e que se não é ser cão de água, morre queimado. Com a força da pancada, atormentou-se-lhe a mão, que lhe saltou a espada em Cacilhas, tendo sido o caso no Cais da Pedra. Mas sem perder tempo, antes que o outro apanhasse a escaravelha, apresentou-lhe com a outra mão um tão grande bofetão que fez outra vez lume, porque veio aos olhos de quem o levou. Acabou-se a função com mais dois ou três bofetões e uma roda de pontapés, como quem amassa barro.
Recolheu-se para casa moído como salada. Mandou chamar o cirurgião que o quis logo sangrar, mas ele não consentiu porque tinha muito medo. Levou então umas bichas nas fontes que lhe veio botar uma velha vizinha, a maior faladeira que eu tinha ouvido, para cuja cabeça eu passei porque tive cobiça de saber a fundo de uma velha da qualidade desta, segundo me parecia, e a ela vai a
Caí na cabeça de uma velha que tinha um V de menos e um V de mais. Faltava-lhe virtude e sobejava-lhe vaidade. Julgava-se formosa, bem-feita, eloquente e dizia, e até teimava, que ainda não era muito velha, que era entre moça. Entrava nas contradanças, botava o seu mote, namorava suficientemente, notava o seu escrito admiravelmente, vestia-se no último gosto da moda, quero dizer, andava quase nua. Tinha a constante Florinda, em peso, toda na cabeça, e justamente na cabeça era o que tinha. As raparigas podiam-na fazer prender por ladra, sem escrúpulo nenhum, porque ela, com todo o descaramento, roubava-lhes o que só à mocidade é consentido. Mas se fora só isso! Eram muitas mais as prendas! Era mentirosa no superlativo. Levantava um testemunho que era uma suspensão. Fina como um alambre, sabia a vida, crimes e milagres de todas as velhas e moças do seu bairro que nem um escrivão do crime a quem, de ofício, lhe pertence. Aquela sua conhecida, que casasse, era preciso ter cuidado em si para ter os filhos a tempo competente, que ela tinha uma folhinha de luas que um parteiro astrólogo, e seu parente muito chegado, lhe tinha deixado e não lhe escapavam estas bagatelas.
Que extremos tão opostos são estes das velhas! As de boa conduta (de que há muitas), as de probidade, quanto servem para a instrução da mocidade que mal conhece a carreira do mundo! Elas, com o seu exemplo, encaminham as moças à virtude, com os seus conselhos fazem-nas felizes, com as suas histórias cheias de graça e moral, formam-lhes o coração. As avessas, aquelas de uma qualidade como esta em cuja cabeça eu estou. Esta, com a sua vaidade, fazia-as vaidosas. Com os seus costumes, relaxava-lhes o coração. E então o demo da velha até era uma má cadela de caça: não sabia trazer à mão, comia-a. Eu, umas poucas de vezes, me vi desesperado na cabeça da tal minha senhora. E então que trabalho para lhe dar uma mordidela no casco. Era tão duro, por velho, que parecia um calo.
Tinha uma sobrinha, a quem ela tinha educado e ainda vivia debaixo da sua tutela, que era um pasmo, obra daquela tia. No meu tempo tinha ela dois amantes, um por sua conta e outro por conta da tia, um a quem a rapariga queria bem e outro a quem a tia queria que ela quisesse. Mas a velha sabia de ambos e andava sempre a ralhar com a rapariga, que tomasse outro. No meu tempo, dizia ela, cheguei a ter uma dúzia e todos andavam contentes e satisfeitos e mais, nunca fui namoradeira, com bem o digamos. Olha lá, não me vissem de dia à janela. Em sendo alta noite é que eu fazia as minhas. Uma porta de um quintal que tínhamos, e um burro que servia a casa, são duas pessoas a quem nunca pagarei as obrigações que lhes devo. A porta, porque por ela é que eu falava e introduzia os suplicantes. E o burro, porque rinchava quando eu a abria. 0 demo da porta rangia que parecia que cantava. Eis aqui como eu fazia as coisas. E não falar de janela abaixo, que o vê e sabe todo o mundo e dizem muitas vezes o que não é! Tive noite que falava a dois ao mesmo tempo, sem saber um do outro. As raparigas, agora, são umas tolas. Passam o seu tempo a chorar e a emagrecer e não lucram nada.
Tive muito casamento. Se não casei, não foi por minha culpa. Foi porque nenhum deles quis, mas da minha diligência não tenho que me queixar. Um esteve quase caindo. Desviou-se, porque lhe disseram que eu era muito habilidosa e que sabia pentear muito bem. A pena que eu tive, foi ele não me cair na mão, mas ao menos tive o gosto: casou com uma que o trazia pelo cabresto. Era pena não saber pentear.
Olha, rapariga, faze o que quiseres mas se não tomares os meus conselhos vais perdida. Fica certa de que contra a experiência não há nada.
Nunca entregues o coração a um homem. Nunca lhe fales verdade. Nunca lhe digas os teus sentimentos e saca-lhe a camisa, se puderes. Todos os que te arrastarem a asa, corta-lhes as guias. O mesmo a todos, amor a nenhum. Em sendo pobre, foge dele como de peste. Tu não sabes o que é um pobre a querer bem. É um carrapato. Como não tem que fazer nem que gastar, quer uma mulher pelo beiço. Ciúmes fervem, amor sobeja, destemperos não faltam, queixas, choros, suspiros &c. E uma rapariga sem prática do mundo, cai facilmente nestas corriolas. O desvanecimento de ser amada parece-lhe moeda corrente e ela é falsa. Não deixa senão consumações. Nada, minha sobrinha, amor, agrados e lágrimas de uma mulher, são ouro. Quem não tem ouro para trocar por este, fica sem ele. Ao menos, deve ficar, ainda que tudo isto nos custe pouco a fingir. Estes são os nossos cabedais. Se os damos de graça, a paga que temos no fim são desprezos. Por isso te aconselho e digo que dois amantes é muito pouco. O menos, o menos, sete. Um, que não seja tolo, para nos instruir. Outro, tolo, para nos aturar. Um, que tenha graça, para nos divertir. Outro, valente, para nos desagravar. Um, bem-feito, para o vermos. Outro, corcovado, para nos rirmos. E um que toque o coração, mas muito ao de leve. Que todos sejam ricos, já se sabe. Nunca te metas com vizinhos que é quem bota a perder as raparigas. Nada! Sempre gente de longe. Outra coisa tenho eu a dizer-te... Se casares... Mas não! Esta guardo eu para mim. O bom mestre sempre guarda o melhor golpe para si. Quem sabe ainda o que me sucederá. E vocês são umas tolas e umas chocalheiras que contam tudo às outras.
Assim falava a minha velha que, na verdade, não tinha pevide na língua. E a sobrinha tomava a lição à risca e era o retrato da Senhora sua Tia.
Um dia que eu estava bem descuidado e mesmo sem tenção de sair tão cedo daquela cabeça, sucedeu um caso que fez com que eu passasse para a cabeça de uma rapariga que teria dezasseis anos, linda como o Sol e com um juízo claro como o mesmo. Morava ali perto um homem que tinha ficado por testamenteiro de outro e que dava suas esmolas por conta do defunto. Pediu-se-lhe um dote para uma donzela, mas era preciso, para ele o dar, informar-se primeiro da vida e costumes da que queria ser dotada. A dita, sim, era vizinha, mas o tal era um homem que não se metia senão consigo e não sabia nada da vizinhança. Um criado, que havia em casa, e que via o amo naquela diligência, aconselhou-o a que chamasse a velha em cuja cabeça eu morava, e que ela lhe daria conta exacta do que ele pretendia saber. Porquanto ela sabia o feito e o por fazer.
Chamou-se a velha que pontualmente depôs o que sabia mas que, no entanto, por se meter, quis falar às Senhoras que eram a mulher e a filha do dono da casa. Fez-lhes muita festa, houve muita conversa e, ou fosse força de falar, ou tivesse que suceder, deu na minha velha um desmaio que a tivemos por morta. Deitaram-lhe fumaças, borrifaram-lhe muito a cabeça e a cara, até que tornou a si mas, achando a cabeça tão molhada, quis enxuga-Ia, para o que pediu um pente e uma borla com pós. A filha da casa, que era uma rapariga de muito bom coração, foi-lhe buscar tudo mas não consentiu que ela o fizesse. E ela mesmo, por sua mão, a penteou e lhe enxugou o cabelo. Eu, encantado de ver uma menina tão linda e de tão bom modo, passei para ela e é esta a Carapuça.
Cheguei a uma cabeça de juízo e de descanso mas pouco tempo durou a minha felicidade. Agora verão os meus Leitores que o meu espírito não é de contradição e que, se até agora tenho dito mal, é porque tenho de que o dizer. Sou piolho, mas o meu espírito é verdadeiro. Não sou capaz de lisonjear e também incapaz sou de levantar testemunhos. Sou um verdadeiro e hábil retratista. Não sei bem meter as cores mas os semblantes tiro-os à risca. Cheguei a uma cabeça que devo louvar. Não me custa dizer bem, não faço nenhum esforço, antes estou contente por esta ocasião de mostrar a minha boa índole. Pois que eu receio muito de que na minha vida torne a alguma cabeça de que possa dizer bem. Mas, quem sabe? Ainda estou moço e com bastante experiência do que são cabeças e do que são unhas. Pode ser que escape, o que estimarei porque, na verdade, a minha balda é viajar e saber das vidas alheias, não para o contar (vossas mercês bem podem julgar que não é esse o meu génio) mas para escrevê-lo e dá-lo ao prelo. Não é por outra coisa. Tomara eu que depois da minha morte fosse esta minha obra parar à mão de algum piolho do meu génio para que a continuasse. Pois que já que na minha casta não tem havido quem escreva, queria eu ter a glória de que o mundo soubesse que eu tinha sido o motor dela e que a literatura piolhesca era devida a mim. Desejava que os meus semelhantes mostrassem que assim como os outros animais são susceptíveis de adquirir conhecimentos e prendas, os piolhos não são de menor qualidade. A sábia natureza repartiu igualmente com todos. Não cuidem, pois, os que estão acima de mim que são mais do que eu. Todos somos animais e sabe Deus se eu tenho pesar de ser piolho. Melhor raciocino do que muitos mas, porque estão mais nas vistas e nas modas, julgam-se de melhor condição. Pobres tolos! Quantas vezes me estou eu rindo deles por os ver... Mas não vale dizer mal já que estou numa cabeça de que hei-de dizer bem.
Uma formosa menina dotada de todas as perfeições da natureza, acompanhada da mais bela educação e unindo a isto tudo o mais excelente coração, é a cabeça que me vai servir de morada e de quem eu vou fazer os devidos elogios. Era formosa sem se olhar e discreta sem se ouvir. Era cheia de virtude e o fundo da sua alma o mais sublime. Tinha muito pouca idade, mas estava inteirada dos seus deveres. Possuía um coração terno mas sabia muito bem conduzi-lo. Quando eu lhe fui à cabeça, amava extremosamente um rapaz de belíssimas qualidades. E lembra-me que logo na primeira noite, depois de recolhida ao seu quarto, estando tudo em silêncio, tirou ela de um papel que leu e dizia assim:
Não meu bem, tu não amas! Tu não fazes senão nutrir e iludir a minha paixão! Até estou capacitado de que me aborreces! Que te espreguiças nos meus desgostos! Vês-me louco de amor e não me remedeias. Enquanto eu, desesperado, rasgo o coração a ver se te encontro, tu vives sossegada. Peço-te um só momento de poder estar contigo e tu, ingrata, não mo concedes!
Basta, disse ela, rasgando o papel. — Eis aqui em que funda este amante a sua felicidade. Diz que ama e quer roubar a virtude que me adorna, sendo esta a única causa por que devo ser amada. Como os homens estão depravados! Nós, infelizes mulheres, devemos ter por guia a religião e vós, monstros, o prazer e o interesse? Não, ingrato, tu não me amas. Se me amasses não quererias que eu fizesse uma acção contra o meu decoro. Meus pais consentem que eu te veja e que te fale na sua presença. Mas tu, que te não contentas disto, queres-me iludir porque eles não me enganam. Eu amo-te, é verdade, é verdade que o meu coração é teu. Se ele quiser exigir do meu amor mais do que a honra deve consentir a um amante... Então esta ajuizada e galante menina se levantou furiosa, deu alguns passos até que se chegou a uma banca onde estava um tinteiro e papel, assentou-se e escreveu estas poucas palavras:
Sim, querido, quero conceder-te quanto dizes. Eu me espreguiço nas tuas desgraças, mas antes eu o faça nas tuas que tu nas minhas, pois que estas não teriam remédio e as tuas, se é que o são, são momentâneas. Sabes porque ainda te escrevo estas últimas regras? É porque me obriga amor que a razão há muito me diz que não. Se eu fora capaz de envilecer-me, que merecimento teria esta desgraça diante dos teus olhos e que esperaria eu que os outros me fizessem? Ingrato. E dizes que amas! E tens valor para exprimires com palavras tão vivas tão claras mentiras, dizendo-me que só pretendes falar-me! Que mais posso eu expressar-te? Já te disse que te amava. Assaz fiz bastante. Se me amasses outro tanto, com quem tinhas agora que falar era com os meus Pais (tristes pais, quanto eles se enganam contigo!). A eles é que devias dirigir-te porque eu jamais fugirei da sua obediência e vontade. Eles amam-me e eu faço as delícias do seu coração. Ah, sim, eles não duvidam deste amor e eu tenho sido uma má filha. Tenho escondido da minha mãe os teus enganos. Mas mais não triunfarás de mim. Amanhã me lançarei a seus pés, contar-lhe-ei as minhas fraquezas e, se for repreendida, não serei enganada.
Querido, ainda pela última vez assim to chamo. Se me amas, se não me queres perder, ou amanhã serei tua ou nunca mais o serei.
Acabou de escrever, abriu uma janela, atirou com o escrito ao amante, que debaixo esperava a hora do colóquio e que por mais que lhe pedisse com mil carinhos que se demorasse um só instante, ela não lhe ouviu uma só palavra. Fechou outra vez a janela e deitou-se a dormir com aquele sossego que só tem o que dorme sem crimes.
Eu estava como fora de mim vendo um tal procedimento. Cheguei a dar dois passos para me desenganar se dormia ou estava acordada. Será isto possível?, dizia eu comigo mesmo. Será então caso novo! Uma rapariga de tão pouca idade e neste século, ter valor para responder assim a um rapaz que ama. Ah, que se fosse igual a educação e o carácter das raparigas, quanto elas não seriam mais felizes! Não haveria tanto celibatário e as nações seriam mais populosas e mais sadias e eu teria mais cabeças e melhor sangue para meu sustento. Os homens não fariam tão pouco caso das mulheres. A sua linguagem não seria sempre a mesma e eles mais amariam um sexo que faz a paz e o sossego dos homens.
Lembra-me um célebre caso que sucedeu a um piolho meu amigo que namorava uma lêndea moradora no alto da cabeça de uma adela e lhe pedia que, em sendo meia-noite, lhe viesse dar uma palavra atrás da orelha esquerda que era onde ele assistia. A lêndea nunca caiu no ópio, até que, por fim, casaram e foram ambos viver para uma cabeça onde eu então assistia e da qual adiante falarei. Fui convidado para a boda que se fez a horas em que o dono da cabeça dormia, o qual acordou a um solo que um piolho lhe bailava num cabelo. Mas tornou logo a pegar no sono porque o tal amigo tinha visco por todo o corpo que pegava a cada passo, principalmente nos olhos e, além do visco, não se lavava senão de mês a mês. Vamos, porém, ao que serve e ao tal passo galante que observei à ceia e que foi dizer o piolho à lêndea: — Olha, minha amiga, fizeste bem em não condescenderes com o que eu te pedia, em vires falar-me fora de horas. Eu queria-te experimentar e, se tu o fizesses, eu não estava agora casado contigo.
A lêndea respondeu-lhe com toda a sinceridade: — Olha, não caísse eu! Não, que eu já estava escaldada.
O piolho ficou tão triste e tão envergonhado da resposta que nessa mesma noite desapareceu e a mulher, dali a dias, foi procurar vida. Disseram-me que se pôs a vender couves. Ah, raparigas, raparigas, tomai juízo e sereis mais felizes, sereis mais respeitadas e não ficareis tantas para tias.
Pela manhã muito cedo veio uma criada chamar a menina porque lhe mandava dizer sua mãe que se vestisse, que tinha que lhe falar. Ficou assustada, mas a criada disse-lhe, a rir: — Não se aflija que o caso é de gosto.
— Pois que é? Dize-me, Tomásia (que assim se chamava a criada). A criada tornou a rir e tornou-lhe a dizer: — Não é causa de cuidado, minha Senhora. É o seu amante que teve medo que vossa mercê fugisse esta madrugada, porque veio antes do amanhecer pedi-Ia a seu Pai. Chamou este sua mãe e concordaram que sim. Falta só a sua aprovação, para o que a mandam chamar. E eu estive quase dizendo-lhes que não precisavam chamarem-na porque sabia a sua boa vontade.
— Agora sim, agora sei que me ama, disse ternamente a menina. Vestiu-se com pressa. Comia-lhe a cabeça, que não fazia senão coçar-se. E eu dizia: — Não sei que diabo têm comigo os casamentos que sempre os contraentes me saltam em cima. Pois não! Em esta casando, apesar de estar bem acomodado, ponho-me ao fresco.
Apareceu a menina toda vermelhinha. Propuseram-lhe o caso que aprovou com os olhos e com o coração. E disse de boca que ela estava por tudo que seus Pais determinassem. Mas a mãe disse: — Não minha filha, é preciso que tu digas sem constrangimento a tua vontade.
Então a pobre e virtuosa menina, botando-se-lhe aos pés, confessou o seu amor e o noivo também confessou que ela tinha feito bem em não cair no que ele, com tantas instâncias, lhe tinha pedido. Esta, porém, não teve que responder que já estava escaldada. Ajustou-se o casamento para se celebrar daí a dias e eu logo me pus à espreita para onde havia de passar, pois lá em cabeça de noivos, nunca mais. É certo que tinha pena de largar uma cabeça que tudo quanto fazia era com acerto e sossego. Mas a minha sorte era sempre andar em mudanças. Na véspera do noivado, penteou-a a criada. E eu, que até ali não tinha achado outra cabeça, fui para a da criada e agora verão a guapa carapuça que faz o número de XL.
A Criadinha era uma cabecinha e mais alguma coisa. Tinha sete CC. Criada, coxa, chamava-se Clara, era clara de pele, caridosa, casadoira e tinha uma cara de páscoa. A criadinha valia um reino. Até sabia assobiar. Tinha-lhe ensinado um que alugava seges no tempo em que trazia cinco ao socairo: um moço de casa, um moço de rua, um vizinho que contratava em aparas, um primo (traste que nunca falta a estas senhoras) e um, a quem ela era mais agarrada, e que negociava em coisas alheias. Tinha ela todas as prendas de uma boa criada: escutava, era lambareira, gulosa, bebia o primeiro caldo da panela e mentia sempre. Resto de vinho, era seu. Se achava algum dinheiro por cima de uma mesa, não punha escritos pelas esquinas. Vestia a roupa das amas, quando saía fora. Tinha a sua pobrezinha de todos os sábados a quem dava esmola do que era seu; a qual também lhe servia de lhe levar algumas coisas e de lhe trazer outras. Tinha uma amiga que lhe lia as cartas e lhas respondia, pois tinha a desgraça de não saber ler nem escrever. Mas sempre há gentes que façam bem, principalmente quando as coisas são para bom fim. Sabia jogar o truque, a douradinha, a bisca coberta e o estenderete. Era respondona de todos os quatro costados e, se tivesse cinco, de cinco o seria. No seu tanto, bastante enxovalhada. Se lhe davam roca para fiar, fazia dela travesseiro porque achava o linho macio, quero dizer, dormia (eu, enquanto não falo claro não estou descansado). Se falavam na vizinhança, não pregava olho. Sabia a história da carochinha e a das três cidras do amor. Andava aprendendo a do drago de que já sabia mais de meia. Tirava também o quebranto. Quando havia de trabalhar, dormia, e quando havia de dormir, trabalhava. Sabia o punho punhete e a vassourinha. Era uma boca de risos para todos e dava à taramela um dia inteiro. Falava todos os dias em que era muito pouco o ordenado que ganhava, que se não fora o muito amor que tinha ao moço (queria dizer, às meninas) há muito tempo que já ali não estava. Se pilhava alguém de fora, dizia mal dos da casa. Aos da casa dizia mal dos de fora. Sempre andava caindo de fome e dizia que a ama era uma unhas da dita. Na sua boca ninguém havia bom. Tocava berimbau, cantava a comporta e sabia bailar o fandango. Se lhe dissessem que entregasse um escrito não dizia que não porque era muito bem mandada. Tinha flatos histéricos. Sabia arremedar. Contava a vida de seus pais e mais não era muito para contar. Praguejava contra um irmão que lhe tinha comido meia moeda mas tinha um primo que lhe devia vinte mil réis e não lhe davam cuidado. Tinha as suas devoções muito boas, jejuava de tudo o que era saber servir bem. Mas não é só esta que vive do seu ofício sem o saber. Fugia de defuntos e chegava-se para vivos. Ia, de tempos a tempos, a casa de uma amiga levantar a espinhela, moléstia que a perseguia muito a miúdo. Punha o seu bocadinho de cor e trazia um bocado de espelho na algibeira. Não se levantava vez alguma que não se chegasse à janela. Pela manhã, sempre se erguia depois de a terem chamado cinco vezes ou mais. A noite nunca era preciso mandá-la deitar. Pedia o pão-por-Deus e as amêndoas a todas as pessoas que vinham a casa. Andava sempre a ralhar com o moço e a dizer mal dele, mas o melhor bocadinho era para o dito, para que não dissessem que era odienta. Nunca lhe caiu candeia que tivesse azeite, nem quebrou prato que não fosse à rua sem ninguém o saber. Sempre as amas tinham pior génio que os amos. Com eles, toda a vida mas com elas, nem uma hora, era isto do costume. Queixava-se que nunca lhe tinham dado uma figa e que se o tinha, com o suor do seu rosto o tinha ganho. Pedia à ama que quando ela casasse houvesse de ser sua madrinha. De quando em quando dizia com voz baixa, mas de forma que o amo ouvisse: — Forte bondade do Senhor! Nem sei como ele atura tal!
Tinha vinte e dois sestros e o comer fazia-o insonso e, se se queixavam, no outro dia vinha salgado. O seu gosto era ouvir cantar a desgarrada a uns aguadeiros que moravam defronte e tocavam, num maxinho, um vilão sem ser ruim, que a ser ambas as coisas não se poderia aturar.
Eis aqui os costumes da minha bela criada, isto é, pelo alto, porque a mim não me pode lembrar tudo. Falta o melhor e o mais bonito. Ainda eu lhe não falei nas prendas porque ela não sabia fazer meia. Cosia mal, queimava tudo que engomava. Botava a perder o comer. Mas, para isso, ganhava só cinco moedas e meia, coitadinha! E, sendo assim, aturavam-na porque não achavam outra. Então havia falta deste género e, lá na Ásia, todos querem ser servidos. Por isso não há quem sirva e, mesmo a respeito do género criadas, o que havia bom acabou-se e o que não presta tem muita extracção.
Eu estava aborrecido da tal cabeça porque isto era Inverno e a tal menina, em sendo uma hora da noite, era então que lhe dava de se pôr à janela para falar com um seu parente em coisas que a mim não me importavam. Até que chegou um dia, véspera de São João, e quis ela comprar umas alcachofras. Mas as amas não consentiram. A noite, não se queria deitar porque queria fazer umas nigromancias com um ovo, as quais eu não pude perceber como eram, mas sei que era coisa que respeitava a casar. Ela, picada disto, no outro dia despediu-se e foi para casa de uma mulher que contratava em moças de servir. Dava umas, tirava outras. Mas eu adiante falarei desta linda mulher pois foi para a cabeça para onde eu passei porque a tal criada não esteve lá mais de cinco dias. Foi servir para a casa de uma engomadeira e eu não quis ir com ela. A tal mulher, nesse dia em que ela foi, esteve-a penteando e dando-lhe conselhos e eu, nessa ocasião, fui-lhe ao casco que é a minha carapuça XLI.
Agora tenho para peras, para descrever a balbúrdia da casa desta nova cabeça. Uma nau em temporal não tem tanta agitação. Um dos negociantes grossos não tem tanto em que cuidar. Ali não havia livros, porque nada se lançava em deve, tudo era na de haver. A cabeça em que eu estava teria os seus sessenta anos e tinha mais de sessenta mil crimes. Uma irmã, que era sócia de portas adentro, sempre andava a lereque. Todo o dia empregava em levar umas a casa deste e daquele e ir buscar outras a casa daquele e deste. Também era compradora. Quando alguma saía das casas e trazia algum vintém, ela é quem ia distribuir-lho. Comprava-lhe a saia de baeta e a de chita, os sapatos, o lenço, enfim, arranjava-a e tinha gosto para isso. Seis moedas alheias na sua mão eram o mesmo que duas na de seu dono pelo modo com que as sabia distribuir. Dinheiro na sua mão era como caldo de galinha em estômago de doente que, ainda que o lance fora, sempre as paredes ficam untadas. E, então, que jeito que ela tinha para educar uma moça para ir servir? Aquela que tomasse os seus conselhos à risca, não durava mês e meio em casa de ninguém. Qual mês e meio! Nem oito dias e dou-lhe muito. Porque o negócio desta mulher consistia em que o género passasse a muitas mãos. Havia criada que em oito dias tinha estado em doze casas e ela, por cada uma, tinha recebido o seu cruzado-novo pela corretagem. Não lhe importava se se conservavam ou não se conservavam. Disso lavava ela as mãos! E tinha uma lábia, que podia andar pedindo para a caridade. Ora outra coisa: os conselhos que dava em casa não eram os mesmos para fora: — Filha, servir não é vida, vê se achas alguém que te ampare antes que sejas velha. Olha, agora vais para esta casa mas não sejas tola. Não estejas lá muitos dias. Se não houver coisa que faça conta ou de que tires algum proveito, põe-te ao fresco. Ao menos, enquanto a gente anda de casa em casa, trabalha menos e come melhor. Os amos, ao princípio, não são tão impertinentes e a minha porta, para ti, sempre há-de estar aberta. Não sejas escrupulosa. Olha, minha filha, coisa de suposição não te digo eu que tires, mas bagatelas não te atemorizem. Com o que tiveres é que te hás-de achar nas precisões. Muitas vezes são uns caloteiros e bom é que a paga já cá esteja. Nada de matar com trabalho. Cada um trabalha o que pode. É bom, logo, pô-los em bom costume. Nada de amassar. Que amassem eles e mais quem os embalou. Cria-se uma dor no peito e, se a gente adoece, põem-na no meio da rua e dizem, sem febre nenhuma, que e o mesmo que com muita fresquidão: Eu não tenho obrigação de lhe curar as mazelas. Oh!, não te esqueça também de tomar sentido nos costumes da casa e de lhes conhecer a vida a fundo que isto, às vezes, não parecendo nada, deixa mais que dez anos de serviço. Olha lá a Brígida que, por tomar o meu conselho, sabia onde o amo escondia os contrabandos. Foi denunciá-lo e ganhou alguns duzentos e tantos mil réis honradamente. Bom é saber dos podres alheios. A Rosália ganhou o outro dia seis mil e quatrocentos réis, por ir jurar no desquite daquele Fulano abóbora, aonde ela esteve, e sabia toda a arenga que nem que ela fosse a suplicada. Outra coisa também te recomendo, que não te esqueças de meter-te com vizinhas porque, assim, sabe-se melhor de uns e de outros. Há por aí moças tão tolas que servem um e dois anos numa casa e saem dela sem saber dizer duas palavras juntas a respeito da casa onde estiveram. Deus te livre de tal, filha. Antes não viver. Há coisa que divirta mais, quando a gente se junta com as companheiras, do que ter e saber que dizer das casas donde saiu? Que o amo era velhaco, que a ama lhe fazia os seus gualdripérios, que os filhos eram ladrões, que ali o que havia bom apenas eram as criadas. Isto é que consola e é o que distingue umas das outras.
Esta boa mestra depois de ter ensinado assim uma criada, saía com ela para a levar a uma casa para onde tinha a encomenda e, depois de ter recebido o crúzio, punha-se-lhe a dar conselhos por outro método e vinha a ser:
— Ora, filha, já que acertaste com tão boa casa, conserva-te. O andar de casa em casa bota a perder o abrigo às criadas, ganham muito má fama e nunca tomam amor às suas amas. Não sejas preguiçosa, que a preguiça é mãe dos vícios. O ser fiel e honrada é o crisol de uma boa criada, qual eu te julgo. Porque, se assim não fosses, não te havia eu de trazer para casa destes senhores a quem sou obrigada. Olha que esta casa não é aí como as outras por onde tu tens andado. Isto é outra qualidade de casa. Faze a vontade à senhora e sê muito séria com os teus amos. Assim como te estimares, assim te estimarão. Não dês confiança a moços e vive em boa paz com as tuas companheiras. E olha que se saíres daqui não me tornes a procurar, que a minha porta, para ti, fechou-se. Isso não! Lá me não hás-de tu pôr o pé, ainda que eu soubesse que perdia em ti milhões. Pobre sou eu, mas ao menos sou agradecida. Não! Que esta casa muitas e muitas vezes me tem dado, em lugar de um cruzado-novo, oito tostões, e a gente não há-de ser ingrata. Toma tu os meus conselhos que não te hás-de perder. Ainda que eu seja má, tomara que todo o mundo fosse bom, quanto mais aquelas pessoas que eu inculco. Tira, tira a capa, dobra o lenço, perde a vergonha e vai para dentro.
Apenas a criada virava costas, soltava outra perlenga para a ama, dizendo-lhe:
— Olhe, minha Senhora, não sabe que criada lhe trouxe. Tem moça para toda a vida. É muito cristã, muito asseada, muito séria. De tudo tem muito. Saiu agora desta última casa, onde lhe queriam como a uma filha, porque a andava desinquietando um filho da casa. E ela foi uma rapariga tão calada que nunca quis dizer porque saía, por mais que lho perguntassem. O que respondia é que não podia com o trabalho. Olhe, desta espero eu que me dê os agradecimentos. Não se encontra uma dúzia desta qualidade de raparigas. Destas já há poucas, tudo está perdido. O outro dia levei uma rapariga a uma casa, perfeita como um sol, era a primeira vez que servia e fez coisas que até eu tenho vergonha de dizer. E o mais é que perdi aquela casa, que era uma das melhores, não desfazendo na de vossa mercê. Nunca me deram menos de dois pintos e então, de quando em quando, a mão-cheia de arroz, o lenço de farinha-de-pau, porque o marido andava sempre lá por esses mares de Cristo. E que fartura de casa! Tinham uma despensa que nem a melhor loja de mercearia e a dona da casa morria por mim. Tem-me mandado mais de quinhentos recados, mas eu não tenho cara com que possa lá ir. E mais, eu não sou culpada. Mas não está na minha mão.
E assim, com estas perlengas gerais, chupava muito bem das amas e criadas e daí a dois dias tinha a moça em casa outra vez.
Agora vamos à confusão de nomes. Saía uma criada de uma casa onde se chamava Andresa, amanhã ia para outra chamar-se Casimira. Outras vezes dizia que era donzela uma que era casada e a outra, que era donzela, chamava-lhe casada. Nem ela mesma sabia quais eram as casadas, nem quais eram as donzelas.
A tal corretora também algumas vezes se metia em seu casamento. Mas nisso era muito infeliz. No meu tempo nenhum se concluiu. Nunca passaram de ajustes. Era tão ladina que, quando alguma criada se desacomodava e lhe vinha para casa, ao ver-lhe o fato, conhecia o que ela trazia furtado e, se podia, (e quase sempre podia) furtava-lho também. Pois se a pobre trazia dinheiro! O jantar daquele dia era à sua custa e sempre havia um brinde que dizia: — A saúde de quem te há-de meter numa boa casa!
Veio ali uma vez uma rapariga de dezasseis anos chorando porque lhe tinha sucedido uma história. Pôs-se também a chorar com ela e pareciam duas Madalenas. Teve-a oito dias em casa, vendeu-lhe um cordão que ela trazia, para a sustentar, e pô-la a servir numa casa que, dizia ela, era um paraíso. Enfim, criada que lhe caía em casa era ovelha que saía tosquiada a morrer com frio. Muitas já tinham zanga com ela, mas não tinham outro remédio. Era uma mulher bem estabelecida neste negócio, tinha muito conhecimento e era tão procurada como se fosse uma pessoa de muita dependência. Eu não estava mal, porque sempre gostei de barulho. E demais a cabeça tinha bom provimento e a casa era do meu génio, porque ali todos os dias se estavam ouvindo novidades. Quis, porém, a desgraça que lhe entrasse a nascer um leicenço na nuca e a pobre mulher passava frios, e febres, que cheguei a ter dó dela. Mandou-se chamar um vizinho, que era curioso, e fazia as suas curas pelo amor de Deus. Veio o dito e observou que a tal borbulha ainda não estava no estado de se poder comer, porque, dizia ele, estava muito verde. Até que veio um dia que a achou madura e deu-lhe a sua lancetada de graça. E eu, que sempre tive medo de ferro, não esperei que ele lha espremesse, fui-me passando para o tal curioso de Cirurgia, e nele acerto a carapuça XLII.
Um ofício ou arte que se aprende por princípios, exercitá-la por curiosidade é coisa linda. E o mais é que muita gente morreu por ter a curiosidade de se curar com este curioso. Tinha cento e tantos livros, em manuscrito, de remédios caseiros. E era tão bom homem que em ouvindo dizer a alguém eu tive tal moléstia, ensinaram-me tal remédio e melhorei, para ele era um evangelho. Vinha para casa escrevê-lo e aplicava-o ao primeiro paciente que se lhe queixava. Sucederam-lhe anedotas galantíssimas, de que contarei algumas que me parecem que menos enfastiarão os meus leitores. E se ainda assim lhes souberem mal, leiam-nas com limão ou botem-lhe mostarda, ou o que quiserem. Vamos à história.
Queixou-se uma vez um sujeito, diante do meu curioso de medicina, que tinha tido umas sezões tão impertinentes e tão malcriadas que a remédio nenhum obedeciam e ele, de dia em dia, se sentia morrer. Uma noite, deu-lhe uma sezão com mais força, sobreveio-lhe a febre e viu-se tão aflito que se ergueu nu da cama e foi à cozinha para beber água pois o calor parecia que o queria queimar. Porém, por mais diligências que fez, não deu com o pote, marrou com uma banca, apalpou, encontrou uma panela e chocalhando-a, sentiu água. Pô-la à boca, bebeu toda a dita água, que era para lavar a loiça de uma olha de vaca que tinha sido feita nela e em que a bêbeda da cozinheira até lhe tinha esquecido dentro o esfregão da loiça. Com efeito, era uma aguazinha muito grossa e muito saborosa. Porém, tinha sido uma água milagrosa porque, depois que a bebera, nunca mais teve sezões nem sinais delas. Tanto que o meu médico de curiosidade ouviu o remédio, não se demorou nem um minuto. Foi para casa num salto lançá-lo no livro dos remédios correntes e estampou-o sem lhe faltar um apêndice. Passados tempos, estando noutra sociedade, queixou-se um nobre estrangeiro de que estava morrendo com sezões e que já não havia remédio que não tivesse feito. Acudiu o meu amigo a ensinar-lhe o remédio como infalível, dizendo-lhe que tivesse pronta uma panela, onde se tivesse cozido vaca, que não esquecesse ter o esfregão da loiça dentro e que, tendo-lhe botado coisa de meia canada de água, na acção da febre se erguesse da cama, nu como sua mãe o pariu, e desse com a jeropiga em baixo. Veria o milagroso efeito do remédio que lhe aplicava. O estrangeiro, que estava cansado de ter sezões, esteve por tudo. Foi para casa, aprontou o remédio que tomou à risca, com a infelicidade de além das sezões se lhe não irem, ter uma boa constipação que lhe malignou e em que todos os dias nones esteve jogado aos dados. Por fim melhorou e queixava-se amargamente do meu patrão, dizendo abertamente que se o encontrasse, o havia de mandar para o outro mundo. Quis a desgraça que assim sucedesse e agora ouvireis. Foi descomposto de palavras injuriosas e esteve em vésperas de o ser por obras. Mas o meu curioso era tão crédulo e fazia tanta fé no remédio que veio para casa e pôs uma nota à ilharga da receita, com estas palavras: Não é bom para estrangeiros. E foi continuando a dá-lo a quem se queixava. O que é a fé!
