Anexo:Imprimir/Vida do Padre José de Anchieta

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Índice

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Livro Primeiro

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Livro Segundo

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Livro Terceiro

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Livro Quarto

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Pax Christi.

No ano de mil quinhentos e noventa e oito, fui eleito na Congregação Provincial para ir tratar com V. P. coisas de importância, para bem desta província do Brasil, e entre outros papéis levei um da vida do Padre José de Anchieta, cujus memória in benedictiones est, escrita pelo Padre Quirício Caxa conforme as informações muito certas, que o Padre Pero Rodrigues sendo provincial, lhe deu por escrito, de padres nossos que com o Padre José trataram, em diversas casas desta costa.

Foi lida nos Colégios de Portugal, em Roma e outras partes com admiração dos nossos, e causou novos desejos de perfeição ouvirem tão raros exemplos de virtude. Vendo eu isto fiz menção, por carta ao mesmo padre, que tornando Sua Reverência a visitar visse se se podiam aquelas coisas do Padre José confirmar mais e autorizar com testemunhos autênticos, de pessoas de fora da Companhia, (ainda que os dos nossos padres e irmãos não são menos certos), porque tornando-se a escrever a mesma vida, teria mais autoridade e causaria nos ânimos dos que a ouvissem maior devoção.

Pareceu ao padre o conselho, e quando tornei de Europa, achei em sua mão cinco feitos de testemunhos autênticos, tirados juridicamente pelo prelado administrador do Rio de Janeiro, e vigários do seu distrito, todos de pessoas antigas e graves, que conheceram e trataram muitos anos com o Padre José, assim na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, como em quatro Capitanias em que o padre mais residiu.

Aos quais testemunhos ajuntando os dos nossos religiosos, autênticos também, e jurados diante de mim, com testemunhos presentes, entreguei ao mesmo Padre Pero Rodrigues, pedindo-lhe aceitasse o trabalho de escrever esta vida, conforme aos papéis e informações sobreditas. Aceitou o padre a empresa, e acabou com muita diligência. Os originais autênticos, fiz guardar no cartório da Província.

Com esta vai uma cópia para consolação de V. P. e de toda nossa Companhia. Resta-me pedir ser encomendado nos Santos Sacrifícios, e a bênção de V. P.

Da Bahia oito de maio de seiscentos e seis.

FERNÃO CARDIM

Aos padres e irmãos da Companhia de Jesus.

Aceitei, com particular gosto, a ocupação de escrever a santa vida e obras maravilhosas do Padre José de Anchieta, da nossa Companhia, e dos primeiros que nesta Província do Brasil trabalharam, mais pelas livras da injúria do tempo, que é o esquecimento, que não por me parecer que o podia fazer com satisfação que elas merecem, por ser vida e obras de um varão ilustre em virtudes, e privilegiado com graças de Deus Nosso Senhor mui singulares, para cujos dignos louvores não é capaz meu talento.

Porém confio de Sua Divina Bondade, fonte de todo o bem, que será esta relação a toda a pessoa mui aceita, em especial aos nossos, por cujo respeito tomei este trabalho (se algum tive em ordenar o que escrevo), porque verão aqui, não só pintado, mas quase posto em obras, o instituto e espírito de nossa santa Religião, e, entre todos, os padres e irmãos desta província enxergarão as virtudes em que mais se esmeravam os antigos dela, aos quais temos particular obrigação de imitar, pois eles tanto à sua custa nos facilitaram os trabalhos, e abriram o caminho, e mostraram o perigo de que nos havemos de guardar.

Outra razão tive para tomar esta empresa com gosto particular, da qual eu só posso dar testemunho, que é esta. Esse tempo que alcancei em vida este servo de Deus, não deram as ocupações de ambos, lugar para tratar mais familiarmente, nem alcançar muito de suas heróicas virtudes, em especial por ele as saber mui bem encobrir, com o véu da humildade e santa dissimulação. Porém, depois de sua morte, observei, dentro de mim, que todas as vezes que falava e ouvia falar em suas coisas, saía da pratica outro, com novo amor à virtude e desejo da perfeição, e os com que eu falava, creio levariam os mesmos e maiores.

Daqui comecei a ter mor conceito de suas virtudes, pois só com se falar delas parece que se pegavam na alma com amor e afeição, pelo que, quando o Rev. Padre Provincial Fernão Cardim me encarregou esta obra, a aceitei com particular devoção, com esperança em Deus Nosso Senhor, e na intercessão deste Santo, que sairia com ela para a glória do mesmo Deus e de seu servo, e proveito especial de muitos.

E pois sua santa vida foi tal, que pôs em admiração a pessoas graves seculares, e o que mais é, aos mesmos índios de tanto menos capacidade, tenho por certo que fará maior impressão, naqueles que, por razão de seu estado, sabem pesas e estimar o ser e valia das virtudes religiosas. E a nós os desta Província dará motivos para também seguirmos o caminho que nos deixou aberto, do zelo da salvação do Genito destas partes, este Apóstolo do Brasil, como lhe chamou, pregando em suas exéquias, o Administrador Bartolomeu Simões Pereira, prelado do Rio de Janeiro, derramado muitas lágrimas à volta deste e de muitos outros louvores.

É de confiar que o mesmo Deus que assim se comunicou a este santo varão o faz e fará a outros, para que, também desta parte do mundo saiam, e sejam conhecidos, varões ilustres no serviço de Deus e conversão da gentilidade, para a glória do mesmo senhor.

PERO RODRIGUES

Mateus da Costa Aborim, Administrador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e das Capitanias da banda do Sul, certifico que, procurando eu ver a vida do Padre José de Anchieta, da Companhia de Jesus, composta pelo mui Rev. Padre Pero Rodrigues, da mesma Companhia, a li com muita consolação de minha alma, e achei mui conforme à grande fama e opinião de santidade, que em toda esta Província tem o dito Padre José de Anchieta, de quem cada vou descobrindo novos exemplos de virtude e milagres, por testemunhos que de novo vou tirando, com que consolo o grande sentimento que tenho, por não haver tratado em vida varão tão santo.

Do Rio de Janeiro, dez de maio de seiscentos e oito anos.

MATEUS DA COSTA ABORIM

Os que escreveram vidas de varões santos, na Europa, têm por trabalho escusado, declarar a antigüidade das províncias, e de como foram povoadas as vilas e cidades que os Santos ilustraram, com obras e exemplos de suas heróicas virtudes, por ser coisa sabida e a todos manifesta. Porém, este trabalho parece que não posso eu agora escusar, pois a província do Brasil é nova e pouco conhecida, e somente de cem anos a esta parte descoberta, e suas cidades e vilas muitos anos depois se começaram a conquistar, e povoar, em especial aquelas em que o Padre José de Anchieta semeou os vivos exemplos de suas raras virtudes. Pelo que começaremos a tratar como foram povoadas as capitanias desta costa, apontando juntamente o estado em que de presente hoje estão, neste ano de seiscentos e cinco, em que esta Vida se escreve.

Da Bahia de Todos os Santos

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No ano de mil e quinhentos, reinando em Portugal El-Rei Dom Manoel de gloriosa memória, foi descoberta esta província do Brasil, por Pedro Álvares Cabral, segundo governador da Índia, na viagem que ia fazendo por esta banda por fugir das calmarias de Guiné.

Dali a muitos anos El-Rei Dom João, o terceiro, mandou a Martim Afonso de Sousa, que viesse a demarcar e repartir em capitanias, dando a cada uma cinqüenta léguas por costa. E fez mercê desta da Bahia, a Francisco Pereira Coutinho, que a povoou no ano de mil quinhentos e trinta e cinco. E viveu nela algum tempo; mas, por sua morte, vendo o dito Senhor de quanta importância podia vir a ser, satisfazendo aos herdeiros de Francisco Pereira, a mandou povoar e sustentar em seu nome. E para isso, no ano de mil quinhentos e quarenta e nove, enviou o primeiro Governador Geral Tomé de Sousa. Está a altura de três graus da linha para o sul, cem léguas de Pernambuco, e duzentas do Rio de Janeiro. É uma das maiores, mais formosas, e mais acomodadas para a vida humana, de quantas baías há no descoberto. Tem coisa de trinta léguas de roda, com obra de vinte ilhas, quase todas povoadas de fazendas. Tem mais de quarenta engenhos de açúcar, uns que fazem com água como azenhas, outros com bois, a que chamam trapiches. Entram nela dois rios caudais, e outros menores; a terra firme que a cerca está cortada com vários braços e esteiros, muito acomodados para a serventia das fazendas, e mantimento do marisco e pescarias.

Cidade do Salvador

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A cidade, chamado do Salvador, está situada em uma lombada, que fica senhoreando a baía, cercada com quatro fortes; o porto por baixo dela, capaz de toda a sorte de navios. Esta é a cabeça do Estado, aonde residem os governadores gerais, os bispos, o cabido, com os Ministros da Justiça, Fazenda e Milícia.

Tem mais outros quatro fortes, não de menos importância, que são quatro mosteiros de religiosos, de santa vida, letras e exemplo: S. Bento, Nossa S. do Carmo, S. Francisco, e o Colégio da Companhia de Jesus, fundado por El-Rei Dom Sebastião, com dote para sessenta religiosos, no qual há estudos públicos das faculdades que os padres costumam ensinar, que são ler, escrever, contar, lições de humanidade, cursos em se graduam em mestres em artes, e teologia moral e especulativa, donde saem muitos bons filósofos, casuístas e pregadores.

Baleias

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Entram nesta baía do mês de julho em diante, e andam nela em magotes, muita soma de baleias, grandes e pequenas, até o mês de outubro, e dão com sua vista muita recreação à cidade, mantendo-se às vezes por entre os navios, e volteando as crianças diante das mães, quando alguns arpoadores, em batéis ligeiros e bem equipados, se aventuram a cometê-las, os quais, pregando-lhes os arpões e matando-as, as desfazem em azeite, montaria algum tanto perigosa, mas muito rendosa.

Âmbar

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Pelas praias desta capitania, assim para a banda do Norte como do Sul se acham pedaços de âmbar, às vezes grande quantidade junta, do qual tem mostrado a experiência não ser outra coisa senão uma massa líquida, que vai pouco a pouco endurecendo e fazendo-se parda, tirando mais para preto. Gera-se dentro do mar, pegando nos recifes, donde com as tormentas os vai arrancando e vindo acima d’água; o que escapa dos peixes e aves marinhas, vem com a maré à praia; ainda ali os caranguejos, e outros bichos, se o topam, lhe não perdoam; e enfim no que se acha se faz mui bom dinheiro.

Teve esta capitania antigamente muito gentio, mas consumiu-se com guerras, doenças gerais e mau tratamento em serviços pesados, porém ainda se conservam nas aldeias qque os padres da Companhia têm a cargo.

Pernambuco

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A Vila de Pernambuco chamada também de Marim e Olinda, é mui nomeada por sua riqueza de pau-brasil, e comércio dos muitos açúcares que tem, que em muitas mil caixas cada ano deita carregado por sua barra afora, para o que sustenta em seus distrito e terras vizinhas, mais de cem engenhos de açúcar. Está em oito graus de altura para sul, na mesma altura que Angola. Foi povoada pelo primeiro senhor e governador geral dela, Duarte Coelho. O primeiro padre que naquela terra deu notícia dos ministérios da Companhia, e dos frutos que Deus por eles faz, foi o Padre Manuel da Nóbrega com outro companheiro, e depois continuaram outros o trabalho começado, donde se seguiu que muitos homens entraram em si, no grave negócio de suas consciências, deixando uns o mau trato de cativar índios por engano, e outros o mau estado em que viviam.

O senhor da terra, deu aos padres a ermida de Nossa S. da Graça, em que está hoje situado o Colégio, dotado por El-Rei Dom Sebastião para vinte religiosos. Nele se lê uma classe de latim, outra de ler e escrever, e a terceira de caos de consciência, quando há ouvintes. Daqui vão os padres, batizar e confessar aos escravos que estão pelas fazendas, e também ajudam a conversão dos pitiguares, ainda que por missão, visitando suas aldeias, até a fortaleza do Rio Grande, que está de Pernambuco cerca de cinqüenta léguas. Além de outras aldeias em que os padres estão de morada, ensinando aos índios e conservando-os na fé e costumes cristãos.

Capitania dos Ilhéus

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A Capitania dos Ilhéus, está em altura de quatorze graus e dois terços; foi primeiro do Capitão Jorge de Figueiredo Correia, na qual os padres da Companhia fazem muito serviço a Deus, assim com os moradores portugueses como com o gentio da terra.

Capitania de Porto Seguro

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Está a de Porto Seguro em dezesseis graus; foi povoada pelo Capitão Pero de Campos Tourinho, no ano de mil quinhentos e trinta e seis. E daí a anos foi enviado a esta vila o Padre Francisco Pires, o qual no princípio residiu na ermida de Nossa Senhora, que é da Companhia, por ser edificada por ordem do dito padre e companheiros seus. Foi mui grande a mercê que a mesma Senhora lhes fez, em se abrir milagrosamente ali uma fonte, mui afamada em toda a costa, na qual se fizeram e fazem muitos milagres, sarando muitas pessoas de diversas enfermidades, umas que vão àquela casa em romaria, e outras que mandam buscar a água dela para o mesmo efeito.

Gentio Aimoré

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Ambas estas capitanias foram infestadas e perseguidas pelo crudelíssimo gentio chamado aimoré, por cerca de cinqüenta anos, com mortes de portugueses, e de seus escravos e índios cristãos, e perdas das fazendas.

A causa de durar tanto esta guerra, foi por eles não pelejarem em campo, quando eram acometidos, mas sempre debaixo do mato espesso, cada um ao pé de sua árvore, com o arco armado, aguardando o inimigo que o vem buscar, em ser visto antes nem depois de empregar sua flecha. E também porque, como os índios que conosco têm comércio não entediam a língua deles, não havia esperança de concerto e de pazes.

E assim chegaram estas duas Capitanias a ponto de se acabarem de todo; e de fato, os mais dos moradores delas, que tinham alguma fazenda, largaram a terra, e se foram a viver em outras partes. E o mesmo perigo corria esta Capitania da Bahia, porque já alguns homens tinham largadas fazendas e alguns engenhos, e eles vinham ganhando terra. Com a flecha e medo dela, no distrito desta cidade.

Neste aperto, quando todo remédio humano faltou, acudiu o do Céu por meio de uma escrava cristã da mesma nação, à qual vindo à fala com os seus, os desenganou que os nossos quando tomavam alguns dos seus, na guerra, não os comiam, antes que eles perdiam muito por não tratarem com os portugueses. Estas e outras semelhantes palavras desta índia, tomou Deus para começar a mudar e abrandar os corações deste bravo e feroz gentio, para que se fiasse de nós; e finalmente os aimorés mais vizinhos, se vieram em grande número, cantando e bailando, e abraçando a quantos homens achavam pelas ruas e sendo de todos mui bem agasalhados. Sucederam estas pazes e geral benefício de Nosso Senhor, para todo o Estado, no ano de mil e seiscentos, governado esta cidade, o Capitão-mor Álvaro de Carvalho, que fez muito na conservação delas. No qual tempo o governador geral Dom Francisco de Sousa, por ordem de S. Majestade andava na Capitania de São Vicente, ocupado no descobrimento de novas minas de ouro e outros metais. A boa correspondência ainda dura de ambas as partes, com esperança de que se tornarão a melhorar aquelas duas capitanias, nas quais também estão as pazes celebradas.

Para este efeito e principalmente para ajudar a salvar algumas almas deste gentio, alguns padres da Companhia começam aprender a língua deles, e já os ajuntam em aldeias, e instruem na fé e comunicam o santo batismo, pela qual porta a Divina Providência tem já muitas almas recolhidas em sua glória, ao menos de inocentes e adultos in extremis. E com este gosto tempera Deus Nosso Senhor, a falta das humanas consolações, que nesta e semelhantes empresas padecem por estas partes os filhos da Companhia, que tem tudo por bem empregado, por ajudarem a salvar ainda que não fora mais que uma só alma, por saberem que nisto contentam aquele Senhor que tanto nos tem merecidos, estes e maiores serviços.

Capitania do Espírito Santo

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A Capitania do Espírito Santo, é uma das principais deste Estado. Está em vinte graus para o sul, cento e vinte léguas da Bahia, e oitenta do Rio de Janeiro. Foi povoada por Vaco Fernandes Coutinho, Governador e Senhor dela, na era de mil quinhentos e trinta e cinco anos.

Daí a muitos tempos enviou o Padre Manuel da Nóbrega, sendo Provincial, alguns padres, os quais foram recebidos com muito amor e agasalho. Deram-lhes sítio para casa e cerca, e nele fundaram a Igreja da invocação do Apóstolo Santiago Maior, com os mistérios que a Companhia exercita de pregar, confessar, fazer doutrinas na Igreja e ensinar os meninos na Escola, e iniciar a gente à devoção, e a freuqentar os Sacramentos. Fizeram nos moradores muito serviço a Deus, e não menos no gentio, com o qual residem outros padres em quatro aldeias, e às vezes mandam buscar os parentes deles, e outras vão em pessoa a buscá-los a mais de cem léguas, por caminhos mui ásperos e não seguidos, em que padecem muitos trabalhos de fome e sede, e outros perigos da vida, sem deles pretenderem mais que a salvação de suas almas e a Glória de Deus.

O mesmo que dizemos desta Capitania, acerca dos ministérios que nela exercitam os padres e do fruto espiritual que o povo recebe, se há de entender também das outras de que vimos falando.

Esta casa e Igreja nossa, daí há muitos anos foi enriquecida com uma insigne relíquia de um osso do mártir São Maurício, por cuja intercessão Deus Nosso Senhor, faz naquela terra mui insignes e evidentes mercês, e agora haverá obra de dois anos, sendo Superior o Padre Manuel Fernandes, se acrescentou o tesouro das santas relíquias na mesma casa, com um dente do glorioso Apóstolo Santiago, enviado pelos nossos padres do Colégio de Santiago de Galiza com seu instrumento autêntico.

Capitania de São Vicente

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A Capitania de São Vicente, está do Rio de Janeiro para o sul quarenta léguas, em vinte e quatro graus, a primeira que nesta província se povoou; foi dela senhor, Martim Afonso de Souza, e o são hoje seus herdeiros.

Tem em si uma ilha, e muita terra para o sertão, com cinco vilas. A primeira é a de São Vicente, situada em uma das barras da Ilha. A segunda, Santos, na outra barra, com sua fortaleza. A terceira de Nossa S. da Conceição, pelo nome da terra, de Itanhaém, dez léguas abaixo da praia, que é dura e muito esparcelada. A quarta, a Vila de S. Paulo, ou Piratininga, obra de quinze léguas da Ilha de São Vicente, pela serra e sertão adentro, serra fragosa de subir, mas depois de estarem em cima de tudo são campos, com pouco arvoredo, e rios mansos e plácidos; a terra em partes é escalvada, com sinais de minas e metais de toda a sorte, mas o que até agora está descoberto, não é mais que ferro e ouro de lavagem. A quinta Vila se chama de S. Amaro, que tem Capitão por si, por ser no princípio de outro senhor que era Pero Lopes, irmão de Martim Afonso de Souza.

Determinando El-Rei de Portugal, dom João o terceiro, mandas a estas partes do Brasil a Tomé de Sousa, por Governador Geral, houve que, para satisfazer com o santo zelo que tinha de procurar o bem espiritual de seus vassalos, nas províncias sujeitas à sua Coroa, era necessário enviar, com ele juntamente, alguns religiosos, para conservarem nos costumes cristãos aos portugueses, e darem princípio à conversão, e conhecimento do Santo Evangelho, ao gentio.

E lembrado do muito que na Índia Oriental faziam em ambas estas empresas, o santo padre Bato Francisco Xavier, e outros padres da Companhia, que naquelas partes andavam, os quais ele também enviara havia já alguns anos, pediu ao Padre Mestre Simão, Provincial em Portugal, alguns padres para esta missão, e particularmente insistiu lhe desse para Superior de todos o Padre Manuel da Nóbrega, e quis fosse ele o primeiro que declarasse a fé de Deus Nosso Senhor neste Estado, porque o conhecia e estava bem inteirado de sua virtude e letras, já do tempo que estudara em Coimbra, antes de ser religioso, quando o doutor Navarro o apregoava pelo menor de seus discípulos.

Andava neste tempo o Padre Manuel da Nóbrega pelo Reino fazendo muito serviço a Deus, no bem das almas, com pregar, confessar e fazer os mais ministérios de que a Companhia usa para este fim. Foi logo mandado vir, mas por mais diligência que se fez, já as naus com o Governador eram partidas, com cinco da Companhia, todos debaixo da obediência do Padre Manuel da Nóbrega, ausente. Ficou só a nau do provedor-mor, Antonio Cardoso de Barros, esperando pelo padre, e tanto que chegou se partiu, e foi alcançar a frota no mar, com grande alegria do Governador, dos padres e de toda a armada. De maneira que a primeira missão dos padres da Companhia que se fez a estas partes, foi à petição del Rei dom João, e por ordem do nosso beato Padre Inácio de Loiola, fundador e primeiro Geral da Companhia.

Partiu a armada de Lisboa no ano de mil quinhentos e quarenta e nove, no primeiro dia de fevereiro, que é dia do santo bispo e mártir Inácio. Vinham nela seis da Companhia: o Padre Manuel da Nóbrega, o Padre Leonardo Nunes, o Padre João de Aspilcueta Navarro, sobrinho do Doutor Navarro, o Padre Antonio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome.

No ano seguinte, de mil quinhentos e cinqüenta foram enviados de Portugal, para ajudarem aos obreiros desta vinha, quatro sacerdotes: Salvador Rodrigues, Francisco Pires, Manuel de Paiva e Afonso Brás.

Padre Luis da Grã

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Depois sendo informado ao Padre Miguel de Torres, visitador da Província de Portugal, da falta que havia nestas partes de pessoas da Companhia, para as muitas ocupações que tinham, e novas empresas da conversão a que era necessário acudir, declarou por Superior da terceira Missão, ao Padre Luis da Grã, que fora reitor do Colégio de Coimbra, e nestas partes do Brasil foi o segundo provincial.

Deram-lhe por companheiros dois padres e quatro irmãos: os Padres Brás Lourenço e Ambrósio Pires, os irmãos Gregório Serrão, João Gonçalves, Antonio Bláques, e José de Anchieta, que era o mais moço de todos. Partiram de Lisboa a oito de maio de mil quinhentos e cinqüenta e três anos, chegaram à Bahia aos treze de julho do mesmo ano, em companhia do segundo Governador Geral, Dom Duarte da Costa, que os tratou na viagem com muita benignidade e respeito.