Eu bem conheço que a experiência é quem tem dado e descoberto os remédios e que o acaso é, muitas vezes, o melhor professor. Mas sempre é bom que essa experiência e esse acaso sejam primeiro combinados por um conhecedor. Morra-se, embora, mas seja segundo a arte. Quando um homem vai tourear, é pena que morra nas pontas de um boi. Mas, enfim, morreu no seu ofício. Era bom cavaleiro, gostava da arte e foi uma desgraça. Mas foi uma desgraça que ele procurou. Que vá, porém, um que não sabe tourear, metido numa sege ou a pé, e se desmande de lá da manada um touro que o espiche por uma ponta, mandando-o ao ar em ar de pela, isso é que é pena, porque o pobre homem não teve culpa. O mesmo digo eu: quero morrer, mas com quem o entenda. Vem dali um curioso dar-me um remédio só porque ouviu dizer que era bom, e encaixa-mo no bucho e mata-me sem ao menos saber que aquele remédio era para matar. Pelo menos, o que entende dá-mo, mas sabe que efeitos ele deve fazer. Ou é de crer que o sabe. Até conheci um maganão que se metia a curar malignas e não havia uma maligna que o levasse. E o desaforo com que sustentava que era muito capaz de as curar! Uma vez lhe ouvi eu dizer este barbarismo, disputando com outro: Sim, senhor, eu lhe mostro como curo malignas e como os outros as curam. Vem um médico chamado para uma doença destas, chega, toma o pulso, manda botar a língua fora, põe os olhos no tecto, faz duas caretas, pede papel. Recipe: tártaro para limpar o estômago, causa primária de todas as moléstias. Coisa que entre si se contradiz. Se houver um que não coma, ninguém poderá ter o estômago mais limpo. Mas ele morre de fome e a fome é uma grande maligna. Vai o doente a pior, cataplasmas, dieta, quina, cáusticos &c. Pergunta o interessado na melhora: — Então que me diz, senhor Doutor, que tal vai o nosso doente? Ao que este responde em ar de oráculo: — Veremos. Tenho esgotado a medicina. Agora a natureza é quem há-de decidir. Eis aqui como cura um médico. E eu, que faço? Ponho-o logo de dieta e sem arais moxinifadas. Faço-lhe logo no princípio o que ele fez no fim. Deixo à natureza o que é dela. Não a ajudo porque não conheço por que banda ela precisa de amparo. Nem me oponho, porque corno não sei do que ela gosta, deixo-a ir à sua vontade. Ela, que verdadeiramente é sábia, não tendo quem a contradiga, faz tudo perfeito. E assim o doente escapa sem o afligirem e, se morre, morre com menos dor porque a natureza, menos agitada pelas drogas que a estroem, (pois a natureza não gosta do que para nada presta), faz as suas funções, levando à morte o que ela, com a sua força, já não pode sustentar e ao que forças humanas não se podem opor.
Assim falava este túnica, do que todos se riam muito. Mas eu, como nunca entendi de medicina, não sabia para qual dos métodos me havia de encostar e nós, os piolhos, como somos pobres, nunca chamamos médicos para as nossas moléstias. Cada um cura-se conforme pode. O caso está em curar a grande e má moléstia de pobre que mata lentamente. E o mais a que eu acho graça, é perguntar muita gente: — De que morreu fulano? Se ele é pobre há mais que perguntar? Morreu de fome.
Um piolho conheci eu muito galante e de quem eu era muito amigo. Ele é que não era tanto meu porque era mais rico do que eu, e pobre com rico não faz boa liga. Teve uma moléstia, como se chama?, não me lembra bem o nome. Parece-me que é cronológica, ou crónica, uma coisa assim. Fez-se junta, e o piolho, tanto que viu vir chegando os deputados do expediente da outra vida, perguntou: — Para que são aqueles meus senhores? Ao que lhe responderam que eram vários sábios que se juntavam para decidir da sua moléstia. Ao que respondeu o doente com muita graça: — Pois eu sou algum Hércules que precise tanta gente para me matarem? Não senhores, podem ir-se embora. O assistente é suficiente para isso. Ele dará conta do negócio e mesmo eu já me sinto com poucas forças.
Desamparam todos o lugar e o assistente nunca mais o quis ver, despedindo-se até de se verem no outro mundo. Mas a natureza picou-se contra os tais senhores e vendo ela o doente livre de opressores, o melhorou. E eu o encontrei na cabeça de um dos julgadores, que lhe chupava sangue infinito para se desforrar das sangrias que ele lhe tinha feito dar. Demorei-me muito nesta cabeça porque neste tempo adoeci de um flato que se me meteu num quadril. De sorte que não podia dar uma passada e, para estar doente, esta cabeça era óptima porque tinha provimento e o dono raras vezes punha a mão na cabeça. Também havia muita sociedade, porque ali vivia uma lêndea que dava partida em casa e tinha quatro filhas menos más. Eu não desgostava de uma, mas ela já andava com o sentido noutro piolho que também ali se ajuntava. Era estrangeiro e piolho espigado e louro, muito bem parecido e fazia versos menos mal. Isto desconsolou-me bastante até que o patrão veio-lhe um defluxo, deste de narizes entupidos, sem poder espirrar. Não tratou bem dele, caiu-lhe nos dentes e veio-lhe uma tal dor a um dos queixais que passou três noites sem cear, pela não ter. Foi apertando-lhe de tal forma que se resolveu a tirá-lo. Mandou chamar um dentista que os tirava sem lhe custar nada, pois a quem o tirava é que lhe custava, e por duas formas: porque lhe doía e porque lhe custava uma de doze. Eu quis também saber desta arriosca de tirar dentes e, quando o dito se lhe pôs a cavalo, para lhe meter pela boca uma botica grande, quero dizer, um boticão, que é o mesmo, estava com os braços mesmo em cima da cabeça do réu. Eu então fui-lhe ao corpo e mesmo nesse dia lhe passei para a cabeça a fazer-lhe a carapuça XLIII.
Não cheguei a estar um mês nesta cabeça. Tanto que lhe soube os segredos, mudei logo de casa. Mas é certo que achei algumas novidades e mesmo coisas que eu não esperava e que vou contar, porque não quero nada no estômago depois que ouvi dizer que o estômago era causa de tanta moléstia. Valha a verdade.
O dentista era novo, havia chegado de pouco tempo. Apenas chegámos a casa, veio logo a mulher dar-lhe parte de que já tinham um cão morto, muito bom. Fiquei admirado do presente que lhe anunciavam. Mas soube depois, pelo que vi, que era para lhe sacar os dentes e os ir enfiando para os pôr na janela. Porque estes amigos não se cansam de trazer dentes de uma para outras terras. Nada. Apenas chegam, vão sacando os dentes aos cães, a algum burrinho pequeno ou a outro qualquer animal que melhor lhes pareça. E, em mudando de terra, não levam nada alheio. Tornam a deixar os ossinhos e as dores e apenas levam o dinheiro. Dentro em três dias tivemos uma tal enfiada de dentes que podíamos adentar quantas ovelhas há desdentadas no mundo.
O tal amigo também preparava pós para limpar os dentes e tinha um criado que, sem pós, nem nada, limpava as algibeiras aos fregueses que era um gosto ver a maravilha do remédio. Os pós eram inculcados como de madrepérola, mas em lugar de madrepérola fazia-os de cascas de mexilhões de Aveiro, que são excelentes para isso, ou de pederneira em pó, que faz o mesmo efeito.
O tal dentista era pessoa de bem. Tinha fugido por travessuras que tinha feito na terra, sendo uma delas ter sacado cinco dentes a um sujeito com uma pedrada. Isto no tempo em que ainda ele não sabia tirar dentes, o que depois aprendeu por necessidade. Mas a natureza já ali fazia o seu progresso com a propensão que ele tinha em sacar dentes naturalmente e artificialmente. Vivia muito bem e com o seu asseio e, posto no seu tribunal, parecia um general de comédia. Ganhava menos mal porque há muita boca, aqui na Ásia e, por consequência, muitos mais dentes, pois cada boca tem os seus trinta e dois, segundo o que eu possuo. E julgo que a boca não é como as cabeças, que umas têm mais miolos do que outras. A respeito de dentes, todos têm a mesma quantidade, salvo erro. Que eu também não sei se me engano, pois ainda que eu contei os meus ao fazer esta obra, foi depois de jantar e eu, depois de jantar, nem por isso estou muito certo. Porque depois que me capacitei que o vinho é muito melhor do que a água, bebo muito mais vinho do que água e hoje todas as minhas moléstias curo eu com vinho. E o mais é que elas obedecem ao remédio, que nem que o vinho fora o Pai das minhas enfermidades. Algum dia, lembra-me que quando eu tinha mau estômago, bebia chá de macela o que era um trabalho de meus pecados. Era preciso mandar buscar a macela, depois acender o lume, ferver a água, fazer o chá e, no fim de tudo isto, nada de novo a respeito de melhora. Agora, que faço eu quando me sinto com mau estômago? Bebo-lhe três ou quatro garrafas e fico bom, ou ao menos, se o não fico, não o sei, porque fico no estado de inocência! Mas, adeus minhas encomendas, caí na minha balda que é falar no que não vem ao caso e fugir do que estou escrevendo! Salta para cá, piolho, vamos outra vez ao dentista. Eu, já agora, não tomo emenda com este defeito. Quem é torto sempre lhe fica um jeito. Tomara eu ter um piolho amigo que estivesse à minha ilharga quando escrevo para, quando eu me desviasse da história, dar-me um bofetão bem puxado. Mas talvez que nem assim tomasse emenda. Era capaz, então, de me pôr a discorrer sobre o bofetão e pôr-me além de Évora três semanas. Anda para cá, piolho, salta outra vez no dentista, conta-lhe a vida e não fales nas vidas dos demais. Não queiras misturar alhos com bugalhos. Eu tanto hei-de fazer que ninguém me há-de querer ler e, a falarmos verdade, também não perdem nada. Antes comprar os seis vinténs de bolos, ainda que os bolos façam mal aos dentes, e aí tem o dentista mais que fazer. Oh!, já que falei em dentista, vamos acabar-lhe a história e contar-lhe as anedotas que lhe sucederam no meu tempo. Vá a primeira e talvez que seja a última porque, contar também muitas histórias de dentes, é capaz de fazer dor de dentes ou, ao menos, dor de cabeça. E eu tenho muita carapuça talhada e é preciso tratar de as coser, não se me perca alguma folha, que esta obra, se não vai de carreira, sai com muito destempero. Ainda que eu creio que os leitores não têm de que se queixar a este respeito, pois eu tenho dito bastantes e espero continuar, se eles os quiserem ler, que, em dizê-los eu, não há-de haver dúvida. Porque tenho muito jeito para a asneira e o género não vai mau. Estou vendo viver muita gente fazendo muita asneira e vão vivendo menos mal. E eu, ainda que as não faça, digo-as. E pode ser (isto não é por me lisonjear) que eu não só as diga mas que também as faça. Outro dia fiz eu uma bem grande, pela qual merecia sopapos. Mas um sujeito que tem uma pequena dependência comigo e ma viu fazer, louvou-ma muito e disse-me que eu tinha obrado com muito juízo. É certo que muitos fazem asneira porque acham logo ali pronto quem lhas aplauda.
Ora vamos ao dentista e mais eu já me não lembra nada, nem bem aonde estávamos: ah... ah... agora me recordo. Estávamos na boca. De quem é que eu não estou lembrado, mas seja de quem for, ainda que seja bom saber de quem, mas isso não vem muito para o caso. Era só para todo o tempo se conhecer a minha verdade. Parece-me que estávamos nestas palavras: o tal dentista? justamente. O tal dentista era onde eu fiquei. Vamos ao caso.
O tal dentista tirava dentes e este era o seu ofício. Mas não os tirava senão onde os havia, porque todos sabem aquele ditado: onde o não há, todo o mundo o perde. Uma tarde veio uma velha ter com o tal professor de osso, pedir-lhe o favor de lhe fazer uma grosa de dentes, (quem lhe dera uma grosa de cachações!). Mas queria-os capazes de roer tudo. Mandou-lhe o mestre abrir a boca, na qual havia três dentes, um à frente, que me parecia uma sentinela da saúde, para não deixar ninguém chegar ali sem primeiro fazer quarentena com receio de peste. Outro num lado, que me parecia um anacoreta pelo solitário e amarelo; e outro do outro lado, que me pareceu destes bonecos da China, que em se lhe mexendo ficam a dar com a cabeça por algum espaço. Assim estava reduzida a boca deste século em pé, que ainda queria dentes para roer estando ela já roída pelo tempo. O homem despediu-a e teve escrúpulo de a enganar, o que nele era muito, mas a boca da mulher já não estava em estado de se lhe pôr nem tirar nada. A mesma língua já se lhe tinha despedido e vivia tão recuada que não chegava com ela ao céu da boca. Foi-se, enfim, a velha muito desconsolada e apareceu uma moça que queria tirar um dente e logo disse:
— Eu quero que vossa mercê, meu Senhor, antes de me tirar o dente me faça escarne dele, porque me disse uma amiga, que tem tirado cinquenta e tantos, que assim se tiram com menos perigo, ainda que com mais dores. Mas eu já de dores não faço caso, porque tenho um coração que toma dor de tudo e mesmo por qualquer coisa que seja. Um gato, que eu oiça miar, já me está afligindo. Daqui pode vossa mercê supor o que não sentirei eu se ouvir uma pessoa suspirar. Não está mais na minha mão. Que lhe hei-de eu fazer? Antes quero padecer das coisas que vê-Ias padecer ao meu próximo. Mas, enfim, meu senhor, não o quero cansar mais. Vamos a isto.
O pobre homem que era estrangeiro e não entendia bem a língua, pôs-se a olhar para ela porque não sabia o que era fazer escárnio do dente. A moça, que o viu com o ar de quem queria rir, logo lhe perguntou se aquilo era fazer escárnio, que se assim era não doía muito. Até que houve um ali que lhe disse que a senhora, o que queria, era o dente descarnado, ou, para melhor dizer, a gengiva e não escárnio do dente que não merecia que lhe fizessem essa afronta porque tinha uns dentes lindos. Ela fez-se vermelhinha e respondeu que não entendia dessas coisas, que o que pedira era que lho fizessem como melhor entendessem porque ela se entregava nas suas mãos. Só o que queria era ver-se livre do dente que era um inimigo que tinha na boca.
Abriu a menina a boca, o dentista viu o dente e reconheceu que não estava ofendido. Disse-lhe que não o precisava tirar porque não estava podre. — Não importa, meu senhor, tornou ela, tire-mo vossa mercê sempre, que me disse uma pessoa a quem eu quero menos mal, que este dente desfeava-me a boca por estar às cabritas em cima deste queixal. E, além disso, por não ser tão branco como os outros. Nestes termos, foi-se-lhe o mestre à boca e passou-lhe o dente à mão, que, com efeito, estava muito capaz. Mas a rapariga ficou muito consolada e mais o dente que sofria o pesadelo de tirado.
Vamos a outro caso notável que sucedeu a este pobre homem. Foi uma desgraça numa feira que não posso deixar de contar, pois apesar de ser desgraça teve graça. E é o caso: numa das feiras notáveis do Reino onde foi ele a exercitar o seu ofício (que já vossas mercês têm visto e ouvido quanto era destro nele), e mostrar a sua grande ligeireza, para por este meio se fazer mais célebre e conhecido. Viu passar por pé de si um pobre homem e, conhecendo-lhe pela cara que não tinha dinheiro, mas que tinha vontade de o ter, propôs-lhe este negócio: — Quer vossemecê ganhar dezasseis tostões? O homem, que lhe pareceu vir aquele dinheiro do céu, disse-lhe que sim e que estava muito pronto para o que lhe mandasse. — Pois há-de vossemecê fazer uma pequena coisa, que vem a ser: em eu me apresentando na feira em cima da minha banca, depois de ter acabado a minha operação dental, há-de vossemecê chegar-se a mim e pedir-me, com urna cara de piedade e quase chorando, que lhe tire um dente que o não deixa comer nem dormir há tantos dias e que lhe dizem os dentistas que é um dente muito difícil de tirar por ser o que fica logo debaixo do olho esquerdo. Eu, então, arregaço-me, vou-lhe à boca, finjo que lhe tiro o dente, que hei-de mostrar ao público, e vossemecê há-de então fingir que me quer beijar os pés e dar-me os agradecimentos com as lágrimas nos olhos, para o que tem vossemecê já oito tostões. Depois de acabada a farsa, será embolsado do resto.
Recebeu o homem o dinheiro e foi para a praça esperar o seu benfeitor. Mas a desgraça quis que enquanto o dentista amestrava o discípulo no engano, uns tunantes da terra, gente de bom gosto e muito liberal em dar um roda de pau quando era preciso, estiveram ouvindo de uma janela toda a perlenga e, apenas os dois se tinham destacado, saltaram no dentista e disseram-lhe:
— Nós estivemos ouvindo tudo o que vossemecê disse àquele pobre homem. Já não o largamos mais. Vossemecê vá para a feira e vá fazer tudo o que ajustou mas só com a diferença que não há-de fingir o tirar-lhe o dente. Há-de tirar-lho deveras. Nós lá havemos de estar à sua ilharga e fique certo que se não lho tira deveras, vossemecê leva uma redonda sova de pau, para o que tem aqui vossemecê a amostra. E deram-lhe duas pauladas menos más.
O pobre homem foi tremendo para a praça, pôs a sua banca de dentes e arengou em meia língua os progressos da sua arte. Chegou o miserável ajustado para o divertimento, que acabou em tragicomédia porque o dente veio à luz. O estrangeiro olhou para as bandas, viu os amigos que lhe tinham prometido o prémio e que já lhe tinham dado sinal se ele não tirasse o dente, e com os olhos lhe confirmavam a sentença. Não houve outro remédio. Botou-se ao homem e, num abrir e fechar de olhos, sacou-lhe o primeiro dente em que pôs a mão. Agora ouvireis: tanto que o homem se viu sem o dente, e a boca toda ensanguentada, clamou contra o dentista, praguejou-o, descompô-lo, contou todo o caso ao povo que logo, sem a mínima demora, saltou a apupar o professor o qual saiu dali em papos-de-aranha. Nesse mesmo dia deu consigo em seis léguas de distância, tão suado e medroso, que eu tinha dó dele e passei uma calma de meus pecados com a tal funçãozinha.
Aqui nos demorámos algum tempo e houve bastante que fazer. Ainda se sacaram cento e tantos dentes mas também saímos com pressa do sítio, porque o último dente que sacou veio com um bocado do queixo. Suponho que era amizade que lhe tinha, ou parentesco. Mas a culpa pôs-se a quem o tinha tirado. A corda sempre quebra pelo mais fraco. E antes que também nos quebrassem os queixos, pusemo-nos ao fresco e também mamámos cinco léguas naquele dia, a pé. Isto é, ele, que eu sempre vim sentado, como quem vem de burrinho. Mas, apesar disso, eu já não andava muito contente com as jornadas, porque isto era de Verão e a calma afligia-me muito. Mas não havia outro remédio, nem outra cabeça e até poucas esperanças. O amigo não se comunicava com pessoa alguma. Ia comer a uma taberna e, apenas acabava de jantar ou cear, logo saía e não dava conversa. Até que quis a sorte que aparecesse um seu patrício e acomodou-se conosco. Mas como não sabia tirar dentes, aplicou-se a tirar outras coisas. Comprou umas poucas de estampas, fez uma caixa onde as meteu, pôs-lhe seus vidros e chamou-lhe tutto il mondo. Determinou-se com este trem a ir procurar fortuna, porque o dentista não era capaz de sustentar ninguém oito dias, ainda que fosse seu pai. Sustentava-me a mim porque não me podia pôr a vista nem o dedo em cima. Eu, como ouvi falar em tutto il mondo, ainda que não sabia o que era, resolvi-me a sabê-lo, para o que, na noite da véspera da sua partida, deixei o tirador de dentes a passei para a cabeça de tutto il mondo. É a carapuça XLIV.
A minha nova morada é uma cabeça interessante, porque, enfim, é uma cabeça que trazia todo o mundo à cabeça e era senhora de todo o mundo pois não era muito vergonhoso. O seu modo de vida tinha importado, todo, em setecentos e vinte e tirava todos os dias, mesmo pelo termo tirar, o seu quartinho. O negócio é dos melhores que eu conheço. Ninguém o vê senão com um olho e só o dono o pode ver com dois. Além disso, tem muito pouco que aprender porque ninguém repara no que ele fala. Eu gostei, a primeira vez que ele acarretou sem muito custo todo o mundo. Chegou a uma rua, pôs a ratoeira no chão, armou-a, foram chegando os ratos, puseram o olho à mira e ele entrou com uma fala em duas línguas, puxando por um cordel e, ao mesmo tempo, a dizer: — Agora se vê a grande cidade de Marrocos com todos os seus edifícios; ali se vê aquele sumptuoso chafariz que não bota água. Mais adiante está o palácio do Grão-Vizir, sustentado por quatro colunas de maravilhoso barro. Logo mais adiante se vê Mafoma passeando a cavalo num caniço, com umas esporas de sebo. No meio da grande praça está a estátua de um cão de fila, que morreu danado no ano de 1111, por outro nome, o ano dos quatro uns.
Caía o pano abaixo, ficavam os espectadores a coçar o olho que tinha estado fechado, e com dez réis de menos sem lhes lembrar nada do que tinham acabado de ver. E então? Que tal é o negócio? Ganhar, com cem, cinco, faz qualquer tolo. Agora ganhar com cinco, cem, isso é reservado para outra qualidade de cachimónias.
Assim fomos passando menos mal, mas ele muito melhor do que eu e mais não comia muito. Havia dia em que gastava os seus seis tostões e quinhentos e oitenta em vinho, e um vintém em pão. Não, o comer não o havia de fazer pobre. Um ano andei com este mundo palrante e no fim do qual já ele se achava com o seu par de moedas tesas. Tomou um caixeiro para lhe andar com a loja e ele pôs uns bonecos que pareciam gente viva, no que ganhou muito bem. No fim do outro ano já tinha um rocinante em que andava aos domingos e já falava que queria comprar um navio. O certo é que ele trespassou a loja a um parente que lhe veio da terra e que tinha chegado com o mesmo cabedal que ele trouxe. Depois começou a contratar em ferro, no que adquiriu muito ouro. É célebre coisa que a uns torna-se-lhe o ferro em ouro e a outros o ouro em ferro! A conhecer isto é que não chega a inteligência de um piolho. Eu não sou basófio, não chego lá, confesso a inópia! Ultimamente pôs a sua sege e entrou a dizer que se queria ir embora, que não se podia aturar semelhante terra, que passava mal de saúde, que tinha sido um asno por ter saído da sua. Mas eu, que o conhecia ao tempo dos dez réis, cada vez que lhe ouvia dizer tal coisa, fincava-lhe uma mordidela que, por minha vontade, se eu pudesse, lhe sacava o sangue todo, só para o restituir aos seus donos. Assim andei, esperando modos de sair dali e com muito receio que não lhe desse o amigo ir-se embora de repente por não estar com o trabalho de ajustar contas, o que na verdade é uma seca, principalmente se se tem de dar tornas. Porque sempre há dúvidas e eu, que não queria ir com ele por coisa nenhuma desta vida, andava num susto continuado. Mas ele mudou de projecto porque lhe apareceu uma bagatela em que podia ganhar os seus cem mil cruzados e, por nos dar esse gosto, demorou-se, apesar da pouca saúde. A conta, porém, saiu-lhe errada: ganhou só cento e cinquenta mil cruzados. Comprou então um navio para carregar por sua conta e pôs-se ao fresco, dizendo sempre muito mal da terra, por lhe ter metido aquele inimigo em casa e porque o ouro, sem exercício, é o mesmo que o corpo: está em perigo de estupor. De constipações estava livre o dinheiro do meu patrão pois conservava-o num contínuo suadoiro, pelo abafo em que sempre o tinha. E uma boa parte dele já estava expatriado porque o mandara naturalizar na sua terra. Via-me eu bastante agoniado, sem saber o que havia de ser de mim, até que apareceu outro patrício, que era mestre de florete e trazia-lhe cartas de recomendação. No dia em que se apresentou, jantou connosco. Ficou para o café e ali recebeu os conselhos precisos em que entrou a recomendação de que tivesse cuidado em si, que não o enganassem; que na terra havia muitos meninos espertos e outras coisas mais, arrematando, por fim, que lhe daria alguns discípulos, enquanto se não ia, o que esperava fazer com a maior brevidade. Eu, que tal ouvi, não esperei mais um instante. Fui saindo para o colarinho, desci-lhe abaixo à casaca, (pois já se sabe que ele agora não andava em véstia), passei para a cadeira, daí para o chão. Fui à cadeira do outro, segui os mesmos passos da retirada e encaixei-me na cabeça do mestre de florete, sem mais demora, e sem mais demora lhe fiz a carapuça XLV.
O amigo do tutto il mondo roeu a corda ao mestre de espada porque, em poucos dias, pôs-se a andar. Mandou-o chamar na véspera e disse-lhe estas razões:
— Meu rico patrício, amigo e quase parente. Eu não teria incómodo algum em lhe dar três ou quatro mil cruzados para princípio do seu estabelecimento, pois quem se recolhe à sua pátria com o melhor de trezentos, nenhuma diferença lhe faria tão pouca coisa. Mas como sou verdadeiramente seu amigo, tenho resolvido não só não lhe dar nada mas até mesmo não o recomendar a ninguém por não fazer a sua infelicidade. Porque vossemecê não sabe o que é a gente fiar-se em dinheiro ou em protecções. Não faz caso de mais nada, descansa e, por fim, nada adquire. As avessas aquele que se vê sem meios alguns de subsistência porque não dorme a excogitá-los, até acertar. Tal me sucedeu a mim e tal sucederá a vossemecê. E por isso me vejo hoje no estado em que me vejo, que é o da independência, um, certamente, dos melhores que conheço, tendo, aliás, conhecido muitos. Além de tudo isto, vossemecê está numa bela terra porque aqui há muita preguiça e, por consequência, muito pouca indústria. Não se olha mesmo para o necessário e por isso morre muita gente de fome que podia morrer de fartura se usassem dos braços que Deus lhes pôs no corpo que, bem se deixa ver, foram para trabalhar. E em vez de com eles abrirem a terra para adquirirem o sustento, pisam-na com os pés e deitam-se em cima dela, até que ela, cansada de os sofrer, os cobre.
Deu-lhe um abraço e nunca mais o vimos.
O mestre de florete ficou passado sem ter tempo de reparar o bote. E vendo-se, com efeito, como o outro lhe pintou, entrou a pensar no modo como havia de obter de comer. A terra com efeito, era boa. O outro não o enganou e todos gostam de aprender. O que não lhes importa é ficarem sabendo. Mas cada um deve fazer a sua diligência e ninguém está a mais obrigado. Anunciou-se na gazeta e, em vinte regras, disse que ensinava florete. Alugou uma loja que tinha uma pequena casa e, tão pequena que, postos os dois floretes um contra o outro, estava a casa tomada. Começou a dar as suas primeiras lições com muita fortuna, porque concorreram muitos discípulos. Mas era galante coisa ver dar as lições, porque a casa, como já disse, sendo muito curta e o mestre muito comprido, o discípulo sempre ficava da banda da porta. Quando o mestre estendia a perna para dar o bote, o discípulo recuava e saía pela porta fora. Houve muitas bulhas por amor disto, porque às vezes vinham dar encontrões em quem passava e aconteceu ali uma história muito grande. Num arrecuamento destes, pisou um dos discípulos o pé a um burro de uma Senhora que passava, a qual tomou o caso a peito e esteve ele em vésperas de ser preso por causa do atentado. Mudou-se, então, para um primeiro andar e logo por entrada teve um benefício porque a este beneficiado não lhe eram proibidas as armas e rendeu-lhe menos mal. E dentro de ano e meio já contava mais dinheiro que todos os discípulos. Tinha botes muito particulares. Teve, uma vez, a habilidade de dar um bote na bolsa de um velho cujo filho ensinava e lhe tirou quase o sangue todo. Mas o rapaz ficou adiantadíssimo e jogava o florete como o melhor mestre. Houve ali, uma ocasião, umas histórias na rua. Saiu ele com o seu chanfalho e o que valeu aos outros foi cair-lhe o florete da mão e socarem-lhe muito bem as ventas. Que se não é isso, três ou quatro não lhe faziam papo e, ao menos, cinco ficavam ali estirados. Mas não eram senão dois. Além de saber bem o jogo, tinha coração e era rapaz muito desembaraçado. Também tivemos outro discípulo que não saiu mau no atirar à muralha. Tinha um golpe seu (creio que era de nascença) que, para o dar, punha-se em figura de cágado. Era um gosto vê-lo. Este também teve umas histórias com um amigo, por amor de uma preta que vendia favas. Desafiaram-se. O Doutor não sabia nada do jogo, entrou a dar-lhe a torto e a direito. Cá o nosso discípulo, tudo era requerer-lhe que fizesse jogo. Mas o que sabia, fez todas as vazas, de forma que o nosso não via bóia e ficou moído como azeitona em lagar. Mas porque o fez ele? Porque era um tolo. Se ele soubesse o jogo, havia de levar para o tabaco, mas entrou a dar sem mais nem menos, sem ordem, sem tempo, sem passos competentes, sem conhecer os perigos. Numa palavra, os tolos é que escapam.
Ali houve também outro discípulo que não saiu mauzinho e a primeira briga que teve foi com o pai, por não lhe querer dar uma prenda de anos a uma Senhora lá da sua veneração. Este saiu valente como as armas. Uma noite deu em todos da casa e até dava na vizinhança se não aparece um que lhe fez encontro e que lhe tocou à chamada, no corpo, como o mais hábil tambor.
Enfim, o mestre estava satisfeito porque o ofício dava de si e a mania do país era aprender, já se sabe, como eu já disse, sem ficar sabendo. Aparecia por ali uma mulher a quem ele entrou a fazer o seu pé-de-alferes e eu pus-me logo à espreita. Porque se aquele negócio dava em casar, eu logo na rua. O que assim sucedeu. Tínhamos ali, por vizinho, um homem com quem ninguém queria ter negócios porque diziam que era um refinado velhaco. Morava por cima e, quando descia e nos encontrava, tirava o chapéu porque, ainda que velhaco, era cortês. Como eu vi que o casamento se ia aproximando, uma manhã saí pela cama fora e fui pôr-me à janela. Quando o tal velhaco desceu e ia passando por baixo, deixei-me cair e acertei-lhe sobre um ombro. Fui-lhe à cabeça e fiz-lhe a carapuça XLVI.
Fui para a cabeça deste homem julgando muito mal dele. Mas, às duas por três, mudei de conceito. Era casado, tinha seis filhos, sustentava treze pessoas, tomava tabaco, bebia a sua gota de vinho e devia bastante. Mas eu tomara que me dissessem quem com doze pessoas ou mais, e um par de demandas a nutrir, não há-de dever os cabelos? Pois sou obrigado a dizer que era um homem que merecia dó, olhadas bem as circunstâncias. Os credores, por mais desculpas que ele lhes desse, tomavam tudo por peta. Ora sede lá juiz com tais fregueses!
O homem parecia-me, às vezes, como um grão de milho rodeado de formigas a puxarem por ele; assim, estava com os credores.
Pela manhã, erguia-se e pediam-lhe logo dezasseis tostões para as despesas da casa e ele, muitas vezes, tinha só um quartinho e ainda lhe era preciso ir procurar um cruzado para acabar as despesas do dia. Vinha um, neste meio tempo, pedir-lhe quatro moedas. Que havia ele de responder a isto? Muitas vezes despropositava. O credor gritava, blasfemava, que ainda em cima o descompunham por pedir o que era seu. Que, sabe Deus, se o era! Ora vamos nós agora analisar o credor, o qual era um homem que passava por muito honrado e verdadeiro e a quem o caloteiro devia trinta moedas, mas a quem este mesmo caloteiro tinha feito ganhar, pelas suas mãos, em vários negócios, e em menos de três anos, o melhor de setecentos mil réis. E o bom e verdadeiro homem, sem reconhecimento nenhum a isto, afligia aquele mesmo homem que lhe tinha dado a ganhar muito e muito mais. Mas como o credor gritava contra ele e o devedor se calava pedindo espera, todos lhe chamavam velhaco, sem indagar mais circunstância nenhuma. Que isto tem o mundo. Se se diz Fulano é mau, todos o aprovam; se se diz que é bom, há muito quem duvide.
Outro credor tinha pedido, quase com as mãos erguidas, que lhe fizesse a mercê de lhe mandar para a América uns poucos de contrabandos, visto ter lá correspondências, do que o velhaco se desculpou muitas vezes, para não se meter em coisas que nada lhe rendiam, dizendo-lhe que não podia e que temia descaminho. O outro todas as dúvidas aplainava até que foi a fazenda. Algumas das remessas faliram da boa correspondência que se esperava, porque se os homens estão presentemente enganando uns aos outros de cara a cara, que fará em estando distantes! Por consequência, foi o pobre velhaco pagando aos poucos o que não comeu nem bebeu e quando podia dizer muito bem que não queria pagar, porque não era dívida, nem fazenda de lei e quem perdeu, perdeu. Apesar de tudo, confessava e pedia espera, mas o credor gritava por toda a parte que fulano era um velhaco, que lhe devia tantos e quantos, mas não contava as circunstâncias da dívida. Todos quantos o ouviam, diziam: — É um velhaco que não tem alma nem consciência, tirando o sangue aos pobres.
Havia outro, a quem o meu velhaco tinha feito mil bens e mil presentes, mas como já não continuava, dizia mal dele com os outros, ainda que, com efeito, nada lhe devesse. Pois sou obrigado a dizer que o fundo deste velhaco era o de um homem verdadeiro. Muitas e muitas vezes vi que não podia dormir lembrando-se das suas dívidas e, tendo uma alma assaz grande, sucumbia debaixo de um peso que não podia sacudir, desabafando muitas vezes com estas palavras: — Se chego a tempo de não dever nada a estes bêbados, quanto não passarei o resto dos meus dias consolado! Mas que posso eu fazer! Algum dinheiro que tinha de sobresselente, chuparam-mo por um engano que me fizeram. A renda que tenho, por ora mal me chega para me sustentar. O alimento da família é um dos deveres mais sagrados que tem o homem. Eu, ou hei-de faltar a um ou a outro e o segundo tem mais perigo que o primeiro. Pois então, deixai falar estes maus homens, que virá tempo que os outros conheçam que eu não sou o que me chamam.
Como o mundo vai errado!, dizia eu (ainda que piolho). Quebra um negociante de má-fé, chamam-lhe menino. Rouba outro trinta mil cruzados, chamam-lhe esperto. Faz aquele um negócio lesivo, chamam-lhe económico. Rouba este dez mil cruzados, e reparte cinco, chamam-lhe liberal. Vem dacolá outro que descobre um segredo que lhe comunicaram, no que ganha alguns tostões, e com eles melhora de fortuna, e dizem que tem sido feliz. Outro vive de algumas letras que tirou do A.B.C. e com elas faz um nome e dizem todos que é amigo de ganhar a sua vida. Outro não faz senão ouvir aqui para dizer acolá e chamam-lhe engraçado e que não tem nada de tolo. Um pobre homem que é singelo, que não é capaz de negar o alheio, que não furta, que é capaz de valer a um desgraçado, de chorar com ele, de lhe dar a camisa para o suprir, mas como deve, como tem maus credores, como não pode pagar, fazem-lhe uma carta de nomes que os amigos todos assinam e, se for preciso ir jurar para o porem na forca, vão como se fossem para uma função. Que tal vai o mundo! Quem pode dar satisfação a isto? Eu, na verdade, tinha dó do homem quando lhe ouvia chamar velhaco porque nunca vi quem menos o merecesse. Mas hoje ninguém indaga nada. Todos são papagaios. Se ouvem dizer, Fuão é santo, repetem: é santo. Fuão é diabo; é diabo. E assim é que marcha tudo. Anda um homem em sege, tem criados, dá os seus jantares, dá o seu chá, tem companhia de senhoras. É um bom homem e não se pergunta mais nada. Bem entendido que há muitos e muitos que têm tudo isto e o fazem porque podem e são homens muito verdadeiros. Eu só falo daqueles que o fazem sem poder e ninguém lhes diz nada, nem pergunta como é aquela habilidade. Outro, dali, anda a pé, não dá nem água quente, jantares tomara-os ele para si, fala aos amigos sem mandar vir as senhoras para fazer companhia e ei-lo um pedinte, um tratante, um caloteiro sem brio nem vergonha. E então que tal vai o mundo, não vai umas natas? Sustenta um homem uma demanda injustamente mas, enfim, vence-a apesar da injustiça. O que a perdeu é que era um velhaco, que intentava tirar o que não era seu. Furta um vinte mil cruzados e o outro, outros vinte. Um escapa, outro é apanhado. O apanhado é ladrão e o que fugiu, vivíssimo e esperto como um azougue. E então? Que tal vai o mundo cá pela Ásia?