O Padre José entra na Companhia

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Nasceu o Padre José de Anchieta, na Ilha de Tenerife, uma das que chamam Canárias, no ano de mil quinhentos e trinta e três; seu pai era biscainho, e a mãe dos naturais da terra, pessoas tementes a Deus, de família nobre e principal naquela ilha, onde aprendeu a ler e escrever e os princípios de latim.

Foi mandado aos estudos de Coimbra com um seu irmão mais velho, aonde em breve tempo, dando mostras de sua rara habilidade e felicíssima memória, veio a ser dos melhores estudantes da primeira classe, em prosa e em verso, em que era muito fácil; ouviu dialética e parte de filosofia.

Neste tempo, juntamente com as letras, começou também a mostrar sua inclinação à virtude, branda condição e modéstia, edificando com seu exemplo a todos os com que tratava. E Deus Nosso Senhor começou por sua parte, a plantar em sua alma as vvirtudes, das quais, crescendo depois com a divina graça, haviam os fiéis e gentios de recolher muito fruto espiritual, como a experiência mostrou.

A primeira destas plantas foi um eficaz desejo da pureza d’alma e corpo, com aborrecimento de todos os vícios, e em particular dos torpes e desonestos. Em sinal do qual desejo, estando um dia na Sé de Coimbra, de joelhos diante de um altar, em que estava uma imagem de vulto de Nossa Senhora, fez voto de perpétua virgindade, em que Deus Nosso Senhor o conservou por toda vida.

Outro desejo teve também muito grande, de assegurar mais o partido de sua salvação; para este fim se determinou entrar em alguma religião. Pediu a Companhia, e por suas boas partes, foi nela recebido sendo de dezessete anos de idade. Nos primeiros anos que esteve em Portugal que foram três, foi sempre um vivo exemplo de virtude, especialmente de devoção, humildade e obediência.

Vem ao Brasil

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Sua vinda a estas partes se azou desta maneira. Sucedeu cair em uma grave enfermidade, em que foi curado com a caridade e diligência que a Companhia em toda parte costuma; mas o doente não alcançava perfeita saúde, pelo que andava mui desconsolado, cuidando que não tinha forças para continuar com os ministérios da Companhia, mas acudiu Nosso Senhor desta maneira:

Encontrou-o o padre mestre Simão, e chamando-o, disse:

— “Vinde cá, José; como estais?”

— “Mal estou”, respondeu ele.

Acudiu o padre:

— “Não tomeis pena por essa má disposição, que assim vos quer Deus”. Com esta palavra se aquietou e consolou muito.

Depois, por conselho dos médicos, pareceu ao superior mandá-lo a esta terra de que havia fama ser mais sadia por causa dos mantimentos leves e dos ares mais benignos. E na verdade assim é, porque os mantimentos ainda que não põem tantas forças, não são de tanta resistência ao calor natural, como os de Europa; e os ares são mais temperados, em frio e quentura, que os de outras regiões, sem embargo de estar esta dentro da zona tórrida, e passar o sol duas vezes no ano por cima das cabeças dos moradores, uma quando vai para o sul, e outra quando dá a volta; o que nesta Bahia de Todos os Santos acontece, aos vinte e oito de outubro, a ida do sol para baixo, e aos quatorze de fevereiro a tornada. Porém acudiu a Divina Providência com chuvas e virações que temperam estas calmas. Por esta ocasião, embarcado o Irmão José para estas partes, entrando no mar, sentiu logo em sua disposição mais alento e melhoria, como natural de ilha. No navio aceitou a ocupação, que dizia mais com o desejo de humuildade, e teve a cargo a dispensa, cozinha e fogão, servindo aos Nossos com muita caridade.

E desta maneira transplantou Deus Nosso Senhor esta frutosa planta das Canárias ao Brasil, sendo de vinte anos. E daí a pouco tempo foi enviado deste Colégio para a casa de São Vicente, aonde estava o Padre Manuel da Nóbrega.

A maior parte dos da Companhia que naquele tempo viviam no Brasil estavam na casa e Capitania de São Vicente, ocupados no serviço espiritual dos próximos, e muitos mais no cuidado de sua perfeição, sem outro estudo nenhum, por falta de mestre. O padre Provincial com seu santo zelo, e práticas espirituais os trazia a todos abrasados em fervor de devoção, mortificação e mais virtudes, sendo ele em todas um vivo exemplo, que os mais trabalhavam seguir e imitar. E com isto os quis Nosso Senhor exercitar e dispor para que as letras depois fizessem neles melhor assento.

Chegando o irmão José, o padre Provincial o recebeu com muito amor e gasalhado pela notícia que já tinha de sua muita virtude e grandes partes, e se ajudou muito dele em suas santas ocupações, em especial depois que soube a língua, e lhe servia de intérprete com o gentio.

Faz a arte da língua

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Encarregou-lhe logo a escola de gramática, e foi o primeiro que leu latim nestas partes, e pouco depois na Bahia começou a ler latim o Irmão Antonio Blásquez. Tina o Irmão José na sua escola alguns dos nossos e muitos moços filhos dos portugueses; continuou esta ocupação por alguns anos, na vila de São Paulo, chamada pelo nome de terra Piratininga, com muito proveito dos estudantes, e merecimento seu. Porque além da modéstia do ler, tomava ele outra bem pesada, de suprir com sua pena, a falta de artes latinas, por onde os discípulos aprendessem.

E como quer que as ocupações lhe não davam lugar para o fazer de dia, era-lhe necessário ajudar-se das noites, cortando de ordinário pelas horas do sono, e passando muitas delas inteiras sem dormir, escrevendo até a manhã. Por tudo isso passava o bem irmão com muita paciência e rosto alegre, por ver que com estes seus trabalhos se começavam de criar obreiros idôneos para a conversão de tantas almas.

Entre estas ocupações e outras muitas, em que o padre Provincial Manuel da Nóbrega se aproveitava de sua diligência, indústria e conselho, começou a aprender a língua da terra e tão de propósito se deu a ela, além da facilidade que Deus lhe tinha comunicado para línguas, que não somente chegou a entendê-la e a falá-la com perfeição, mas também a compor a Arte dela, em espaço brevíssimo de seis meses, segundo daí a muitos anos ele mesmo disse a um padre.

Esta Arte, pelo tempo em diante, sendo por ele e por outros padres línguas, examinada e aperfeiçoada, se imprimiu em Portugal e é o instrumento principal de que se ajudam os nossos padres e irmãos, que se ocupam na conversão da gentilidade, que há por toda a costa do Brasil.

Esta língua é a geral, começando acima do Rio do Maranhão e correndo por todo o distrito da Coroa de Portugal, até o Paraguai, e outras Províncias sujeitas à Coroa de Castella. Aqui entram os pitiguares até Pernambuco, os tupinambás da Bahia, os tupiniquins e tumininós da Capitania do Espírito Santo e os tamoios do Rio de Janeiro e muitas outras nações, a quem serve a mesma língua com pouca mudança de palavras. Desta Arte há no Colégio da Bahia lição em casa, para os que de novo começam aprender a língua. Trasladou mais o Irmão José o Catecismo, deu princípio ao Vocabulário, fez a Doutrina e Diálogo das coisas da fé, e a Instrução das perguntas para confessar, e a que serve para ajudar a bem morrer.

E com este bom exemplo meteu fervor e emulação aos nossos, para irem por diante no desejo da salvação do gentio, como sempre foram com a divina graça, por toda esta costa, assim nas cidades e vilas em que os nossos residem, que são oito, como nas aldeias em que estão de assento, que são dez, além de outras muitas que têm a cargo, por visita, e também as missões que fazem ao sertão, para trazerem gentio para as Igrejas, quando são enviados por seus superiores.

Maromomis

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Não cessou com a idade o santo zelo que tinha de procurar, por todas as vias a conversão do gentio; antes daí a muitos anos, sendo superior da casa de São Vicente, ajudou a fazer a arte da língua dos maromomis, dos quais, para dar alguma notícia, me ajudarei do que o mesmo Padre José escreve, no livro que fez da Vida dos primeiros padres desta Província, capítulo quarenta e três. “Além dos índios que moram pela costa do Brasil, há pelo sertão adentro muitas outras nações de diferentes línguas, com as quais os que têm comércio com os portugueses trazem contínua guerra e lhes chamam tapuias, como quem diz selvagens. Entre estes há uns chamados maromomis, que são muitos; mas a maior força deles vive pelos matos e serras da capitania de São Vicente, obra de duzentas léguas pelo sertão adentro, e obra de outro tanto até a capitania do Espírito Santo. A língua é fácil de aprender a quem sabe a geral da costa. São amigos dos portugueses, e ordinariamente não têm mais que uma mulher; não curam de criações, porque vivem pela flecha da caça do mato. E quando ao comer carne humana passa o que direi: geral fama ou infâmia é do gentio do Brasil, que come carne humana, mas isto não fazem os que têm trato com os portugueses, ainda que gentios, nem usam as nações que têm pazes umas com outras, mas somente com seus contrários, que tomam em guerra, como por honra e bárbara vingança. E não por mantimento ordinário, cortada em açougue, como se diz de alguma gente de Guiné, nem sacrificando primeiro os homens a seus ídolo e depois comendo-os, como usavam os bárbaros motaçumas, antigos reis do México. Porém os maromomis nem ainda com este título de vingança, nem com outro, comem a seus contrários, antes se honram e prezam de serem nisso particulares. Desceram una poucos destes da serra à barra de São Vicente, chamada Bertioga; acudiu logo a os agasalhar o Capitão da Vila. Veio também com ele o Padre José, que então era Superior e por seu companheiro, o Padre Manuel Viegas, e em quinze dias que ali esteve, por meio de uma escrava, intérprete, fez o padre um pedaço de vocabulário e também o princípio da arte, mas como por ocupação do cargo, e outras que lhe sobrevieram, não podia ali assistir, deixou o negócio ao Padre Manuel Viegas, que tomou esta nova empresa tão de propósito e começou a tratar este gentio com tanto amor e zelo, que aprece que não cuidava nem tratava de outra coisa.

Andava em busca deles para os ajuntar e ensinar, por serras, campos, vales e praias; levava à casa os filhos deles pequenos, para que aprendendo a língua geral, depois lhe servissem de intérpretes. Venceu muitas dificuldades, sofreu muitas contradições, e incomodidades nesta santa obra, por lhe dizerem que trabalhava debalde, por ser gente que anda sempre inquieta, nem se ajuntar em aldeias.

Mas a tudo resistia prosseguindo seu intento; e entretanto não fazia senão batizar e mandar à glória muitos inocentes que morriam batizados, e alguns adultos que batizava in extremis. E pouco a pouco com sua paciência e continuação, sem nunca se enfadar de os tratar, acabou com eles, depois de muito tempo e trabalho, que fizessem assento em alguns lugares da mesma capitania.

E da mesma maneira vindo ao Rio de Janeiro, daí há muitos anos, fez com eles se ajuntassem em outro lugar, junto à aldeia de São Barnabé, onde estão quietos, fazendo suas roças ou lavouras de legumes e mantimento da terra, a seu modo, onde tem deles cuidado o Irmão Pero de Gouveia, de nação alemã, e de muita facilidade para aprender estas línguas, no que faz muito serviço a Deus há muitos anos.

O Padre Manuel Viegas trasladou nesta nova língua, a doutrina que estava feita para os índios da costa, fez vocabulário muito copioso, e ajudou ao Padre José a compor a arte da gramática, com que facilmente se aprende, e com isto vai por diante a conversão e salvação destes pobres”.

O Rio de Janeiro está no cabo da zona tórrida, da banda do sul, em vinte e três graus de baixo do trópico de Capricórnio, pelo que participa mais do frio, que todas as outras terras que na costa do Brasil são habitadas.

A baía é grande, cheia de muitos ilhotes; tem em sua comarca pau-brasil e muitos engenhos de açúcar, e terras para criações e mantimentos, e mostras de minas e metais em que os homens confiam. A barra é tão estreita que uma meia espera alcança a outra banda; tem seis fortes: dois na entrada, e quatro que cercam a cidade. Tem mais hoje outras quatro fortalezas, que são quatro mosteiros de religiosos de não menos importância: São Bento, Nossa Senhora do Carmo, São Francisco e o nosso Colégio, em que se lê uma classe de ler e escrever, outra de Latim, e a terceira de casos de consciência, quando há ouvintes, além de se exercitarem os mais ministérios, que na Companhia se costumam, de pregar, confessar e doutrinar os escravos e índios. Foi esta terra a mais trabalhosa de conquistar e aquietar que houve em todo o Estado, como se verá na presente relação, que foi tirado, no principal, do livro do Padre José pouco antes alegado, do capítulo vinte e dois por diante.

Nicolau de Villegainon

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Reinando em Portugal El-Rei dom Sebastião, e governando o Reino, sua avó, a Rainha dona Catarina, por não ter El-Rei idade, pelos anos de mil quinhentos e cinqüenta e seis, veio de França uma capitão, com grossa armada, e ganhando a vontade dos naturais com dádivas e bom tratamento, foi deles ajudado a fundar uma fortaleza, com sua cisterna e duas casas, de que uma servia de pólvora, tudo feito na piçarra ao picão, em uma ilha pequena dentro da baía, com boa artilharia e presídio de soldados. Chamava-se este Capitão Nicolau Villegainon.

E os naturais, moradores daquelas costa eram os tamoios, gentio, feroz e guerreiro que povoava desde o Cabo Frio até abaixo do Rio de Janeiro.

Tiveram estes comércio e boa correspondência com os portugueses que moravam na Capitania de São Vicente, que está quarenta léguas abaixo do Rio, porém sendo deles injustamente salteados e cativos algumas vezes, facilmente fizeram amizade com os franceses, que, ajudando aos tamoios com armas e ardis, e valendo-se da multidão deles, à sombra da nova fortaleza começaram a molestar e perseguir a Capitania de São Vicente com dois gêneros de guerra: uma de armas contra a vida corporal, outra de heresias contra a vida da alma, e de maior perigo. E desta diremos primeiro.

João de Bolés, Calvinista

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Posto que este capitão era católico, e comendador de Malta, contudo muitos dos seus eram hereges calvinistas; e entre eles João de Bolés, ao qual o seu general castigar por esta causa, o herege com outros três fugiu para São Vicente.

Era ele bom humanista latino e grego, e tocava de hebraico, muito visto na Sagrada escritura, mas entendia conforme a perversa interpretação dos hereges. Começou logo, meio em segredo e meio em público, a falar com pessoas ignorantes, desfazendo na santidade e uso dos sacramentos e das imagens, e na autoridade das Bulas, indulgências e do Sumo Pontífice; e como falava bem espanhol, e entremetia suas graças, com o gosto de conversação ia também lavrando o veneno de sua péssima doutrina, de modo que já tinha ganho com o vulgo ignorante, e teve nome de grande sábio. Quis Deus que se achasse naquela comarca o Padre Luiz da Grã, na sua casa de São Paulo, o qual sabendo o que passava, acudiu logo às vilas de Santos e São Vicente, e começou assim com pregações e disputas públicas, como em práticas particulares, avisar a todos se guardassem do herege, com que o povo tornou em si e o inimigo se recolheu. O qual vindo um dia a visitar o padre à outra vila, achou-o que estava para subir ao púlpito; e o padre em o vendo, subitamente mudou a pregação, acomodando-a ao novo ouvinte, como se toda a semana estudara para aquele fim. Depois praticou familiarmente com ele, e achou que se lhe mostrava em tudo católico, porém sabendo por outra parte que a peçonha ia lavrando e tomando mais forças, fez com a justiça eclesiástica o mandasse preso à cidade da Bahia, como mandou, e desta maneira se apagou este fogo da Capitania de São Vicente.

Canoas de Guerra

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A guerra temporal continuavam os tamoios em suas canoas de guerra. Das quais é bem digamos aqui uma palavra.

Canoa de guerra é uma embarcação muito ligeira toda de um pau, cavado por dentro, de cinco até sete palmas de boca, e de um comprimento de sessenta até oitenta palmos; as ordinárias levam até quarenta remeiros; remam em pé com remos de pá e cada um leva seu arco, e seu massarão de flechas, com que pelejam quando é tempo, e se amparam com os remos, além de outros índios que vão na proa e popa, e alguns pelo meio, com suas espingardas; e assim são muito temidos dos inimigos, porque acometem qualquer lancha e navio que não andam muito longe de terra.

Com estas canoas, como digo, salteavam os inimigos da Capitania de São Vicente, levando homens, mulheres, escravos e crianças que estavam pelas fazendas descuidados do perigo; a uns matavam, a outros levavam para os matarem nas aldeias em suas cruéis e bárbaras festas.

Castigo de Deus

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Sucedeu que uma vez tomaram dois índios, pai e filho. E os levaram vivos para os comerem, em terreiro. Rogou-lhe o pai os não matassem, dando por razão que eram dos padres que falavam as coisas de Deus, e os havia de consumir. Zombaram disso os pérfidos bárbaros, e os mataram e comeram; mas não tardou muito o castigo do céu, porque entrou a mortandade com eles, começando pelo seu capitão, de modo que, brevemente, se consumiu toda esta aldeia e se despovoou aquela parte do sertão.

Serviu esta guerra dos bárbaros para muitas pessoas se chegarem mais a Deus, e freqüentarem mais os sacramentos, em especial mulheres casadas, que andavam com muito fervor continuando a doutrina, confessando-se e comungando cada oito dias. E assim quis Deus Nosso Senhor, mostrar em algumas delas os afetos de sua graça, dando-lhes forças para darem as vidas pela guarda da castidade.

Duas mulheres morrem pela castidade

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Uma destas era viúva, a qual depois de se confessar, um domingo, indo-se para a fazenda, disse a suas amigas: os tamoios me hão de tomar, mas eu me não hei-de deixar viva.., porque não usem comigo como com outras. Daí a dois ou três dias dão os contrários em sua casa, e embarcando a muitos cativos em suas canoas, esta mulher lhes resistiu tão valorosamente que, por mais que fizeram, nunca a puderam meter viva nas canoas, e assim a deixaram ali morta com muitas feridas.

Outra moça casada, e assinalada em virtude entre todas, mui contínua nas pregações e freqüência dos sacramentos, depois de comungar um domingo, disse a suas parentas, indo-se para sua fazenda: os tamoios me levarão em suas canoas, e passarei brandando por tal parte, e ninguém me acudirá; e assim foi que vieram e levaram-na com outras pessoas, como tinha dito, sem nenhum remédio.

O tamoio que a levava a entregou a seu pai, e ela, posto que sabia que, se consentisse, teria vida, contudo resistiu varonilmente a esta maldade. E ainda que importunada por muito tempo pelo bárbaro, e aconselhada de outras, todavia ajudada com a Divina Graça, esteve sempre constante em seu santo propósito e firme resolução; e assim a mataram, querendo ela antes perder a vida que a castidade, e pôr em risco a salvação.

Tinha o Padre Manuel da Nóbrega largado o cargo de Provincial, ao Padre Luís da Grã, por ordem do nosso muito Rdo. Padre geral Diogo Laínes, e por ordem do padre provincial era superior das casas de São Vicente, pelos anos de mil quinhentos e sessenta e três. O qual considerando como Deus ajudava os tamoios contra os portugueses, entendeu ser justo castigo da Divina mão, pelas muitas sem-razões que homens de pouca consciência tinham feitas contra eles, de mortes e injustos cativeiros; assim lhes pregavam muitas vezes, que enquanto os contrários não perdessem o direito da justiça, que contra nós tinham, não havíamos de levar o melhor deles. E por outra parte trabalhava com meios espirituais, de orações e penitências, aplacar a ira de Divina, nem cessava de pedir a Deus desse remédio a tantos males.

Mais de dois anos andou neste requerimento, e o Senhor lhe dava a sentir intentasse ir a suas terras a fazer pazes com eles. Comunicou este meio com os da governaça da vila, e a todos pareceu coisa do céu e de muito serviço de Deus, e último remédio para a Capitania, porque apertados do inimigo tratavam já de despejar a terra.

A conta que o padre fez era esta: se os inimigos aceitarem as pazes tudo se aquieta, e quando as não aceitem, ao menos ficará nossa causa justificada diante de Deus, os cristãos edificados de verem como arriscamos as vidas por seu remédio, e os mesmos contrários, com nossa estada, sempre tomarão alguma notícia das coisas de sua salvação, o que tudo resultará em glória de Deus Nosso Senhor.

Com esta resolução se partiu o Padre Manuel da Nóbrega, com seu fiel companheiro, o Irmão José, e outro homem por nome Antonio Luís, para a terra dos tamoios, que era de São Vicente para a banda do Rio de Janeiro vinte e sete léguas..

Levou-os no seu navio um homem de muito respeito e virtude, e grande amigo dos padres, por nome José Adorno, da nacionalidade italiana, da principal nobreza de Gênova, tio do nosso Padre Francisco Adorno , o qual estudou o curso das artes e teologia no Colégio de Coimbra, e depois veio a ser provincial da Província de Gênova. Por este tempo tinham os contrários feito mais de duzentas canoas de guerra, para cometerem por diversas os moradores de São Vicente, e continuarem os assaltos, uns indo e outros vindo, até os acabarem.

Porém atalhou Deus Nosso Senhor a estes males com a jornada dos padres, que se puseram por rodela a todos os combates, porque sabendo os inimigos do Rio de Janeiro que vieram os portugueses à sua fronteira, fizeram prestes suas canoas para os virem matar, e ganhar entre os seus a honra desta vitória..

Mas pela bondade Divina, em vendo a venerável presença do Padre Manuel da Nóbrega, e ouvindo a suave prática do Irmão José, logo se amansaram os bravos corações, e diziam uns para os outros: tais homens como estes são espias, bem nos podemos fiar deles. Entre outros veio um principal muito soberbo, com muita gente em dez canoas, com o intento que digo, e falando fingidamente nas pazes metia por condição que lhe dessem três principais que contra eles ajudaram a defender os protugueses e índios cristãos, em um assalto que foram dar na vila de São Paulo. Resistiu-lhe o padre com boas razões; mas como não era capaz delas, foi-se agravando e tanto que faltou pouco para matar aos padres, que não estavam menos aparelhados para darem a vida por causa tão justa, como era não consentirem que fossem mortos homens inocentes, amigos e defensores nossos. E assim escreveu o padre ao capitão de São Vicente e a toda a terra, que tal não consentissem, ainda que soubessem de certo que haviam de matar e comer a ele e a seu companheiro, porque isto era o que lá foram buscar. Mas tudo converteu Deus Nosso Senhor em bem, porque o índio feroz entrou em São Vicente de paz, e foi mui tratado dos portugueses, e tornou-se contente para sua terra.

Falam os índios com o Padre sobre a castidade prática de um índio velho

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Os índios daquela aldeia se ajuntaram em casa do hóspede dos padres, que era um velho mui respeitado dos outros, e tratavam os padres assim das pazes como de sua maneira de viver, perguntando por tudo muito miudamente.