Outro vai a casa de umas raparigas, desinquieta uma delas com todo o segredo, parece uma mosquinha atordoada, não conta histórias que não sejam virtudes, tudo o que vê lhe parece mal, diz às raparigas que fujam do mundo, diz mal de tudo e de todos. Chega aos fins a que se propôs dando sempre muito conselho. Outro vê uma rapariga, gosta dela, confessa-lhe que a ama, não esconde a sua paixão e, sem passar dos limites do dever, resfolega e não ofende ninguém. Apesar disso, o primeiro é um homem de bem, que entra nas casas honradas como deve. O segundo, um sedutor, um velhaco, um tratante. Então? Que tal vai o mundo?
Basta de filosofar, senhor piolho. Vossemecê não toma emenda. Vai a contar o que sabe de uma cabeça e entra a envolver muitas na mesma carapuça. Sempre é grande defeito esta mania que eu tomei de escrever. Meto trapos e frangalhos, que às vezes nem eu mesmo me entendo com a carapuça e nem sei por onde lhe hei-de pegar. Vamos outra vez ao velhaco, que é a cabeça da carapuça presente. O homem todos os dias botava as suas linhas. Mas a maior parte das vezes baralhavam-se-lhe e ele cada vez mais metido em mais aflições, e o nome a crescer apesar de ele não fazer mais dívidas do que as que tinha quando adquiriu o nome. As despesas cresciam, as cobranças cada vez iam a pior, o nome cada vez se ia espalhando mais e perigava um homem que era todo o contrário do que diziam dele. Um dia que ele estava bastante agoniado, apareceu-lhe um amigo de confiança, perseguiu-o para que lhe dissesse o que o afligia. Enfim, conseguiu dele o confessar-lhe a verdade e desabafar com ele. O amigo riu-se e disse-lhe:
— Ora sabes o que te digo? É que tu não és velhaco. És tolo. Então porque te consomes tu, porque julgas que te chamam velhaco? Como te enganas! Por melhor homem que tu fosses, sempre te haviam de chamar alguma coisa. Presentemente, não há senão dois divertimentos: jogar e dizer mal. Olha cá! Tudo neste mundo é dividido em duas metades. Dizem mal de ti três sujeitos, outros três dirão bem. O principal objecto é que a tua consciência te não condene, que dessa é que um homem se não pode livrar. Ela pesa e ela afere o bom e o mau. Tu deves, mas deves porque não podes pagar. Não o fazes por costume, mas sim por necessidade. Deixa-te de tolices. Se os homens soubessem entre si o que dizem uns dos outros, não tinha havido Pílades e Orestes. Vai bugiar. Torna à tua alegria. Se precisas de alguma coisa, dize-mo que eu não te hei-de chamar velhaco. Sabes tu uma das coisas que se precisa neste mundo? É saber escolher os credores. O credor honrado pede a sua dívida mas não desacredita o seu devedor. O credor tratante até gosta que lhe devam só para ter que dizer, deve-me fulano tanto, sicrano tanto, beltrano isto, Bonifácio aquilo e, muitas vezes, não tem chegado o empréstimo a oito moedas por trinta pessoas.
E com esta se foi o tal amigo, deixando mais consolado o outro. Nesta ocasião, o meu velhaco não tinha nem real. Resolveu-se ir a casa de um homem que diziam todos ser o melhor homem do mundo, muito cheio de caridade e verdadeiro, a ver se lhe emprestava algum dinheiro sobre uns trastes de prata. O que logo pôs em execução. Fomos à tal casa, onde o dito nos recebeu com muito agasalho, falou pelos cotovelos e em coisas tão boas que eu tive cobiça de ficar ali, para o que desci para a cadeira, onde o meu velhaco estava sentado, que, por fortuna, sucedeu ser aquela onde o verdadeiro se costumava sentar. Despediram-se e, na volta, fui-me à sua cabeça e é a Carapuça XLVII.
Como o mundo vai errado! Como os homens ainda estão néscios! Não podem conhecer outro homem e querem saber coisas que ficam tanto acima deles! A falarmos a verdade, se a Barca dos tolos acarretar uma pequena parte dos que há, grande trabalho receio ao seu construtor. Vive-se com um homem toda a vida, julga-se um virtuoso e é um vicioso sem limites.
Conhecer o coração do homem é a ciência mais difícil e ele, muitas vezes, não se conhece a si próprio. Julga-se um e é outro, muito diferente do que pensa. O nosso amor-próprio sempre desculpa os nossos erros e o nosso amor-próprio é a mãe do crime, ainda que muitas vezes se precisa desse amor-próprio, porque é preciso ter mãe. A mãe é a agasalhadora do crime do filho, desvia-o da justiça do pai, todos os erros lhe parecem pequenos e sempre espera a emenda, sem reflectir que o homem é como a árvore: quanto mais idade tem, mais raízes a seguram na terra. O amor-próprio é igualmente como a mãe. Pinta-nos os vícios, enverniza-nos os defeitos, doira-nos os nossos erros e quando o nosso mau comportamento nos conduz ao precipício, chama-lhe desgraça e nunca nos diz que é culpa. Mas este mesmo amor-próprio também é como a boa mãe que influi a virtude nos filhos, que os capacita na honra e que os faz amar o Rei e a Pátria. O amor-próprio, bem conduzido, eleva-nos muitas vezes acima de nós mesmos e faz-nos igualar com aqueles que mereceram nome no mundo.
Parece-me que para piolho já não vou falando muito mal ou talvez que isto também seja amor-próprio. Seja o que for, vou dizendo o que entendo, se é que o entendo, que muitos falam que ninguém os entende, nem eles se entendem. Olhem, não entender o que tenho escrito, isso me tem a mim sucedido muitas vezes quando o quero ler. Entro a gaguejar e não lhe posso meter dente.
Enfim, Senhores, tudo quanto eu tenho dito quer dizer que o tal homem verdadeiro, em cuja cabeça estou, não é como dizem, mas sim um verdadeiro velhaco. É um velhaco malicioso e feroz. É um gato que se finge manso e esconde as unhas quando o dono brinca com ele, para melhor as fincar em carne e aguçar em sangue. Eis aqui a cabeça onde eu estou. Vou descortinar-lhe a vida e vossas mercês ficarão admirados. Mas não têm que ficar, porque há muitos assim. O peneiro para joeirar e separar os bons dos maus é muito fino. Poucos deixa passar. Saem muitos, porque rompem o pano e como saíram todos juntos, não se conhece qual deles fez o rasgão.
Os homens não se podem julgar pelo que parecem, mas sim pelo que são. E o que são muitas vezes se esconde até se esconder a vida. A vida do meu verdadeiro consistia na vida mais regular que se pode observar. Erguia-se pela manhã muito cedo, cuidava logo das suas devoções, almoçava e lavava-se. Falava a todo o mundo porque nunca soube o que era negar-se a ninguém. Má palavra nunca a deu. Na sua boca tudo era doce, ainda que do coração lhe viesse o azedo. Nada comprava que não fosse com o dinheirinho na mão e pagava à risca tudo quanto ajustava. Dava a sua esmola a pessoas da sua freguesia e dizia bem de todo o mundo. E quem dirá que este homem é mau? Pois digo-o eu. Era um homem muito rico. O seu dinheiro andava espalhado por toda a parte e os negócios ninguém os tinha com ele, eram com os seus agentes. Como tudo comprava a dinheiro, os mais necessitados eram as suas vítimas. Numa ocasião salvou um sujeito de quebrar com trinta mil cruzados, por letras, a pagar, comprando-lhe a fazenda, que valia sessenta, por trinta. Mas o mesmo quebrou dali a dois anos com duzentos mil cruzados, atendendo aos sólidos negócios que fazia. Muitas vezes sucedeu dar um cruzado-novo de esmola àquele mesmo que ele tinha feito chegar ao estado de pedir e, quem via dar de esmola um cruzado-novo, louvava-lhe a caridade e a liberalidade, mas não conhecia o resto. Era tão mau homem que, ganhando todos os anos trinta ou quarenta mil cruzados, gastava dois ou três e dava dez moedas de esmola. E, por amontoar ouro, não se lhe dava de amontoar desgraçados. Pode ser um bom homem aquele que, cheio do metal, daquele metal que por nossa desgraça é hoje o pão, o fecha em burras chapeadas de ferro sem lhe importar a macilenta fome pintada no rosto do seu semelhante ou, julgando que dando-lhe dez réis, tem preenchido os deveres da humanidade? Não, Senhores, cá por mim este homem é o pior do mundo. Aquele homem que, tendo renda para sustentar vinte, sem desfalcar seus filhos, sustenta vinte, ainda que tenha alguns defeitos, é humano. Aquele homem que, podendo sustentar trinta, sustenta dois, guardando o alimento de vinte e oito, será bom. Mas, no meu juízo, não tem esse nome. Se vissem um homem acarretar terra para um quintal que já tinha suficiente para nutrir o que se lhe semeava, que chamariam a esse homem? E que chamaríamos a um que acarreta ouro ou, para melhor dizer, fecha o pão e deixa-o endurecer enquanto os outros morrem de fome? Pois é velhaco aquele que deve dez e não paga, e não é velhaco aquele que guarda cem, duzentos, mil, trinta mil (que os valha trinta mil!), e não os dá a quem os precisa. Como não deve nada, é verdadeiro! As avessas o julgo eu. O que deve ser é velhaco, mas aquele que junta mais do que deve e que, tendo já o estabelecimento de seus filhos, só o ouro é o seu Deus, não é só velhaco, é... Eis aqui as circunstâncias em que estava o meu verdadeiro. Não devia nada ao seu próximo mas roubava o próximo não lhe ficando devendo nada. Amava o seu próximo, mas deixava morrer o próximo de fome. E enquanto a sua burra prenhe de ouro vergava sobre os sobrados, os estômagos dos seus vizinhos estavam vazios de alimento. Porque é a regra quase geral: onde mora um muito rico, são pobres todos os que o cercam porque, como é árvore maior, chupa todo o suco da terra. O rico, bem comparado, é como o Tubarão[1]; sempre traz consigo Romeiros e Apegadores.
Eis aqui o tal homem verdadeiro que não devia nada a ninguém e, por consequência, não era velhaco. Vamos agora às suas esmolas. Não se compadecia dos velhos, dos moços é que tinha mais dó. Se uma mãe carregada de anos e trabalhos se chegava a ele, dava-lhe os seus dez réis. Mas se esta mãe era acompanhada de uma filha na flor da idade, a sua caridade estendia-se mais. Basta! Não falemos deste verdadeiro de cuja cabeça eu estava aborrecido e só desejava ocasião de sair. Ocasião que encontrei com muita facilidade, aparecendo um sujeito que lhe trazia um pouco de dinheiro, de um interesse que tinha numa sociedade. Vinha a ser uma estalagem que havia lá num sítio na qual era sócio e caixeiro.
Fez-se-lhe muita festa e, depois da ceia, foi o estalajadeiro para o quarto onde dormíamos para ali falarem à sua vontade. Chegaram-se ambos para uma banca, e depois de feitas as contas e recebido o dinheiro, entraram a falar nalgumas vidas, sem ser das suas. Eu, que os vi tão entretidos, achei que não era má esta ocasião para ir à cabeça do estalajadeiro o que fiz com muito trabalho. No outro dia pusemo-nos a caminho. E é a carapuça XLVIII.
Notas
- ↑ Tubarão é um grande peixe, pela figura de um cação, que aparece em alto mar. Nunca se vê que não traga uns pequenos peixes agarrados a si, a que chamam Apegadores, e outros de outra espécie, também pequenos e que andam adiante dele e sc chamam Romeiros. [N. do A.]
Ainda não era o sol fora e já o meu estalajadeiro estava montado na mula que dava coices por tantas formas e por tantos motivos que era impossível que fizesse aquela dança sem ter gasto muito tempo em aprendê-la. Mas nunca botou o dono no chão porque este sabia-lhe as manhas e tinha-as e já as esperava, seguro como um prego.
Gastámos no caminho bastante tempo porque encontrámos na estrada para cima de quinhentos amigos e todos aqueles que encontrávamos em povoado, nos obrigavam a apear-nos para provar das águas.
Cada vez que montávamos na alímária era certa uma grosa de coices, de forma que eu andei em bolandas muitas vezes e muitas vezes fui obrigado a agarrar-me com unhas e dentes. Chegámos, enfim, à estalagem e veio logo a mulher abraçar o marido, com duas filhas que já tinha capazes de darem estalajadeirozinhos e um filho de cinco anos que era o lume dos olhos da mãe, travesso e malcriado como mil demónios. Vieram também duas criadas, uma que se chamava Páscoa e outra Quaresma, com a galantaria de que uma tinha a cara da outra. Quero dizer, a Quaresma tinha a cara de Páscoa e a Páscoa a cara da Quaresma. Vieram também três moços que pareciam três galgos. Veio um cão aos saltos a ele e um burro que havia em casa zurrou tanto que não parou enquanto o dono não foi à estrebaria afagá-lo. E aí lhe disse não sei o quê, porque eu, à língua de burro, não me tenho aplicado nada. Mas é certo que ambos ficaram satisfeitos porque o burro calou-se e o dono saiu a rir.
Isto já era bastante tarde. Perguntou o que havia de cear, ao que a mulher lhe disse que nada tinha capaz de lhe dar, porquanto ela já tinha ceado, mais a família. Que os ovos que havia, todos eram chocos; que a carne era de um burrinho pequeno que tinha morrido; que sim, havia um pouco de peixe frito, mas que bem sabia ele que era frito em azeite de peixe e que tinha medo de lho dar não lhe fizesse mal ao estômago. Que o melhor que tinha era um gato de molho de vilão, mas já havia cinco dias que estava feito. Ao tempo que a mulher dizia estas últimas palavras, ouviu-se um estalo, assim de como quem fechava uma porta. Ao que o marido disse muito contente: — Aquilo foi rato que caiu na ratoeira. Vão ver se é. Se for, vai-mo assar num bocadinho de manteiga e, com uma canada de vinho, está a ceia feita. Com efeito, foi-se ver e era rato. Ficaram todos contentes por estar suprida a falta e haver comer à vontade do estalajadeiro. Veio a ceia para a mesa e, enquanto ceava, perguntou o marido à mulher se tinha havido algum ganho dos extraordinários da casa ao que ela lhe respondeu que sim, que a Marioleta (que era uma das filhas), tinha furtado uma espora de prata a um passageiro que ali ficara a noite passada e pôs a culpa num criado que trazia consigo, no qual tinha dado meia dúzia de bofetões. Quanto mais o criado se esconjurava, mais o amo lhe dava de enraivecido. A Catarina, num troco, (esta era a outra filha), furtou dezoito vinténs e eu, a todos os que comeram, pedi o dobro do valor. A Páscoa, a um dos passageiros que trazia lençóis, pela manhã, ao levantar da cama, embutiu-lhe na mala dois dos nossos que já não tinham por onde se lhe pegar, e ficaram os dele que são dois lençóis novos de quatro ramos. Por ora é o que há, mas esperamos amanhã uma boa remessa porque esteve aqui um passageiro que levava a bolsa bem provida e nós avisámos o teu amigo Capitão, que lá foi atrás dele com os seus companheiros, pedir-lhe para a borracha. Creio que o homem lhe dará tudo porque é muito brioso e o nosso capitão Tomás não é para lhe aceitar menos nem os seus companheiros são para estas graças. Tu bem sabes que ele, tudo quanto traz é gente escolhida. E como nós temos o terço desta negociação, sempre nos cairão, pelas minhas contas, as nossas dez moedas. É o que se tem feito por cá. Se não adiantei mais os ganhos, não foi falta de diligência minha. Foi o que pôde ser.
Eu estava admirado de ouvir tal e dizia comigo: — Pois é crível que uma casa que se inventou para cômodo dos viajantes, para bem do público, seja desta qualidade? Quando eu pensava nisto, batem à porta. Eram dois Cavaleiros que perguntavam se havia cómodo para quatro. Acudiu logo todo o mundo: os moços a pegarem no estribo e a conduzirem as bestas para a cavalariça; as criadas a perguntarem-lhes se queriam camas; a dona da casa, o que queriam cear; o estalajadeiro indagando quem eram e para onde iam, para dar parte ao juiz; as duas filhas defronte, com os olhos nas algibeiras dos passageiros e com uma humildade tão estudada que pareciam duas donzelas da era de quinhentos. Os Cavaleiros eram daqueles que, em vendo mulher, ficam agarrados pelo beiço e ficaram embasbacados nas moças, que não eram muito boas mas das melhores que havia na terra. Os pais, tanto que viram os pássaros próximos do visco, safaram-se deixando a esparrela armada. Houve seus colóquios de parte a parte, mas com tanta modéstia que aos meus patetas pareceu-lhes que tinham que arrostar com duas Lucrécias. Elas, que os perceberam tolos, porque isso não tem nada que perceber, pediram licença para se retirar porque se avizinhava a ceia, no que eles não consentiram. Veio ceia maior, dobrou-se a dose do vinho, houve saúdes, perguntaram-se nomes, indagou-se se eram casadas, ao que o pai, mãe e elas responderam com uma voz: — Donzelas! De novo se renovaram as saúdes, tocaram-se os copos e os pés ao mesmo tempo, os olhos não ficaram ociosos nesta ocasião e os corações, se falassem, diriam mil destemperos. Nestes transportes de amor e bebedeira gastaram-se bons tostões, até que o pai, fazendo um focinho de palmo e meio, levantou-se e disse às filhas: — Para dentro! Basta de palrar! E vossas mercês, meus senhores, vão-se deitar. As raparigas fizeram uma cortesia muito descortês, a mãe foi atrás delas sem dizer palavra e o estalajadeiro levou os amigos a um quarto e despediu-se deles em latim.
Passado bastante tempo veio uma criada pé ante pé, como quem vinha às escondidas (não me lembro se era a Páscoa, se era a Quaresma, mas era uma delas porque ali não havia mais que duas; seria, talvez, a Quaresma, porque eles ficaram jejuando). E perguntou muito devagarinho: — Vossas mercês precisam de alguma coisa que eu lhes faça? — Anda cá, rapariga, lhe disse um dos hóspedes. Quem te mandou cá?
— Minhas amas pequenas é que me disseram que viesse eu saber se os senhores estavam bem acomodados ou precisavam alguma coisa? — E porque não vêm elas?
— Olha lá! Elas? Estão fechadas a sete chaves. Para me dizerem isto, disseram-me da janela que dá para o pátio e, por sinal, a senhora Maria estava a chorar.
— E quem é a senhora Maria?
— É aquela dos olhos pretos e nariz arrebitado. - Bem sei. E porque chorava ela?
— Porque o pai deu-lhe dois murros por ver um de vossas mercês a rir para ela.
— Pois ele viu isso?
— Sim senhor. E ainda a pobre menina dizia, não importa, dou tudo por muito bem empregado, porque gosto muito dele. Há muito tempo que não vejo moço tão gentil.
— Oh, rapariga! Não digas mais nada, que estou chorando por instantes. Ora dize-me: não lhe posso eu falar?
— Isso é um impossível. Seria preciso comprar meio mundo.
— Comprarei quanto for preciso. Dou-te quanto tu quiseres, se me consegues isso.
— Olhe, meu senhor, é preciso comprar a minha companheira, que é um diabo, os três moços e mais alguém.
— Pois olha, pega lá dinheiro e dispõe as coisas de forma que eu consiga esta ventura.
Saiu a criada como uma lebre e o cão do amo logo a apanhou de encruzilhada, porque, por sua ordem, é que se lhe tinha feito toda esta pantomina. E por isso é que eu sei quanto tenho contado. No fim de tudo, cada um se foi deitar na sua cama mas, os tolos, sem pregar olho à espera da criada. Cada rato que roía parecia-lhes os pés da moça que chegava, até que, de cansados, se deixaram dormir. Pela manhã foram acordados pelo dono da casa e postos na rua com toda a pressa porque estava, dizia ele, a estalagem embargada para uma pouca de tropa que chegava daí a uma hora e era preciso pôr tudo pronto. Pagaram à risca e nunca mais viram nem Maria, nem Marioleta, nem Páscoa, nem Quaresma. Foram quase tão aliviados da bolsa, quanto o eram da cabeça e isto numa só noite. Porque se dura duas o passatempo, tornavam para trás falidos. Daí a bocado chegou o tal capitão de ladrões que tinha ido receber aquele dinheiro em que a mulher tinha falado ao marido. E, com efeito, trazia a terça parte do adquirido. Houve almoço e bebedeira. Sem esta segunda, poucas ou nenhumas vezes se passava. Ali se contaram as várias fortunas que tinha havido daquele mesmo género e que não conto só por não ser fastidioso e não porque não sejam interessantes. Mas são um tanto tristes e menos próprias numa obra cujo fim é divertir instruindo, e não instruir com aflições.
Eu quis também indagar que tal era a vida de ladrão, para o que passei para a cabeça do tal capitão e é a carapuça XLIX.
Este chefe de ladrões era um homem alto, membrudo, muito bem-parecido. Tinha uma fisionomia que estava dizendo bondade e, certamente, ninguém pela cara, diria o ofício que exercitava. Nem sempre pela cara se conhece quem tem lombrigas. Este diabo para mim, falha. Pelo coração, sim. Por isso, podem conhecer-se indivíduos, mas esse, como anda muito às escondidas, sempre aparece de máscara e o seu dono veste-o como bem lhe parece e ficamos no mesmo estado de conhecimentos. Quem diz o contrário, declaro-lhe que é basófio. O tempo, a experiência, e um juízo menos mau é que nos podem aclarar alguma coisa e mesmo muito pouca coisa a respeito dos homens. Que lá a respeito de senhoras, isso então, nada, porque aí não há senão caprichos. Salta para cá, piolho, aí me ia eu descuidando a escrever destemperos, deixando o necessário. Sim senhores, uma fisionomia, que estava dizendo bondade e era mau como aqueles que o são. Eram vinte companheiros com ele e todos de dar e levar. Viviam uma légua distante dali, num subterrâneo qual nos pinta Gil Brás a sua cova. Mas não tinham velha Leonarda, nem preto Domingos[1] a enganar. Eles mesmo é que se serviam. Sempre ficava um ou dois de guarda ao covil no qual havia pouco trem e nada de sobresselente. A companhia era muito nova. O mais veterano no ofício era o capitão que se tinha ali estabelecido por ter fugido da terra com medo de perder a cabeça, que lhe andavam à caça dela, sendo, aliás, um traste a que ele tinha muito amor e muita estimação. E, mesmo, estava capacitado de que, se lha tiravam, morreria. O que faz um homem entrar a cismar!
Era um homem inteligente no seu ofício, esforçado, liberal, agasalhador dos seus sócios. Era pena que não exercitasse o valor que tinha a benefício do Estado. Porque o que tinha de mau, sendo ladrão, trocado em soldado, seria maravilhoso. Vejam como uma pequena mudança faz mudar as coisas sem tirar a essência às mesmas. Porque este não precisava mudar de costumes. Bastava só que seguisse os que tinha contra os inimigos da pátria. Mas ele pensava de outra forma e dizia que todos os que tinham dinheiro eram seus inimigos capitais e que haviam de escolher uma das duas: ou dar-lhe a vida ou o dinheiro. E achava tolos que quase sempre lhe davam o segundo, ainda que alguns davam uma e outra coisa. O que mais me admirava era ver como este homem dormia a sono solto sobre um colchão de crimes e homicídios. Muitas vezes, com um pequeno rebuliço se atemorizavam os companheiros e ele nem se levantava. Dali indagava a causa e prevenia o perigo. E, se era preciso assistir em pessoa, o valor e o sangue-frio eram os seus companheiros. Era capaz de infundir valor aos mais cobardes.
Ora ele não há tradição que houvesse piolho valente. Pois até eu confesso que tive ocasiões de desejar entrar nas acções. Ele raríssimas vezes puxava pela espada ou atirava tiro. Para ele não lhe fazia dúvida ir atacar sete ou oito, ainda que os seus ficassem longe dele meia légua. E, então, o ar com que ele fazia isto! Cuidam vossas mercês que era lá de faca ao peitos! Não senhores, quase sempre roubava com o chapéu na mão e com ele na mão se despedia daqueles a quem, muitas vezes, nem deixava o chapéu. Eu, vendo este modo, dizia comigo:
— Valha-me Deus, este maroto rouba nas estradas como se rouba nas Cortes, que é com o chapéu na mão, com muitas cortesias e vários rodeios mais que eu não digo por não ser importuno e mesmo porque são muito sabidos e até quase de ninguém ignorados, pois, mais ou menos, têm passado por todos: uns pela activa, outros pela passiva. Também se encontrava pobres passageiros que nada levassem, dava-lhes a sua esmola e eu clamava outra vez comigo:
— Justamente é como se faz nas Cortes que furtam os carneiros e dão os pés por amor de Deus. É um célebre ladrão! Furta com toda a caridade!
Quem vinha algumas vezes jantar connosco era o estalajadeiro que também era sócio no negócio cuja firma era: Estalajadeiro, Ladrão & Companhia.
O capitão gostava de uma das filhas e queria casar com ela. Mas queria primeiro mudar de ofício, ainda que a rapariga não quisesse que ele mudasse de ocupação. Tinha-lhe dado no goto aquele modo de vida, dava-se-lhe com o génio. E o sogro também gritava contra ele quando tal lhe ouvia dizer e aconselhava-o, dizendo-lhe que não encontraria ofício de mais valor e proveito e que mesmo para o negócio da estalagem lhe convinha não o deixar, pois que bem sabia e conhecia que liga faziam estas duas ocupações. O capitão, vendo que era do gosto da moça, do contento do pai e próprio do seu génio, tratou de se encartar e estava o casamento a concluir-se. Andavam com obras na cova para preparar um quarto decente para os noivos.
Uma ocasião apanharam um homem de cabelo curto que roubaram e lhes achei graça e razão. O tal vinha a cavalo num macho e trazia uma mala com cinco mil cruzados que tinha furtado numa feira, segundo ele confessou depois a um corretor, o qual corretor também os tinha furtado a outro num negócio que tiveram e lhos negara depois; o qual outro também os tinha furtado a um que os tinha furtado a outro. Mas esta história vem mais de trás, e por isso me não meto com ela. Baste que fiquem sabendo que os cinco mil cruzados, quando chegaram à mão do capitão, já vinham em quinta mão e sempre furtados. Isto é o que nós sabemos, que sabe Deus se a genealogia do furto era mais antiga. Mas aqui não há que admirar, porque o dinheiro sempre correu muito e sempre andou nas palmas de todos. Isto de ter muito dinheiro, indagada bem a geração do mesmo, quase sempre vem por bastardia. Mas dá com bons pais porque todos tratam da sua legitimação e dizem que estes filhos são muito afortunados. E não há dúvida que é assim, porque uma das coisas que eu conheço de mais feliz é o dinheiro, ainda que muitos dizem que é Inferno. História! No Inferno não pode haver nada bonito e o dinheiro é coisa muito linda. Os mesmos inocentes, que não lhe conhecem o valor, lhe acham graça. Nem ele há coisa mais inocente do que o dinheiro. Quem lhe põe a malícia é quem lhe dá o uso. Vejam se há coisa mais inocente que comprar com um vintém, um vintém de pão (visto não se dar sem isso). Vai dacolá um e compra com um vintém uma carga de pólvora e chumbo e mata um amigo (que hoje são os que se matam uns aos outros). Porventura o vintém é que teve a culpa? Se o levassem à tenda para pão, diria ele que não? Ou importava-se-lhe isso? Quanto a mim não há nada mais inocente que o dinheiro. É tão inocente que nem sabe quando o furtam. Tanto se deixa ele ir com o seu dono, como com aquele que o não é. Esperam-lhe mais bondade? Não senhores, eu nunca vi enforcar nenhuma faca por dar uma facada. Cortar a mão ao que pegou na faca e tirar-lhe um palmo de comprimento do corpo a quem com ela deu, isso sim, isso tenho visto. Com que assentemos de não pôr culpa ao dinheiro, mas sim aos que o têm e que lhe dão má educação. Que o dinheiro, por si, tem boa índole e um génio de um santo. Basta que seja um metal tão comedido que, apesar de tão desejado, aparece tão poucas vezes e é um amigo verdadeiro que, quando chega a dar a mão a um homem, o é deveras. Não é como muitos amigos que por aí há que dão a mão a todos ao mesmo tempo. A única coisa que eu acho de mau no dinheiro é ser muito estranho e bravio e ir à mão de poucos. Tem muitas vezes um velho sovina e rico, uma grande burra e quatro ou cinco filhas. Encerra a burra numa casa e as filhas noutra. Apesar disso, as filhas sempre andam às furtadelas pelas janelas e, às vezes, apanham o sereno e a burra sossegadinha, sem lhe importar nada, ainda que oiça mil burros a zurrar. Olhem que honestidade! Isto é que é ser donzela! Há burra que nunca ninguém lhe pôs a vista em cima nem se deixou tocar com um só dedo e o dinheiro está todo amarelo porque nunca viu o sol. Mas ai que estou perdido! Aqui estou eu outra vez desviado da cabeça! Se fosse tocador de cravo, em fantasias havia de ser insigne! Salta para cá, piolho, vamos outra vez ao ladrão e deixa-te de burras. Não sejas burro, não fales no que não te importa. Morde, não sejas falador, olha que é ridícula manha. Estava na antiguidade do furto, que, na verdade, é das coisas mais antigas.
Julgo eu que o furto começou logo no tempo em que os homens se acostumaram a vestir (e, certamente, aos alfaiates deve-se grande parte desta arte). Enquanto andaram nus, estou calado, mas depois que tiveram burjaca, sou capaz de jurar que logo começaram a furtar, e creio que houve tempos em que não era tido em má conta quem furtava. Hoje mesmo não é nenhuma bicha de sete cabeças. É um animal muito doméstico. O caso está em furtar com decência. Mas muitos metem-se a furtar sem saber. Para tudo é preciso haver princípios e princípios certos. Meter a mão na algibeira a um homem e sacar-lhe a bolsa, isto é porco, é de quem não sabe o ofício. O bom cavaleiro procura o boi em círculo e não desfila para ele cara a cara. Isso seria ser tolo e logo morto, o que ainda é pior. O ser tolo, vade in pace, não é das piores coisas, se se é tolo a tempo. Ai, meus pecados! Aí me tornei a desviar do caminho! Salta para cá, piolho, vai para a cabeça do ladrão. Eu estava na antiguidade do furto. Agora me lembravam a mim coisas a este respeito, que são uma obra-prima. Mas basta de desvio. Vamos acabar a carapuça e não faltarão ocasiões em que eu desabafe o que tinha agora para dizer. Certamente que é um sacrifício que faço em calar-me e tenho pena de não ter continuado para diante, pois são bocadinhos de oiro as palavras que eu tinha de soltar da boca para fora a respeito do verbo furtar. Mas agora já não há outro remédio. São mãos perdidas. Acabe-se a carapuça e fiquem-me na ponta da língua as palavras que certamente me hão-de custar a engolir. Mas, para agora tornar atrás, parece mal e não estarão para me aturar. Que eu, por mim, já tinha perdido a vergonha e começaria outra vez, porque o que teria de dizer são coisas de muita suposição e que, muitas vezes esquecidas, nunca mais tornam a lembrar. Mas lembraram, porque, como são a respeito de furtar, e isso é coisa que anda hoje mais entre mãos, espero me não fiquem no tinteiro, e damos por concluída esta carapuça. Ora, para onde lhes parece a vossas mercês que eu passei? Pois foi para a cabeça de um vinagreiro. E foi o caso: o capitão casou com a filha do estalajadeiro, de que vossas mercês estarão lembrados, e de quem já falei bastante: a mulher era muito amiga de comer envinagrado (e a cara era mesmo de vinagre), na terra havia muito pouco, porque, mesmo algum que havia, venda-se por vinho. O que fez o capitão, por satisfazer o apetite à mulher? Vestiu-se em traje de quem não é ladrão grosso, quero dizer, em traje de homem pobre e, com dois companheiros e uma besta, foram a casa de um vinagreiro, que morava três léguas distante, onde tinha a sua fábrica. Carregaram a besta com dois odres, tendo tido o cuidado de escolher do melhor e o dono da fábrica de lhes dar do pior. Depois tratou-se do pagamento, que gostei, porque, perguntando o vinagreiro ao capitão de que sítio era, e ele dizendo-lhe de onde, no que não mentiu disse-lhe o vinagreiro: — Aí, nesse sítio, me roubaram a mim no passado e dizem que anda por lá uma companhia de ladrões. Mas o capitão certificou-lhe que podia ir agora quando quisesse, porque tinham dado uma assaltada aos ladrões e, mudando eles de poiso, e por isso havia muito tempo que ninguém se queixava. — Ora estimo saber isso, tornou o vinagreiro, por aí é o meu caminho e eu ia dar uma volta muito grande só para não passar por aí. Assim lhe pagou o capitão, talvez com o mesmo dinheiro que lhe tinha roubado. Enquanto durou esta pequena conversa, tive a curiosidade de passar para a banca onde se contou o dinheiro e, quando de volta o vinagreiro o veio arrecadar, eu lhe fui para a cabeça que é a carapuça L.
Notas
- ↑ A velha Leonarda e o preto Domingos são os dois serventes na bela Novela de Gil Brás que acompanhavam o capitão Rolando na cova dos ladrões onde Gil Brás foi conduzido e donde fugiu enganando os ditos. [N. do A.]
Julguei que a cabeça de um vinagreiro era uma cabeça temperada. Tinha ele dado no grande segredo de fazer um vinagre que temperava tudo. E, senão, vejam vossas mercês. Era jogador e temperava este vício com vinagre. Era bêbedo e tornava o vinagre em vinho. Gostava de obsequiar senhoras e o vinagre servia-lhe para isso mesmo. Era preguiçoso e temperava a preguiça com vinagre. E todo este segredo consistia numa bagatela. Por exemplo: perdia uma noite uma moeda ao jogo, vinha muito satisfeito para casa e perguntava ao caixeiro: — Que tal foi a venda de hoje? — Menos má, senhor meu amo. — Bem, qual é a pipa que está mais vazia? —- Tal pipa. — Bom, vai botar-lhe cinco almudes folgados de água. O vinagre vendia-se, por canada, a quatro vinténs, são dois cruzados-novos o almude, cinco almudes fazem uma moeda. Aí estava salva a perda e ainda se ganhava a folga que se tinha mandado dar na água. Noutra ocasião, bebia dez canadas de vinho, que era o segundo vício, vinha para casa muito alegre da sua vida e mandava botar trinta de água, no vinagre. Ei-lo aí sem ter bebido nada nesse dia. Vinha outra hora em que gastava mais dinheiro do que devia: mais água no vinagre. De forma que ele tinha dois poços em casa, tinha mandado fazer uma cisterna para aproveitar a água da chuva e a fábrica estava situada ao pé de um chafariz com cinco bicas a que já ninguém ia beber porque o gasto da água para a fábrica não deixava tempo a ninguém e ali ninguém bebia uma sede de água, nem para molhar o bico, ainda que fosse uma galinha. Por aqui podem vossas mercês conjecturar que tal era o negócio. Sabia fazer um vinagre tão doce que, ainda que se botasse uma canada dele em dez réis de salada, não se percebia. Ultimamente, em sua casa, o chá, o café e os xaropes com que se adoçavam, era com vinagre. De uma pipa de vinagre bem azedo, fazia trinta, doce de tal forma, que vinagre da sua fábrica nunca azedou o estômago a ninguém. Por isso, era muito procurado. A única coisa para que ele não prestava era para conservas. Não conservava nada. A única coisa que conservava era o dono. Também sabia fazer um vinagre de ervas, outro de vaízes, outro com madeira e muitos mais que, a falar verdade, não eram muito bons para a saúde mas vendiam-se bem. Ele, destes, não os botava no seu comer.
Tinha achado no vinagre a pedra filosofal. Em tudo o convertia. Mandava vinagre para lhe vir pão. Mandava vinagre para azeite. Vinagre para carne. Vinagre para fato. Vinagre para dinheiro. Enfim, vinagre para o que quer que fosse, até para quedas era o vinagre bom. Vejam que negócio! Se eu negociasse, era no género em que pegava. Vinagre e petas. Porque vinagre, todo o mundo o bebe e petas todo o mundo as come. Até os mais espertos. Eu, que graças a Deus, não sou dos que tenho mais juízo, tenho pregado os meus ópios menos maus. É certo que também os tenho mamado de bom calibre. O mundo é uma cadeia, vão pegando os fuzis uns nos outros e os homens também enganando uns aos outros. Numa palavra, cada um faz o que pode. Ora eu não estranhava que o meu vinagreiro botasse água no vinagre. É porventura a água alguma porcaria? Mas temos mais que contar neste artigo e vem a ser que não era só o amo que botava água no vinagre. Os criados também faziam a sua obrigação conforme a necessidade que tinham. Abençoada água e abençoado vinagre! É um gosto ter um negócio assim, porque chega a todos, e, no vinagre, é raro o negociante que quebra. O negócio é tal que até dá quebras a quem o vai comprar!
Ia ali uma mulher comprar vinagre para o tornar a vender e trazia um burro consigo. Era um regalo ver as meiguices que ela lhe fazia. Chamava-lhe o seu tudo, que era o seu amparo, que o estimava como se fosse seu irmão. Indagado o caso, dizia ela que aquele burro a ajudava a ganhar a vida e, por consequência, o seu sustento, havia mais de sete anos, sem nunca ter tido uma dor de cabeça, nem uma só vez cair, de modo que lhe entornasse a carga. Andava sempre com ele na rua, carregado com dois odres em cima do espinhaço, os quais nunca trazia vazios. Porque, mal vendia de algum deles três canadas deitava-lhe outro tanto de água do primeiro chafariz que encontrava. E o burro já estava tão acostumado a este estilo que, passando por sítio onde sentisse correr água, logo parava e olhava para a dona, como quem lhe dizia e aconselhava que aproveitasse aquela aguinha para vender. Depois de tudo isto apareceu um homem que ainda era mais inteligente no negócio pois que todo o vinagre de que tenho agora falado, era tirado de vinho mas o tal de novo aparecido fazia-o logo de seu princípio com água. Dava-lhe duas fervuras, punha-a depois a esfriar, fazia-lhe não sei que tratos e ei-la aí vinagre em pessoa, sem que ninguém tivesse que lhe dizer. Em algum também lhe botava água salgada que isso não achava eu muito mau, porque ficava logo de uma vez o comer com sal e vinagre. Ora, a respeito de consciência, também era limpíssima. Parecia-se muito com aqueles que vendem galão fino e que, se acaso lhes pedem que botem mais um bocadinho, dão mais um ou dois palmos. Porque, como se há-de pesar, não tem perigo a liberalidade. Assim era o tal no vinagre. Se lhe diziam: — Meça bem, senhor fulano, acabava de fazer a medida e botava depois um ou dois goles, a olho, razão por que lhe acudia muita freguesia e cada vez Nosso Senhor o ia ajudando mais com a sua água.
Por fim, entrou também no intento de acrescentar o azeite com água e deu na descoberta por este meio: encheu até meio, meia dúzia de pipas e acabou de as encher com água. Vendeu-as a um estrangeiro, o qual provou e viu primeiro o azeite, mas foi por este modo: abriram-se as pipas por cima, pelo batoque e como a água descia abaixo e o azeite vinha ao de cima, provaram-no e não se deu pela falta. Nem creio que o mesmo estrangeiro daria por ela senão depois que, acabado o azeite, desse com a água. Mas isto não são coisas que estejam mal. São chistes de negócio e mesmo não sei que haja razão que mande o contrário. Se não é proibido botar-se água no vinagre, porque não se há-de botar no azeite? E, demais, a água bota-se em tudo, bota-se no comer, bota-se no estômago, bota-se nos craveiros e até se bota na rua. O outro dia, ou, para melhor dizer, a outra noite, pela volta das onze, me botaram a mim uma pouca que nem eu quis indagar se era só. A água em tudo faz bem, o caso está em que seja botada a tempo. Porque, fora de tempo, nada de bom. Também me esquecia de dizer que o meu vinagreiro era casado e tinha cinco filhos, três machos e duas fêmeas. Era alguma coisa rezingueiro e, muitas vezes, não estava pelos ajustes com os filhos acerca do que eles lhe pediam. E que faziam os rapazes? Pilhavam-no fora, saltavam-lhe no vinagre, vendiam-lho e a falta ficava suprida também com água. Ali não havia vinagre que pudesse servir a um Mouro. Todo era baptizado. Parece-me que já é bastante teima falar na água que se botava no vinagre. Mas também é certo que tudo quanto tenho dito a esse respeito é a pura verdade e que não ponho nada da minha casa. Antes eu deixo de contar algumas coisas. Mas também, se não as conto, é porque me parece impossível para que vossas mercês as cressem. Se eu lhes dissesse, porventura, que lhe botavam pimentões, vossas mercês haviam de crê-lo? Não. Se eu lhes dissesse que lhe botavam raiz de quássia, macela e limão azedo, haviam vossas mercês de julgar que era verdade? Não. Se lhes dissesse que lhe botavam azedas, cinza, sêmeas fervidas, não haviam de dizer que era uma grande mentira? Sim. Pois então antes não o quero dizer e guardá-lo para mim. Saibam-no vossas mercês, lá por onde quiserem mas não o saibam porque eu o disse. Botassem o que botassem, nem isso me pertence a mim nem a ninguém. Eu, ao que me propus, foi contar que o homem vendia vinagre e que lhe botava água. Lá como o vendia, nem como o fazia, não é da minha conta nem da conta de ninguém. Fazia-o como podia e vendia-o da mesma forma. Tomara muita gente sabê-lo fazer para o vender. Ganhar a vida nunca pareceu mal, antes muito bem. Antes ter que dar que ter de pedir. Os preguiçosos, quase sempre, são os que dizem mal porque, como não querem trabalhar, aborrece-lhes ver os outros luzidos. Não sucede assim aos aguçosos que gostam de ver todo o mundo ocupado e a moleza é só o que lhes aborrece. Aqui estou eu, no meu ser de piolho, que não passo o meu tempo ocioso porque trabalho de corpo e de espírito: de corpo, para poder passar a vida, escolhendo o melhor passadio o que, às vezes, custa muito bem; de espírito, porque sempre é preciso andar cuidando no modo de escapar que não se seja apanhado. É rara a noite que durmo sossegado. Uma pequena volta que dê a cabeça, onde eu estou, logo estou acordado, parecendo-me que sou apanhado. Porque há criaturas que sempre estão com a mão, ou na boca ou na cabeça e há tactos de mil demónios. Há amigo que, em levando a mão à cabeça, vai buscar o lugar onde lhe morde com tanta certeza que, muitas vezes, pilha o pobre piolho que não é senhor de si. Por isso, eu tenho muito cuidado de nunca me pôr na raiz do cabelo. Sempre firmo os pés em cabelo e dali mordo, porque sucedendo, por minha desgraça, porem-me a mão em cima, como há o embaraço do cabelo, este enleio dos dois dedos, dos cabelos e do piolho dá tempo a uma escapatória. Assim me tenho eu salvado muitas e muitas vezes.
O meu vinagreiro era tão má rês que, quase sempre adormecia com a mão na cabeça e, por duas vezes, me teve pilhado. De uma pôs-me o dedo em cima, deixou-se ficar assim, e chamou uma filha para que lhe viesse tirar aquele piolho. O que me valeu foi ser isto a uma janela e, defronte, morar um sujeito que gostava da rapariga e a quem ela dizia que sim. De forma que, em vez de olhar para a cabeça do Pai, apenas se viu na janela, não fez mais que olhar para defronte e fingia que estava procurando o piolho. Mas, assim mesmo, sempre me deu incómodo, porque, como ela gostava de estar ali por amor da janela, e o pai gostava que o catassem, demorou-se mais de uma hora a mexer na cabeça e eu, pelo sim pelo não, estava com todo o cuidado porque podia haver um descuido num abrir e fechar de olhos e eu, já se sabe, se lhe caísse nas unhas, era morte certa. Ali não havia apelação nem agravo. Ainda ela pilhou três dos meus companheiros e de um tive eu muita pena, porque era um bom piolho e deixou uma família ao desamparo que também poucos dias depois foi apanhada e passou pela mesma sorte. Cheguei a estar só e mais outro companheiro, perto de cinco meses. Mas, por isso mesmo, que éramos poucos, éramos mais procurados e eu tratava com toda a diligência de sair dali. Mas queria uma cabeça capaz e ocasião própria para o poder fazer. Ali, pelo sítio, andava um sujeito que servia de caturra ou bobo, mas andava por casa de gentes capazes. E, estando eu com gosto de conhecer esta cabeça a fundo, proporcionou-se-me uma bela ocasião. Era uma festa de arraial onde o meu vinagreiro ficou, ombro com ombro, com o caturra. Não fiz demora alguma na passagem e, na cabeça do dito, vai a carapuça LI.
Acabei o meu Prólogo do Vale, vamos agora ao meu caturra da Costa. Tenho tanto que dizer deste machacaz que não sei por onde hei-de começar. Mas é preciso começar com cuidado que ele não é desses caturras que já estão lançados aos rapazes. Este ainda anda por casas particulares, ainda pisa a sua esteira e o seu papagaio e ainda algumas pessoas lhe dão "vossa mercê", sendo ele, coitado, a dar senhoria a todo o mundo, apesar de que não trata senão também com pessoas de "vossemecê" mas que, à força, querem em sua casa mais um furo acima do tratamento usual e, cada um, na sua casa, pode querer o que quiser. Para isso paga com o seu dinheiro. Nestes termos é que era o meu caturra obrigado a dar o tratamento que já disse. Vivia ele de fazer rir as gentes que gostavam de viver a rir e estava tão bem estabelecido, que ainda que ele dissesse uma graça que provocasse o choro, todo o mundo se escangalhava com riso. Nisto ainda nós mostramos a boa-fé em que estamos com as coisas. Numa ocasião, foi ele convidado para assistir ao jantar de uns noivos que se tinham casado com tal ânsia, como os interessados esperam a Nau* dos Quintos, e na sua chegada foi tal o alvoroço e alegria que todos se puseram a rir antes de o ter visto. Entrou ele fazendo muitas cortesias e dizendo ao mesmo tempo estas graciosas palavras:
— Aqui venho eu, tal qual sou. O que posso certificar às senhoras é que venho todo inteirinho, defumei-me em três cheiros para ter o gosto desta amável companhia e espero ser admitido nas suas graças.
Saltou tudo às gargalhadas, um engasgou-se, uma senhora ficou com tosse todo o dia porque lhe deu o cumprimento no goto; outra caiu de uma cadeira abaixo porque se não pôde segurar com o riso. Foi uma balbúrdia tamanha que o mesmo caturra disse consigo: — Safa, que são tolos! Depois de sossegada a assembleia a rogos do dono da casa, para terem tempo de ouvirem os bocadinhos de favos que saíam da boca do bobo, todos concordaram, sem haver um só voto contra, que o homem tinha pilhas de graça. Foi continuando a dizer muitas asneiras às quais ajuntou também alguns atrevimentos e tudo teve muita graça. Disse algumas verdades nas caras dos mesmos culpados e esses mesmos lhe acharam pico ainda que reconhecessem que o vinagre estava bastante forte. Disse suas graças à noiva, que se eu fora o noivo quebrava-lhe duas costelas, mas tudo se tomou em ar de galhofa. Contou várias histórias que tinham sucedido a vários noivos a cujas funções ele tinha assistido e, por elas, bem merecia, logo à primeira, ser posto no meio da rua, seguido de um criado atrás dele, com um pau, mas com a recomendação de lho não pôr na cabeça, por amor de mim, pois que eu não tinha culpa de o chamarem para o ouvirem. Eu ia, porque ele me levava e não tinha outro remédio. Depois, algumas senhoras lhe fizeram várias perguntas que foram respondidas com outras tantas asneiras. Mas cada asneira levou as gargalhadas de todos. Uma das mesmas senhoras, cujos sorrisos faziam felizes mil amantes, estava-os estragando com um caturra! Neste meio tempo foi tudo chamado para a mesa e houve bulhas para se decidir no meio de quem havia de ficar aquele Adónis. Ao que se ouviu uma voz que disse: — Ponham-no no meio da rua que é o seu lugar próprio. O caturra encordoou mas não respondeu ao dito, porque quem o tinha dito era um que tinha uma cara que estava mesmo dizendo: facada. Acabou-se o jantar sem aquele calor que se esperava porque o bobo conheceu que tinha inimigo à vista e a esta classe de gente qualquer coisa os embaça. Despediu-se meio alegre e as senhoras ficaram todas tristes por faltar aquela grande peça na função. Mas ficava um que fazia versos, dizia ele, e julgo que esse entreteria a noite.
Não havia dia que não tivéssemos função. Conhecia o meu caturra todo o mundo e concluía, muitas vezes, negócios em que homens sérios e de carácter ficavam chuchando o dedo. Vivia com uma fartura que me parecia um morgado lá de cima. Os presentes ferviam. Nunca pediu dinheiro que lho negassem. Entrava por toda a parte como cão por porta aberta. Ninguém desconfiava dele e o maroto desconfiava de todos. Era um atrevido o mais humilde do mundo. Acabavam de lhe dar um cachação, ao que ele não podia responder com outro, mas descompunha logo a quem lho tinha dado, e quem lho tinha dado ria-se e eu achava tão tolo, um como o outro. Fazia muita asneira sem graça a que todos achavam graça e juízo. Atacava um homem sério com dichotes e, desta forma, muitas vezes, era este espantado daquela casa, perdendo-se uma amizade por ficar com a interessante do caturra. Mas este divertia, e o outro era um mono que só sabia dar conselhos às filhas da casa, como se ele fora seu pai.
É quase um impossível descrever a vida que passava este mandrião da Itália. Tinha dúzias de vestidos e não dava nada ao mercador. Andava a cavalo e nunca soube por que preço corria a cevada nem que taxa tinha tido a palha. E, por fim, de tudo tinha dependências sem ter ocupação alguma. Afectava de valido para com algumas pessoas. Queria, às vezes, falar de política e mostrar que se fazia tolo e era-o ele na gema. Ali não havia mistura alguma. Se vinha algum sujeito tomar um parecer com ele, afectava muitas vezes de letrado prudente e não decidia as coisas à primeira vista deixando a decisão para o outro dia. E é certo que eu cheguei a ver pessoas, que não tinham nada de tolas, procurarem o seu patrocínio para várias dependências. E fazendo-me isto bastante espécie, me disse um piolho meu amigo: — Tu pareces-me tolo! Pois para ser padrinho precisa-se ter juizo? Antes quase sempre se procura quem tenha dinheiro, a ver se, ao menos, jaz as despesas do baptizado!
Esta razão convenceu-me. Para defender uma causa precisa-se de um bom homem de letras mas para padrinho, basta um que saiba escrever o seu nome. É na situação em que estava o meu caturra. E então quando lhe apareciam estes pretendentes, como lhes respondia com palavras de estalo! Veremos; falaremos; porei todas as minhas forças; se houver ocasião não me descuidarei do seu peditório; agora estou muito embaraçado; deixe-me primeiro concluir certo negócio que tenho entre mãos, e depois espero que também vossemecê será servido. Eu, ao princípio, parecia-me tudo isto graça, e até julgava que ainda que ele pedisse deveras, ninguém havia de fazer caso de um homem cujo ofício era divertir os outros por dinheiro. Mas, ainda mal, enganei-me e vi-o concluir coisas de monta. Será possível, dizia eu, que um caturra entre em coisa séria e que se faça caso de um homem que só serve para se zombar dele, um homem de riso? Uma gaita de feira, que só guincha quando sopram nela e, no entanto, o sábio e o benemérito muitas vezes esteja escondido, comendo mal o que adquire pelo seu trabalho! Que tal está a história! Como as coisas se vão confundindo! O direito parece avesso e o avesso parece direito! A vista dos homens cada vez está mais curta e eles sem quererem usar óculos, por teimarem que os vidros não prestam. Enquanto aos vidros, porém, estou por isso. Se a vista mudou, são precisos vidros novos, não servem os mesmos que algum dia serviram. Mas o óculo de ver a verdade é o mesmo que era. Não está embaciado. Não vêem por ele, porque o não põem no seu lugar. Puxam tanto por ele que mostra os objectos tanto ao longe, e tão pequenos, que nem se distingue o que é. Assim discorria eu. E intentava um piolho emendar o mundo!
O meu caturra cada vez ia florescendo mais. As suas graças iam-se espalhando porque tinham dado em boas mãos. As amizades cresciam e andava já como em moda o ter comunicação com ele. O bom gosto daquele tempo era saber-lhe os ditos para os contar nas companhias e quem não entrava neste jogo cheirava a ranço. Chegava gente à janela para o ver, como se fosse o urso que passasse, com o macaco a cavalo. E havia muita senhora de dom que se julgaria muito feliz se tivesse a fortuna de cair no seu agrado. Mas ele arrotava de farto. Demais a mais era soberbo e vaidoso, além de tolo e basófio. Se ele fora, ao menos, destes bobos que dizem as graças por pão, por verem que já se não dá pão de graça, e vendo que não há outro meio de passar a vida, adoptam, às vezes, uma vida de que não gostam, obrigados pela necessidade, teria desculpa. Mas este, não senhor. Era tolo e ostentava de sábio; era insípido e queria ser gracioso; era atrevido e queria passar por amante; davam-lhe pescoções e julgava-se valido; Enfim, era um amontoado de asneiras e, apesar delas, ia vendo correr-lhe tudo à medida dos seus desejos. Muitos riam-se do que ele fazia, assim, a modo de quem toma um remédio amargo que lhe é bom à saúde. Não lhe achavam graça nenhuma. Mas como era então moda ele ter graça, não havia outro remédio senão achar-lha, ou a tivesse ou não. Pois se algum miserável caía na desgraça de dizer que ele a não tinha? Coitadinho! Punham-no mais raso que o cetim e ficava encartado em tolo, de tal sorte que, em dias de sua vida, não tornava a restabelecer o seu crédito.
As vezes, vinha ele para casa e punha-se a pensar no que havia de dizer no outro dia. Estudava os ditos, encaixava-os, às vezes, tão fora de propósito, que se pareciam como um ovo com um espeto. E, quando ele queria falar sério com graça! E quando dizia algumas coisas por que se lhe deviam dar logo meia dúzia de bofetões, e ainda em cima se punham todos a rir! E assim o animavam, para fazer e dizer quanto lhe viesse à testa.
Uma ocasião o vi numa janela e, querendo escarrar, voltou-se para dentro e escarrou na casa que estava muito bem alcatifada e todos quantos estavam presentes se puseram a rir pela graça e discrição com que ele fez esta galantaria. Achando-se, porém, na mesma sala e no mesmo dia, outro sujeito, que, não estando à janela, escarrou também na casa, todos lhe chamaram porco e malcriado e que parecia que não tinha sido criado com gente. Disse eu então comigo: — Creio que isto de ser caturra tem privilégio de lobisomem! Até quando os outros fazem mal, ele faz bem, fazendo o mesmo que os outros.
Então a sem-cerimónia com que ele entrava em todos os quartos! Todos e todas brincavam com ele e ninguém reparava nisso, porque era bobo. Tudo era para se divertirem. Tinha o privilégio de guarda do serralho, sem ter passado pelos incómodos. Ao menos, eu assim assentei pelas liberdades que lhe vi tomar e que muitas lhe concediam. Mas, ao depois, vim no conhecimento que era por ser homem de quem não se fazia caso, fazendo-se, ao mesmo tempo, o maior caso dele.
Um bobo tem que estudar e tem qualidades muito ocultas que nem todos entendem. É o segredo da abelha. E bem se vê que muitos se querem meter a dizer chufas e não lhes sai nada que preste. Precisam-se maneiras que nem todos têm. Primeiramente, precisa-se ser muito velhaco; cumpre não ter, nem por isso, lá muita vergonha (assim em meia conta) porque, às vezes, levam a sua meia dúzia de sopapos e é preciso mamá-los com cara alegre, senão perde-se a chuchadeira. Outras vezes, é preciso conhecer a vontade do que paga as graças porque, às vezes, também está que, nem de graça, as quer ouvir, e isso é o diabo, porque pode render uma roda de pau. Outras vezes, quer que se descomponha este ou aquele, e é preciso, com um só movimento de olhos que ele faça, reconhecer o sinal e começar o ataque. Isto tem que fazer, não é coisa que se aprenda ali em vinte e quatro horas. Para estar disposto a toda a hora para o que os outros querem à sua fantasia, é preciso uma paciência muito particular. O dom de tolo, como deve ser, não é concedido a todos. O ser gracioso, por ordenado, faz muita diferença do ser gracioso que não ganha dinheiro; aquele negoceia com palavras, e este dá-as de graça; este diz o que lhe vem à boca e aquele esquadrinha com todo o cuidado as que melhor poderão agradar, porque, como são para vender, cumpre que sejam de escolha. E, se uma vez se cria má fama, acabou-se o ofício e, acabado o ofício, acabou-se o comer. Que a um bobo só dá de comer aquele que o tem de mais, aquele que não lhe faz incómodo o que incomoda tanta gente.
Uma coisa achava eu boa no tal gracioso e era que, se estava deitado sobre um canapé, como vilão em casa de seu sogro, ainda que entrasse o dono da casa não se tirava da postura, nem vénia fazia e dizia ao que entrava: — Podes sentar-te, esta casa é tua. Que há lá de novo? O que causava grande gosto e motivava grandes risadas, pelo dito ser tanto a tempo. Sucedeu, porém, uma vez, estar um pobre deitado sobre outro canapé, porque lhe tinha dado uma dor que o impedia de mexer-se. E, entrando também o dono da casa e vendo que o homem não se levantava, descompô-lo de nomes e, ainda que lhe desculpasse, dizendo que não o podia fazer por uma grande dor que o afligia, respondeu-se-lhe que era muito mau lugar para ter dores, que fosse tê-las na casa e fosse mais polido.
Eis aqui como estão as coisas. O tolo pode estar sentado porque é moda ter tolos em casa e o que tem a dor, a ponto de se não poder mexer, é um desatento e vá lá ter dores onde quiser. Numa palavra: o caturra estava revestido de toda a autoridade para poder fazer todas as asneiras que quisesse. Então é que eu reconheci ser verdade o que dizia um homem de juízo, quando se disputava sobre este ou aquele ser tolo ou não. Acudia ele logo muito depressa e dizia: — Olá, se é tolo! Assim eu o fora! Eu fazia-me espécie a razão por que um homem que tinha juízo, desejava ser tolo. Mas, ao depois, vim ao conhecimento que é muito melhor vida. É, porém, preciso fazer diferença dos tolos e dos graciosos. Para ser tolo, cumpre sê-lo à satisfação dos donos da casa, e para ser gracioso deve ter-se disposição para se levar cacholetas. E, para unir ambas as coisas, e necessário que se ajuntem as duas disposições, porque se um homem é engraçado por natureza e a esta graça ajunta um juízo claro, esse não faz fortuna senão com pessoas de juízo. E a fortuna, por força que há-de ser muito pequena, porque os mais acham-no muito desenxabido e até mesmo lhes tenho ouvido chamar uns pedaços de asno e outros dizeres: — Quer meter-se a engraçado e ele graça nenhuma tem. Falta-lhe o melhor! Vejam que desgraça!, que até no ser tolo e ter juízo é conforme aos tempos, de forma que um, que no século passado passava por asno, podia muito bem neste século ser admitido por douto, segundo as circunstâncias do tempo. E não se querem desenganar que o tempo é que faz as coisas! Assim como às cabeças por fora, em diferentes eras, se lhes puseram diferentes toucados, da mesma forma os miolos, que estão por dentro, pensam assim ou assado. Eu, que não sou muito antigo, tenho visto coisas que no meu tempo eram olhadas com mofa e risos e que hoje são muito sérias e se tratam amigavelmente e que se olha para elas como se tivessem nascido com a gente. Mas não me vá eu desviando do que devo, como costumo, coisa que já a mim mesmo me enfastia.
Eu, pelo costume em que andava de ouvir graças, já também as dizia e fazia as minhas caturrices menos más. E as piolhas que moravam comigo na mesma cabeça, já todas se ajuntavam, à noite, a ouvir-me e eu passava então pelo piolho mais engraçado do meu tempo. E o mais é que eu falava sem saber o que falava e eu mesmo não podia conhecer o porque elas se riam, porque eu próprio não achava graça nenhuma. Mas passava boa vida e era muito procurado. E mesmo em casas onde eu não poderia ter ido quando mostrava juízo, fui admitido depois de tolo. E dizia eu comigo que isto de ser tolo suponho que é fazenda de contrabando, que tão procurados são pelas senhoras. Vamos com o tempo, ele assim o quer, eu só por mim não o posso emendar. O meu patrão passa às mil maravilhas, eu, à proporção, menos mal. Que me importa a mim que o mundo o queira assim? Deixá-lo querer, vamos como ele quer visto ele não querer o que eu quero. O que digo a todos é que quem tiver jeito para a vida, que o aproveite porque é, como dizem, uma vida grossa. Todos suam e choram para ganhar de comer e este é quase o único ofício em que se descansa, folga e ri comendo ao mesmo tempo muito bem. Mas é preciso lembrar, a quem se quiser estabelecer nesta ocupação, que não procure casas onde os donos tenham juízo. Procure esses modistas, esses que pilharam herança grande e a desejam gastar com muita brevidade; esses que querem ter de tudo, não tendo nada; esses que afectam de enciclopédicos e não são senão... senão o que eles quiserem ser. Desses que gastam trinta tendo dez, sem ninguém lhes escrever os milagres &c. Por aqui é que hão-de ir que, cá pelas outras casas, aonde se juntam aqueles que têm graça, que têm juízo, cuja companhia se faz amável e que juntam a tudo isto a probidade, por aí, nada. Numa palavra, do caturra de sopapo e cacholeta é de quem falo, é em quem eu mordo, é, por fim, o meu patrão.
Assim fomos vivendo tendo sempre a mesma saída, e o patrão com tanta felicidade no negócio que, tendo cada vez menos graça, cada vez lhe achavam mais. E já ia passando a dar-lhe incómodo o divertimento porque se deitava muito tarde e erguia-se muito cedo, comia muito, a digestão era muito pouca, de forma que ia emagrecendo aos palmos e ia dando cuidado aos seus amigos que, apesar do dó e da doença, não deixavam de o desfrutar, ainda que ele lhes pagasse na mesma moeda, porque também os desfrutava. A saúde ia desaparecendo e quanto mais esta fugia, mais a toleima lhe crescia, mas esta não supria aquela. Até que fui observando que ele passava noites em claro sem pregar olho. Não tinha receio que ele endoidecesse por aquela regra, que parece geral, que ninguém perde o que não tem. Mas vi que não há regra sem excepção. Um tolo pode ser ainda mais tolo com o tempo; logo um tolo ainda tem alguns degraus mais para descer e, por consequência pode perder aquele bocadinho que tem entre o mais e o menos. O que sei é que o meu caturra já não dormia nada e, em poucos dias, se pôs doido confirmado de se romper pelo que agarraram nele, prenderam-no de pés e mãos e levaram-no para a casa onde se dá juízo a pau e, apenas lá chegou, saltaram nele, raparam-no e botaram os cabelos num pátio onde, por minha desgraça, me vi caído sem amparo. Andavam ali uns poucos de homens a passear, bastante mal vestidos. Passei para o que me pareceu mais aninhado e soube, depois, que era um doido que já estava manso. Um dos mais galantes daquela companhia e que faz o objecto da Carapuça LII.
Vou mostrar um doido que, tomaram muitos com juízo, pensar como ele muitas vezes discorria. Em muitas cabeças tinha eu estado que se chamavam com juízo e que era mesmo uma vergonha chamarem-lhe de juízo. Eu, que não sou lá por isso dos que posso falar nesta matéria com o maior desembaraço, caíam-me as faces no chão quando ouvia dizer: — Vossa mercê tem muito juízo!
A um pedaço de asno que nem sabia diferenciar atum de presunto, que muitas vezes vi enganar-se nas horas porque não estava certo em ler letra romana! Vejam a que desgraça chegou o juízo! Uma coisa de tanta ponderação e que, sendo hoje tão rara, aparece a cada canto! Isto de juízo é como as medalhas antigas. É preciso ter um grande conhecimento, porque há muitas falsas e muitas vezes um curioso cuida que tem um gabinete de grande importância e, indagando bem a antiguidade, não vale nada. Mas como ele as não conhece senão pelo que lhe dizem, está na boa-fé que tem ali coisas de gosto e de valor e tudo é nada entre dois pratos. Assim é o juízo, não basta que eu diga: Fulano tem juízo. É preciso que eu tenha juízo para o conhecer. Eu bem sei que me podem dizer que há muitos bons provadores de vinho, mas não o bebem. Porém, a isso, posso eu responder: muita gente anda a cavalo e não aprendeu. Muita gente dá o seu coice e não tem feitio de besta. Numa palavra, muita gente tem bom paladar e não come bem, com que, provar vinho sem o beber, não é o mesmo que provar juízo sem o haver. Isto de juízo não vai por medida, vai a peso e, sem haver um fiel que o possa equilibrar, está tudo perdido. A canada, depois de cheia, não faz mais do que entornar por fora, mas nunca a medida leva mais do que a canada. E, no peso, não é assim. Na balança botam-lhe o que querem e o fiel é que mostra que tem mais do peso. Mas é certo que tudo isto tem analogia, porque tudo quer peso, conta e medida. Porém, vamos ao que importa. É certo que ele não discorria às vezes mal, mas também tinha infinitas ocasiões em que deixava ver o triste desarranjo em que estava a sua cabeça, ainda que mesmo nessas ocasiões ela deixasse ver os pensamentos mais acertados, unindo a moral com o riso.
A sua doidice nasceu de uns amores que tinha tido, os quais, na forma do costume, o tinham deixado por outro que não era melhor do que ele, mas que tinha tido a vantagem de aparecer depois dele. Ora esta qualidade de loucura é uma daquelas que muitas vezes tem tido remédio, curando-se com o cabelo do mesmo cão. Mas estava muito refinada, porque já era a segunda vez que endoidecia pela mesma causa e já a ferida tinha ficado com fístula e, ali, não aproveitavam mistos. Esta qualidade de loucura lançava-o, às vezes, numa melancolia profunda. Mas quando as suas ideias eram levadas para aquele tempo em que tinha sido feliz, era galante e terno e merecia ao mesmo tempo riso e compaixão.
Quando descansava desta principal fadiga da sua loucura, então passava a uma mania das mais extravagantes. Tinha-se-lhe metido na cabeça que dava remédio a tudo e, em se lhe propondo qualquer coisa desta natureza, já ele decidia e remediava. Quanto mais dificuldade havia numa questão, mais depressa ele a desembaraçava. Porém, estas idéias só o ocupavam de passagem, porquanto passava delas, com muita velocidade, ao motivo principal da sua moléstia.
Estava no estado de uma doidice pacífica, e até era arranjado no seu fato e, de tal forma, que lhe tinham entregue o cuidado dos outros doidos nos quais ele dava, às vezes, muito boas chicotadas e dizia -lhes: — Arre, já que são doidos, sejam doidos sossegados. Também eu, para o ser, levei muita pancada.
Mas, para mim, foi uma das piores cabeças onde viajei pelo perigo em que trazia a minha vida e, se não fosse o grande desejo que eu tinha de que não me escapasse esta cabeça, não ficaria nela minutos, porque o diabo do doido tinha tomado zanga com os piolhos e aquele que lhe ia à mão era desgraçado. Não só era morto, mas era morto com morte afrontosa, excogitando primeiro o modo de o mortificar e afligir o mais que podia. Ainda em cima de eu viver neste contínuo susto, não sei por que via lhe veio parar às mãos um pente de bichos. E em lhe lembrando, saltava na cabeça como um doido. Uma noite, desgraçadamente, lhe ia caindo nas unhas e, se não tem sucedido ter eu estado, essa noite, numa função de anos que se tinha dado em casa de uma lêndea, não era possível escapar pois lhe lembrou, lá alta noite, saltar com o pente na cabeça, talvez porque o tinham incomodado as contradanças em que nós tínhamos andado e quis ver se nos apanhava na folia. E, com efeito, ainda apanhou dois que pilhou descuidados, porque estavam conversando com os seus pares sem se lembrarem que quem contradança tem infalivelmente inimigos, e eu que o diga, que por ter tido a fortuna de ter um par efectivo um Inverno todo, tive um desafio e, para o evitar, foi preciso não ir a ele e o desafiante ter morrido de uma maligna no Verão próximo, do que a mim se me não deu nada por me ver livre daquele inimigo. E ele também pouco perdeu porque era tão tolo que ainda tomava desafios por semelhante coisa, num tempo em que há tanta mulher e uma boa parte delas andando na dança. Algum dia, para se dançar, era preciso, primeiro, aprender. Hoje, não senhor! já se nasce dançando porque, como as mães andam sempre aos saltos (sem ser os dos sapatos, porque até já isso não se usa), as crianças acostumam-se de tal forma aos boléus que apenas põem o olho no mundo já dizem jacé e fazem cadeia. Uma conheço eu, de três anos, que já diz que quer casar. As idades estão muito curtas!
Com efeito, passava eu uma vida incómoda na tal cabeça, porque o doido sempre estava a parafusar. De noite é que o ocupavam mais os amores que tinha tido com uma tal fulana, a quem ele punha acima das estrelas e de quem dizia que era mais formosa do que Vénus, mais casta que Diana e que tinha mais juízo que Minerva. Depois de ter dito isto, parava e desdobrava tudo quanto tinha dito e de novo tornava a dizer:
— Mas de que falo eu? A quem chamo eu Vénus? A quem chamo eu Minerva? A quem chamo eu Diana? E suponhamos nós que era bela como Vénus. De que lhe servia isso se o coração era de fera? E com pará-la eu a Minerva! Ainda isso é maior asneira. Ela enganou-me. Enfei-tou-me a cabeça com fitas de osso! Aquela cachorra, por quem eu morria de amores, e a quem eu com tantas veras patenteei o fundo do meu coração, não é Minerva, não é Vénus, é uma cara de ...! Não tem juízo, é uma simples, é um tigre, é esta, é aquela, é aqueloutra, é... Mas esperem! Eu também a comparei a Diana! Pobre deusa! Se ela tal sabe, castiga-me. Que até castigava os homens quando a viam. E esta magana tinha raiva de quando a viam mulheres. Pobre deusa!, que apenas se rosnou que tivera uns amoricos, lá com um, que se chamava manjericão! E esta grandessíssima tal e qual, teve amores com quantos valverdes lhe apareceram e deixou-me a mim por ser manjerona. Porque não gostava de árvores curtas! Pobre deusa!, que nunca andou à caça senão de feras! E esta, cá, à caça de homens. Pobre deusa!, que castigava as suas ninfas quando eram desenvoltas, e esta educava o seu sexo sabe Deus como. Eu não soube o que disse. Peço perdão do meu erro, do meu engano, da minha asneira. Nem ela prestava para deusa. Ela era talhada para uma diabreta. Que travessuras que me fez e eu... Mas quando ela me afagava! Quando ela me dizia, com os olhos em lágrimas, porque os olhos eram dela, mas as lágrimas eram minhas, que eu era todo o seu encanto! Que eu fazia as delícias do seu coração! Que eu... Mas que importa que ela dissesse tudo isto, se mentia? Ela nunca me quis bem; zombava da minha ternura. Ela... mas que tenho eu com isso? Zombava? Deixá-la zombar. Mas sempre é malfeito porque eu não zombava com ela e isso de amor é uma coisa muito séria. Mas, quem sabe, talvez que ela me não enganasse! Talvez que ela ainda me queira bem! Mas que é dela? Onde está? Onde a levaram? Ela fugiu de mim? Então é certo não me querer. Então é verdade que me aborrece. E porque não faço eu o mesmo? Mas, ah!, que eu não posso. Ela está longe de mim e eu estou a vê-Ia.
Estamos no quarto prólogo. Ora os meus leitores certamente hão-de dizer: que terá ainda que meter nos seus Prólogos este curioso de vidas alheias? Certamente já não há-de ser muito. Pois asseguro a vossas mercês (perdoem este termo, vossas mercês, que eu não sei com quem falo) que são tantas as coisas que me ocorrem que eu me vejo confuso, sem saber por onde hei-de começar. E olhem que isto não é basófia. E demais a experiência é fácil de fazer. Teimem vossas mercês em comprar, enquanto eu for compondo, e veremos quem vence. Verão como eu, com todo o desenfado, em acabando a mil e uma carapuça, começo com toda a frescura outras mil e uma. E então, que cabecinhas que eu tenho guardado, que nem cabeças de gorazes têm tanto que chuchar! Ora façam a experiência só por ver se me pilham.
Eu tenho neste Prólogo muitas coisas a dizer aos meus Leitores. Mas principiemos por lhes advertir que pode ser muito bem que me escape alguma cabeça que se faça digna de atenção nesta minha obra. Neste caso, aquele que quiser que ela seja perfeita não tem mais que anunciar-ma e eu lhe protesto que a sua encomenda será executada e nada lhe quero pela obra.
Por agora deixemo-nos de Críticos, apesar de ser gente que eu sempre lhe ando com o olho em cima, para ver se o são segundo a arte. Neste caso, tiro-lhes o chapéu e dou-lhes lugar para passarem que eu sempre respeitei os talentos. Mas os outros meninos que quiserem satirizar sem saber no que se metem, hei-de lhes ir ao fole. Oh lá, como um homem!