E posto que com as razões que lhes davam em suas perguntas, em todas as matérias se davam por satisfeitos, só na matéria da pureza não podiam tomar pé seus brutos entendimentos, nem cuidar que havia pessoas que guardassem a castidade; ofereciam suas parentas, conforme a seu costume, como em confirmação das pazes, mas vendo a diferente maneira da vida dos padres, mostravam grande espanto, e cobravam muito crédito de sua virtude.

É ainda neste particular incrédulos, chegaram uma vez a lhe perguntar pelos pensamentos e desejos, dizendo assim:

“Nem quando as vedes as desejais?”

Ao que respondeu o Padre Manuel da Nóbrega, mostrando umas disciplinas: “Quando nos salteiam tais pensamentos acudimos com esta mezinha”. De que ficaram muito mais espantados, cobrando maior respeito aos padres. Pregava o velho, aos que vinham do Rio e de outras partes, com intento de matar os padres, dizendo que aqueles padres eram amados de Deus, e se alguém os agravasse logo havia de vir sobre eles a morte, com que os maus entravam em si, e deixavam o mau propósito que traziam de os matar, e aos mesmos padres dizia: “rogai a Deus por mim, pois vedes que eu vos defendo”. E não foi em balde sua petição, porque daí há muitos anos o trouxe Deus a viver entre os fiéis, foi batizado e morreu cristão. Quanto às pazes dizia este mesmo índio: “Antigamente fomos muito amigos dos portugueses, mas eles tiveram toda a culpa de nossas guerras, porque nos começaram a saltear e tratar mal, pelo que, ainda que os de sua parte eram muitos, Deus nos ajudou, por saber que éramos injustamente maltratados”.

O padre lhe respondia: “e porque eu sei que Deus está irado contra os meus, pelos males que vos têm feito, vim cá a fazer as pazes com vós outros, para amansar a Deus, e fazer que perdoe aos meus, os quais de sua parte não hão de quebrar as pazes, que por isso pus eu agora minha vida em perigo; mas se vós outros as quebrais, entendei que a ira de Deus se há— de virar contra vós, e haveis de ser destruídos de todo”.

Isto lhe dizia o padre não por ameaças e feros, mas com tanta certeza, que parecia ter-lhe Deus revelado; porque estes tamoios daquela comarca nunca quebraram as pazes, e seus parentes do Rio de Janeiro e Cabo Frio, que as quebraram, de todo são acabados com guerras que lhes deram, assim o Governador Geral Mem de Sá, por duas vezes, como os governadores particulares da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tirando uns poucos que se fizeram cristãos. E assim se cumpriu a profecia do padre Manuel da Nóbrega, o qual esteve ali com o Irmão José cerca de dois meses, dizendo cada dia missa de madrugada; e aos índios que a vinham ver, dava o irmão razão de algumas coisas conforme sua capacidade deles.

Sucedeu que outros índios da mesma nação deram na torre chamada da Bertioga, situada em uma das barras da ilha de São Vicente, e pondo logo fogo às portas, a entraram, e mataram a um homem com sua mulher, e destruíram toda a família, matando e levando os que quiseram.

Na mesma noite que isto aconteceu, o revelou Deus ao Irmão José, que estava em oração quase toda a noite, como costumava. E logo o disse ao padre diante de Antonio Luís, que depois o referiu em seu testemunho.

Pediu mais o Irmão José ao padre se tornasse para São Vicente, a consolar a gente, e continuar com seu cargo, que ele lhe ficaria em reféns, porque de outra maneira não queriam os contrários, deixar ir o padre.

Aceitou o Padre Manuel da Nóbrega o conselho, e chegando a São Vicente soube serem verdadeiras três coisas que o Irmão José lhe tinha dito, entre os tamoios, em vinte e sete léguas de distância: da morte da gente, e cativeiro da Bertioga, e como um homem conhecido era morto de um desastre, por passar um carro por cima dele, e que havia de chegar àquele porto um navio, como de fato chegou dali a cinco dias, do que deram os homens muitas graças a Deus, e tiveram ao Irmão José em maior reputação, como estas obras mais que humanas mereciam.

Partido o padre durou o cativeiro do Irmão José mais três meses em que esteve só por não ser possível outra coisa, e o padre conhecer bem a virtude de quem tanto confiava. Ocupava-se em fazer práticas àquela fera gente, de coisas de sua salvação, e com isto, e com seu exemplo, e de sua santa vida, muitos fizeram tal conceito das coisas da fé que bem puderam ser batizados, se estiveram em parte mais segura, para não se arriscarem a tornar strás. Tinham-lhe os bárbaros grande respeito, por dizerem que o irmão falava com Deus e também porque os curava em suas enfermidades.

O demônio que não dorme e nem perde ocasião para tentar aos servos de Deus sofria mal ver a uma mancebo metido nas chamas da Babilônia, e não se lhe chamuscar nem um cabelo, porém o soldado espiritual não largava as armas próprias daquela batalha, oração e jejum.

Na oração e familiaridade com Deus foi sempre muito contínuo, e em especial no tempo de tão evidente perigo, ajudando-se da disciplina e aflição da carne, tendo-a por principal remédio para toda a doença espiritual, e principalmente para esta tão contínua e importuna. Sobretudo se ajudava da intercessão da Virgem Senhora, de quem sempre foi mui devoto, e em especial de sua puríssima conceição.

Desenterra e batiza uma criança

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Temperou Deus Nosso Senhor este seu voluntário cativeiro, com muitas consolações que fez a seu servo, umas interiores em seu espírito e outras exteriores que se deixam ver de fora. Por muito certo temos comunicar Deus ao Irmão José muito gosto dalma em todo este tempo, porque o costuma fazer com todos os que, por seu amor e bem das almas, põem a risco suas vidas, porém deste não podemos dar fé, por ser das portas adentro, entre Deus e a alma pura a quem sua divina bondade se comunica.

Das outras consolações exteriores, em que um servo de Deus vê que o toma o mesmo Senhor por instrumento para salvar alguma alma, apontarei duas. Uma menina nasceu quase morta, e batizando-a tornou de todo em si, mas depois de alguns dias se foi ao céu. Ouviu acaso falar umas índias, que uma velha enterrara viva uma criança, neto seu, por não ser de legítimo matrimônio, que também a seu modo, entre estas há aborrecimento ao adultério, que com seu fraco lume da razão o aborrecem; mas como cegos castigam com rigorosa pena a quem não teve culpa no malefício.

Ouvindo, este caso, como digo, perguntou pelo lugar e foi-o desenterrar; e com haver mais de meia hora que assim estava, o achou ainda vivo e o batizou e fez com algumas índias lhe dessem de mamar, com que viveu algumas semanas e se foi ao céu, para aquele Senhor que o guardou com vida na cova, e o tinha predestinado para tanto bem. Com estes e outros bons sucessos, aliviou Deus o cativeiro do Irmão José, e sobretudo quando, no fim dos três meses que esteve só, além dos dois da companhia do Padre Manuel da Nóbrega, alcançou o que pretendia, que era concluir as pazes com os contrários, como pela bondade de Deus concluiu.

Eles mesmos o levaram em uma canoa a São Vicente, donde foram mui bem agasalhados, e desta maneira o Irmão José com sua presença de extraordinária alegria não só ao Padre Manuel da Nóbrega, e aos mais padres da casa, mas também a toda a Capitania, por ficarem todos com esta obra mui obrigados.

E os tamoios dali por diante entravam na Capitania, sem fazer mal algum.

Para o Irmão José compor a vida de Nossa Senhora, em verso, teve esta ocasião. Tanto que se viu metido naquele cativeiro, ainda que voluntário, antevendo os perigos que o haviam de cercar, tomou por veladora à Virgem mãe de Deus, de quem era muito devoto, e prometeu de lhe compor sua vida, para que o livrasse no corpo e alma de todo o perigo de pecado, que quanto aos perigos da vida corporal bem pouco os temia, quem pedia a Deus lhe fizesse a mercê que acabasse ali a vida de tormentos por seu amor.

Cumpriu seus votos discorrendo por todos os passos da Senhora desde sua puríssima conceição, até à gloriosa coroação no céu, tudo em verso elegíaco, tocando as figuras e as profecias de cada mistério com muita graça e devoção. E tais eram todas as obras que compunha.

O modo de compor era este: depois de cumprir com Deus em muitas horas de oração de dia e de noite, e também com a obrigação de ensinar a doutrina a seus amigos, e lavrar com a palavra divina aquelas duras pedras, ia-se à praia passear, e ali, sem livro nenhum de que se pudesse ajudar, nem tinta nem papel, andava compondo a obra, valendo-se somente de sua rara habilidade e memória extraordinária, e sobretudo do favor da Senhora, por cuja honra tomara aquela devota empresa.

E desta maneira compôs a obra toda, e a encomendou ou fechou no cofre da memória, para daí a alguns meses, depois de sair de cativo, a desenrolar e escrever, como escreveu, na nossa casa de São Vicente. Tem esta obra dois mil oitocentos sessenta e seis dísticos, que fazem cinco mil setecentos e trinta e dois versos.

Confirmam três graves testemunhos, esta história. O primeiro de mais momento, é o do mesmo autor que, depois de escrever a obra, fez a epístola dedicatória à mesma Senhora, dizendo que ali lhe oferecia a obra que lhe prometera escrever, estando cercado das armas dos inimigos Tamoios, e tratando com eles o negócio de paz desarmada. Confessa também que com seu maternal amor, fora sempre amparado de maneira que não perigou a pureza de sua alma nem do corpo. E acrescenta que muitas vezes pediu a Deus lhe concedesse acabar a vida com tormentos por seu amor, mas que não foi ouvido, porque a glória do martírio guarda Deus para seus grandes santos e especiais amigos.

Este é o sentido dos seus versos que se seguem:

En tibi quae vovi, Mater sanctissima, quondam
Carmina, cum saevo cingerer hoste latus.
Dum mea Tamuyas proesentia mitigat hostes
Tractoque tranquillum pacis inermis opus.
Hic tua materno me gratia fovit amore,
Te corpus tutum mensque tegente fuit.
Saepius optavi, Domino inspirante, dolores
Duraque cum saevo funere vincla pati.
At sun passa tamen meritam mea vota repulsam,
Scilicet Heroas gloria tanta decet.

Conselho contra a guerra dos maus pensamentos

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O segundo testemunho é de um padre que se queixava ao Padre José que era perseguido de importunos e feios pensamentos, e pedia-lhe o encomendasse a Deus que o livrasse de tão tentação. O padre lhe respondeu, dizendo; “não é boa esta petição; não peçais a Deus que vos tire a guerra, porque disso tem ele cuidado, e sabe o que há-de fazer por vós, e em que ocasiões nos há-de meter. Mas pedi-lhe que vos ajude, porque esta petição lhe é mui agradável, e ainda nesta vida dá o prêmio”.

E acrescentou mais, falando de si: “como aconteceu, ao que no meio de assaz forçosa e contínua ocasião, com ajuda do Filho e da Mãe, não somente não caiu, mas antes foi certificado de ambos, que nunca mais semelhantes ocasiões lhe seriam causa de caída”. E bem se vê que fala deste tempo de seu cativeiro. E daí a três dias chamou ao mesmo padre e lhe disse: “não tereis mais tais imaginações, mas não afrouxeis nunca na cautela necessária”. O que este padre depois sempre experimentou em si, da maneira que lhe dissera o Padre José.