Agora de que vou a tratar é de ver se livro esta minha obra de alguma doença. Mas para isso será preciso mostrar o que os homens são e, por consequência, o que eu sou. Olhem vossas mercês: o primeiro princípio para o homem se conhecer a si mesmo é tomar por base este sistema de que o homem é muito pouca coisa. Todas as suas idades lhe trazem alguma fraqueza ou alguma miséria particular. A infância não é mais que um esquecimento e uma ignorância de si mesmo; a mocidade, uma agitação contínua que, quase sempre, o que produz são loucuras; a velhice uma morte lânguida sob as aparências de vida. Ora que tal lhe parece a vossas mercês as três épocas da vida de um homem? Pois são estas, e deixem vossas mercês falar os outros o que quiserem. Vamos agora a mostrar as nossas ocupações nestas três divisões da vida. Na primeira brinca-se, fazem-se mil travessuras que todas passam por galantarias. E se neste tempo não há quem tenha cuidado de ir endireitando as árvores, o homem sai muito defeituoso e muito cheio de esgalhos que, cada um, é um vício que o acompanha até à morte. A segunda é aquela em que o coração está com toda a sua força para conhecer os prazeres. E se a educação da primeira não é capaz para refrear a segunda, esta carreira é muito desgraçada. Na terceira, entramos na mania de dizer mal uns dos outros, de querer ser namorados e de mostrarmos que a experiência nos tem feito sábios, ainda que nunca abríssemos um livro.
Eis aqui naquela em que eu estou: em vendo moça cuido que ela morre por mim e, apesar da experiência me ter desenganado, é tal a minha desgraça neste particular que ainda estou na mesma mania. Quis desafogar em dizer mal, coisa também pertencente à minha idade, mas, com efeito, o meu coração recusou esse vício. Por não ficar fora neste particular, assentei comigo de o dizer publicamente mas, ao menos, verdades. Quis também mostrar que o tempo me tinha feito sábio e quis escrever e "dar à luz" mas, por desgraça, escritos que o que precisavam era de fogueira. Ora vossas mercês devem ter dó de mim, confessando-lhes eu a minha fraqueza e a razão da minha mania em ser Autor. Mas eu espero mostrar a vossas mercês que sou capaz de mais alguma coisa do que esta minha obra. Quis seguir um método às avessas de muitos Escritores que querem logo, nos seus primeiros partos, mostrar o que são. E eu quis começar por uma frioleira de que vossas mercês fizessem escárnio e, depois, mudar de tom, e que vossas mercês venham a ler alguma coisa de que não se riam. Porque daqui tira-se um ganho que os outros não tiram e vem a ser: quando um Autor começa bem, é preciso ir subindo ou, ao menos, não descair nada. Porque, se acaso lhe sucede esta desgraça, não só dizem mal das últimas obras mas até começam a achar defeitos nas primeiras que eles acharam muito boas. E quando a gente começa mal e acaba bem, então até vão achar belezas e engenho naquelas mesmas que desprezaram. Que desgraça! Como se o bom não o fosse sempre e o mau, mau. Como me hei-de eu capacitar que há sábios, se um sábio de um século zomba de um Autor e, no outro século, vem outro sábio que o acha sublime e o que passou há cem anos por cobre acaba em diamante? Quem sabe se esta minha obra ainda virá tempo que lhe chamem boa? Mas sempre lhes quero dizer: sabem vossas mercês o homem que eu tenho por sábio? Ë aquele que é capaz de governar os outros homens. O que chegou a isto chegou a tudo. Tomem isto por axioma e não passem daqui. O nome de sábio, que foi o primeiro que tiveram os filósofos, o que significava era: um homem capaz de governar os outros. A Filosofia sempre foi a mesma, apesar da diversidade das formas sob as quais ela se mostra aos humanos. Não é sábio ter orgulho de parecer subtil. Até aqui chegam as minhas luzes e, embrulhado na minha plaustra muitas vezes me rio daqueles a quem o vulgo chama sábios [1] e tenho dó de muitos que, envolvidos na pobreza, andam desconhecidos. Mas tal é o tempo, tais são os homens.
Mas eu já não me lembra o que queria dizer com esta perlenga que tenho feito, nem o fim para que acarretei isto. Sou muito desgovernado a escrever. Enfim, aí vai o que me for lembrando.
Meus Senhores, escrevi em muito mau tempo. Um tempo em que oiço dizer a todos que têm faltas de memória e a ninguém oiço dizer que tem faltas de juízo. Um tempo em que ninguém lê e todos são Autores. E de que servem as obras? Vejam em que triste tempo eu me lembrei de escrever! César, Cícero, Luculo e Ático não pareceram tão grandes aos olhos de Roma, como eles o eram realmente porque, então, Roma era toda grande. Perdoem vossas mercês a comparação. Agora vejam lá que figura pode fazer o meu Piolho no Corpo Literário! Querer eu mostrar juízo no tempo em que todos o têm e querer que a minha fazenda tenha extracção, sempre é extravagância. Mas, Senhores, reparem vossas mercês que o eu escrever não é ser Autor. Isto é meramente um livro de lembrança do que tem sucedido. Seja o que for, recomendo-me àqueles que o entenderam e debaixo da sua protecção é que eu me acolho. Porque, quando todos geralmente chamarem à minha obra boa e verdadeira, onde estarei eu a essa hora?
Os meus escritos são, por ora, para gente pobre, gente que não tem medo de um piolho. Um rico até terá medo de ouvir falar nele e fará muito bem em não ler, porque terá precisão de coçar-se, porque o Piolho é muito natural que lhe morda. Uma donzela, que nojo não terá de um piolho! Mas se ela o ler com reflexão, pode ser que ninguém lhe morda. Um que se aplica a coisas grandes, que mal lhe não ficaria ler uma coisa tão pequena!
Fiz muito mal em dizer que este Piolho era de cá. Se eu digo que é de fora, se eu tenho tido a habilidade de o ter feito passar o mar e que tinha tido muito risco para o tirar de bordo, a estas horas tinha comprado, com o Piolho, três parelhas de machos novos. Apesar disso não me pesa. Uma obra que não tem uma só palavra que não seja verdade, seria mau que lhe misturassem uma mentira.
Sim, Senhores, o Piolho é português, é filho de Lisboa, é educado na Pátria e ele se honra muito disso. Não inveja a Nação nenhuma. Se os meus patrícios não fazem caso dele por isso mesmo, é por isso mesmo que eu o prezo muito. E não é melhor que um Piolho nacional vos morda, dizendo-vos com caridade e ao de leve os vossos erros, do que venha um de fora matar-vos, que vos leve o sangue, que não cuide na vossa emenda e que só trate da vossa desgraça? Ah, meus amigos, se nós um dia pensássemos bem, havíamos de ter mais dinheiro e o meu Piolho talvez não mordesse na minha Pátria e se fosse divertir nas alheias. Mas, enfim, deixemos a pregação e vamos ao que importa, porque, nem vossas mercês fazem caso do que eu digo, nem eu do que vossas mercês fazem. Mas, ai que me ia esquecendo: isto também já parece mal. Guardemos para o Prólogo que vem, que tenho bocadinhos de ouro para dar aos Leitores. Por agora contentemo-nos do que está dito neste Prólogo que parece-me que no seu tanto
Vale
Notas
- ↑ O sábio não vê muitas vezes mais que uma fraqueza naquilo que excita a admiração do Povo. [N. do A.]
Ela foge-me e eu corro atrás de quem me foge. Mas não, isto não há-de ser assim. Foi-se, deixá-la, quer sim, quer não.
Assim se dizia e contradizia a cada instante. Depois mudava de sentido e qualquer coisa o entretinha. Uma das teimas a que mais estava arreigado, era perguntar a todos que se chegavam a ele: — Vossas mer cês querem bem a alguma mulher? Se lhe respondiam que sim, acudia ele muito depressa e muito compadecido: — Peço-lhe que não endoideça por amor dela, não caia na asneira em que eu caí. Se eu me pilhara outra vez com o meu juízo, nem a mais pintada mo havia de fazer perder. Mas, já agora, não tem remédio. Eu perdi-o e não sei onde. Apenas conheço quem mo fez perder. E o mais foi perder o juízo por amor de uma mulher que não tinha nenhum. Ora se há desgraça como esta? Eu agora estou doido, segundo oiço dizer, e ela se está lá divertindo com quem muito bem lhe parece. Olhem: nesta caí eu. Mas nem ela nem mais nenhuma me há-de fazer cair noutra corriola. Mas, a falarmos a verdade, ela sempre era bem linda. Se eu a pudesse ver! Se eu pudesse estar com ela!
Tornava a cair numa melancolia por algum espaço mas depressa se lembrava de outra coisa e muitas vezes de coisas muito alegres que inteiramente o tornavam ao seu ar jocoso. Tinha também outra célebre que era dizer que não estava doido, e o seu fim era prová-lo, para o que dizia:
— Então, em que sou doido? Porque me chamam a mim doido? Há caso como este! Doido era quando todos diziam que eu tinha juízo. É certo que eu agora não durmo, mas é porque não posso, apesar da diligência que faço. E quando eu tinha juízo, que podia dormir, e andava caindo com sono, não dormia porque não queria, só por aproveitar as noites pelas companhias. E então que companhias! Companhias de que eu deveria fugir de dia, quanto mais estar com elas de noite. E, apesar disso, diziam que eu tinha juízo e agora que sou doido. Algum dia gastava quanto dinheiro me vinha à mão em bagatelas e agora nada gasto. Apesar disso, dizem agora que estou doido e que então tinha juízo. Algum dia andava sempre a correr, ora em sege, ora a cavalo, pisando os pobres, sacando o dinheiro aos ricos, quebrando as esquinas, feito um doidivanas de primeira ordem. E, apesar disso, agora sou tolo e então não o era. Algum dia jogava quantos vinténs pilhava, fossem meus, fossem alheios. Hoje nem pilho nada nem jogo. E, apesar de tudo, é que sou doido e então não o era. Todas as extravagâncias que algum dia fazia, eram próprias de um rapaz de muitas esperanças. Hoje, que não faço metade das asneiras que então fazia, hoje é que sou doido. Algum dia andava sempre num pontinho e todos me chamavam asseado, homem da Corte, que conhecia o trato das gentes. Mas era-me preciso muito dinheiro para estes preparos. Hoje, que não estrago nada, que me dura o fato imenso tempo, chamam-me doido. Mas eu nego tal. Não posso saber que sou doido senão porque eles o dizem, porque eu, em mim, não acho coisa em que o seja. Mas como isto há-de ir à vontade dos outros e não à minha, que lhe hei-de eu fazer? Sou doido porque estes senhores o mandam e vejo eu tantos por aí que ainda estão muito piores do que eu, e não os prendem só porque não há um que levante a lebre e diga: Fulano está doido!
Ter paciência é o único refúgio do meu mal.
Desta forma discorria outro bocado e assim levava o seu tempo, ainda que triste tempo! Uma vez ouviu ele dizer a um — Triste tempo leva este doido! Saltou-lhe logo e diz-lhe:
— Nego e provo que o que vossa mercê passa é que é o mais aflito tempo do mundo. E, se não, venha cá, responda-me: Vossa mercê imagina mas não logra. As avessas eu, que possuo quanto imagino. Vossa mercê passa, às vezes, horas e horas pensando no modo como poderá ter sege. Este pensamento nunca chega ao fim, aflige-se por ver os seus cálculos mal fundados e sair-lhe tudo em vão quanto imagina? Mas a mim não me sucede assim. Se uma vez me lembro de querer sege, tenho-a, porque a mim parece-me realmente que possuo quanto imagino. A mim lembrou-me uma vez que estava feito uma coisa muito grande, que governava muitas gentes, que dispunha de muito dinheiro e, com efeito, enchia todas as obrigações do meu cargo, dispunha, mandava, ralhava, dava a uns e tirava a outros e com uma tal satisfação que ainda que ninguém me obedecesse, eu tal não julgava. E como neste mundo tudo é uma quimera, eu me julgava assim feliz. E que mais tem ser feliz doido ou feliz com juízo, se a coisa dura a mesma quantidade? Se a minha felicidade, tendo juízo, durasse mais tempo, então melhor era. Mas tanto uma como a outra acaba em se acabando a cena, quer em parte que seja assim ou que seja assado. E, demais, quero-lhe mostrar que, sendo doido, a minha felicidade é mais real e, se não, diga-me cá: você já teve na sua vida alguma coisa que lhe desse gosto e que esta lhe durasse sem intervalos de pesares nascidos da mesma coisa? Certamente que não. Pois eu, Senhor Papelão, desde que sou doido tem-se-me metido na cabeça que sou muito rico, que tenho grandes negócios, grandes propriedades, que manejo tudo isto sem caixeiros. Apesar desta grande laboração, nunca se me perdeu navio, nunca perdi dívida, tudo me anda às direitas e eu vivo no maior contentamento do mundo, sem jamais vir um desgosto entremeter-se nesta alegria. Veja agora lá quem é mais feliz, se esse que tem isso na realidade, e passa por mil desgostos, sendo o primeiro e o último a deixar cá neste mundo todo esse dinheiro, sem se lembrar que, para ir para o outro, tudo quanto há sobeja? Se eu, que pacificamente logro o mesmo sem ter trabalho em o contar, nem de ajustar contas, nem de enganar companheiros, nem ser enganado, nem sentir desfalque no negócio, nem ter desgosto que me aflija. E, ultimamente, morrer quieto porque não deixo nada. E diz você, muito fresco, que eu passo uma vida muito triste! Tomara você passá-la assim. Mas não se julga doido, sendo talvez tolo, que ainda é pior. O que a mim me faz mal é a lembrança daquela ingrata, daquela... oh, venha você cá, você conhece-a?
Aqui se tornava outra vez a desorientar e a falar em diferentes coisas em que se lhe reconhecia a loucura, porque, tirado desta mania, discorria muitas vezes uma hora, e mais, com bastante galantaria.
Quando estava só, o seu dito favorito era este: — Eu é que tive a culpa! Tive o passarinho na mão, deixei-o fugir. Gastava às vezes nisto um dia inteiro. Mau era que logo pela manhã começasse com ele, porque não acabava senão à noite. Era galantíssimo. Uma ocasião esteve ouvindo uma conversa entre uns amigos em que um deles se queixava de que tinha pilhado um coice de uma besta que por um és-não-és o não tinha mandado para outra vida. Tanto que ele ouviu isto, meteu-se logo de dentro para dar conselhos porque esta era a sua balda, como já disse. E virou para o que tinha levado o coice e disse:
— Vossa mercê é que levou o coice da besta, segundo eu estive ouvindo e eu, que desejo o bem do próximo, quero lhe dar um remédio que tenho para isto. Cumprindo-o vossa mercê à risca, nunca mais há-de levar nenhum, isto é, sendo a besta de quatro pés, porque, para as de dois, é quase impossível havê-lo, pela muita quantidade e porque estão muito domesticadas com a gente. Quando uma pessoa mal se não precata, está com dois no bucho. Com que, se vossa mercê quer o remédio, ele custa simplesmente cinco réis e dura-lhe para toda a vida se tiver cuidado em o não perder porque, nesse caso, tem que gastar outra de cinco.
O homem ficou pasmado de ouvir tão bom arrazoado do doido e, para ver o fim daquela história, e saber qual era o remédio, disse-lhe que sim e que lhe fazia muito favor em o querer livrar, por tão módica quantia, de um mal que, a cada canto, se encontra, ainda que o que ele tinha pilhado tinha sido no meio da rua.
— Pois bem, vá vossa mercê comprar, aí a uma tenda, uma meadinha de cordel de barbante que lhe há-de custar cinco réis e venha aqui num pulo, porque, se eu me enfastio da espera, ponho-me a andar.
Foi o homem buscar o cordel e deu-o ao doido. Ele desembrulhou-o e deu-lhe uma ponta, ficando com a outra, e diz-lhe:
— Vá vossa mercê recuando até se entesar bem este cordel que eu também faço o mesmo.
Tendo cada um deles os dois extremos do cordel na mão, recuaram até mais não poder o que, visto pelo doido, disse para o homem: — Aqui tem vossa mercê o remédio. Pode haver coisa mais insignificante e de menos trabalho? Pois em vossa mercê andando desviado de todas as bestas à distância que marca este cordel nenhuma mais lhe há-de dar coice. Dito isto, largou tudo por mão e botou a correr, deixando ficar o homem como um tolo a olhar para ele.
Dava conselhos aos outros doidos e todo o seu fim era dizer-lhes que não endoidecessem. Em algum doido se queixando de alguma coisa, já ele lhe dava remédio. A um que o perseguia muito uma tosse, lhe disse ele:
— Olha, essa tosse é de frio, é preciso aquecê-la. Se é quente, é preciso esfriá-la. Com que, dize-me tu de que te parece que ela é, que eu ta curo logo.
O outro disse-lhe que lhe parecia ser quente porque sentia o peito como lume.
— Pois bem, abre tu bem a boca que eu te assopro para dentro até que tu a sintas fria. Outro, queixando-se que o perseguiam as frieiras de tal forma que o não deixavam pôr os pés no chão, acudiu ele logo, dizendo-lhe:
— As frieiras são de frio. Em tu as cobrindo de forma que lhes não entre o ar, estão infalivelmente curadas para o que, bota-lhe tu lacre até as cobrires bem e conta-me depois como te achaste. E não te esqueça que o lacre deve estar em chama para que o pingo vá líquido, senão não aproveita o remédio.
Para malignas, dizia ele, que não havia nada como estupores porque tinha conhecido um homem que, estando muito doente de uma maligna e sobrevindo-lhe um estupor melhorou dela e morreu dele. E julgava que era muito melhor morrer por ele que por ela. Perguntando-lhe um sujeito que remédio lhe dava ele para viver muito tempo, respondeu-lhe no mesmo instante: — Fazer tudo a tempo. Outro pediu-lhe que lhe ensinasse como havia de escrever uma carta a uma moça de quem gostava de modo que logo a rendesse, e ele também lhe disse de repente: — Descomponha-a, trate-a mal e verá como cai. Por eu escrever com muitas meiguices a uma que tive, é que ela me deixou e mudou para outro que lhe quebra a sua costela de quando em quando. Mas, ao menos, não é desumano porque não lhe quebra uma senão depois de curada a outra. Um pediu-lhe um dia que lhe ensinasse o modo de saber o que diziam dele, ao que respondeu: — Julgue vossa mercê que todos lhe chamam tolo, como na verdade o é, e tem sabido o que quer. Este nunca mais lhe perguntou nada. Outro disse-lhe que desejava ser invisível só para nas companhias poder estar entre as senhoras que quisesse, ouvindo o que diziam sem ser visto. Ao que ele respondeu, dando uma risada: — Não faria negócio, porque as senhoras não gostam de coisas que não se vejam e, como por natureza são medrosas, haviam de julgá-lo coisa má. Agora se vossa mercê quer ser apontado e fazer figura de Europa no Reino Amatório, não tem mais que meter-se com elas, mas lá de coisas invisíveis, deixe-se.
Encontrou um dia um amigo que lhe disse: — Anda cá, Fulano, não me darás remédio para que todos digam bem de mim, pois que quase todos dizem mal sem eu lho fazer?
— Sim, e não é de muito custo. Toma juízo prudencial e deixa-te do artificial. E quando julgares um homem teu inimigo, não sejas inimigo dele. Numa palavra, vive como teu bisavô e não te lembre como vivia teu avô e nem te importe o que fazia teu pai.
Encontrou numa ocasião um homem de semblante melancólico que, sem levantar os olhos do chão, mostrava pensar em coisa que o afligia. Chegou-se a ele, acordou-o daquele letargo em que o via e perguntou-lhe em que estava considerando. Ao que o homem respondeu: — No que não tenho.
— Pois olhe, lhe tornou ele, há-de gastar menos tempo nessa consideração do que gastam aqueles que sempre estão a pensar no que têm, com medo que lho leve o diabo, porque receiam que o mesmo que lhe fez o carreto para casa, lho torne a levar para fora.
Um a quem ele ouviu queixar que gastava muita tinta em escrever, disse-lhe: — Porque não escreve vossa mercê na areia? Bem o pode fazer, por duas razões: a primeira porque o que vossa mercê escreve, ainda que o desmanche o vento, não se perde nada, antes ganha, para que, ao menos depois de morto, a sua memória não sofra injúria; e a segunda, é porque é asneira escrever não havendo quem leia.
O tal que o quis ouvir disse-lhe que para o que ele escrevia ainda havia muita gente que lesse porque ele escrevia na língua nacional. — Pior, Senhor, pior! Vossa mercê está doido! Pois hoje nada bom se pode escrever nessa língua! Quem se contenta hoje só com uma língua? E, demais, a língua nacional está cediça. Escreva em língua turca, em língua lapónia, em língua de preto porque ainda que vossa mercê não saiba o que escreve e nem eles o entendam, hão-de gabá-lo! Vossa mercê está tonto! Vossa mercê não vê que se faz hoje um vestida custando três mil e duzentos e depois do vestido acabado ainda se gastam dez moedas nos enfeites? Eu vi outro dia uma senhora com umas manguinhas num vestido que por elas se podia recordar aquele antigo ditado: mangas comei aqui, que a vós vos honram e não a mim. E veja vossa mercê se eu não tenho razão. O vestido, que era de cambraia, tinha custado cinco moedas, e as mangas, que eram de renda, lá de uma terra onde não faz muita calma e onde creio que fazem a tal renda de linha, como a de cá, só por ser de lá custaram dezasseis moedas. E é preciso advertir que não cobriam senão uma sesma de braço que, a cobri-to metade que fosse, então eram precisas quatro onças de ouro fino só para mangas.
Com esta mesma senhora sucedeu-lhe um caso galante, porque ela costumava muito divertir-se com ele e fazer-lhe várias perguntas. Nesta ocasião foi uma delas. Perguntou-lhe de repente: — Que te falta? Ao que ele respondeu com a mesma prontidão: — O mesmo que te falta. Se eu quisesse contar as contínuas lembranças deste doido, seria um nunca acabar e faria três volumes só deste objecto. Mas eu tenho tanta cabeça a que acudir que é preciso que passe muita coisa pelo alto e que bem mereciam que não ficassem no tinteiro. Mas vamos acudir ao mais preciso, razão por que vou acabar uma Carapuça que nem bem alinhavada fica, concluindo-a com mais duas lembranças do mesmo. A primeira era ele dizer que no ser doido não achava incómodo nenhum, senão o darem-lhe pouco de comer. A segunda era uma teima em que estava com toda a mulher que via passar, que era dizer-lhe: — A quantos terás tu enganado?
Depois de pouco mais ou menos ter construído bem a cabeça de um doido, andava eu escolhendo nova morada que me contentasse e em que não fosse difícil a passagem. Nada aparecia porque tudo eram doidos ou enfermeiros, que pouca diferença faz. Eu já andava enfastiado do hospital e tinha medo das malignas que me pelava e elas começavam então a picar alguma coisa. Estávamos na força do Verão e eu já não sabia o que havia de fazer para me safar, até que o enfermeiro dos doidos deu ordem para que viesse o barbeiro rapar todos, antes que se minassem mais de bichos. Apenas tal ouvi, não me demorei um instante. Pus-me a andar. E tanto que me vi no chão fui-me pôr ao pé de uma porta por onde o enfermeiro costumava passar, o qual não tardou, nem eu tardei em ir-lhe ao fato. Na cabeça deste enfermeiro é que vai a Carapuça.
Lembra-me aquele de quem falava Gil Brás a quem Deus ajudara tanto que, tratando de pobres ficou rico. Pois o meu enfermeiro não sei se lhe sucedia isto mas, ao menos, sucedia-lhe que tratando com doidos tinha juízo. Ele é que tinha a incumbência de lhes mandar fazer o seu comer e era tão cheio de caridade a este respeito que, com receio de que lhe não deitassem veneno no comer, ele é quem o provava primeiro. Então cuidam vossas mercês que provava qualquer coisa? Não, Senhores, era dose de matar. De cinco arráteis de arroz que lhe dessem para um jantar de doidos, comia ele, muitas vezes, três arráteis e muitas vezes mais, se era de carne. Tinha tanta fé com as dietas que se algum adoecia e não queria beber o caldo ou comer a galinha, não teimava com ele pelo não afligir e porque estava crédulo que a dieta, por si só, era capaz de curar a moléstia. Se algum parente do doido lhe levava um fatinho, não lho dava porque tinha medo que o rompesse. E se era coisa de comer, comia-a ele e dizia que era melhor comer um que tratava de doidos do que um doido que não tratava de ninguém e que, às vezes, nem mesmo de si cuidava porque tudo quanto lhe davam pisava a pés. Se entrava algum doido recomendado e que alguma coisa rendia, levava menos pancadas. Vejam que força tem o dinheiro que até para isto serve! Em tudo que era do seu serviço, servia-se deles como se fossem negros e tinham-lhe um respeito que nem os olhos levantavam diante dele. Tinha muito pouco ordenado mas os emolumentos do ofício rendiam quadruplicado. Todavia, pouco durou a tolina. Entrou um homem cheio de probidade e humanidade a governar a casa e limpou-a, em cuja classe entrou o meu enfermeiro que foi posto na rua sem ter tempo de dizer adeus aos doidos. E levou uma saudade deles que lhe durou toda a vida e esteve em vésperas de enlouquecer o que eu desejava que lhe acontecesse, só para ir com ele a ver a festa que os doidos lhe fariam e vê-lo levar a sua meia dúzia de açoites, como um homem. Mas não tive esse gosto. Saiu para a rua e foi comendo alguns vinténs que tinha trazido. Mas como quem o tira e não o põe, depressa lhe vê o fim, acabou-se o dinheiro e eu, como todos o iam deixando, também lhe queria fazer o mesmo, para o que andava à espreita de cabeça. Ia todos os dias jantar a uma taberna, conhecimento seu muito antigo. O taberneiro era mais talhado para vinagre que para vinho. Mas eu quis também saber-lhe a vida e fui-lhe ao casco o que faz a Carapuça.
Muitos hão-de julgar que eu já estou cansado de saber as vidas alheias. Como se enganam! Eu, criado com umas velhas que não falavam noutra coisa! Depois, quando tinha cinco anos, em lugar de ir para a escola, mandaram-me para a Mestra que eram outras duas velhas que na davam ponto que não levantassem um testemunho a alguém. Depois que passei para outros estudos mais sérios, meteram-me logo um livro na mão, cujo conteúdo era dize-tu-direi-eu. De indagador, passei a arrazoador e fui-me fazendo um endemoninhado. Depois deram-me um criado que tinha tudo consigo: era velho, teimoso, espreitava a vizinhança até alta noite, era guloso na quinta casa. Fora mais prendas que eu calo por vergonha. Eu, com tão bons adjuntos, podem vossas mercês supor o que sairia. Saí a pele de todos os... e tomei tão bem a lição que de todos tirei alguma coisa. Ao que me não pude acostumar foi a erguer-me cedo, embora o tal criado tivesse o costume de se levantar ainda de noite para sair fora a ver se achava alguma coisa que se tivesse perdido na véspera e ainda fez as suas fortunas muito boas. Achou uma vez uma meia que tinha perdido uma senhora, de que lhe deu umas alvíssaras por aí além porque a quis lá para um remédio que não sei o que era nem me importa. Aqui têm vossas mercês de onde me vem o costume de querer saber das vidas alheias. E, agora, vamos a tratar do meu taberneiro. Era um homem já dos seus cinquenta anos, jubilado no ofício, porque desde pequeno lhe conheceram propensão para o vinho. Sempre trazia a camisa de vinte dias porque, ainda que a vestisse de manhã, tomava logo a cor do corpo e daí a uma hora estava como disse. Usava o cabelo cortado à estudante, o colete, a sua véstia, calças de tripe, meia de linha crua e sapatos de duas solas por medo da humidade, que lhe entrava por cima que, por baixo, poucas vezes saía fora. Gastava todos os meses quatrocentos e oitenta em giz, doze vinténs ele e doze a mulher. Os dele eram para assentar as dívidas porque não sabia escrever; os da mulher eram para jogar os três-setes, que era quem fazia as honras da casa aos fregueses e aos entrados de novo. jogava-os já tão bem que um parceiro que tivesse jogado com ela três vezes já sabia que cartas ela tinha, porque para cada uma tinha um sinal. Recuar carta, arquear uma sobrancelha, mexer com o corpo, coçar o nariz, tocar com a perninha, dizer como a descuido posto que meu parceiro põe o ás de copas na mesa, que era o mesmo que dizer-lhe jogue copas, e outras assim, etc.
Não se metia com peixe grande. Em não havendo sardinha não frigia outra coisa, mas puxativos não lhe escapava só um. Para glosar vinho, até agora não houve quem desse melhores motivos. Fazia uma conserva de nada que não havia vinho que lhe chegasse. Freguês que ali caísse, nunca mais encarou com outra porta. Ora verdade seja, ele ali encontrava tudo, o bom vinho, o bom procurador do pimentão para tratar da causa e depois o joguinho com senhoras. Ide lá buscar disto a outra parte! Está brincando! Tinha dado numa descoberta galantíssima, o nosso taberneiro. Tinha feito um buraco redondo na porta, do tamanho de um cruzado-novo e que ficava assim pela altura de dar pela cova-do-ladrão de um homem e, dizia ele, que era para entrar por ali a claridade da manhã e para se pôr ao pino logo de madrugada. Mas não era tal. Era por amor da ronda não o pilhar fora de horas com a porta aberta. Vinha lá um seu conhecido alta noite gritar-lhe à porta:
— Ah, senhor aquele, está acordado? Respondia ele logo: — Que é lá isso?
— Faz-me o favor de me vender meia canada que é para um remédio?
Em ele ouvindo falar em remédio, já estava no meio da casa. Tinha, então, uma tripa de boi. Metia-a pelo buraco e dizia ao freguês que aparasse a boca se era para beber, ou metesse a ponta da tripa na garrafa se era para levar e botava-lho dentro. Já não havia ninguém que não soubesse da moca e quem queria vinho, de noite, ia à taberna do bebe-lhe que esta era a alcunha que ele tinha e que prezava tanto que em lhe não chamando por ela, escandalizava-se e dizia, que era tão antiga na sua casa, que já seu avô lhe chamavam o bebia e seu pai o bebeis, e à mulher podia-se-lhe pôr o bebamos. Porque ninguém chegava ali que pedisse vinho que lhe não oferecesse e a quem ela logo não dissesse bebamos. Ela também quase nunca saía fora. Estava ali presa com um cordão de ouro em cada braço e um no pescoço que, se fosse preciso enforcá-la, servia muito bem para isso. E passavam estes dois corpos uma vida de cão fraldiqueiro em poder de senhora que não tem o trabalho de lhe limpar as águas. Era comer, dormir, beber, jogar, nunca estar só e dinheirinho sempre na aljaba. Quem me dera a vida! Que eu também não deixava de ter jeito para ela! Ora a respeito de cabeça, nenhuma das que eu tenho andado chegava a esta! Nunca se penteava, nem lhe comia a cabeça. Se sucedia, por acaso, algum dia de Inverno dizer ele à mulher, cata-me aqui um bocado, como isso sempre era depois de jantar e ao sol, mal lhe punha as mãos na cabeça, já estavam ambos a dormir, de forma que, às vezes, lhe saía eu para o fato a tomar o sol e podia estar descansado que, para ele, piolho era o mesmo que alfenim porque lho podiam pôr adiante que não lhe pegava nem lhe punha os olhos.
Eu, se não fosse ter-me já acostumado a andar algumas vezes em sege, outras ir ao teatro e algumas a ouvir conversar ciências, de que eu não entendia nada, (mas sempre é bom ouvir porque lá vem uma vez que encalha), eu não tornava a sair desta cabeça enquanto ela fosse cabeça. Mas o que me desgostava mais era ele nunca sair fora e o cheiro do vinho já me trazia bastante atordoado e mesmo a porcaria era de mais. Não aparecia o acepipe de uma banha de cheiro, uns pós de Lubeque e outras bagatelas a que eu andava acostumado. Nestas circunstâncias, resolvi-me à passagem. Ia ali todas as noites um bêbado, ainda envergonhado, beber a sua canada. Mas sempre a bebia pela bexiga. Eu, uma destas, que fiz? Tirei-me da cabeça dele e pus-me sobre o balcão. Quando vi tudo acomodado, fui-me pôr na tripa do boi. O bêbado bateu, o taberneiro ergueu-se para lhe dar a ração, estendeu pelo buraco o funil de pele, no qual eu ia, e enquanto ele o punha à boca e o outro lhe vazava o vinho, tive eu tempo para passar à cabeça do bêbado, que justamente fiz a Carapuça.
De um bêbado há muito que dizer pela imensidade de Autores que há neste género, ainda que quase todos têm concordado no mesmo.
Nas qualidades dos vinhos nada temos a falar pois que todos fazem o mesmo efeito com a pequena diferença de ser preciso mais gota, menos gota. Porque se a um lhe é preciso três garrafas de vinho do Porto para se embebedar (ainda que hoje, três garrafas de vinho não embebedam ninguém, ao menos dos meus conhecidos), conclui-se daqui que, de um que seja mais fraco, precisam-se seis. Também embebedar com bom ou mau vinho, isso não conclui nada, porque de um homem bêbado, não lhe lembra lá a qualidade que foi. Mas eu já ouvi dizer a um Autor desta faculdade que era melhor embebedar-se a gente com o mau porque, por isso mesmo, que se precisava maior quantidade, mais tempo para o deleite em que se estava. — Ora bebe tu! — Prova deste! — Lá vai à nossa! — Boa pinga!, etc. Nestes termos tenho mostrado que para um bêbado já encartado no ofício é melhor o mau. Porque o bom escrivão com toda a pena escreve e, para aquele que quer tomar a prenda, é melhor o bom porque melhor o engana e o leva ao grande caminho da bebedeira, caminho que a tanta gente boa faz passar a vida suave.
O bêbado de quem eu vou a falar era um pobre bêbado. Não era daqueles bêbados ricaços que chamam à bebedeira dormir a sesta, daqueles que desafiam a gula e que, entre cristais e porcelanas transfornam um rigoroso Inverno no ardente mês de Julho e que encaixam tanto calor no estômago que se lhe podiam semear ananases sem mais algum auxílio. Enfim, falemos claro, não era daqueles bêbados que, entre o círculo do ouro e dos prazeres, afogam a desgraça que não tem tempo de lhes chegar. Apenas não escapando de uma, que será mau chegar-lhes quando o vinho os possua... mas a mim não me toca falar sublime nem atirar a alvos a que não chego. E, demais, o meu estilo é rasteiro, a obra a isso pede e de um bêbado que anda por tabernas, que é justamente de que eu vou falar, não se pode escrever em estilo crespo e, mesmo se eu me entrar a meter em coisas de que não sei falar, não é possível que fique bem. Sabe Deus, se nestas mesmo de que eu até agora tenho escrito, parecendo-me que têm ido conforme, quanto se terá dito de mim! Mas é recíproco, que eu vou dizendo deles, e no fim do ano pode bem ser que ainda me devam alguma bagatela.
Vamos a ele. O meu bêbado era oficial de sapatos e não era dos maus. Trabalhava para senhoras e era muito asseado de mãos. Sapatinhos que lhe saíam delas, não estando ele com a tiorga, podiam pôr-se nas orelhas, porque eram uns brinquinhos e isto ouvi eu dizer a diferentes senhoras a quem ele levava obra e que a punham acima das nuvens. Mas ele tinha muito cuidado em não se embebedar nestas ocasiões por não cair abaixo, porque vossas mercês muito bem sabem que uma queda das nuvens à terra é uma grande queda, ainda para Faetonte, quanto mais para um pobre tirapé. Era casado, tinha alguns cinco filhos que não passavam muitas fomes porque ele tinha dado num método muito galante de lhes dar às vezes de comer e vinha a ser: vinha, às vezes, para casa como um cacho, mas um cacho que espremido não botava cinco réis. Punha-se a mulher a ralhar com ele, que não tinha dó algum daqueles inocentes que estavam morrendo de fome para ele se andar embebedando, perdendo o dinheiro e a vergonha! Ele ria-se e perguntava aos fihos:
— Vocês têm fome, rapazes?
— Sim, senhor, lhe respondiam eles em chusma e com uma voz muito miúda.
— Ora venham cá, cheguem-se ao pé de mim. Ora digam-me: vocês ceariam agora a sua posta de pescada cada um?
— Sim, senhor, lhe respondiam os rapazes com uma voz mais saída.
— Bem. Comeriam também o seu pratinho de salada? Comeriam, comeriam, que eu bem lhes conheço o génio. Não é assim, rapazes? — Sim, senhor, tornavam eles com uma voz mais encorpada. — Bem. Também não lhes faria mal a sua pinguinha de vinho, não é assim?
— Sim, senhor.
— Muito bem. Ora, pois, dêem graças a Deus e vão-se deitar que hoje já não ficou mal a barriguinha! Então mulher, estás descansada? Não cearam os rapazes muito bem? Tu queres o mesmo ou queres mais algum acepipe. Fala enquanto estou com as mãos na massa! A mulher mordia-se, ralhava e ele não tomava nada a peito. Outras ocasiões, quando a mulher o via menos bêbado, porque livre de todo nunca ele estava e já a vasilha tinha tomado sarro (o homem era belo para vestal porque nunca deixava apagar a candeia por caso nenhum que fosse), dizia-lhe ela:
— Então, filho, tu não tratas de arrumar o João que já está um homem (era o filho mais velho). — Pois não, dizia ele. Oh rapaz, anda cá.
Chegava o rapaz: — Arrima-te a essa parede! Então, mulher, quere-lo arrumado àquela ou a outra? Fala!
A mulher mais se desesperava e se afligia, mas nada vencia dele. Uma ocasião veio ele para casa a tempo que estavam os filhos a berrar com fome. A mulher entrou à ralha com ele na forma do costume. E ele tornou a sair e foi buscar cinco réis de alfazema e veio para casa muito contente e pô-la em cima da banca. Perguntou-lhe a mulher: — Que é isso que foste buscar?
— É alfazema. Vai defumar esses pequenos e abafa-os que tudo isso é frio que eles têm.
Outras vezes entrava pela porta dentro com uma pescada muito grande e ficavam todos muito contentes. Mas pedia-lhe a mulher dinheiro para pão e temperos. Respondia ele que não tinha nem mais um real. Dizia-lhe então a mulher: — De que serve uma pescada tamanha sem carvão para a cozer, sem pão nem molho para a comer? Não era melhor que fosse mais pequena, ficando dinheiro para comprar o mais?
— Olha cá. Convida os vizinhos para cearem connosco. Cada um que dê sua coisa do que falta e cearemos juntos que ainda é melhor galhofa.
Ia ele mesmo com a pescada na mão convidar os vizinhos, cada um supria as faltas e havia função na escada.
Era um bêbado que não deixava de ter tino. Tinha dado numa das mais finas. Quando não tinha dinheiro, com dez réis se embebedava. Comprava-os de azeitonas, sentava-se no banco da primeira taberna que encontrava e armava conversa aos circunstantes. Entrava um curioso e dizia: — Bote lá um quartilho, senhor dono da casa! Saía ele de cá com duas azeitonas, dizendo: — Vossa mercê há-de perdoar. Faça bico. E dava-lhas. O outro, por não faltar às leis de Baco, apenas vinha o copo logo lhe pedia que se servisse e, conforme o obsequiado estava endinheirado, assim eram as medidas que vinham vindo e ainda o pagador lhe ia louvando a cortesia. Quando findavam as azeitonas já o odre estava atestado. Ora isto é delicado e é saber negociar com pouco dinheiro. É certo que a pobreza é industriosa, assim como a riqueza é quase sempre preguiçosa. Eu julgo-me por mim, que em tendo comer para hoje pouco se me dá para amanhã e o meu bêbado seguia a mesmo norma. O caso era tê-la tomado hoje que logo dizia, muito satisfeito: — Para amanhã Deus dará!
Assim viviam este pobre homem e esta triste mulher, com cinco inocentes desgraçados, sendo disto a causa o sumo da cepa. Uma coisa tão bela como se torna perniciosa pela demasia! Em conta, conforta. Com excesso, estraga. Em conta, anima. Com excesso, enfraquece. Em conta, faz a alegria de uma companhia. Com excesso, a tristeza de uma família inteira. Nada de excessos, meus companheiros, eu vos lhes clamo. Tudo a tempo e verão que é um grande conselho, se o tomarem.
Assim ia este homem cada vez a menos: menos saúde, menos dinheiro, menos vontade de trabalhar e, ainda que a tivesse, menos que fazer porque as freguesas iam fugindo dele. Eu vivia descontente, principalmente quando vinha para casa porque tinha dó da mulher e dos filhos. Pois eu já disse a vossas mercês que, ainda que piolho, tenho um bom coração. Se pudesse remediar o meu próximo, antes o havia de fazer que metê-lo na barriga de uma burra, que em lugar de lhe meterem cevada lhe metem ouro. E quando uma pessoa morre, em lugar da burra dar os coices, dão-nos os parentes na burra para a abrir mais depressa. Não, meus senhores, se eu tivesse burra eu é que havia de mungir o leite para o repartir pelos doentes que o precisassem. Mas alguns, em as vendo prenhas, guardam-lhe a cria para os herdeiros que, muitas vezes, em dois dias matam mãe e filho ou lhe metem vícios no corpo, porque os ensinam a jogar e em dois dias passa de hidrópica a tísica. Mas aqui comecei eu a badalar e me desviei, na forma do meu costume, do caminho direito. Vamos ao caso, que é o bêbado, do qual, como já disse, me resolvi a sair. Mas para que cabeça havia de ir? Aí é que está a dificuldade porque todos os seus conhecidos podem vossas mercês julgar que tais seriam! Mas entre eles havia um que era cirieiro e com quem a tomava muitas vezes. Ao despedir-se eram abraços e mais abraços. Numa destas despedidas fui-lhe à cabeça, para fazer a Carapuça.
O tal amigo era mais sebeiro que cirieiro porque quando ele comprava quatro arrobas de cera, comprava ao mesmo tempo dez de sebo. E tinha feito reconciliar uma tal amizade entre o sebo e a cera que, por fim, tudo era cera. O que faz a boa união! E por tal vendia ambos os géneros.
Quando fazia as velas sempre lhe botava menos no peso porque se acaso lhe botava de mais, bem sabem vossas mercês a dificuldade que havia em se lhe tirar, porque era preciso raspar as velas. E a cera não é coisa que se lhe dê com uma lixa. Comprava também a cera que lhe iam vender, pela metade que ele vendia a sua. E se lhe perguntavam a razão por que não dava mais, respondia que tinha muito sebo, que o ofício estava perdido, que havia ali tal que lhe botava mais sebo que cera. E confirmava o dito porque, às vezes, na mesma que comprava com este defeito ainda em cima a ensebava mais e, então, dava a sua desculpa, dizendo: — Não quero que o ofício diga que eu o boto a perder. Eles assim o querem, assim o tenham.
Tinha dois pares de balanças, umas em que pesava a cera que alugava e outras em que a pesava quando a recolhia. E diziam por ali as más-línguas, mas era mentira, que os pesos das segundas eram falsificados. História! Disso não era ele capaz! No meu tempo houve tocha que, quando saía para fora, pesava três arráteis e quando vinha para casa trazia de menos três arráteis e uma quarta. Não, por aí não fazia o barco água! Por aí certamente não tinham por onde lhe pegar! Mais depressa pelos pavios, que os metia numa conserva de que ele sabia o segredo, que uma torcida de algodão que pesava uma oitava, quando saía do misto pesava uma onça. Mas isso era igual, que ele também nestes ingredientes gastava o seu dinheiro, ainda que a cera com a tal torcida durasse menos. Mas eu nunca vi comprar cera a ninguém para lhe durar. Para a gastar, sim. Neste caso, ia ele conforme os mais.
Este cirieiro tratava muito em negócios de defuntos, gente com quem eu não quero nada e tratei com toda a pressa de procurar cabeça, que foi a de um algibebe que lhe ia comprar cera para encerar as linhas. E é neste tal que vai a
Esta cabecinha é de trinque, tem muita novidade e eu não quero ser como aquele que acanhava os capotes. Eu hei-de pôr na carapuça a fazenda que lhe pertencer. Por mais um bocado, visto haver por onde cortar, quero que lhe fique à larga ainda que não lhe fique à sua vontade. Este amigo tinha uma tesoura de cortar que não era como aquele alfaiate que engenhou do capote do pai um capotinho para o filho. Cá este amigo fazia de um capotinho do filho um capotão para o pai. E que pena não era não ter aprendido a cirurgião, porque sangrar como aquilo, ainda até agora não apareceu outro! Uns calções para um rapaz de nove anos, calçava-os pelas suas mãos a um galego de trinta e embutia de tal forma o galego neles que o pobre, só depois de os ter em casa, quando os ia calçar pela sua mão, é que conhecia que lhe não serviam nem para trás nem para diante. E um destes, uma vez, jogou os socos com um companheiro parecendo-lhe que lhos tinha trocado.
Umas casas feitas pela sua mão pareciam choupanas. Com meia vara de riscadilho fazia umas calças e um jaleco tão justo que, à segunda vez que se vestia, arrebentava por todas as ilhargas com riso, por ver o ópio em que caiu quem o comprou.
Também não tinha escrúpulo em comprar o seu capote velho, mandá-lo tingir e fazer suas véstias que ficavam tão novas como os novatos que as compravam. Baetão e pano avariado era o seu forte para comprar. Tinha-se acostumado àquela fazenda por ser melhor para coser e para ganhar. Comprava mais depressa linhas podres do que sãs. O caso era que fossem mais baratas e dizia, muito sério, que era mais útil ao comprador porque, como a fazenda em que trabalhava era fraca, se a linha fosse forte, puxava pela peça e fazia-a durar muito menos. No pedir, então, é que ele era largo! Não tinha nenhuma dúvida de pedir seis mil réis por uma peça que tinha tenção de dar por oito tostões. Em alguma coisa havia de ser farto. Vendia seus retalhos para carapuças e destes mesmos é que eu lhe faço a sua e lhe sei a vida. Grande coisa é andar na cabeça de qualquer indivíduo. Nada nos escapa, só se nós queremos. É certo que o risco é grande mas a curiosidade é cheia e como eu estou posto neste costume, havia-me de custar muito não saber das vidas alheias. Mas, graças à minha fortuna, espero que poucas me escapem, ainda que muitas hão-de ficar em silêncio. Mas como eu as fico sabendo, este é o ponto essencial. E lá virá outro piolho que acabe o que eu principiei e das que eu não escrevo, ele escreverá, porque lá diz o ditado: atrás de mim virá quem bom me fará. Ainda que sempre é pena conhecê-las eu no meu tempo e deixá-las no tinteiro. Mas, enfim, nem tudo vai ao saco. Vamo-nos contentando com o que vai indo, que não vai tão mau, e vamos findar esta Carapuça que tenho já a tesoura aberta para outra.
Tratei de passar de cabeça, mas não queria ir para outro algibebe porque alguém mais que por ali aparecia eram homens de bem e a mim não me fazia conta senão cabeça em que eu tivesse que depenar. Até que apareceu um sujeito que negociava em bestas e, ainda que eu tive algum receio de lhe ir à cabeça, porque não apanhasse algum coice, a cobiça de lhe saber a vida pôde mais que o medo. Fui-me a ele e fazer-lhe a sua Carapuça que é a
O meu tempo tinha duas seges de aluguer e quatro machos. E logo depois da minha chegada comprou uma parelha de cavalos por três moedas e meia. A um deles faltava-lhe um bocado da mão esquerda e o outro era doido. Mas o meu amigo pô-lo manso como um borrego, porque logo o pôs à sexta parte da ração e eu vim no conhecimento de que a fraqueza tira muita fúria aos doidos. O que tinha um bocado de mão a menos, vendeu ele a um principiante de cavalos por oito moedas e ainda que o comprador lhe reparou no defeito, ele capacitou-o de que era um cavalo de lição e que aquilo não era coxear, eram curvetas que fazia. Tinha lábia para um homem! Era capaz de enganar um Santo e fazer-lhe um milagre. E é certo que no meu tempo, cavalo que doente lhe caía na mão, sempre o vendia são ou, ao menos, por são, que vale quase o mesmo. Comprou, uma ocasião, um cavalo por três cruzados-novos que daí a dois dias alugou por dezasseis tostões. Vejam que indústria para saber negociar! Comprou uma parelha de machos por quarenta moedas, deu em desconto um burro por trinta mil réis, umas fivelas de pedras, para calções, por catorze mil réis, duas pistolas de algibeira por cinco moedas e o resto em dinheiro. E daí a oito dias vendeu-a a um sujeito, que gostava de comprar fiado ainda que fosse mais caro, por oitenta e cinco moedas. Deu-lhe logo quarenta e cinco em dinheiro e ficou-lhe devendo quarenta que, é certo, nunca lhas pagou. Mas sempre lhas estava devendo e ele já tinha ganho no gancho duas vezes. Tudo quer génio. Para negociar em bestas é preciso nascer com propensão para elas, e este, certamente, era um deles. Tinha génio e natureza. As seges, ele mesmo é que as borrava. Ração, sempre as bestas a comiam pela sua mão. E, se havia furto, era ele mesmo que lha furtava. Era tão bom homem que ninguém negociava com ele que lhe não ficasse devendo. Apesar disso, ele não fazia negócio em que não ganhasse. Tinha um faro a respeito de alugadores de sege que era uma coisa admirável. Nunca alugou sege a pessoa que a precisasse para negócio porque estes, dizia ele, nunca dão mais taxa. Nada, eu quero estes amigos de Domingo que só alugam seges para correr e que não se lhes dá o darem a sua peça. Destes que o ganham sem o ganhar. Enganei-me. Eu queria dizer que o gastam sem o ganhar. Destes que saindo o dono do dinheiro a pé, embrulhado no seu capote, a ir tomar o sol, saem eles na sege a todo o trote e não lhes escapa feira nem senhora. E é assim que ele fazia o seu negócio e fazia muito bem. Quem é tolo, pede a Deus que o mate. Nada de somitigarias. Quem pode, é justo que rode, pois a gente há-de distinguir-se. Não basta um pobre homem estar toda uma semana feito escravo e, se alguma vez sai fora, é fraca sola, para, ao menos, ao Domingo, mostrar que é gente e que sabe o que é tratamento. E as bestinhas já estavam tão acostumadas a esta casta de gente que lhes botavam uns olhos que, se os pudessem pilhar com os dentes, haviam de lhe dar os agradecimentos.
Então que alma tinha este homem quando lhe morria alguma besta! Morreram-lhe, numa semana, três cavalos que lhe tinham custado, todos, doze mil réis. Pois ficou muito senhor de si e disse: — Morreram? É porque estavam vivos. Muitas vezes, de onde se não esperam as coisas daí é que saem.
Quando levava algum cavalo à feira, para vender, sempre julgava que tinha mal venéreo, porque sempre lhe dava primeiro com azougue o que lhe fazia muito bem porque sempre depois disso os vi ficar muito espertos. E ainda eu não conto tudo quanto ele fazia. Mas são coisas muito sabidas porque o negócio também está muito divulgado e já todo o mundo o sabe, porque há muito quem entenda de bestas, pois já todos querem ter em que andar. E com razão, que os caminhos estão muito compridos e os pés mais delicados. Depois que já não há sapatos de vira não se pode pôr os pés no chão. Tenho dado conta desta cabeça e vou agora dar conta de outra, para onde passei e que andava numa das seges e faz a Carapuça.
Este arrieiro, para onde eu passei, dava-lhe seu amo todos os dias oito vinténs e ele, só de vinho bebia três tostões. Porque, no meu tempo, estava a canada a dois tostões e ele, sempre, pelo menos, bebia canada e meia, não sendo freguês desse dia taful que, a sê-lo, então era bebedeira redonda e cabeleira de nós. Coisa de retorno nunca o amo soube o que isso era. Ainda que ele viesse de Madrid, nunca tinha achado na estrada quem lhe desse um cruzado-novo por duas horas de assento. Se pilhava cruzado-novo, falso, embutia-o ao amo que também pouco se lhe dava porque o passava adiante. Por mais um cruzado-novo de gorjeta não tinha dúvida de matar uma parelha ao amo, a correr nela. Mas se via que o freguês era dos ramerrões, também se punha ao ramerrão. Chegava a andar em tal sorna que houve freguês que se pôs a pé, só por não aturar os três amigos. Que todos três pareciam que estavam apostados a apurar a paciência do alugador. E se ralhavam com ele sem lhe darem dinheiro, tinha o método de dar com o chicote nas bestas de forma que fazendo muito estrondo não lhes chegava o açoite e, então, virava-se com todo o descanso para o que ia dentro e lhe dizia: — Que quer vossa mercê que eu lhe faça? As bestas andam trabalhadas, mal comidas e eu igualmente. Se puxo por elas, eu e elas caímos.
Agora se o homem, em lugar de razões lhe punha dinheiro na palma da mão, e lhe pedia ao mesmo tempo que fosse mais depressa, isso então era outro cantar. Então sabiam elas andar e ele beber. Mas, coitado! Bem amargurado ganhava o dinheiro! Que sóis que não pilhava e que chuvas não mamava! O vinho, porém, era remédio para ambas as coisas! Estava já tudo tão acostumado a vinho que até as bestas, em chegando à porta de taberna conhecida, logo paravam e, sem lhes darem bucha não passavam adiante. Havia bestinha que já mamava a sua canada de vinho como um homem. Não lhe faltava senão pedi-lo por boca. Mas dava sinal com os pés. Ora o arrieiro, também para besta pouco lhe faltava. Se lhe pusessem as mãos no chão e um rabo postiço, enganava todo o mundo. Não conhecia senão dinheiro e vinho. Se falava, sempre dizia arre e se queria entreter-se em alguma coisa, quando não tinha que fazer, pegava no chicote para dar estalos. Mas nisso não havia muito de que o notar porque muita gente boa se entretém assim e não lhe fica mal. Na traseira ninguém se lhe punha. Era o flagelo dos rapazes. Tinha tomado ressaibo com eles e não estava mais na sua mão. Tinha ocasião em que sem ser o Maduro[1], punha-se três e quatro vezes a pé. Coisa de lhe entrarem três pessoas na sege não entendia. Só se avultavam a paga, porque como ele não consentia em nada de mais sem primeiro lhe darem dinheiro. Nunca freguês nenhum ouviu uma risada da sua boca antes de lhe dar a gorjeta. Tinha risos para diferentes preços e mau era quando ele botava a viseira abaixo, que então não dava mais um passo adiante. Com o chicotinho na mão era um desavergonhado suficientemente bom. Não virava as costas, ainda que muitas vezes, por amor desse pundonor, lhas moeram do que eu não ficava contente porque receava alguma remessa pela cabeça e eu sempre tive medo de morrer, não sei o porquê. Por amor destas e doutras, resolvi-me a procurar minha vida. Tinha muito por onde escolher porque, de quantos andavam na sege, eu tinha ocasião de lhes ir à cabeça. Por isso quis escolher à minha vontade e passei para a cabeça de um mordomo que governava uma casa abastada. E é a
Notas
- ↑ Maduro era um pobre homem que, sem saber picaria nem a arte de tourear, se propunha a ir fazê-lo para ganhar algum vintém, e que sempre estava pronto para se pôr a pé a tomar duelo ao toiro, cada vez que o povo o mandava. E ficou como provérbio o dizer-se: A pé, Maduro! [N. do A.]
Valei-me Gil Brás! Dai-me um mordomo como aquele que vós achastes! Esta cabeça é difícil. Para esta qualidade tem talhado muita gente. O que me consola é que quase todas têm saído boas. Talvez que esta saia menos má. O assunto é vasto; ainda que muitas vezes dito, está como o fazer sonetos para anos, que já há bem pouco que dizer. Mas, enfim, meti-me em trabalhos por minhas mãos e não tenho que me queixar de ninguém. Eu não quero mais que escrever e falar, sem tomar primeiro sentido se posso falar. Vou escrevendo sem mais reflexão, —passo à primeira cabeça que me lembra e, depois de a ter dito, é que entro na dificuldade. Pois deixá-la haver, já agora hei-de descrevê-la. Se ficar mal, deixá-lo ficar. Noutra ocasião ficarei melhor. Quem não tem ouro, também gasta prata e, quem não tem ouro nem prata, vale-se do cobre; e quem não tem nenhum dos três, chucha no dedo. Ora, agora, quero eu falar-lhes a verdade, senhores Leitores. Tenho feito todas estas demoras e rodeios por ver se acabava o folheto sem falar no mordomo. Mas o demónio do papel parece que cresce e eu já não sei o que hei-de dizer. Se eu tivesse a fortuna de me ir lembrando de alguma coisa com que o enchesse e me ficasse o tal mordomo para me governar o folheto décimo quinto? Mas é impossível. Está por instantes acabando-se a prosa e eu não hei-de aqui meter versos, porque isso é uma asneira e uma asneira de bom lote, ainda que eu tenho feito tantas que, por fazer mais esta, não ficava mais asno. Mas isso era contradizer-me, porque eu me lembro muito bem que já disse num dos Prólogos a vossas mercês que um discreto até trinta, começava a ser tolo se queria ser trinta e um. E quem sabe também agora se fazendo eu mais uma asneira passo por amor dela de ser asno a ser asníssimo? Não, senhores, não há outro remédio. Ë preciso entrar na festa e não pode deixar de vir o mordomo. Entre para cá, meu senhor, não precisa trazer chapéu que cá se lhe porá a sua carapuça. O mais, é que eu tenho tanto que dizer dele que não sei por onde hei-de começar. Acabar é que é impossível, porque desta cabeça podia eu fazer dois volumes e ainda ficar muito volume. Ainda assim, tenho-me demorado sem ter dito nada do tal amigo. O certo é que quem quiser dizer, sempre tem que dizer... principalmente quando se quer dizer mal! Porque lembram muitas coisas e sempre há muito quem ajude. Para esta causa nunca faltam procuradores nem testemunhas. É muito mais fácil pôr um homem na forca que livrá-lo. Tomara eu ter de quem falar, que o que eu hei-de dizer dele isso sei eu muito bem, nisso nunca há dúvida. Mas, com efeito, basta já de seca e vamos ao tal mordomo, porque vossas mercês já hão-de estar com o olho nele e mais em mim. Nele, por verem o que ele é e em mim por ouvirem o que eu digo dele. Pois olhem, posso já certificar de antemão que bem não tenho nada que dizer. Se é isso que vossas mercês esperam, então escusam de ler esta Carapuça porque eu vou a dizer cobras e lagartos e pode ser que lhes misture alguma saramantiga. E se vossas mercês hão-de ter medo e fugir do folheto, então deixemo-nos disso e passemos esta Carapuça em claro. Mas que não diriam vossas mercês de mim se eu já agora não falasse dela? Haviam de dizer que eu era um paroleiro, um basófio e haviam de fazer de mim o mesmo que eu tenho tenção de fazer ao mordomo. Pois não! Nesse caso recaia o mal sobre ele e salve eu a minha pele. Primeiro nós, depois, então, vós, diz lá o ditado e, para que não haja mais demora e vossas mercês não entrem a cuidar que sou boticário e que lhes dou ópio, vou começar a vida do tal amigo que é vida e mais alguma coisa. É vida que tem dado morte a muitos. E se não começo já, nunca acabo, porque me entram a lembrar tantas coisas e quero acudir a todas. Quero escrever tudo quanto me lembra e faço uma tal miscelânea que, para às vezes me entender com ela, dou-me a perros. Mas por esta vez não será assim. Ponho já tudo de parte. Dou descanso à memória para nada mais me lembrar e começo a falar no mofino do mordomo.
O meu mordomo era um homem de setenta anos, baixo, cabeça grande, com os olhos olhando para o cachaço, o nariz quebrado de nascença, bastante largo de ombros, única coisa em que era largo. Tinha um joanete no pé direito e um lobinho na testa, que se equivocavam muito estas duas peças no feitio, apesar da latitude em que estavam. Tinha quatro dedos numa mão e dois deles pegados um no outro que vinham a ser, na configuração, só três dedos, defeito este que lhe embaraçava muito abrir a bolsa. Mas assim mesmo se servia, porque ninguém lha abria. Tinha uma tosse contínua mas muito pouca febre era bastante surdo. A única coisa que tinha ainda menos má, era o tacto e uma casaca alvadia, abotoada até abaixo com botões de canastra. Tinha muito poucas palavras. Tudo eram obras, mas obras que apenas lhe serviam para um quintal que tinha numas casas que comprou a uns órfãos, ficando-lhe logo o dinheiro na sua mão, a juro. E andava na diligência de ser seu tutor para que não lhes levasse o diabo o que tinham, dizia ele. Fazia a barba a si e rapava o cachaço, porque ele usava de cabeleira, mas nunca se rapou a si. A única coisa que eu lhe via às vezes rapar, eram os pratos onde comia. E se acaso rapava lá mais alguma coisa, era tanto às escondidas e à chucha calada que ninguém o percebia. Nestes termos trazia sempre a grenha em tal altura que eu tinha suficiente mato por onde pastasse e me escondesse. E eu, nesta cabeça, engordei bastante porque ele tinha o sangue muito sossegado. Nada o alterava. Tanto lhe importava ele que as coisas fossem por baixo como por cima. Se pachorra fosse coisa que se vendesse, ninguém tinha mais fazenda. Se ele, todos os dias, depois das despesas feitas, guardasse quatro mil e oitocentos réis no cofre, nada mais lhe importava. E fazia isto porque se tinha posto naquele costume. Era uma acção quase involuntária. Era o hábito que insensivelmente o tinha posto naquele uso e ajuntava aquele dinheiro por ajuntar, que não se servia dele. Quando o ia guardar, dizia, com graça: — Deixa-te estar por aí que não fazes mal a ninguém.
Este belíssimo homem tinha nascido para governar uma casa. Tinham nascido com ele a economia e a indústria. A casa que ele no meu tempo governava, tinha os seus vinte mil cruzados de renda anual, gastava catorze todos os anos e todos os anos ficava empenhada em quatro. Ele havia cinco que a dirigia, apenas o seu empenho era de vinte. Mas estava-se esperando o vencimento de uma causa muito interessante de que havia duas sentenças contra, mas ainda esperavam recurso para se porem as coisas a direito. E, certamente, o dono da casa se não fosse este hábil homem, não ficava perdido tão depressa. Tudo ali andava por cálculo, até se sabia pouco mais ou menos quanto uma besta poderia durar em casa. Porque, como o mordomo não queria que se desse mais que uma oitava de cevada para duas, já sabiam os criados que em uma besta vindo para casa, o mais que chegava era a dezoito meses. Vejam que regime, que igualdade, que homem tão honrado! Também não queria que seu amo se valesse de privilégios. Todos os géneros que comprava para a mesa, tudo pagava sisa porque tudo passava primeiro pela sua casa. E ele era casado com uma velha que se chamava Arpia, que pelo primeiro nome não perca, e que desempenhava o segundo como ninguém. Moravam ali muito perto. Não fazia diferença ao comprador vir primeiro por lá. Se havia alguma diferença era na quantidade, porque o demónio da velha tinha um calor tamanho nas mãos que tudo nelas se lhe derretia e o alvar do galego, que era o que comprava, ia tomando a mesma manha. Em que lindas mãos estava metido o dono da casa!
Os criados faziam-lhe muito mais festa do que ao amo. Olhem lál, não passasse ele por parte onde eles estivessem que logo se não pusessem a prumo! E, ao amo, muitas vezes nem lhe tiravam o chapéu e chamavam-lhe tolo. Que, até aqui, verdade seja, não lhe levantavam testemunho nenhum!
Havia rendeiro que nunca tinha visto a cara ao seu senhorio e este com todos estava mal, porque o mordomo o tinha persuadido que não havia um só que não lhe estivesse devendo, quando havia tal que tinha pago três anos adiantado para não se enganar.
O pobre dono da casa já ia conhecendo a ladroeira, mas não lhe podia escapar das mãos porque a esse tempo já lhe estava a dever alguns oito mil cruzados. E isto sem ganharem juro, dinheiro que ele tinha emprestado gratuitamente para acudir aos seus vexames e, demais a mais, vexames de brio. Mas este dinheiro também não era do mordomo. Eram amigos que lho tinham emprestado e eram tão bons amigos que, quando ele veio servir, nem lhe quiseram emprestar uma casaca, que veio em véstia para casa, com os cotovelos de fora, e todo o seu fato o trouxe numa caixa de linhas, destas crespas, que a tinha mandado uma Freira a sua avó e era o único traste que tinha herdado da casa de seu pai. Mas ventou-lhe tanto a fortuna, pelo bem, limpeza e amor com que servia seu amo, que em quatro anos se pôs em estado de ser um vilão ruim perfeito, porque não servia a ninguém. E até mesmo dizia e eu lho ouvi muitas vezes (que eu não sou Piolho que assevere aquilo que não tiver visto ou apalpado) que, se estava ali, era por compaixão, por não desamparar seu amo, por isso mesmo que o via agora empenhado. Porque ele, da sua parte, não necessitava nada, nem tinha nascido para servir. Isto de criados e criadas, é preciso que os amos tenham muito cuidado de não lhes entrar a indagar a geração porque, averiguadas elas, quase sempre saem eles mais que os amos e dizem logo, muito embespinhados: — E que mal cuidava a roda dos meus parentes que ainda eu viesse a servir! (e é verdade que muitos não servem para nada). Pois se entram a falar em quem Deus tem, então Deus nos acuda! E quando elas fazem de um Alcaide um Desembargador? A uma já ouvi eu dizer que seu pai lhe tinha cortado a fortuna porque, tendo tido três casamentos, o qual melhor, seu pai embirrou em a não querer dar a nenhum por serem todos três mecânicos. Mas eu já fiz uma Carapuça a uma Criada que julgo que ainda estará em bom uso e não precisará virada. Vamos acabar a que comecei!
É assim que o meu mordomo arrotava postas de pescada, mas era daqueles que arrotava do que comia. Não era basófio. Era um homem de pé-de-boi, mas creio que era só pé, valha a verdade, que também isso não se precisa para o caso. Quero contar algumas economias que ele tinha para beneficiar a casa do amo. Entrou ele no conhecimento que tendo as coisas por junto gastava mais. Mas também via que o comer da tenda era sustentar duas casas. Que fez ele? Tirou daqui o meio termo. Nem casa, nem tenda. Comprava tudo por junto e vendia-o por pesos pequenos para a cozinha e o que havia de ganhar o tendeiro, ganhava-o ele e dizia, muito enxuto (que isto era de Verão) — Ele alguém o há-de vender e alguém o há-de ganhar. E, neste caso, antes eu que ele. E fazia muito bem. Quem tem lá a culpa de cada um se não saber governar?
Deus reparte com todos; a uns dá o dinheiro e a outros o governo, assim como a uns dá o juízo e a outros não, ainda que eu nunca ouvi queixar ninguém por falta de juízo. O mais que tenho ouvido dizer e queixar é falta de memória. Mas, enfim, cada um contente-se com a sua sorte. Nem a este mordomo se lhe podia chamar ladrão, pois parece não ser furto quando eu, à vista do dono, lhe levo o dinheiro e ele me não diz nada. Vem um criado para casa que apenas traz pés em que possa meter sapatos, quando os tiver, e no fim de dois meses já anda de niza e empresta dinheiro ao amo. E o amo está por isto. Então, querem-no mais claro? Está visto que o testamento é cumprido à vontade do testador. Que lhe importa a ninguém isso? E não cuidem vossas mercês que eu falo deste homem por dizer mal, nem que ele é este e aquele. Cada um é como Deus o fez. Se é mau, alguém lhe dará o pago. Se é bom, certo o tem. Numa palavra, eu não conto senão o que vejo. Se é mau, porque é mau; se é bom, porque é bom. É certo que vossas mercês dirão: — Mas este piolho ainda não viu uma coisa boa, porque tudo quanto nos conta é mau. Mas os que repararem nisso, metam a mão na consciência, se a tiverem, e lembrem-se do que têm visto, além do que são, e recordar-se-ão que não têm visto nada de bom, ou tão pouco que, confundido entre o mau, mal se pode distinguir e achar. Assim ia vivendo este traste do mordomo, feito hera e o amo parede. Mas como ele já se achava que nem uma sanguessuga, receava não lhe dessem alguma tesourada e andava só esperando ocasião oportuna de se ir embora. Mas ainda estava com desejo de lhe meter uma vez mais o rojão para lhe dar o último golpe, pois não lhe parecia próprio da sua honra que seu amo fosse morrer noutras mãos. Para conseguir este fim, meteu-lhe então na cabeça que aforasse uma quinta que tinha, por cujo aforamento lhe davam um par de luvas avaliadas em seis mil cruzados. Mas como era só um par serviu-se ele delas, que se fossem dois, então era natural que desse umas a seu amo, o qual esteve por tudo, porque ele entrou-lhe a dizer que não havia renda melhor que a dos foros e metia-lhe logo à cara aquele ditado: de foro nem um ovo. Que assim ele houvesse quem lhe aforasse quanto ele tinha, porque o seu voto seria que o fizesse, sem hesitar nem procurar mais um voto sobre isso.
Ultimamente o mordomo ajustou as suas contas. Fez um mapa em que mostrava como o amo, daí por diante, se devia governar e um dia, depois de jantar, foi com as lágrimas nos olhos despedir-se do amo, e o amo também chorando, não sei porquê, rogou-lhe que, já agora, desse cabo do resto. Mas ele resistiu com toda a força dizendo que queria ir acabar com a sua velhice servindo a Deus, que a sua consciência não o acusava de que o não tivesse servido com aquele zelo e perspicácia própria da sua honra. Mas, enfim, já estava cansado e que só lhe pedia que se lembrasse dele quando pudesse com o dinheiro que lhe devia. Abraçou-o pelos pés e não lhe pôde dizer mais nada tal era a pressa com que estava.
Posto na rua o tal amigo, foi direito para casa e eu antes quis ir com ele do que escolher nenhuma cabeça de casa porque todas elas me metiam dó e eu também andava alguma coisa doente por uma constipação que tinha tomado. Nenhuma cabeça era então mais própria para a minha moléstia do que esta, em razão de andar muito abafado. Porque a cabeleira, entre sebo e poeira velha, tinha os seus quatro arráteis seguros. Fui melhorando e fui-me dispondo a procurar cabeça. Ali iam todas as noites dois amigos vizinhos jogar com ele a arrenegada. Eram eles um mulato que ensinava a espada preta e um corcunda que fazia sabonetes de cheiro. Tentou-me o cheiro. Uma tarde que eles estavam a uma janela tomando o fresco, o corcunda ficava-me à direita e, donde eu estava, a cabeça dele ia um bom palmo e meio abaixo de mim. Deixei-me cair. E nessa noite fui com ele para casa e vossas mercês verão agora a
Este corcunda era casado com uma mulher muito alta, de forma que o marido dava-lhe pela cintura. Mas é preciso advertir a vossas mercês que nesse tempo não havia cinturas curtas. Era no tempo que ainda as mulheres nasciam com o corpo dividido, metade para baixo, metade para cima. Presentemente, o meio corpo para cima está quase acabado. Quem usava desta moda de hoje era o corcunda, porque tinha a cintura muito certinha. Em casa todos eram altos. Uma irmã da mulher, que dizia por ali a vizinhança que era sua cunhada; uma hóspeda que estava em casa depositada para casar; a avó do dito, que me parecia um lingueirão. Quando esta família se punha toda à mesa, o dono da casa parecia um frasco posto em cima de uma cadeira. Mas era muito bom homem e muito sincero. Podiam fazer o que quisessem dele e diante dele, que ele, por si, nem sentia nem via. Mas, na verdade, era muito infeliz. Tudo lhe ia para trás, além do que já lá tinha. Eu, às vezes, tinha dó dele. Mas a mulher era muito ladina e, ao mesmo tempo, muito governada e tratava do seu homem com muito cuidado. Penteava-o, vestia-o, enfim, tratava dele como se fora uma criança. Porém, de que servia tanto amor se faltava o comer? Grande antídoto é a fome para o amor. O ofício dos sabonetes não rendia quase nada, mas a mulher ajudava-o e já os fazia muito melhor do que ele. Tanto assim, que os compradores não queriam senão os sabonetes da senhora e algum gasto mais ia havendo, porque os fregueses iam acudindo mas o ganho era uma ninharia. Não chegava para nada.
A depositada casou e fez-se a função em casa. Eu esperei esse dia para escolher cabeça entre os convidados, nos quais estava um que me parecia homem de propósito. E vim a saber pela conversa que o seu ofício era ter casa de jogo, no que eu fiquei muito contente porque logo pensei que tinha cabeça para uma folha de papel ou mais, no que não me enganei, como vossas mercês depressa vão a ver. O corcunda fazia-lhe muita festa porque queria ver se ele lhe ensinava alguma coisa pertencente ao seu ofício em que pudesse ganhar algum vintém. Numa destas ocasiões, em que estavam ao pé um do outro, resolvi passar para o dito. Mas com muito grande trabalho porque daqui não podia ir de salto. Só se voasse e os piolhos têm muitos pés, mas asas nenhumas. Saí da cabeça do corcunda e passei para os cós dos calções do outro que era justamente a altura por onde ficava a cabeça do corcunda e aí fiquei até à noite em que lhe passei para a cabeça, antes que ele se despisse. E, logo pela manhã, lhe comecei a
Num homem com casa de jogo raramente se encontra uma conduta tão igual. O seu dinheiro era de todos. Havia, por exemplo, uma roda de trinta-e-um em que jogavam oito pessoas e cada parceiro tinha meia moeda. Ele não tirava senão dez réis de cada vez que entravam, de três para cima e, em bolo empatado, um vintém. E enquanto os empates se dobravam, tirava ele dobrado. Este era simplesmente o seu ganho.