O terceiro testemunho é este: dali a muitos anos contou o Padre José a um religioso nosso este seu cativeiro, e como os tamoios determinavam de o matar e comer suas festas, e lhe diziam:

“Aparelha-te, José e farta-te de ver o sol, porque tal dia te havemos de matar”. Ao que ele respondia:

“Não me haveis de matar, porque não é ainda chagada minha hora”. Acudiu aqui o religioso, a quem o padre contava:

“Com que certeza dizia V. R. isso, a esses gentios?”.

Respondeu:

“Com a certeza da Mãe de Deus, que não queria que eu morresse, sem primeiro lhe escrever a sua vida, que eu tinha já toda composta, passeando pela praia”. Outras muitas obras compôs em diversos tempos, porque tinha para isso muita graça e facilidade, em todas as quatro línguas que sabia, latina, portuguesa e brasílica. Mudava cantigas profanas ao divino, e fazia outras novas, à honra de Deus e dos santos, que se cantavam nas Igrejas e pelas ruas e praças, todas mui devotas com que a gente se edificava, e movia ao temor e amor de Deus.

Nuvem carregada de água sobre o teatro por três horas

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Entre outras muitas, fez uma obra que se representou em diversas partes, com grande aplauso; e a primeira vez que se apresentou, que foi em São Vicente, mostrou Deus com uma evidente maravilha, quanto lhe contentava.

E foi desta maneira: desejando o Padre Provincial Manuel da Nóbrega, evitar alguns abusos, que com atos poucos decentes se faziam nas Igrejas, encomendou ao Irmão José, que fizesse uma obra devota, para se representar na véspera da Circuncisão. E como, entre o português, tinha alguns passos na língua da terra, ajuntou a ouvi-la toda a Capitania. Senão quando sobre-vém uma grande tempestade, e sobre o teatro se põe uma nuvem negra e temerosa, que despedia de si algumas gotas bem grossas, com que a gente começou a se inquietar e despejar os lugares em estavam. O que vendo o Irmão José assomou a uma janela, e disse: “aquietem-se todos e ninguém se vá, porque não há-de chover até se não acabar a obra”. Tornaram-se a sentar pelo respeito que lhe tinham; fez-se a obra, e a nuvem sempre em cima, muito quieta por espaço de três horas que a obra durou, com muita devoção e lágrimas do auditório. E acabada ela e a gente recolhida em suas casas, começa também a nuvem a dizer seu dito, com tal tormenta de vento e água que a todos pôs espanto, e deu nova matéria de louvar a Deus, e de terem a seu servo em maior reputação.

El-Rei D. João recomenda a conversãoo dos gentios — O governador Mem de Sá

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Acabando o Governador Geral Dom Duarte da Costa seu tempo, proveu El_Rei Dom João Terceiro a Mem de Sá , homem letrado, prudente e de grande ânimo, no último ano de sua vida, que foi o de mil quinhentos e cinqüenta e sete.

E estando informando dos graves impedimentos que havia para a conversão, assim da parte dos portugueses, como do mesmo gentio, entre os capítulos do Regimento que lhe deu, para o bem da terra, foi um em que lhe encomendava muito, tudo o que tocava à conversão do gentio.

Começando Mem de Sá, a governar, mandou chamar os principais que moravam ao redor da Bahia. E assentou pazes com eles, metendo por condição, que não haviam de comer carne humana de seus contrários, e que haviam de consentir lhes pregassem os padres o Santo Evangelho e Lei do verdadeiro Deus, o que aceitaram.

Acabou também com eles deixassem algumas aldeias pequenas, e se ajuntassem em outras grandes, e que fizessem Igrejas para mais comodamente poderem ser ensinados, residindo com eles os padres da Companhia, como até agora se guarda. Ele oferecia com sua presença os batismos gerais que os padres faziam e folgava de ser padrinho de alguns índios de mais nome, e assim como era pontual em fazer que os índios guardassem as condições capituladas, assim, era rigoroso em os defender de quem lhes queria roubar a liberdade, ou molestar suas famílias.

Donde veio, mandar uma vez, com mão armada, a pôr por terra as casas de um homem poderoso que prendera em suas casas uns índios como de feito se houvera de executar se o culpado não[1] Aos gentios da comarca de Paraguassu, que molestavam aos índios que estavam nas igrejas, e tinham mortos alguns homens, sem quererem entregar os matadores, confiados em sua ferocidade e multidão, fez guerra tão de propósito, que foi a ela em pessoa, por assim necessário, e matando a muitos deles, e queimando-lhes cento e sessenta aldeias, os sujeitou e fez que pedissem pazes, que lhes concedeu, com eles primeiro edificarem igrejas onde pudessem ser doutrinados dos padres.

Até que as injúrias do tempo, doenças gerais e outras ocasiões os consumiram, depois de serem muitas almas mandadas ao céu. Isto quanto ao gentio da Bahia. Entretanto as coisas no Rio de Janeiro estavam no mesmo estado e pior, porque o poder dos franceses calvinistas, ia muito por diante, com naus que vinham de socorro, e com a multidão do gentio tamoio, amigo seu e inimigo dos portugueses, que à sombra da fortaleza nos perseguiam, como já se disse no capítulo sexto; pelo que o governador se determinou a ir conquistar aquela força, que de presente tanto mal fazia, e por tempo podia vir ameaçar a todo o Estado.

Levou consigo a armada, que para este fim mandara do Reino a Rainha Dona Catarina, que então governava, e outros navios da costa, com soldados e alguma gente nobre da Bahia e de outras partes, que o quis acompanhar, afora a que viera na armada. Chegou a frota ao Rio de Janeiro no princípio do ano de mil quinhentos e sessenta. Combateu-se a fortaleza que parecia inexpugnável e com a ajuda divina, se rendeu. E para que se visse como isto fora obra de Deus, quando já ia a nosso exército faltando a pólvora para a artilharia, entraram os nossos por uma ponta de ilha, desviada e mui fragosa, e ganhando a casa da pólvora, os inimigos, assim franceses como tamoios largaram tudo e fugiram por uma rocha abaixo, e se puseram em cobro nas canoas; e logo se disse missa na fortaleza in gratiarum actionem, da qual em poder dos calvinistas não havia memória. Não se povoou desta vez o Rio de Janeiro, mas mandou o governador guardar a artilharia, que era muita, e o mais que podia servir aos nossos, e destruída a fortaleza se foi a São Vicente dar ordem às coisas daquela Capitania.

E isto feito deu volta para esta Capitania da Bahia a vinte e cinco de junho do mesmo ano. Veio com ele o Padre Provincial Luís da Grã, que fazia a doutrina aos portugueses na nau, por toda a viagem, a que acudia também o governador e estava a ela desbarretado dando exemplo aos outros.

Deu logo conta à rainha do que fizera na jornada, o que a S. A. agradeceu muito; porém de ele deixar a terra sem presídio a risco de entrar outra armada inimiga que fizesse ali assento, com maior poder e perigo nosso, mostrou descontentamento, pelo que lhe mandou a tornasse a povoar, para o que lhe enviou dali a algum tempo novo socorro. Dos franceses uns se foram para suas terras, outros se passaram a seus amigos os tamoios e os ajudavam com ardis, de maneira que fizeram depois outra guerra aos portugueses, tão contínua, e porfiada que não bastou para a concluir uma boa armada que viera do Reino, com o Capitão-mor Estácio de Sá, mas foi necessário tornar o mesmo Governador em pessoa da Bahia com novo socorro, como logo se verá.

  1. Trecho ilegível

No mês de fevereiro de mil quinhentos e sessenta e quatro, chegou da Bahia ao Rio de Janeiro uma armada: parte que tinha vindo de Portugal e parte dos navios da costa que o Governador, por ordem de El-Rei, mandava a povoar o Rio de Janeiro. Era capitão-mor seu sobrinho Estácio de Sá, a quem ele, pelo grande conceito que tinha do Padre Manuel da Nóbrega acerca de sua virtude, prudência e zelo do bem comum e serviço del El-Rei, encomendou muito se ajudasse de seu conselho, como sempre fez. Não havia ali em que pôr olhos, nem no mar nem na terra, senão em tamoios de guerra na terra, e no mar canoas armadas. E vendo o capitão-mor que lhe faltavam mantimentos, canoas e socorro de índios cristãos, e de outros amigos, o que tudo era muito importante para a conquista, se foi o capitão-mor com toda a armada a São Vicente, a refazer e prover de todo o necessário.

E chegou até à Vila de São Paulo, no campo, onde fez pazes com outro gentio que molestava aquela vila; em tudo o acompanhou o Padre Manuel da Nóbrega, que persuadia a gente e animava a que tornassem com o capitão a conquistar e povoar o Rio de Janeiro, acudindo a uns com esmolas, e outros persuadindo e animando com boas razões. Partiu esta frota da barra da Bertioga, no ano seguinte de mil quinhentos e sessenta e cinco, a vinte de janeiro, dia de São Sebastião, que logo ali tomaram por capitão da empresa, e padroeiro da cidade, e orago da Sé, que depois se edificou.

Iam seis navios grandes e nove canoas de guerra, com muitos índios cristãos e gentios amigos, e outros naturais filhos de portugueses, todos esforçados e exercitados naquele modo de pelejar, em canoas, além da principal gente portuguesa dos navios. Mandou com eles o padre Manuel da Nóbrega ao Padre Gonçalo de Oliveira e ao Irmão José, sem cujo conselho ordenou que não fizesse o padre nada; ambos sabiam a língua da terra para confessar, consolar e animar a todas as canoas; tomavam cada dia terra com que o padre tinha lugar de dizer missa de ordinário, e confessar aos que tinham disso devoção. Desta maneira chagaram às ilhas que estão perto da barra do Rio, no princípio de março, por virem esperando pela nau capitânea. Neste lugar começou Deus Nosso Senhor a mostrar que era servido, se povoasse esta terra, e depois o confirmou com favores extraordinários, que no sucesso da guerra aconteceram.

Profecia

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O caso foi que vinham nesta frota de socorro muitos índios da Capitania do Espírito Santo, que dista oitenta léguas do Rio para a Bahia, e, por falta de mantimentos, determinavam de se ir secretamente em suas canoas para suas casas o dia seguinte, porque a nau não chegava, nem uns barcos, que por ordem do capitão-mor tinham ido a buscar provimento, à mesma Capitania do Espírito Santo.

Nisto quis Deus que o padre e o irmão sem saberem o que determinavam, os foram buscar e visitar, a quem eles descobriram seu desígnio, mas o irmão José os consolou, dizendo que confiassem em Deus, que ao seguinte dia lhes mandaria remédio. Estando nestas práticas, eis senão quando aparecem três barcos do Espírito Santo, com provisão do necessário. E ao dia seguinte pela manhã aparece a anu capitânia, com que os índios ficaram espantados, e deram muitas graças a Deus, e se determinaram ajudar naquela empresa aos portugueses.

E desta maneira, toda a frota entrou no Rio em uma maré, e se recolheram pela banda da mão esquerda da barra, em uma enseada detrás de um penedo altíssimo, a que chamam o Pão de Açúcar, onde se diz agora a cidade velha.

Durou esta conquista alguns anos, com guerra contínua, muita fome e outros apertos. Viviam os homens como religiosos, confessando-se e comungando amiúde, pelejavam com grande ânimo, com a confiança em Deus, à sombra do seu capitão, que de esforço e virtude era a todos um vivo exemplo.

E assim lhe metia Deus nas mãos insignes vitórias. Porque com serem os nossos muito poucos, assim portugueses como índios, umas vezes com alguma perda, e outras sem nenhuma, ordinariamente levavam a melhor dos tamoios, ainda que soberbos e confiados nas vitórias passadas e em sua multidão, e nos arcabuzes dos franceses que os acompanhavam.