Acabava-se o dinheiro a um dos parceiros, chegava-se a ele a pedir-lhe dois pintos ou um quartinho. Nunca se negava. A isto a sua bolsa estava aberta. Quando chegava a noite tinha ele tirado quatro moedas de barato, que vinha a ser o dinheiro de todos e estavam-lhe os parceiros todos a dever. Um, dois cruzados-novos, outro três, outro quatro, etc. Eis aqui como ele regulava a sua casa. Coisa de jogo proibido não o consentia. Só se era muito às escondidas para fazer a vontade aos parceiros. Se era banca, de cada cartada havia-lhe o banqueiro dar uma de doze. E se era jogo de dados, a quarta parte da parada. E dizia ele: — Sabem vossas mercês porque eu lhes tiro tanto? Para ver se lhes tiro o vício. E mesmo pelo perigo que há, e o dinheiro a risco deve render mais.
Levava os seus trinta réis por cada partida de bilhar, isto é, sendo de dlia, porque de noite era meio tostão. E este joguinho era o que fazia capa aos outros. Tinha os seus dois tabuleiros de gamão. Um deles estava arrendado por dois ginjas que apenas engoliam o bocado estavam com ele a contas. Eram ambos de cabeleira. Um deles, que era o mais baixo, tinha a cabeça do tamanho de uma melancia de Abrantes, destas que custam a cruzado-novo. E o outro, mais alto, tinha uma cabeça do tamanho de uma melancia de dez réis. Lembro isto porque quero contar uma história que lhes sucedeu uma tarde. Estavam eles jogando e um deles jogou seis e dois em lugar de seis e três que tinha botado. O outro parceiro não emendou o lance, porque lhe convinha o erro. O outro botou e deu-lhe na tábua. Então o que tinha jogado errado, quis emendar o lance e este não consentiu. Descompuseram-se, passaram às mãos, esbofetearam-se, em cujas bulhas foram as cabeleiras de ambos à casa. Foram acomodados pelos circunstantes que tanto trabalharam que os reconciliaram ao ponto de tornarem a jogar. Feitas as pazes, foi cada um buscar a sua cabeleira mas, infelizmente, pegaram nelas trocadas, porque a raiva do jogo ainda não estava bem dissipada. Puseram as cabeleiras na cabeça e ficaram galantes. O que tinha a cabeça grande, ficou-lhe a cabeleira pequena no alto da cabeça. O que tinha a cabeça pequena, ficou-lhe a cabeleira tapando as orelhas e parte das faces. E assim se puseram a jogar, sem nenhum dar pela falta nem pelo sobejo. Todo o mundo estava parado para os dois velhos. Mas eles tão encarniçados estavam que se despediram à noite e foram com as cabeleiras trocadas para casa e não deram por tal. O primeiro que deu pela história foi o que tinha a cabeça grande porque, como a noite estava fria, e a maior parte da cabeça ficava fora da cabeleira, dava-lhe o vento pelas orelhas e caiu então no caso. Remediou-se, porém, essa noite com uma cabeleira que comprou numa taverna de um vizinho, que lhe serviu até ao outro dia em que desfizeram a troca.
A tal casinha de jogo dava-lhe para tudo. Pagava as casas, pagava dois moços, tirava despesas, comprava sebo para untar as mãos a alguém que quisesse agarrar os fregueses para que lhe escorregassem. Tratava da sua casa, cumpria com todas as suas obrigações e ainda acudia a uma devoção diária em que gastava bons tostões. Grande ofício! O que eu não sei é como lho consentem por ser muito rendoso. É ofício que se pode repartir por três ou quatro indivíduos e todos sustentarem as suas casas às mil maravilhas. Então este amigo até deixava jogar em casa com pau de dois bicos e era o jogo que ele jogava com todos os parceiros. Não sabia outro nem lhe era preciso. E há por aí tanta gente vadia havendo negócio tão bom para o qual não se precisa nem mercê, nem encarte, nem aprendê-lo e sendo mesmo ou melhor que ir às minas, porque lá, muitas vezes, o veio de ouro acaba mas cá esta é inesgotável. Rende conforme o dono precisa de dinheiro aquele dia e come-se bem e do melhor. E a respeito de beber não se fica atrás de ninguém. É quanto a vasilha leve. E, então uma horda de amigos verdadeiros, porque largam o que têm e alguns até furtam para o ir ali dar! Mas ao dono da casa não lhe pertence lá indagar se é furtado ou não o que jogam. Ele não há-de ir perguntar a cada um per si: — Vossemecê furtou o dinheiro que traz? E até era arriscar-se a darem-lhe muita bofetada. Ele, que o joga, é porque o tem, é porque é seu e ele que é seu é porque o adquiriu.
Tinha que ver se nós andávamos a perguntar uns aos outros: — Donde lhe vem a vossemecê o dinheiro? Se alguém lhe pertence procurar isso, procure-o, e não cada um que tem cá o seu ofício. E, demais a mais, que habilidade faço eu se tenho quatrocentos mil réis de renda, gastar quatrocentos mil réis? Habilidade é eu gastar três mil cruzados tendo só um. Aqui é que está o busílis! Mas isto não é para todos, é cá reservado para os alquimistas do dinheiro alheio.
Tenho dado conta do que rende o joguinho. Agora vou a contar de uma casa de pasto que é para a cabeça para onde passei pois a cabeça aonde eu estava ia todos os dias encher o estômago a casa do seu amigo e, uma noite que eles tomaram a camoeca, fui-lhe ao casco e é a
Depois da cabeça do tendeiro onde estive, esta é uma das mais fartas. Tomara muita gente capaz os sobejos que ali havia! Então do que eu mais me admirava era ver um indivíduo destes da moda ir ali jantar. O ar com que ele entrava de Mylord pela casa dentro, dava volta pelas casas todas, entrava a chamar ó Manuel? ó Joaquim? Esta casa vai dando em droga! Vai sendo muito mal servida! Oh rapazes! Sentava-se, carregava o chapéu para a ilharga, perna em cima uma da outra. Aparecia o moço e a primeira coisa que lhe pedia era: — Dá cá lume e vai dizendo o que há. Vinha luz, cachimbo no caso e, entretanto, o criado ia vomitando o que havia na casa. Começa com a perlenga do costume: — Há sopa de três qualidades, arroz de cinco, carne de sete, vitela de nove, lardeados, presunto, isto, estoutro, aqueloutro &c.
— Bem! Venha do melhor e não te esqueça rosbife. Traze vinho do Porto. Oh!, tem vindo por cá aquele fulano do outro dia? — Veio ontem.
— Perguntou por mim? — Não senhor. — Avia-me depressa, anda, que tenho ainda que ir cobrar um pouco de dinheiro. Traze-me salada e venham azeitonas. Não presta a vitela, venha lombo.
Depois de petiscar em cada coisa, um peralvilho destes deixa mais de metade em sobejos e, muitas vezes, em sua casa não sobeja nada porque falta tudo. Ora isto não é uma desgraça? Vem outro que justamente o seu cabedal não lhe chega senão para comer favas no tempo delas e quer ervilhas com ovos. Deixa muitas vezes em casa um quarteirão de sardinhas para comerem oito pessoas e vem para a casa de pasto comer corvina e linguado porque já para pescada lhe torce o nariz. Ora isto não é uma miséria? Pois assim vai o mundo. E o dono da casa rindo e comendo com estes tolos. E que comer ali se come! É tudo o mais caro e o mais barato, porque o dono da casa, quando compra, não lhe importa se o macarrão está podre, se o azeite tem saibo ou se a carne é de cavalo. O caso está em que tudo seja o mais barato. E o pobre que o come, tudo paga como se tudo fosse do melhor. Que fizesse isto um homem que está fora de sua casa e longe da sua terra, paciência, coitado, bem lhe basta o seu desarranjo. Mas que um passe por sua casa e vá mais adiante jantar à casa de pasto! E o mais, é que se encontra algum amigo que não sabe onde ele mora e lhe pergunta, Que é isso? Você por cá?, responde-lhe muito sisudo: — Fiquei hoje cá por baixo porque tenho que fazer de tarde. E vai dali à sua casa vinte passos! Que tal é a história? Um conhecia eu, destes que em indo para casa com a barriga feita, sempre se queixava de dores de cabeça e a mulher era tão tola que julgava ser verdade. Tudo era perguntar-lhe se queria tomar um banho aos pés. Ele, apenas se deitava, roncava como um porco e a mulher punha-se a dizer aos filhos: — Não façam bulha que o pai está doente. E ele o que estava muitas vezes era bêbado.
Havia também muitos fregueses em que andava sempre o dono da casa com o olho em cima porque em eles podendo escapulir-se sem pagar, não perdiam ocasião.
Havia um, que esse era muito galante. Nunca aceitava cobre por demasia. Chamava-lhe porcaria. Já os moços lhe conheciam a balda. Se dava uma peça para se pagarem de um jantar, traziam-lhe a demasia toda em cobre e ele dizia muito inchado: — Tira lá essa porcaria, rapaz! Queres que eu suje a algibeira? O moço ia-se rindo e arrecadando. Havia outros que tendo feito de despesa um cruzado-novo, davam os seus oito tostões e o resto não o aceitavam que era para o moço que tinha servido à mesa. E ao moço que lhe servia em casa não lhe pagava o mês! Que tal é a economia?
Entre os fregueses certos ia um que era muito parco. O seu jantar, muitas vezes, não passava de sete vinténs de despesa. O que lhe fazia mal era o vinho, porque sempre bebia quatro garrafas do ordinário e uma de madeira seco que lhe chamava ele o seu café. E ia pelo seu pé para casa, como se não tivesse conversado com as tais garrafas.
O dono da casa também era uma boa vasilha no seu tanto. Não arriava mas não bebia do seu. Os criados bebiam dos restos e, quando chegava a noite, estavam atestados. E havia alguns que mesmo antes de chegar a noite já não viam nada. Não é mau ofício o ser criado de casa de pasto. Há dia que ainda ganha mais do que o amo e bem se deixa ver que assim há-de ser; porque o criado não precisa comprar nada para a casa. Ali pilham tudo de graça, até às vezes vão para o hospital pelo que pilham.
Muitos iam a esta casa jantar, porque ali se encontrava a bela companhia, tanto de homens como de mulheres. E alguns caíam em oferecer de jantar às ditas, ao que elas logo respondiam que não era preciso, que lhes ficavam muito obrigadas, mas iam-se sentando ao pé e deitavam-lhes, de quando em quando, a sua olhadura que lhes dava com os pés na alma. Se algum tolo, de novo perguntava a alguma, muito de mansinho: — Então a senhora não janta? Não se quer servir de nada? Enfastiam-na as minhas ofertas? Vossa mercê é tão bela! Ela tornava-lhe com uns olhos muito mais maviosos: — Vossa mercê tem um modo que cativa. Eu não aceito, porque vim aqui para ver se encontrava uma pessoa com quem precisava falar. Como a não vejo, vou-me embora porque nem eu estou acostumada a andar por estas casas.
— Nada! Isso não consinto eu, já que tive a fortuna de a ver e a senhora de se achar aqui! Não se há-de ir sem jantar. Isso não! Hei-de ter a satisfação de a senhora se servir dos meus pequenos oferecimentos. Oh, rapaz? Jantar para esta senhora, do melhor, e o que ela pedir.
— Eu não peço. Mande o senhor vir o que quiser.
— Então traze de tudo que tiveres e a senhora escolherá.
— Ai, isso não! Mande vir o que lhe parecer. Para mim qualquer coisa me basta!
— Nada, nada! A senhora há-de me fazer a graça. Há-de mandar. — Então se entra com isso, vou-me embora!
Enfim, venha cozido, venha assado, venha ave de pena e para sobremesa o que houver. Partia o moço, que nesta ocasião esperava gorjeta grossa, visto ele ser tão tolo. Vinha a prata abaixo, tudo do melhor e do mais caro. Da primeira garrafa para diante, começava o suplicante a indagar onde morava a suplicada que, com um copo na mão e um ar de riso, lhe respondia:
— Muito longe, muito longe.
— Pois não importa, lhe respondia ele, fazendo a razão, seja aonde for. Hei-de ter o gosto de acompanhá-la, permitindo-me a senhora licença.
— Com muito gosto, lhe tornava ela, mas eu tenho primeiro que ir comprar umas coisinhas em acabando daqui. Se vossa mercê quiser, pode-me esperar na esquina de tal rua, que eu o mais que me posso demorar são três quartos de hora. Mas espero da sua honra que não me faça esperar, pois que terei muita vergonha de estar posta no meio da rua e isto sozinha!
— Não! Eu já voo ao sítio assinalado, esperar tanta ventura. Acabava-se o jantar, despediam-se com os sinais da maior paixão e um: — Não falte! Ela sumia-se e ele ficava pagando os seus quatro pintos[1], tanto importava o jantar. E o patau partia à desfilada, porque tinha ficado sem real, a casa de um amigo pedir-lhe meia moeda emprestada para não perder uma fortuna que tinha encontrado e que a pressa não lhe dava lugar a contar. Safa dali esbaforido, ia pôr-se à espera e sempre podia esperar três dias e três noites porque ela nunca teve tenção de por lá passar. Dobrava e desdobrava a rua as suas quarenta vezes e já um sapateiro que o via nesta derrota lhe ia dando seu assobio, cada vez que lhe passava pela frente, até que se ia desesperado por lhe ter escapado aquela grande fortuna, parecendo-lhe sempre impossível que o enganassem, antes julgando não tivesse sucedido alguma desgraça à senhora. E mordia-se de raiva por lhe ter esquecido não indagar a fundo onde morava aquela beleza. E o mais é que isto rendia muitas vezes mais trinta jantares ao dono da casa porque o tolo teimava em lá ir e ver se encontrava aquela Dulcineia.
O dono da casa, meu patrão, cada vez ia em mais aumento. Já saía aos Domingos de sege. Já tinha um burro que lhe servia a casa e uns poucos de lagalhés que se lhe tinham juntado à casa sem ordenado, só por alguma lambuje, e desbrugavam favas e ervilhas, e sacavam algum lenço aos concorrentes ou algum vintém que lhes davam, que tudo vale o mesmo.
Ora se havia uma casa onde eu pudesse escolher a cabeça à minha vontade, era esta, pelas diferentes que ali iam. Eu andei fazendo minhas observações e tentei-me com uma de um alfaiate que ali ia e que era um falador eterno. Uma noite, indo ele cear, fui-lhe à cabeça e fiz-lhe a
Notas
- ↑ Pintos é uma linguagem própria de taful que quer dizer cruzados-novos. [N. do A.]
Isto era o chefe e o primor dos alfaiates! E de boa consciência! Fazia a três fregueses iguais, e da mesma altura, três pares de calças e a um levava-lhe côvado e meio de pano, a outro, dois côvados e a outro um côvado e terça. E dizia ele que lhas fazia conforme os seus teres. Ao mais pobre levava-lhe menos fazenda, ao mais rico metia-lhe mais a unha e ao mais tolo cravava-lha de todo. Isto é ser um homem arrazoado e não querer o alheio! Era alfaiate que nunca mentia, pois todo o mundo sabia que, em ele prometendo nunca cumpria a promessa. Por consequência, quem se fiava nele era tolo, pois que razão havia de esperar que ele fizesse uma coisa que nunca tinha feito? O uso faz o costume e, às vezes, até uma lei. Trinta vestidos que lhe dessem num Sábado para ele dar ao Domingo, nunca disse que não, nem também declarava que Domingo era. Também não lhe dava maior cuidado se se enganava nas medidas e de muitas vezes suceder-lhe fazer uns calções que eram de um magro para um gordo e dizia muito fresco ao freguês quando se lhe queixava de que não lhe serviam: — Se vossa mercê tem engordado tanto! Freguês nunca via da sua mão retalho, apenas aparas e, antes que lhe dissessem alguma coisa, dizia ele: — Eu não sou desses alfaiates que destroem a fazenda a seus donos. Peço-lhes à risca o que se precisa. No que era miserável era com cortes de seda. Tantas voltas lhes dava que sempre lhes puxava para um par de sapatos. No seu ser de alfaiate era muito largo, principalmente nos pontos. A obra na sua mão era um assombro. E se alguém quisesse virar vestido que ele tivesse feito, não custava a descoser. Vestido que lhe ficasse com defeito e que o freguês lhe tornasse a mandar para emendar, nunca teve o remédio senão do cabide. Passados cinco ou seis dias tornava a levá-lo e então era ver o desembaraço com que ele o fazia vestir ao freguês e lhe dizia: — Agora está-lhe nascendo. Ficou-lhe melhor do que se logo do princípio lhe tivesse ficado bem. Há-de me ficar a lembrança deste para daqui por diante lhos fazer todos assim. Vire-se para cá! Bravo! Vossemecê também tem um corpo bem talhado. Qualquer coisa em estando bem feita brilha mais em vossemecê que nos outros. Ficava o pobre homem muito contente e ainda em cima lhe dava para a neve, se isto era pelo Verão. Teve a grande habilidade, num Inverno, de capacitar nove fregueses a comprarem de um mesmo baetão de que ele lhes levou a amostra, para capotes. Disse-lhes que como era muito estreito, que precisavam dez côvados para um capote. Deram-lhe dinheiro. E, com efeito, ele não lhes mentiu, nem lhes furtou nada. Empregou todo o dinheiro em baetão. O mais que lhe sucedeu foi, ao cortá-los, ver que lhe sobejava muito baetão e fez dez capotes. E como os fregueses eram só nove, ele não havia de botar o décimo à rua. Serviu-se dele e com ele mesmo é que foi levar os outros e disse a cada um de per si: — Gostei tanto da cor e da qualilidade do baetão que também me tentei com um para mim. E a moda vai pegando, que ao mercador acabaram-se-lhe trinta peças que tinha dele. E tem mandado por mais com muita pressa. Olhe!, mau é que eu diga que é bom e é de gosto. Que ainda não tive quem dissesse o contrário.
Tinha muito boa tesoura. Tinha-lhe custado dois mil réis. Os retalhos, no fim do ano, não falando em sapatos, cortes de calções e véstias, sempre lhe davam para pagar as casas. Eram os percalços do ofício. Má obra é aquela de que o carpinteiro não leva aparas e o seu cavaco para casa. E depois de um vestido feito, de que serve ao dono o sobejo? Hoje já ninguém recomenda cotovelos nem bota fundilhos em calções. Sabe Deus o que custa a muitos virar vestidos! E eu sou do mesmo voto. Solar sapatos, tingir chapéu e virar vestido, é botar dinheiro à rua. Hoje o gosto é diferente. Do terremoto para cá tudo ficou de tremer, que é o que eu oiço dizer a tudo. Vê-se uma rapariga como uma cera
Diz logo um taful: — É uma moça de tremer. Vé-se um traste bom diz logo outro: — É de tremer! E, enfim, presentemente, tudo anda a tremer até de medo, estes amigos que se explicam assim. Eu passei sumamente divertido porque o tal alfaiate não lhe escapava ópera nem feira de fora da terra, nem funçãozinha de arraial e tinha seus lábios de cómico. No meu tempo entrou numa comédia particular e fez o papel de primeira-dama mas era feio como um... e disseram os professores que tinha desempenhado o papel como um homem! Com isso ficou ele tão ufano que quem lhe quisesse apanhar a sua meia canada era falar-lhe na ópera. Também nunca lhe conheci outro vício. Mas é certo que este ia-lhe botando a perder o ofício porque, em estando decorando, se acaso estava cortando, fazia destempero. E, uma vez lhe sucedeu, estando cortando uma casaca séria, cortar um saiote, porque se estava então lembrando de uma comédia onde se precisava deste traste. Agora, por fim, também cortava para senhoras, para o que tinha um jeito notável e cortava com muita graça. E isto deixava-lhe mais que tudo pelos sobejos. Vejam vossas mercês: a ele davam-lhe fazenda para um vestido e ele fazia-lhe um mantéu porque, naquele tempo, era o que estava na moda. Umas roupinhas feitas por ele, fosse de que fazenda fosse, nunca lhe levavam mais que uma sesma, porque a cinturazinha muito curta, com as costas e no seu redondo todo à mostra, que diabo poderiam levar? Quase nada. Neste meu tempo estavam as modas muito apuradas nas senhoras e vestia-se uma senhora com quase nada. Não andavam feitas cabide com seiscentas coisas em cima de si. Em tendo um vestidinho, meias e sapatos, punham-se na rua e os que curavam pediam a Deus que não se acabasse esta moda porque trazia consigo muitas doenças e as constipações ferviam, acabavam em tísica, e volaverunt. Também se não fossem estas doencinhas, o clima não era mau e morreria muito pouca gente e, neste caso, morreríamos de fome. Deixá-las ir. As que morrem de moléstias originadas por estas causas, também não nos fazem cá falta nenhuma. E demais, a moda é preciso que se use a benefício dos artistas. Morram, minhas senhoras, que lhes faça muito bom proveito. Eu, a pena. que tenho, é ainda em cima a sua memória ficar ultrajada, porque os que cá ficam, ficam-lhe chamando... Eu não tenho ânimo de lho dizer. É um nome que quer dizer pouco juízo. Mas o que lhes importa a vossas mercês o que se diz depois da sua morte? O que a mim me admira é não tomarem emenda as que cá ficam. Mas vamos ao alfaiate que para outro lugar lhes guardo a sua Carapuça, minhas meninas, e queira Deus que a usem que pelo servir-lhes fico eu.
O meu alfaiate, depois que se meteu a fazer obra para senhoras, estava muito melhor de dinheiro, mas de saúde ia a menos. Mas cada vez andava por mais funções e por mais divertimentos. Ele já não cortava. Tinha contramestre e já comiam dois do ofício e comiam muito bem. Só de molhaduras podiam eles regar um quintal que tinham nas casas, que de Verão secava-lhe tudo. Os fregueses e freguesas choviam, uns traziam os outros. A fama voava, o dinheiro corria para casa ainda que também correndo ia para fora. Mas o mestre tinha-lhe dado o peco. Cada vez mais engoiado, não sei que demo de doença tinha que estava cheio de dores e tinha uma botica em casa. Era raro o dia que não se purgava e a doençazinha sempre o mesmo. Parecia uma moléstia de teima. Ele, de tudo o que mais o afligia, era não poder entrar numa comédia em que fazia de primeiro-galã. Já sabia o papel de cor como um papagaio e tinha quebrado três espelhos a accionar defronte deles, porque o papel que ele fazia tirava, às vezes, a espada e ele o fez com tanta ânsia, ensaiando-se, que o quebrou. Até que ultimamente tinha preso um cordel no pé direito para não poder chegar ao espelho e assim acabou de aprender o seu papel, que o fazia, na verdade, como gente. Com o gosto com que estava nisto, entrou a pedir ao Médico que o pusesse no estado de poder concluir esta acção. Ainda que depois ficasse pior, não se lhe dava. Por lhe fazerem o gosto, como o papel que tinha que fazer era muito agitado, deram-lhe um pouco de azougue para melhor desempenhá-lo. Entrou então a babar-se de gosto por ver que ainda entrava na comédia. Mas pouco lhe durou o seu contentamento. De hora para hora estava pior. Mandou chamar os seus amigos, despediu-se deles e declarou que era sua vontade que fulano (um dos seus sócios) entrasse em seu lugar na comédia de Demofoonte. E foi então que eu soube qual era a peça que estava para se representar. O Médico ainda o animou, dizendo-lhe que podia ainda viver pois que não se tinha esgotado a medicina. Mas o homem achava-se muito abatido para o animarem esperanças.
Assim fomos vivendo e eu à espera se aparecia alguma cabeça de gosto para onde fosse. Vinham concorrendo muitos amigos mas que eu todos muito bem conhecia e nenhum me fazia conta. Pois que de todos pouco mais ou menos lhes sabia a vida e eu, o que queria, era um onde encontrasse alguma novidade com que me instruísse. Pois como o meu fim sempre foi, depois que acabassem as minhas viagens, escrever a minha vida, incluindo nela a dos outros em cujas cabeças eu tivesse andado. Por isso não queria cabeça senão que me servisse a este fim.
O alfaiate ia-se aproximando à morte. Os amigos iam-se indo. O Médico declarou que era esta a última visita que lhe fazia. Eu, vendo as coisas nestes apertos, resolvi-me a passar para a cabeça do Médico, para onde fui, dizendo comigo: — Se ele for bom Médico e sábio, nada direi. Ficarei ali em silêncio, até passar para outra cabeça. Se ele for mau e charlatão, contar-lhe-ei a vida para se livrarem dele. Também Gil Brás falou do seu Doutor Sangrado e ninguém lhe disse nada.
Nestes termos, assim acaba a Carapuça e começarei a seguinte, do Médico, que é a
Que infelicidade! O Médico era outro Doutor Sangrado, só com a diferença da aplicação dos remédios. Bem me custa dizer mal, mas paciência, não há outro remédio. O homem merece-o. A verdade, manda Deus que se diga. O geral está primeiro que o particular e o meu próximo clama por este beneficio. Apareça pois o indivíduo. Fosse ele melhor, se não queria que lhe dissessem as faltas. Estudasse. Não se desse à mandriice. Fizesse por distinguir-se como aqueles que queimaram as pestanas, ainda que muitos não ficaram sabendo nada porque as queimaram caindo-lhe sobre a luz com sono. Não cuidem vossas mercês que só se queimam lendo. Eu tenho visto arder coisas que nunca leram. Outro dia queimei eu a cabeça de um dedo.
Mas a tal cabeça não tem juízo nenhum e deixemo-nos de jogos de palavras que sou capaz de ficar nisto toda a vida. Vamos à Carapuça. Juro a vossas mercês que é das que mais me custa a fazer, que sempre é dizer mal de um homem que traz a vida das gentes nas mãos e que por dá cá aquela palha se pode vingar. Basta que carregue a mão à dose para pôr uma pessoa com os olhos fechados por uma eternidade. Ainda que este, de quem eu vou falar, não era vingativo. Material era ele, essa é a verdade, mas tinha muito bom coração. O que lhe não custou a ele familiarizar-se com a morte! Quando por erro punha alguém no outro mundo, chorava muito particularmente aquela desgraça e continuava no mesmo porque não tinha outro remédio. É muito certo que para uns viverem precisa-se que outros morram. Também era muito infeliz, porque fazia-lhe a diligência e mesmo não era mau de todo. No que ele não tinha ainda conhecimento perfeito era de febres. Não sabia lá diferençar se era maligna, se era retenção de urinas. Sabia que ter febre era estar doente e isto não era tão pouco. Ao menos, era muito acautelado, e dizia ele que neste artigo antes de mais que de menos. Ouviu dizer uma ocasião a um seu companheiro, que passava por um dos melhores, que era bom esperar vinte e quatro horas a ver o que a febre determinava e ele, depois que ouviu isto, sempre esperou três dias. Desgraçadamente, alguns doentes se lhe foram embora no fim deles, mas não era porque ele não esperasse. Apesar disso, posso assegurar que este era um dos melhores remédios que ele tinha, porque o doente a quem ele receitava, podia o coveiro fazer conta com a cova, e daqueles a quem ele esperava a determinação da febre, melhoraram muitos. Não usava de água quente, como o Doutor Sangrado, mas a todos mandou beber vinho e todos gostavam dele, e tinha que fazer porque os seus remédios não eram maus de levar e eram-lhe muito mais obrigados os taberneiros. Com os seus doentes não usava de sangria. Contentava-se em os sangrar na bolsa e dizia, muito contente: — É mais fácil criar dinheiro que sangue. Tirar sangue é tirar a vida e tirar o dinheiro, é tirar os vícios, causa original de muitas doenças.
Nunca estudou por letra redonda e até havia quem dissesse que ele a não entendia. Mas era mentira porque eu o ouvi muitas vezes ler a Arte de Amar, de Ovídio, e Orlando Furioso. E sabia de cor o Ax,bu. Não, mentiras não consinto. O que for mau hei-de dizê-lo, mas também levantar testemunhos não hei-de consentir, nem ele os precisa que temos muito por onde escolher. No que ele enganava muito era na prosa. Com a ponta da língua ninguém curava melhor do que ele. Era belo para cão. Vê-lo entrar por uma casa dentro, era ver um Esculápio vestido de saúde. Tinha feito um compasso com os beiços que, de palavra a palavra, media o mesmo espaço. Vê-lo desembrulhar uma doença desde o seu primeiro sintoma, com palavras próprias e movimentos de decidir sem ter para onde apelar, era uma consolação. Parecia mesmo a doença em pessoa que se estava acusando. Depois, passava a expor os perigos e logo a receitar. Parava no meio da receita e tornava a observar o doente, perguntando-lhe: — Há-de sentir a boca seca? Dói-lhe alguma coisa a barriga das pernas? Sente um moimento no corpo? A água não lhe sabe bem? Amarga-lhe a boca? &c. O doente respondia que sim, ao que ele tornava:
— Não precisa que mo diga que, pelo chumbado da cara, vejo o estado do corpo. Aposto que até lhe tem aborrecido o tabaco, não é assim?
— Sim senhor.
— Ora pois console-se que, abaixo de Deus, tem quem o possa remediar. Esta qualidade de moléstias é o meu forte. Louve a Deus que acertou. Não é para me gabar, mas para estas doencinhas tenho dedo. Poucos me escapam que os não cure.
Este era o modo de falar do meu doutor se via só mulheres em casa. Mas se havia homem de olho vivo, tomava outro tom e vinha a ser:
— Guarde Deus a vossa mercê! Há Médico assistente?
Sim ou não lhe respondiam. Se havia, logo dizia: — Eu nada digo sem o assistente. Se o não havia: — Não posso tomar conta do doente. Fica-me muito longe. Já me custa o encher as minhas obrigações e é-me impossível acudir a tudo.
— Senhor Doutor, acudia o mais interessado na saúde do doente, (parecendo-lhe que tinha diante quem era capaz de fazer milagres), pode vossa mercê alugar sege todas as vezes que quiser vir. Pagar-se-ão as visitas à boca do cofre. E se o doente melhorar, dar-lhe-á tudo o que quiser e nós tivermos.
Então mudava de tom o meu Galeno.
— Farei os esforços que puder. Eu desejo fazer bem a todo o mundo. Não é o dinheiro que me eleva, apesar de que sem ele se não pode passar e um homem, que só pensa na saúde dos outros, é preciso os outros cuidem na sua subsistência, pois que a sua cabeça só pode e deve estar sobre os livros. Vamos ver o doente.
Chegava à cama, fazia uma cortesia a quem lhe chegava a cadeira perguntava ao doente: — Como está? Vejam para que era esta pergunta? Como se ele estivesse bom havia de mandá-lo chamar. Que asno era o tal Doutor! O doente explicava-se do modo que podia. E ele trava em ar de Mylord a perguntar e a mandar: — Bote a língua de fora! Ponha-se de costas! Respire agora! Dói-lhe alguma coisa? Venha pulso! A natureza diariamente paga a sua pensão? Sente sede? Não tece nada para comer? As noites, passa-as em vigília? Sente pesadelos? A cabeça, dói-lhe toda ou metade? De que lado dorme melhor, esquerdo ou do direito? Tosse quando se vira de algum lado? Os escarros, são corpulentos ou de pequena estatura? Tem reparado se trazem algum raio de sangue? Dê-me outra vez o seu pulso! Sente sempre o mesmo calor, ou para a tarde lhe pesa mais a febre? Diga-me cá! Que cor têm as águas? Assim a modo de chá pouco forte? Ora diga-me mais: a respeito destas doencinhas pertencentes a Vénus tem havido muitas? Há-de ter havido que eu bem o sei! Que idade tem? Teve já alguma maligna? Dê cá outra vez o pulso!
Vejam como não havia a febre estar grande só com o trabalho que o pobre doente tinha tido a responder a tanta coisa. Depois de tudo isto, saía para fora, pedia papel e dizia por entre os dentes: — Está mais adiantado do que pensam! Isto já para se salvar no caso que o doente morresse, porque era esse o costume de quase todos a quem ele tinha a infelicidade de curar. Tinha, então, chavões certos para as doenças. V. g. para Malignas mandava dar limonadas, cataplasmas nas mãos, vinagre nas fontes, nada de dieta porque ele tinha para si que a fome é que matava. Nada de ar novo na casa, porque, dizia ele e dizia com muita razão: — O ar novo livra muitas vezes o doente e salva a família de se lhe pegar a doença. O que não tem o ar velho, que muitas vexes uma maligna agarra a família toda e leva a sua roda de sete ou oito numa semana e, no fim, trasladam-se os corpos para a Misericórdia e os bens para casa do Médico e ninguém pode estranhar. Que procura cada um que lhe renda o ofício.
Para sezões, não usava de Quina nem de vomitórios. Se era tempo de fruta, recomendava que comesse muita e que fosse verde, que as sezões eram como a nódoa da amora que se tira com o sumo da mesma e que a experiência lhe tinha mostrado que as sezões eram como as crianças: quanto mais mimos lhes faziam, mais teimosas eram. Para tísicas, tinha remédio especial. Nada de fora da terra! Tomar fumo de carvão de pedra, andar muito, e ar de Inglaterra que, segundo ele, era o melhor para esta moléstia. Para moléstias venéreas, cabelo do mesmo cão!, que era com que ele se tinha achado bom. Icterícia amarela, curava-a ele num minuto com a despesa de dois vinténs de carmim que mandava pôr na cara aos doentes e adeus amarelidão! Banhos de mar, isso então era a torto e a direito. Contava tantas virtudes da água salgada que um cismático que o ouviu nunca bebeu de outra e morreu inchado dentro de dois meses. Nunca receitou vomitório a ninguém. Dizia ele: — Tomara-se-lhe eu meter alguma coisa no estômago, quanto mais tirar-lho! Nada, eu não quero fazer experiências nos meus doentes, quero levá-los por caminho direito.
Quando algum doente, por casualidade, lhe escapou das unhas, o que lhe recomendava era que bebesse muito vinho, que não havia nenhum preservativo que chegasse a este e que era raro o bêbado que morria de maligna ou de moléstia contagiosa. Assim mesmo, ganhava rios de dinheiro. Tinha o seu crédito tão bem estabelecido que em um homem casado se querendo desfazer de sua mulher, ou esta de seu marido, ou algum herdeiro que já lhe aborrecia o pai ou tinha tomado ódio a algum tio que lhe deixava chelpa, não chamava outro e o negócio era concluído. Também ninguém perguntava ao Médico porque o tinha matado. A sua certidão era sempre válida, nem presentemente há coisa que tenha mais fé. O caso está em ele dizê-lo e assinar-se. Assim ia vivendo o meu Doutor Cortiça, que é assim que ele se apelidava. Torno a dizer, assim ia vivendo e assim ia matando e o mais é que do que matava é do que vivia. E que consciência tão ajustada que tinha este amigo! Era nada escrupuloso. Tudo remetia à consciência de Deus e nada deixava para a sua justiça. Se o doente melhorava, era obra sua. Se morria, era vontade do Senhor. Destes assim há poucos. Isto era um Médico que tinha nascido feito. Não precisava de estudar. Não era como muitos que para matar um enfermo gastaram primeiro rios de dinheiro ao pai. Cá este não, matava-os sem ter estudado para isso. Tinha mesmo jeito para a coisa. Em faltando a natureza, de pouco ou nada serve a arte. Este tinha um privilégio exclusivo de dar cabo da espécie humana. Se não houvesse destes, haveria amigos que seriam capazes de durar toda a vida. Parecem petrificados. Mas em caindo nas mãos de um destes, então não têm que apelar, é a morte em pessoa que os agarra. Há-de ir à cova infalivelmente, corra o negócio por onde correr. No tempo em que eu estive na cabeça, andava ele ensinando um rapaz a Medicina e então é que eu vim no conhecimento da qualidade de Medicina que ele sabia. Uma das lições que ele lhe dava, era dizer-lhe: — Olha, filho, não se pode ser um perfeito sapateiro por mais habilidade que haja, sem ter primeiro feito muito sapato. O Médico segue o mesmo trilho. Para saber curar uma maligna é preciso primeiro matar muitas dúzias deles e o mesmo nas mais moléstias. É preciso viajar para conhecer o mundo. E para conhecer o interior do homem, é preciso primeiro ter morto muito homem. O Médico é como o carrasco. Em ele dizendo consigo: — Perdoas-me a Morte? — está absolvido. Fez o seu ofício. Como Deus não precisa assinar a sentença, basta que nós digamos que foi ele que o determinou.