Dão os pelouros nos peitos, e caem aos pés dos soldados

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Dos nossos saravam muitos de flechadas mortais com pouca cura, e a outros dava o pelouro no peito nu, e como se fora de prova, lhe caía aos pés, como aconteceu a luís de Almeida, e a um índio de São Vicente, que pelejava nu, da sua canoa, conforme a seu costume, por nome Marcos, e a outros.

Milagre

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Algumas vezes deram os inimigos assalto na cidade que não era mais que uma cerca de pau a pique e casas de palha. Em uma delas, ajuntando-se muitos inimigos, estava o padre junto do altar de joelhos em oração, e as flechas que vinham de mais alto, passando o telhado de palha, se pregavam no chão ao redor dele, sem lhe tocarem. Os soldados defendiam a cerca, e de quando em quando alguns chegavam à Igreja, e vendo o padre naquela postura, cercado de flechas cobravam ânimo e tornavam ao combate, com mais esforço, até que de todo fizeram fugir os inimigos.

Vitória naval de cinco canoas contra cento e oitenta, sendo capitão Estácio de Sá

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De muitas maravilhas, que nosso Senhor obrou em favor dos nossos, uma só contarei e muito insigne. Enfadados os Tamoios de se verem levar sempre a pior, ajuntaram por espaço de tempo uma grande frota de canoas de guerra, que chegaram a cento e oitenta, para concluírem com a guerra de uma vez. E para fazerem a coisa mais a seu salvo, não quiseram acometer a cidade, mas tomar os nossos no meio de uma cilada, escondendo as canoas em uma enseada, uma légua de nossa povoação.

Mas para mais se ver que Deus tinha tomado esta empresa à sua conta, permitiu que alguns naturais da terra, moradores na Capitania de São Vicente, receiando o combate se fossem com suas canoas, deixando o capitão-mor somente com cinco canoas; mas nem por isso os mais perderam o ânimo e confiança em Deus.

Nisto saem da cilada umas poucas de canoas, o nosso capitão dá-lhes caça com as cinco; dão volta os inimigos, como que fugiam, e metem os nossos dentro da cilada sem nenhum remédio humano; e o pior foi que pondo os nossos fogo a tiro que a canoa capitania levava, toma fogo a pólvora da canoa, e dá com alguns soldados no mar, meio queimados; mas logo se recolhem a ela.

Acode aqui por seus soldados a Divina Misericórdia, mete espanto à mulher do capitão tamoio, e começa a bradar: “grande fogo vem sobre nós, para nos queimar a todos”. A esta voz mete Deus grande terror e medo nos contrários que dão em fugida à voga arrancada, a quem mais podia remar, e aparece a multidão das que estavam na enseada, fugindo também com as mais.

Os nossos os seguem um pedaço, mas logo se recolhem à cidade, dando muitas graças a Deus Nosso Senhor, autor de vitória tão maravilhosa, e não esperada, em lugar da morte que tão certa tinham.

Apareceu o mártir S. Sebastião aos inimigos

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Acudiu a esta vitória também o favor do glorioso mártir São Sebastião, que foi visto dos tamoios, que depois perguntavam quem era um soldado que andava armado, muito gentil homem, saltando de canoa em canoa, que os espantara e fizera fugir. Com este bom sucesso amainou a fúria dos tamaios, até que depois, com o socorro que foi da Bahia, se começaram a sujeitar e pedir pazes.

O Pe. Inácio Azevedo, primeiro visitador

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No ano de mil quinhentos e sessenta e sete, véspera de São Sebastião, chegou da Bahia com outra armada, o Governador Mem de Sá, a povoar o Rio de Janeiro, como por S. Alteza lhe era mandado.

Foram em sua companhia o Bispo Dom Pero Leitão, que ia visitar seu bispado, e o padre Inácio de Azevedo, quando a primeira vez veio, por visitador, enviado pelo nosso Reverendo Padre Geral Francisco de Borja, que chegou à Bahia aos vinte e quatro de agosto, de mil quinhentos e sessenta e seis anos.

Colégio do Rio de Janeiro

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Destruiu o governador duas aldeias de tamoios, muito fortes, que tinham consigo franceses. Tomou o sítio para a nova cidade, e aquietado tudo, e lançados os contrários do Rio e sua comarca, se tornou para a Bahia, deixando por capitão e governador do Rio de Janeiro a Salvador Correia de Sá, seu sobrinho, por ser falecido o capitão-mor Estácio de Sá. O qual defendeu valorosamente a Capitania, assim dos corsários como dos gentios, que por vezes a vieram molestar.

Também o Padre visitador Inácio de Azevedo tomou sítio para o nosso Colégio, que pela piedade e liberalidade de El Rei Dom Sebastião, se fundou, com dote e renda para cinqüenta religiosos. E ordenou o padre fossem anexas ao Colégio, e sujeitas ao reitor dele, as nossas casas que estão situadas nas Vilas de São Vicente e São Paulo e a casa da Capitania do Espírito Santo.

Neste Colégio se lê uma lição de Latim, e outra de ler e escrever, e a terceira de casos de consciência, quando há ouvintes.

Sempre em guerras e batalhas, entre os soldados de nome e de valor se acha mais assinalado e de conhecida vantagem, que mostra seu ânimo em algum feito de armas dificultoso, e alcança a vitória não esperada.

Tal foi um índio cristão em todas estas guerras, contra franceses e tamoios, de cujo esforço confessaram os capitães portugueses ser tão levantado, que sem ele nunca se tomara o Rio de Janeiro, de modo que se pode chamar honra dos índios cristãos do Brasil. Chamava-se pelo nome português Martim Afonso de Sousa, e pelo da terra Ararigbóia. O primeiro feito por onde começou a ter nome foi este. Achou-se em um navio de um português em um porto de gentios, os quais se levantaram para o matar, e roubar o navio. Mas no tempo da briga todos se meteram debaixo da coberta; só Martinho ficou no convés, pelejando com seu arco e flecha, com que fez afastar os inimigos e salvou o navio. Foi-se à Capitania de São Vicente aonde os nossos estavam em aperto, pela guerra do gentio vizinho e aqui se fez grande soldado. Depois vindo à Capitania do Espírito Santo, foi principal de uma aldeia, e ajudou a defender a vila contra uns franceses que procuravam de a entrar.

E quando o Governador Geral Mem de Sá foi à conquista do Rio de Janeiro, dali o levou com gente de peleja, pela fama que tinha de seu valor. Por todo o tempo da guerra que durou muitos anos, se houve este índio tão esforçadamente, que foi havido por um valoroso capitão, no conselho prudente e acertado, na confiança em Deus, como qualquer bom cristão pelejando por sua honra, no ânimo fiel aos portugueses, e no arco ninguém melhor, como se verá no sucesso seguinte.

Sendo governador do Rio de Janeiro Salvador Correia de Sá, como está dito, morava este índio uma légua além da nova cidade, mais dentro da enseada, junto da praia; e os franceses continuavam seu trato do pau-brasil com os tamoios, no Cabo Frio, dezoito léguas do rio para o Norte.

Aconteceu que estando ali umas quatro naus, os tamoios, magoados de Martim Afonso, rogaram aos franceses que antes de se partirem, os ajudassem a ir tomar aquele comum inimigo. Vieram nisso os franceses, deram a vela com as quatro naus e oito lanchas carregadas de gente de guerra dos tamoios, além das canoas sem conta, para lançarem gente em terra. Ao passar por defronte da cidade, não houve resistência, porque ainda não havia fortaleza na barra nem ao longo da praia. Perguntaram os nossos, para onde era a ida; responderam das naus, que iam tomar a Martinho e entregá-lo aos tamoios. Os nossos acudiram que não só com Martinho o haviam de haver, mas também com eles. O governador fortificou a cidade, recolhendo a gente que havia, para qualquer coisa que o inimigo intentasse, e logo mandou à Capitania de São Vicente pedir socorro de gente, canoas e armas, e o índio também fez o mesmo em sua aldeia, entrincheirando-a toda em roda de pau-a-pique, não tendo dentro mais que sua gente e os padres da Companhia para os esforçarem na peleja; desembarcaram os inimigos, assim franceses mui bem armados, como gentios tamoios que cobriram a praia e campo.

Nesta conjugação acodem alguns moradores à aldeia, dos quais foi um Duarte Martins Mourão, e levando de noite um falcão pedreiro em uma canoa grande, o meteram na aldeia sem serem sentidos do inimigo.

Vendo Martim Afonso este socorro se alegrou grandemente, e com os olhos cheios de lágrimas de contentamento, disse: “isto estava eu esperando de tão bons amigos”. E chamado pelos seus lhes falou desta maneira: “Filhos, arrancai-me essas tranqueiras, que já não temos necessidade delas; saiamos, demos nesses inimigos em nome de Jesus, e do bem-aventurado São Sebastião.”

Saltam logo na trincheira, abrem toda a aldeia, armados de confiança em Deus, e esforçados com o exemplo dos portugueses, dão nos inimigos. Entretanto o tiro começa a fazer seu ofício nas naus que ficaram em seco na baixa-mar, matando a muitos dentro nelas e pela praia, e posto que os inimigos fizeram muita resistência, finalmente puseram em fuga aos contrários, e seguindo o alcance fizeram mui grande estrago, com pouca perda dos nossos. As naus vindo a maré se foram ao alto e se consertaram e tornaram na volta do Cabo Frio, bem destroçadas e faltas de gente, com que a terra ficou desassombrada, e os contrários abatidos, com as forças e ânimos quebrados.

Foi informado El-Rei Dom Sebastião deste bom sucesso, e da valentia de Martim Afonso, e das façanhas que tinha feito e fazia em seu serviço, pelo que lhe mandou o hábito de Cristo, com doze mil réis de tença, e pelo tempo em diante lhe mandou algumas peças de estima, até lhe mandar uma vez um vestido de seu corpo, inteiro e acabado. O governador da cidade, Salvador Correia de Sá, ajudando a Martim Afonso com os soldados que pode, guardou a cidade de maneira que os inimigos não ousaram acometer. Daí a alguns dias chegou socorro de São Vicente, e o governador mandou ao assalto ao Cabo Frio a tomar língua e saber o que passava, e achou serem já as quatro naus idas sua viagem, para a França e ser chegada outra de novo com muita mercadoria; tratou então com os soldados e índios principais o que fariam, e vendo que todos estavam desejosos de pelejar, os seus alentados com a vitória passada, e os de São Vicente por não voltar as suas casas sem fazerem nada, determinou a ir em pessoa com a gente de guerra a acometer a nau com canoas. Partiram do Rio, e tanto que chegaram a certa paragem, donde as espias dos tamoios os viram, avisaram aos franceses, que zombaram bem de poder ser tomada sua nau, que era de duzentas toneladas, com corchos do rio de Janeiro, que assim chamaram as canoas de guerra. Contudo consertaram a nau com sua xareta e artilharia e eles armaram-se para a defender. Nisto chegaram as canoas na madrugada, e cercam a nau pondo-se ao socairo dela, de modo que os tiros não pudessem fazer dano, donde defendem que nenhum francês apareça a bordo sob pena da flecha.

Acometeram os nossos a subida, mas foram rebatidos com piques e outras armas, e principalmente com alcanzias de fogo. E entre outros o mesmo governador foi três vezes ao mar, armado e sem saber nadar, mas em caindo logo os soldados e índios o tiravam e punham em salvo.