Uma das regras que também deves tomar, dizia ele ao discípulo, é dizer poucas palavras, menear mais a cabeça e os olhos do que a língua. As falas do Médico é como o bom carmim, valem o peso do ouro. Outra coisa: nada de rir, sempre um ar pensativo, estar sempre meditante e distraído. Outra rotina certa: se o Pai é rico e a filha é a doente, mandá-la tomar banhos, andar a cavalo em burrinho com a albardinha verde que as encarnadas não provam tão bem. Se o Pai for rico e tiver filho, logo na cara se lhe vê se ele tem vontade que o Pai lhe morra. Se a tem, albarda-se o burro à vontade do seu dono: dar com ele na cova e daqui se tira a grande conveniência. Se o Pai melhorasse, daria talvez quatro moedas, se as desse. Morrendo, dá o filho dez e mais e faz-se bem a muita gente: ao cirieiro, ao coche, ao que cuida no enterro, aos pobres &c., e fazer bem à pobreza não há coisa que lhe chegue. Outra coisa mais: ter sempre dois ou três boticários amigos e mandar para lá todas as receitas porque assim, quando um homem põe na receita alguma asneira, — que nunca faltam —, cala-se o boticário, o que seria muito grande quebra para o estabelecimento de um Médico ir parar às mãos de um que lhe pusesse em pratos limpos as suas materialidades. Ter também sempre na lembrança: — Que quando Deus quer, água fria é mezinha. Ter muito cuidado em fazer diário dos seus doentes, isto é, dos que pagam, e de quanto dão, para se for outra vez chamado para ali, ver se deve lá ir ou não. Porque o ser Médico não é ser criado de ninguém. Para se matar um doente com pressa, basta que se lhe mande misturar em dois grãos de tártaro um vintém de pós de Joanes, porque bá desculpa que dar, no caso que ralhem da morte, que é dizer que o doente tinha lombrigas e que assim como os pós de Joanes matam os bichos, sem matar quem os tem, muito melhor matariam as lombrigas e que da má disposição dos humores do doente não tem o Médico culpa. Uma ajuda de água-forte também faz o mesmo efeito, que assim como há ajudas que ajudam a viver, porque não há-de haver ajudas que ajudem a matar? É preciso saber curar com discrição. Conforme o doente, assim é o remédio e não conforme a doença. Médico que anda a pé também não cura ninguém. Que ande sem sege. É preciso trazer os pés no ar, seja como for, ainda que se ande a cavalo num galego, que é gente que nunca lhe importa a qualidade da carga. Regulam o preço pelo peso, seja carga viva ou morta. Também será muito bom usar de anel, óculo e bengala. Se for chamado a junta, estar sempre pelo voto do que tem mais fama. Contradizer o mais novo, se é pobre. Quanto menos gente houver no ofício, mais há que fazer. Eu tenho, dizia ele, trinta e tantos anos de Medicina. Ainda não fui a uma junta que tivesse dúvidas, mas conheço muitas vezes que a concordância vai matar o doente. Mas antes ele morra que o meu crédito perigue. Há muita gente para viver e créditos custam muito a pilhar. E, demais, não sejam os doentes tolos, saibam-se curar. Se eles toda a vida a conhecerem-se, ainda não sabem a sua natureza, como há-de um pobre Médico, que não os pariu, nem os viu nascer, saber-lhes lá a sua constituição? O ser Médico não é ser adivinhão, é indagar as mazelas de um corpo alheio o qual dono do corpo é tão tolo que as não conhece. E eu sempre ouvi dizer: quem é tolo pede a Deus que o mate.
Estas e outras maneiras eram a forma como o meu Doutor Cortiça ia instruindo o seu educando.
Uma noite chamaram-no com muita pressa para ir acudir a um Ministro que lhe tinha dado uma apoplexia. Mandou-o logo despir, meter na cama e que lhe botassem muita roupa em cima para ver se suava. Dentro de duas horas fez viagem e, dizendo-se-lhe depois que se tinha enganado na cura, respondeu muito fresco: — Quantas vezes se enganaria ele nas sentenças que deu mas ninguém lhe perguntou por isso? Todos erram no seu ofício. Eu cuidei que era uma constipação e ele era um estupor. Então nunca se viu isso? Se foi mau para ele, seria bom para algum pretendente que lhe queria o lugar. Vamos adiante, tudo tem quebra. Também eu hei-de morrer. A algum Médico há-de caber a honra de me matar, que eu não hei-de cá ficar para indez.
Assim fui passando na cabeça deste honrado sujeito e costumei-me tanto com a morte que a via sem horror e dizia comigo: — Isto de ser valente também se aprende ou, ao menos, costuma-se a gente, porque eu, algum dia, tinha medo de tudo e agora vejo morrer gente às carradas e não me assusta isso. Eu bem sei que faz diferença ver morrer os outros ou morrer eu. Mas o hábito não deixa de não endurecer o coração.
E entrei-me a desgostar e a ver se achava ocasião de mudar de cabeça.
Assim me demorei perto de três meses e o meu Doutor não tinha mãos a medir para mandar gente para o outro mundo. Mas isto já vinha de trás, porque o Pai tinha o mesmo ofício, mas não era Médico; era coveiro. E já a Mãe não era assim. O seu ofício era de pôr gente no mundo, porque era uma boa parteira.
Uma ocasião, estando eu bem descuidado, batem à porta. Chegou a criada a saber quem era e veio dar parte que era um homem de capote que procurava o senhor Doutor. Cuidei que matava a criada. — Bota fora esse bêbado! Eu não conheço gente de capote! Já te disse uma e muitas vezes que não quero que se me tragam semelhantes recados.
A criada virou de beiço caído, toda envergonhada, dizer ao homem que seu amo não lhe podia falar naquela ocasião. Mas o homem, que tinha ouvido o recado, retrucou-lhe e disse-lhe: — Vá, vá dizer a seu amo que é aquele sujeito que lhe traz o dinheiro que ele lhe mandou pedir emprestado. Que assim é, que traz capote mas também traz dinheiro.
A criada foi mais animosa e o amo veio buscar o de capote com mil satisfações. Eu estava morrendo por saber que ofício tinha o tal amigo de capote, que tinha dinheiro para emprestar até que, pelo meio da conversa, vim no conhecimento que era um porqueiro que negociava com todo o asseio em porcos e que tinha belos tostões. Então, sem excitar mais razões, fui saindo do meu Doutor Cortiça e passando para o meu porqueiro. E, à despedida, nem olhei para ele. Posso assegurar sem mentira que saí com ódio a esta cabeça, apesar de que foi uma daquelas em que mais tempo vivi. Na do porqueiro também me não demorei muito e do que nele passei vou expor na
Era um homem já de setenta anos, cabelo cortado, sempre com a sua camisa de pano de linho, uma casaca com uns botões tamanhos que não deixavam ver a cor do pano, sua véstia assertoada, seu chapéu grosso com a armação com que tinha saído da primeira mão; uma bengala que, pelo seu peso, bastava deixá-la cair de leve para quebrar uma cabeça que leve fosse; dois rolos de tabaco nas ventas e alguma coisa rameloso. Mas tinha muita chelpa, coisa que aformoseia muito. No seu ofício sabia como aqueles que sabem e, em botando o olho a um porco e dizendo o que pesava, não lhe errava um arrátel. Até dizia quantos chouriços havia de fazer o sangue. A casa era muito farta e ele era como lá dizem, pé-de-boi. Não dava funções em casa mas nunca lhe vi ninguém à porta por dívida. O jantar era sopa e vaca, mas, com efeito, era vaca e sopa à farta. Ficava-se com a barriga cheia e cheia de sólido. Não tomava chá à noite mas rezava nas suas contas, ceava cedo e ia-se deitar na cama com um sossego que era de invejar. Pela manhã, mal luzia o buraco, punha-se a pé, ia para o seu montado, ordenava o que haviam de fazer os seus criados e vinha para casa comer uma tigela de sopas com um naco de presunto tal que, para uma destas casas que toma pela manhã o seu café com leite, era presunto que lhe chegava para temperar a panela uma semana. Eu mesmo, quando o via estar comendo, lhe estava lambendo os beiços. Bebia como um homem mas nada de toldar-se. E era capaz de servir um amigo se o ocupava e, se o via necessitado, era ele o primeiro que se ia oferecer e então não eram ofertazinhas destas da moda, que vêm a ser: — Faça conta comigo. Se eu lhe prestar para alguma coisa, não tem mais que ocupar-me, &c. E se no mesmo instante um pobre homem, que ouve isto, ocupa um amigo destes, no mesmo instante respondem: — Sinto muito não me ser possível servi-lo nesta ocasião, mas estou baldo. Em outra qualquer, conte comigo.
Não senhor. Cá o meu porqueiro, antes de abrir a bolsa para o oferecimento, já o dinheiro estava em cima duma banca. E se não lho aceitavam, tomava a coisa em trambolho de mal. Também favorecia os pobres. Era rústico mas tinha um bom coração. Coitado! Veio-lhe uma doençazinha e doençazinha foi ela que o pôs às portas da morte. Ele era casado, tinha a mulher viva e um filho, único herdeiro do muito cabedal que tinha. O pobre homem, vendo-se naquele estado, e que não escapava às garras de quem não lhe escapa nada, chamou a mulher e o filho. A este, deitou-lhe a bênção e à mulher fez-lhe uma fala cristã e de quem sempre a tinha estimado muito. E tratou de morrer.
A mulher não pôde conter as lágrimas, abraçou-se com o marido. E eu, que vi isto em estado de o ver defunto, não me cheirou bem e fui passando para a cabeça da mulher. E, com efeito, não me enganei porque ele não durou três dias. E agora verão, na sua santa companheira, a
A mulher tomou outro norte muito diferente do marido, vendo-se com muito dinheiro e ainda não muito velha. Ali, no mesmo sítio, havia um rapaz que tinha muito menos idade do que ela mas também tinha muito menos dinheiro. A coisa estava balanceada: o que um tinha de mais, tinha o outro de menos. Propuseram-se, pois, a casar. Antes de o fazerem, porém, começaram a gastar o dinheiro. Ela pôs logo Dom e deu todas as saias e roupinhas de pano e baeta que tinha. Vestiu-se de branco. Deu-lhe uma constipação e andou dois meses em mãos de Cirurgião. E, daqui podem vossas mercês supor que tal ela ficaria, que foi doente para toda a vida. O dinheiro também adoeceu e estava quase héctico porque lhe tinham dado grandes sangrias. A doença demorou o casamento e o noivo foi recuando, de forma que ultimamente disse-lhe um reverendo não quero quando ela lhe falou em matrimónio. A mulher era mulher de porte. Tinha sentado uma vez que devia casar. Não se podia desdizer e procurou, pois, outro sujeito. Mas como ela tinha menos dinheiro, custou-lhe bastante a achar. Mas sempre há um testo para uma testa. Deu-se volta aos negalhos e ainda apareceram algumas linhas para se dar ordem ao casamento. Concluiu-se e houve grande banquete, com muito de comer, à excepção de carne de porco que não veio à mesa só porque não viesse renovar a memória de que tinha havido porqueiro em casa.
Dentro de um ano deu-se cabo do que havia. E tanto que não houve de comer, o marido não pôde tragar mais a mulher. Despediu-se dela em Francês e como ela não sabia esta língua, não soube para onde ele tinha ido. Algumas diligências fez por ele e soube, no fim de dois meses, que andava guardando porcos noutro lugar. Ela tinha tomado tanta aversão a esta qualidade de animais que nunca mais quis ouvir falar neles.
Pouco tempo durou mais. Tudo lhe faltou ao mesmo tempo: homem, dinheiro e saúde. Dentro de quinze dias se pôs que parecia uma quaresma e eu não queria também emagrecer. Antes que ela morresse, passei para a cabeça do filho e é a
O tal rapaz, se o pai fosse vivo, metia-o no montado com os porcos, porque era um destes brutos em toda a sua perfeição. Até era doido por bolotas. Mas não tinha jeito para trepar. Era um atarantado. Também com muita brevidade foi gastando o que tinha, de sorte que logo que a mãe lhe morreu, ele também se pôs a morrer, sem ser de saudades, mas de fome. Tratou de casar para ver se achava quem o sustentasse, porque muitos homens de bem fazem o mesmo. E, com efeito, apareceu uma rapariga vizinha a quem o pai dava de dote dois porcos e seis porcas, fora a filha que era bastante enxovalhada. Mas o rapaz não quis e respondeu que tinha outros fumos e que não queria seguir a vida de seu pai.
Assim foi vivendo até que se embrulhou com outra rapariga muito aninhada que, sendo eles dois, no fim de nove meses apareceram três. Obrigaram-no para casar. Ele arrumou os pés à parede, que assim era, que ele não tinha nada de seu, mas que também não devia nada a ninguém. A rapariga dizia que sim, que devia e mais devia. Pôs-se a coisa em prova. Uns diziam que sim, outros que não. No fim de contas, foi sentenciado a casar ou a ir degredado para Lisboa. E não se admirem vossas mercês desta qualidade de degredo porque como esta história sucedeu na Índia, assim como de Lisboa mandam os degredados para a Índia, assim os da Índia mandam-nos para Lisboa.
Não houve outro remédio. Casou. Um sujeito que ali havia e que muitos diziam que também era culpado na multiplicação, pôs a casa e com muito asseio, que até o leito tinha os pés de ferro por causa dos percevejos. Mas o tal fez-se percevejo porque se lhe meteu em casa e, por fim, pôs o noivo na rua. Ele também não mostrou muita pena com isso porque não era muito apaixonado da mulher. Isto é, da dele. Por encurtar razões, acabou guardando carneiros só por levar a sua avante de não guardar porcos. Eu não gostava nada de tal cabeça porque ali não havia uma só coisa que fosse útil. Pus-me à pesca a ver se aparecia alguma coisa com jeito, até que chegou a ocasião de eu ir para a de um caseiro de uma quinta, que ficava ali perto, e que faz a
Depois da cabeça do tendeiro é esta uma das melhores em que tenho andado. Era muito mais rico do que o dono da quinta. Frutinha e hortaliça boa que ela desse, não via outra barriga senão a sua e a da sua família. E dizia ele que não tinha de que se confessar, que para isso a trabalhava e que todos, neste mundo, quando nasceram, lhes coube a sua porção de terra; e que ela não pertencia a quem por ela tinha dado ouro, mas sim àquele que com o seu suor a regava. E que muito favor fazia ele em dar alguma coisa ao dono. E ninguém o tirava deste cálculo. Tudo repartia irmãmente. De uma moeda que fizesse em nabos, dava metade ao amo e não queria, no fim do mês, mais que o seu ordenado e algum fatinho velho. Quando muito, umas botas. E, já se sabe, pelos tempos próprios, a consoada, o pão-por-Deus e as suas amêndoas. No vinho, então é que ele era mais exacto porque todo o dinheiro que fazia nele dava-o ao amo. Só tirava para si aquele que bebia e alguma gota para algum amigo. No ano em que lhe estive na cabeça, fez vinte e seis pipas. Deu uma ao dízimo, outra que veio para casa do dono e ainda vendeu pipa e meia. O resto bebeu-se. Mas não se aproveitou nem de cinco réis e deu neste ano muito pouco aos amigos. Enganava-os com água-pé.
Havia duas juntas de bois em casa, nos quais ele tinha tanto cuidado e desvelo que, para não estarem sobrepostos, trazia umas terras de renda. E eram as primeiras que se lavravam para, ao depois, se lavrarem as do dono com mais descanso. E a semente era toda da casa. A colheita é que era à parte porque o celeiro da quinta era pequeno. Para que o amo comesse sempre galinhas tenras, fazia ele uma coisa muito galante. Tinha as suas galinhas à parte e quando depois de chocas lhe tiravam pintos, tudo que era franguinhas trocava ele com as galinhas velhas do patrão de forma que as suas galinhas nunca acabavam de criar os pintos.
Todas as semanas dava na conta ao amo um homem de mais no trabalho. Dizia ele que por cautela, para que o amo não dissesse que todos achavam quem lhe trabalhasse nas suas quintas, só ele não, pagando tão bem. Quando entrou para caseiro, pediu quatro mil réis emprestados para comprar umas botas. No fim de três meses já tinha quatro pares e um burro para andar a cavalo, que lhe chamavam o chibante e tinha-lhe custado sete moedas. Se a quinta fosse sua, certamente que pouco mais lhe renderia. Eu, a ser o dono, quereria trocar os ganhos. Isso é verdade, eu bem vejo que tudo devia ao seu trabalho porque se ele a não amanhasse tão bem, também se não amanharia da forma como se amanhava. E apesar de tudo isto, o dono morria por ele porque dizia, nos seus cantares, que depois que tinha aquele moço é que a quinta lhe rendia mais. Vejam que tais seriam os outros!
Naquele sítio faziam muito mais caso do caseiro do que do dono. Mas não é só nesta qualidade de criados que se vê isto. Quantos e quantos podem e valem mais do que os amos! Um conheci eu que, por sinal, era casado com uma rapariga bem galante. Pois quem quisesse conseguir alguma coisa do amo, havia primeiro de dirigir-se ao criado. E se o intentava de outra forma, perdia o tempo. Mas que lhaneza lhe mostrava o amo! Ia muitas vezes e muitas noites passar com ele, ao seu quarto, para jogarem e tomarem chá. Não havia diferença nenhuma entre um e outro. E se o criado alguma vez ia fora da terra a alguma cobrança, não lhe faltava nada em sua casa, que o amo tinha tanto cuidado nela como na sua, ou mais, se se pode dizer.
Este bom caseiro morreu de um coice que lhe deu o mesmo seu burro. E eu já andava alguma coisa zangado por ver que não ia a cabeça que não adoecesse e algumas morriam.
Confesso a verdade, que tive algumas tentações de passar para a cabeça do burro que lhe tinha dado o coice. O que me fez mudar de projecto foi o lembrar-me que a pele do burro devia ser tão dura que, primeiro que eu lhe chupasse alguma coisa, quebraria todos os dentes. Resolvi-me então a passar para a cabeça de um contratador de vinhos que morava ali perto e que tinha vindo fazer uma visita ao defunto e é a
Nesta casa tudo cheirava a vinho e não havia muita falta de dinheiro. Ouvi dizer muitas vezes ao dono da casa que em cada pipa ganhava os seus doze mil réis livres. E então este amigo sabia dos adubos para fazer bom vinho do mau, o que era um pasmo. É certo que lhe botava algumas michurufadas que não eram muito boas para a saúde, mas a isso respondia ele, quando o metiam em escrúpulos: — E quem é que faz caso da saúde? Quantos há por aí que a andam perdendo por todos os modos! Então vá mais este que, ao menos, é com utilidade minha e do próximo que eu, ao menos, dou as minhas esmolas à porta. Tinha alguns oito armazéns por sua conta e todos vendiam muito bem. Ele só o que recomendava aos seus caixeiros é que medissem mal para o que também dava a sua razão, e era: como havia muito bêbado, quanto mais fosse mal medido mais se demorava o toldarem-se. E, ao menos, já que ele não podia impedir que se embebedassem, que fosse o mais tarde possível. Porque sucedia muitas vezes que uma destas vasilhas viventes, que podia alojar duas canadas sem lhe fazer mal, muitas vezes mais um quartilho o punha a ver jurar testemunhas. E logo que o caixeiro, em duas canadas, lhe tivesse furtado um quartilho, ei-lo ali estava hábil para beber duas canadas e um quartilho sem lhe fazer dano.
Era tão curioso de garrafas que tinha a pachorra de andar escolhendo grosas e grosas das mais pequenas, daquelas que não levassem bem meia canada para engarrafar e pôr à venda.
Sabia fazer da aguardente fraca, forte, botando-lhe pólvora. Mas como aqui não havia lume, não havia perigo para quem a bebia. Então em petiscos, poucos lhe chegavam. Para pôr de conserva hortaliças e dinheiro, tinha grandes receitas. A primeira tinha-lhe ensinado um tio frade e a segunda um somitigo seu vizinho que tinha tido a habilidade, desde a meninice, que peça de seis mil e quatrocentos que lhe tivesse caído na unha, ninguém mais a tinha visto, mesmo ele nunca mais lhe punha a vista em cima. Porque se lhe tinha metido em cabeça que assim como a vista se gasta por ver as coisas, as coisas se podiam gastar por serem muito vistas.
Também se tinha nutrido com vinagres e o maganão tinha cara e génio bem avinagrado. Sabia composições que, se as imprimisse, teria ganhado muito dinheiro. Lá o fazer da água vinagre, isso para ele era receita de cacaracá. Ele já o fazia de coisa nenhuma, tão apurado estava nesta ciência. Também outra coisa: de sua casa não saía nada sem dinheiro e dizia que tinha escrúpulo nisso, porque como não era pão, quem não tivesse com que o comprar, podia muito bem passar sem ele. Que desalmado homem! Ora vejam vossas mercês quem é que pode passar sem vinho no tempo de hoje!
Só duas vezes na semana mexia na cabeça e era quando o barbeiro lhe fazia a barba, que apenas lhe passava o pente pelos cabelos. Porque pentear-se, isso passava muitas vezes um mês que não o fazia. Ele, a maior parte do tempo, estava com a camoeca, quero dizer, bêbado, para falar mais claro. Ainda que entre nós, os piolhos, esta palavra camoeca está muito em uso.
Também é preciso que diga a vossas mercês, para o ficarem sabendo, que quando alguma cabeça onde nós estamos, a toma, nós também não ficamos muito bons com aqueles fumos e eu me vi, muitas vezes, sem saber parte de mim. O que me valia era apenas me sentia assim, ir-me esconder no atado do cabelo e depois que tornava a mim é que saía. E andava mais de oito dias com olheiras e tão moído que me não podia ter em pé.
Cheguei a fazer tenção de me demorar toda a minha vida nesta cabeça porque ali não me faltava nada para encher os vícios piolhais. E passava uma vida tão mole que, se não fosse este desejo natural que eu tenho de escrever, ali morreria. Mas esta lembrança tornou a despertar a minha languidez. Ali não havia mais que ver nem que dizer. Resolvi-me a sair. E foi o caso: o meu patrão tinha um companheiro de negócio mas ocupava-se em diferentes ramos. Arrendava comendas, casais, quintas &c. e o outro ficava por fiador e depois dividiam os ganhos. Foi para esta que, uma noite, estando eles conversando sobre o projecto de uma negociação deste género, lhe fui à casa a fazer-lhe a
Depois de caseiro de quinta também não é mau ser arrendatário. Principalmente destes amigos que querem gastar mais do que têm e que não lhes importa irem-se empenhando e atrasando no rendimento contanto que venha vindo dinheiro. Porque, quase sempre, vai a coisa pela terça parte do valor, isto é, se é um ano adiantado. Porque se se quer três ou quatro, então nem a sexta parte. E se são seis anos, então não se pilha nada ou quase nada. Este sabia negociar como um homem. O primeiro, até segundo ano, era franco e não lhe metia a unha e tudo eram oferecimentos. Porém, tanto que os via com o pescoço de dentro, ninguém lhe punha o pé no cachaço com mais pressa nem com melhor vontade.
A respeito de propinas, se ele ficava obrigado a dar trinta queijos ao dono, nunca as arrendava da sua mão sem lhes impor noventa. De forma que ele de tudo havia de ter mais que o senhorio. Esta era a sua balda e a sua teima. E o jeito que ele tinha também para usuras! Era um lince! Negócios destes não lhe escapavam! Mas também mamou ópios de guarda abaixo que é o que sucede a estes que querem ganhar muito.
Arrendou uma vez uma quinta a um morgadete, destes que gastam o dinheiro assim a modo de quem queima estopa pelo entrudo, que foi um gosto ver o ajuste. Sabem o que me pareceu? Assim o modo de um que o encontram os ladrões e que o vão despindo pouco a pouco. Ora lhe tiram a casaca, ora os calções, depois a camisa e acabam com a pancada da paz dando-lhe uma facada. Da mesma forma foi o miserável. Começou dizendo que precisava três mil cruzados. O usurário, apenas ouviu isto, pôs as mãos na cabeça, respondendo: — E quem me há-de a mim dar tanto dinheiro? Tudo está muito alcançado. O outro dia precisei eu de trinta moedas que pedi sobre uma pouca de prata. Dei cinquenta e dois por cento, quatro moedas de luvas a quem descobriu o dinheiro e cinco moedas de mimo ao filho do emprestante, que é o costume da casa. Tudo está pela hora da morte mas, enfim, tal será a conveniência que vossa Senhoria proponha, que a gente faça um esforço e ocupe os amigos, ou se valha de alguma coisa que tenha. — Pois, senhor, respondia o morgado, faça vossemecê lá os ajustes que quiser contanto que eu haja este dinheiro à mão. A quinta tem andado de renda em cada ano por seiscentos mil réis. Leve-a vossemecê por quatrocentos mil réis e por três anos.
— Está brincando, senhor?, lhe respondia o usurário. Quem quer ter empatado o seu dinheiro tanto tempo? O outro dia ganhou um amigo meu, com três mil cruzados, nove e isto em cinco dias. E ganho natural, apenas salvou a paga dos direitos e negou uns fardos ao dono.
— Pois, senhor, numa palavra, proponha vossemecê como a quer de renda.
— Eu lhe digo, meu senhor. Visto o estado dos tempos e o dinheiro andar tão encantado que não é possível a ninguém vê-lo, tomarei a quinta de vossa Senhoria por nove anos, começando o primeiro ano para o que vem e para poder ir dispondo as coisas, vossa Senhoria ma entregará logo, visto trazê-la este ano por sua conta e eu ficarei desde já com tudo que nela existir para usar como meu. Darei a vossa Senhoria os três mil cruzados, que sabe Deus se nesta ocasião podia fazer este desembolso. E, demais a mais, vossa Senhoria me fará o arrendamento por dezoito anos porque é muito natural que vossa Senhoria vá precisando de dinheiro e que me entre a importunar, e se há-de haver novos contratos, novas escrituras e novas despesas, já está tudo feito. Isto é, querendo vossa Senhoria, porque se não quiser, também isso me não dá muito incómodo, porque eu tinha este dinheiro determinado cá para outro negociozinho que certamente me havia de dar muito mais, sem precisão que faça sol e chuva a tempo competente.
O pobre homem não teve outro remédio. Mais calças que lhe pusesse, estaria por todas. Fez-se o arrendamento com todas as cautelas e ainda recebeu o dinheiro daí a três dias.
Ora que lhes parecem a vossas mercês que tempo mediou para o meu usurário ficar senhor da quinta os outros nove anos? Pois foi dai a três meses que teve o morgado outra vexação e recebeu oitocentos mil réis, em lugar dos três mil cruzados, atendendo a ser muito antes de tempo a cobrança! Por cinco mil cruzados ficou pois o meu usurário com o valor de vinte e sete. Então que tal o negociozinho? Pois é como ele os sabia fazer. E destes a cada passo lhe caíam em casa e muitas vezes os deitava fora porque lhe pareciam de pouco interesse.
Não tinha tempo nem para se coçar. Mas eu aborrecia-me esta cabeça e, certamente que assim como eu tinha dente, se tivesse faca, dava-lhe uma facada. Mas muitas vezes com raiva lhe mordia muito de caso, pensando sem precisão, só para lhe fazer mal. Mas o amaldiçoado andava com tanta cobiça nos interesses que nem me sentia. Assim fomos vivendo cada um a chupar o sangue por sua forma. Eu a chupar o sangue de um rico, ele a esgotar o dos pobres ou, para melhor dizer, o dos tolos.
Numa ocasião que veio fora da terra, deitou-se no colo da mulher e pediu-lhe que o catasse um bocadinho. A mulher, por lhe fazer o gosto, mais que por vontade, concedeu o peditório. Mas com a obrigação de se irem pôr ao pé da cama de um filhinho que tinham e que andava então doente de defluxo e por amor disso o não deixavam levantar. Postos que foram ao pé da criança, depois de alguns beijinhos que o pai deu ao filho, pôs-se a mulher a catá-lo, mas o pequeno não a deixava, a dar-lhe empurrões. Depois de muitos bichancros e bagatelinhas, disse o marido:
— Tu, mulher, não achas nada! Queres tu ver como achas? Pois eu te dou um cruzado-novo por cada piolho que me apanhares.
Então a mulher foi-se à cabeça do marido com uma ânsia que, apesar de todas as minhas diligências, em quatro palhetadas lhe caí nas unhas. Julguem vossas mercês como eu ficaria, vendo-me perto das unhas de um usurário. A mulher queria matar-me, o marido queria primeiro ver-me para não ser enganado no seu cruzado-novo. E enquanto estavam nestes itens, deu-lhe o filho, (abençoado filho! ) em que a mãe lhe desse o piolho para a sua mão, porque o queria ele matar. Como o menino quis, foi-lhe concedida a graça e a mim também a vida, porque ele apenas me pilhou às mãos, pôs-me em cima do lençol a ver como eu andava. E tanto que me tinha visto andar um bocado e que já estava na borda da cama, pegava em mim e punha-me outra vez no mesmo lugar. Nisto andei cinco ou seis vezes até que da última tal escapatória lhe fiz por entre os dedos que, sem mais me ver, lhe fui para a cabeça e é a
Tudo o que é pequeno é galante, à excepção dos piolhos porque comem mais e aborrecem mais mas escapam melhor de serem apanhados. Eu não sou dos mais pequenos mas também não sou dos maiores e tenho-me visto em bastantes perigos, como tenho contado e contarei por diante. Mas é certo que na cabeça desta criança tive bastantes sobressaltos, porque tinha uma avó que sempre lhe andava com as mãos em cima. E enquanto não percebi que a velha não via bem, mamei grandes sustos. Mas tacto tinha ela como a fortuna. Em pondo o dedo, ainda que fosse em cima de uma fava, percebia logo que tinha debaixo alguma coisa. O rapaz, por si, nunca se coçava e a maior desesperação que tinha era quando o queriam catar. Primeiro que o resolvessem a isso, chorava as suas três horas, de forma que a mãe e o pai, que eram muito seus amigos, consentiam em quanto ele queria. O rapaz andava doente de mimos que lhe faziam. E, certamente, nem mais mimoso nem mais malcriado havia outro. Podia ele ter o desvanecimento de que nenhum rapaz do seu tempo lhe chegava aos calcanhares. Era uma das crianças mais engraçadas que eu tenho conhecido porque não abria a boca que todos da casa se não rissem. Eu conto a vida que ele passava, para que vejam e julguem que tal eu a levava.
Tinha ele sete anos e meio. Dormia na cama com a mãe e, por gosto, se podia dormir com o rapaz de Verão, porque no discurso da noite mijava as suas três ou quatro vezes. E por mais que o pai ralhasse com ele, não se emendava e a mãe e a avó não lhe queriam dar porque ele estava muito magrinho e tinham medo que, se o amofinassem, morresse tísico. Ora isto, de Inverno, dava bastante incómodo, mas como era o menino que o fazia, paciência! Que remédio se lhe havia de dar? Era seu filho, tinham obrigação de o aturar. A avó, em o vendo chorar, todo o seu medo era que quebrasse. E só por que ele se calasse, andava muitas vezes com ele às cabritas e o pequeno metia-lhe um alfinete por um ombro para que ela andasse mais depressa. Mas isto não é coisa que se estranhe, por isso o conto, que avó é mãe duas vezes. E quando ela não lhe tivesse amor, e não lhe fizesse a vontade, quem lha havia de fazer? O pequeno era bonito, merecia tudo. E a tentação que ele tinha com a loiça inteira? Enquanto a não via quebrada, não descansava. E tudo fazia com tanta graça que sempre davam vontade de rir as suas travessuras. A respeito de guloso, isso era um nunca acabar. Mas a mãe respondia a isso, quando o pai ralhava com ela: — Deixá-lo, deixá-lo fartar! Sabe Deus o tempo a que ele chegará! Enquanto eu for viva e puder deixá-lo viver à sua vontade, hei-de satisfazê-lo. Tempo virá em que pague tudo e passe bem amargurada a vida.
O pequeno, com estes amens, continuava a missa e cada vez se ia fazendo mais endiabrado e a avó cada vez o achava mais esperto. Quanto a mim, eu passava bem, porque além de o rapaz se não deixar catar, não era senhor de pôr a mão na cabeça que não lhe acudissem logo todos: — Tira a mão da cabeça, malcriado! Como se a cabeça de uma pessoa não fosse traste que pertencesse às mãos. O certo é que tudo anda conforme o uso. Os Leitores agora hão-de perdoar-me, que eu quero fazer aqui a minha reflexão na forma do meu costume.
Eu não sei que haja diferença de pôr a mão na cabeça ou a cabeça na mão. Mas, apesar disso, vejo e oiço que quando uma pessoa vai com a mão à cabeça, chamam-lhe porco e malcriado. E se um homem descansa a cabeça na mão, não lhe dizem nada. Desenganemo-nos, Senhores, que o tempo e as circunstâncias é quem faz tudo. Sabe Deus se ainda virá tempo que se coma um piolho, assim como hoje se come uma perdiz. O caso está que haja um Médico que diga que é substancial e saudável. Ou uma personagem daquelas que apenas solta uma asneira, todo o mundo se ri louvando a sua discrição, que diga também que gosta deles e lhes acha sabor. Numa palavra: os séculos mudam tudo. Eu lembro-me muito bem do tempo em que o chá só servia para dores e hoje conheço pessoas que usam dele como ceia. E, na verdade, é uma dor vê-los cear chá. As laranjas da China foram veneno e hoje são cordiais. Um pássaro numa gaiola, no meio de uma casa, é bonito. Uma aranha com uma grande teia num canto da mesma, é feio. Sabem porquê? Porque desde que principiamos a ter uso da razão nos ensinam a ter medo das aranhas e a gostar dos pássaros. E eu confesso a minha culpa. Tenho tentação com eles.
Vamos agora analisar a coisa. A aranha tem mais que admirar do que o pássaro e mesmo é mais útil. E em chegando o tempo que elas se usem, já nos hão-de parecer feios os pássaros.
Um pássaro, para se criar, é preciso comprar-lhe gaiola e alpista e limpá-lo todos os dias. E apesar de tanto cuidado, em pilhando a gaiola aberta safa-se. Porque ele bem conhece que nasceu para voar à sua vontade, de ramo em ramo.
Os homens, só pelo gosto de oprimir, privam-se até mesmo do que gostam. E eu o provo. Se tu, dono do pássaro, gostas de ouvir cantar pássaros, não andam eles à roda de ti, cantando? Quantas vezes te fazem eles os ninhos mesmo debaixo das janelas e te cantam logo de madrugada, sem tu fazeres despesa alguma com eles? Deixa-os na gaiola do mundo que é a tua mesma! Dize-me cá! Se te meterem na gaiola do limoeiro, cantarás tu tão bem como se estivesses na gaiola do mundo? Pois então deixa os pobres pássaros e deixa também as pobres aranhas que nenhum mal te fazem. Elas sustentam-se com a sua indústria, fazem a sua casa pelo seu trabalho, ensinam as mulheres a ocupar o tempo nas suas teias. Se te passam por cima do corpo, deixam-te uma vertueja que agita e livra de dores aquele sítio. Uma aranha é o mesmo que uma escova de escovar o corpo, é o mesmo que...
É a minha balda! Entrei a declamar, esqueceu-me a Carapuça de que tratava e meti-me com mil arengas de que mesmo eu não saberei sair, se não for de repente, sem dar a razão nem por que entrei nem por que saí. Vamos ao fio e ao começo que não há outro remédio. E ainda haverá pedaço de asno que diga que isto é tradução? Isto, pelos destemperos, bem se deixa ver que é original. Mas ele há tais que tanto entendem os originais como as traduções, assim como há tolos originais e traduzidos. Hei-de falar destes tais em alguns dos meus folhetos. Mas agora não quero perder tempo com eles. Estes amigos tratam-se como se tratam os monos a quem se dá uma pitada de tabaco para eles fazerem as macaquices. Vamos à nossa criança e deixemos estas.
Enfim, eu era senhor da cabeça da tal criança muito à minha vontade, porque a ele não o deixavam coçar e não se queixava que tinha bichos só pelo não catarem. Eu andava tão gordo que parecia um toucinheiro. Já me não mexia de um lugar. Mas para que nada vá à vontade da gente, entrou o pequeno a ter uma febrezinha. Uns diziam que era sarampo e outros bexigas. No fim de tudo, era uma biliosa. Ver agora o cuidado com que o pai, mãe e avó mataram o pequeno à força de remédios e de cuidados! Quando vinha o Médico, juntavam-se todos para ouvir o que ele dizia e o que deviam fazer ao doente. E quando chegava a ocasião de lhe darem o remédio, era uma confusão tal que se não entendiam. Porque a mãe dizia (se, por exemplo, eram cataplasmas) que o Médico as tinha mandado botar no estômago. A avó teimava que não, que era nos olhos. O pai dizia que se enganavam, que havia de ser nos joelhos. E, por fim de contas, nunca o remédio ia no seu lugar.
Se o pequeno dormia, acordavam-no porque estava em sonolência. Se estava acordado, afligiam-se porque não sossegava. Se estava quente, estava ardendo com febre. Se frio, estava moribundo. Não havia meio termo! De forma que era obrigação infalível o rapaz morrer, ainda que não fosse da moléstia. Por acabar com ele: morreu o rapaz. E a avó, que era uma mulher de setenta anos, que nunca lhe deixou um minuto a cabeceira, nem um instante de tomar-lhe o pulso, foi a cabeça que eu escolhi para a seguinte Carapuça.