Foi a briga mui travada de parte a parte, enquanto o capitão francês andou em pé pelejando mui esforçadamente com duas espadas, e como estava todo armado, o não podiam as flechas ferir, ainda que lhe davam muitas; espantado disto, um índio da terra perguntou se tinham aquelas armas algum lugar por onde lhe pudesse meter alguma flecha, e dizendo-lhe que só pela viseira, lhe apontou uma tão certa, que o derrubou e matou com ela. Vendo os mais o seu capitão morto, e a muitos dos seus mal feridos, se recolheram abaixo, aonde não escaparam, porque o governador com os seus os entraram e renderam. Os tamoios que estavam escaldados de fresco, viram a briga de terra, mas nenhum se atreveu ajudar a seus amigos.

Trouxeram a nau com muita festa para o Rio de Janeiro; vestiu o governador a todos os índios de bons panos que acharam, e o mais repartiu com os soldados; a artilharia ficou na cidade, e a nau mandou à Bahia, ao Governador Geral seu tio; e ele ficou sem nada, ou para melhor dizer com tudo o que mais estimava, que era a honra e a benevolência dos soldados, que sempre pelejaram com muito esforço e bons sucessos, à sombra de tão valoroso capitão. Posto que os tamoios foram deitados da Capitania do Rio de Janeiro, não se acabou contudo sua contumácia; antes recolhendo-se ao cabo Frio, onde tinham sua força, dali salteavam por mar, em suas canoas as Capitanias vizinhas do Rio e do Espírito Santo. Até que no ano de mil e quinhentos e setenta e cinco, governando a Capitania do Rio o Doutor Antonio Salema, foi com grosso exército a fazer-lhes guerra em suas próprias terras, onde matando e cativando a muitos mil deles, destruiu de todo aquele soberbo gentio. Dando somente vida e liberdade a alguns que hoje estão nas aldeias de São Lourenço e São Barnabé, do Rio de Janeiro, de que os padres da Companhia têm cuidado. E com isto damos fim às coisas do Rio de Janeiro, e sua conquista, e já o tempo pede que tornemos a continuar com as que são mais próprias do Padre José, posto que assim ele como o Padre Manuel da Nóbrega e outros padres não tiveram pequena parte nos trabalhos e conquista do Rio de Janeiro.

Morte do índio Martim Afonso. Testamento de Martim Afonso

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Concluirei este capítulo com a morte do índio Martim Afonso, de quem no princípio falei. Foi ele mui devoto, em sua vida, do mártir São Sebastião, e contava que nos tempos dos combates contra os tamoios e hereges, vira ao glorioso santo ir discorrendo pelas canoas, amparando os nossos, e fazendo nos inimigos grande estrago

E assim na hora da morte com muita fé e devoção, falando a seu modo com o santo, lhe dizia: “Irmão capitão, assim como na vida sempre me ajudastes a vencer os inimigos visíveis, assim agora na morte, que tenho maior necessidade e estou em maior perigo, ajudai— me a vencer os invisíveis”.

E depois de receber os Sacramentos e o da Santo Unção, chamando a seus parentes, fez seu testamento, e repartiu com eles uma grande herança, não de coisas temporais, que ele não tinha, nem os índios estimam, mas de maravilhosos conselhos, quais um virtuoso pai e muito temente a Deus, pudera dar a seus filhos naquela hora, para se conservarem em virtude, diante de Deus e dos homens, e quais de um bárbaro brasil se não podiam esperar. Porém a graça divina não enjeita boas vontades.

Dizia-lhes naquele passo: “Irmãos e filhos meus, a herança que vos deixo é que sejais muito amigos da Igreja, fiéis aos capitães, caritativos com os brancos e obedientes aos padres que de nós têm cuidado, porque por estas boas obras vos fará Deus muitos bens como a mim sempre me fez.

A minha casa foi sempre estalagem de brancos, nunca vi a nenhum deles nu que não despisse a minha roupa para o cobrir, nunca o vi na guerra flechado que não o tomasse às minhas costas, e o pusesse em salvo, nunca vi branco na batalha em perigo que não pusesse meus peitos diante dele por rodela, antes para Deus me livrar de perigo, achava por remédio acudir aos que via em maior aperto, e desta maneira me fez Deus muitas mercês em vida, livrando-me de evidentes perigos na guerra, e me fez outros favores que todos sabeis, e finalmente no cabo de tantos anos me dá agora uma morte sem dores e tão quieta como vedes”.

E desta maneira deu sua alma a Deus, com muita consolação sua edificação dos presentes.

Por ordem de seus superiores veio o Irmão José, ao Colégio da Bahia a tomar Ordens, que lhe deu o Bispo Dom Pero Leitão, com muita consolação sua por se conhecerem do tempo dos estudos de Coimbra, e já então entre os estudantes, haver grande conceito de sua virtude.

No ano de mil quinhentos sessenta e sete tornou o Padre José para a Capitania de São Vicente em companhia do Padre Inácio de Azevedo, que governava a província com título de visitador, e do mesmo Bispo Dom Pero Leitão, que ia visitar as partes do sul, por ainda então não haver administrador, a cujo cargo hoje estão.

Começou o Padre José daí por diante a exercitar os ministérios da Companhia com mais autoridade e fruto, usando de admoestações públicas com muito zelo, e de secretas com muita brandura, com que reduzia os pecadores ao caminho de sua salvação. Nem se esquecia da caridade com os índios; antes os ajudava mais no espiritual, e defendia no temporal, como em outra parte se dirá

Daí a alguns tempos sucedeu que dois homens de consciências largas e de nome entre o gentio contrário, temendo o castigo de suas graves culpas, se levantaram e com suas famílias se foram meter com os gentios inimigos, pelo que com razão se temia não viessem com pode de gente a destruir a Capitania. Vendo o Padre José que não havia contra este perigo forças humanas, e confiado só nas de Deus, se determinou de ir em pessoa, a buscar os alevantados, e reduzi-los à obediência do seu capitão, levando-lhes largos perdões de todo o passado. Foi com ele o Padre Vicente Rodrigues e outros homens e um índio mui esforçado, que depois de Deus foi todo o remédio de sua vida, no perigo em que se viu.

Tinham navegado por rios oito dias, em uma canoa de casca. São estas inteiriças, de grossura de um bom dedo polegar, mas têm um mal que, em se alagando, se vão ao fundo sem mais aparecerem, o que não têm as de pau, que por mais que se alaguem ou virem, nunca se vão ao fundo.

Chegaram os navegantes a uma cachoeira ou salto do rio por onde navegavam a remo, e os padres iam rezando as hora de Conceição de Nossa Senhora, senão quando se vão todos ao fundo com a canoa, em altura de quatro ou cinco braças de água, mas todos saem a nado, só o bom Padre José não aparece.

Não sofreu o coração ao índio deixar ali o padre, sem saber o que era feito dele. Mergulha e anda-o buscando por bom espaço de tempo, e não o achando, vem-se acima tomar fôlego e descansar um pouco. Deita-se outra vez de mergulho, e quer Deus que o ache, assentando no fundo. Pega dele pela roupa, e o padre deixa-se vir sem aferrar do índio, e desta maneira vem acima são e salvo, com suma alegria e satisfação dos presentes. Esteve debaixo da água obra de meia hora, não desacordado, antes muito em seu juízo, lembrando-se de três coisas, como depois dizia: de Jesus, e da Virgem puríssima sua Mãe, e de não beber água como de fato não bebeu.

Não se acabaram aqui os trabalhos daquele dia, porque era já noite e chovia, e acharam— se em um mato espesso, sem fato para mudar, nem coisa para comer, nem fogo com que se enxugar, nem uma choupana em que se meter, nem caminho que seguir; finalmente faltando todo o remédio humano, lhes acudiu o Senhor, porque, andando assim às apalpadelas um pedaço de mato, foram dar nas mesmas casas dos homens que iam buscar. Os quais vendo os padres tão maltratados, de tal maneira se lhes mudaram os corações que, lançados aos pés do Padre José, com muitas lágrimas diziam: “ainda padre, meus pecados haviam de abrange V. R. “? Recolheram-nos logo em suas choupanas, e os proveram de todo o necessário com muita caridade. E vendo o perdão que lhes levava, e o trabalho que por eles tomara tão arriscado, foi fácil acabar com eles se tornassem para São Vicente. Porém dali a um ano, sucedeu um grave desastre; e foi que um destes homens fez por vezes instância ao capitão, lhe desse licença para se tornar ao sertão, que lhá negou por justas causas, o que le tomou tão mal que tratou ao capitão com palavras descomedidas e afrontosas, pelo que um filho do capitão o matou com uma flechada, de que logo acabou sem confissão.

Notaram algumas pessoas, o dia e acharam que foi a morte dali a um ano, no mesmo dia em que Deus por meio do padre o tirara do sertão, e do mau estado em que lá vivia. E atribuiu-se a justo castigo de Deus, por estimar em pouco a mercê que lhe fizera.

Antes do Padre José, quatro provinciais criaram e governaram esta Província, e com seu exemplo e prudência, a puseram em grande altura de perfeição, virtudes religiosas, letras e espírito, donde nasceu o fruto mui abundante, de que todo o Estado do Brasil gozou, com muito proveito das almas e geral edificação, trabalhando assim de melhorar os bons costumes nos portugueses, como de plantar e conservar a fé entre os bárbaros, novamente convertidos. Foram estes o Padre Manuel da Nóbrega, primeiro provincial; o Padre Luís da Grã, o segundo. Não desmerece o terceiro lugar o santo Padre Inácio de Azevedo. Posto que não governou a Província como provincial, porque a tinha já governado, a primeira vez que veio a ela, como visitador; e da segunda, que vinha como provincial, a honrou e enriqueceu com seu santo martírio, dando a vida pela fé, a quinze de julho do ano de mil quinhentos e setenta, no mar da ilha de Palma, uma das Canárias, com trinta e nove companheiros. Lê-se este martírio pelo mesmo tempo nos Colégios desta Província do Brasil, e o escreveu o Padre Pedro de Ribadeneira, na vida do Padre Geral Everardo Mercuriano, de boa memória, por estar informado e satisfeito das muitas partes, que para o cargo concorriam no padre.

Profecias

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Neste tempo andava o Padre José em missão na Ilha de Itaparica, a maior das que há na Bahia, confessando e dando remédio de salvação aos índios, por haver ali ainda então muitos. Mandou-lhe o padre provincial, seu antecessor, recado que se viesse para o Colégio, o que logo fez, e o recado o tomou estando atualmente assentado em um tição, confessando uma índia velha muito doente, deitada na rede junto ao fogo. Quisera o Senhor da casa melhorar o assento, mas ele não o consentiu, dizendo que antes de acabar aquela confissão, lhe haviam de trazer outro assento de menos gosto seu. E assim foi, que antes de acabar a confissão chegou o recado, que disse.

Nem é muito, estando à porta deste cargo, antevê-lo, pois havia mais que um ano lh’o tinha Deus revelado, na nossa casa de São Paulo, como consta do testemunho do Padre Agostinho de Matos, que então era irmão, e foi presente a tudo e o refere desta maneira: “Indo o Padre José visitar aquela casa, estando ao fogo no inverno, diante de três padres e de dois irmãos, disse quase zombando: “ora, olhai o que dizem as velhas, que hei de ser provincial, e que boas costas tenho”; disse mais que havia de ser reitor da Bahia, mas que não havia de servir para o cargo.

Espantados os presentes notaram o dito do padre e o tempo, e vendo depois que tudo assim se cumprira, deram a Deus muitas graças, por se comunicar a seu servo, tão extraordinariamente.

Vindo o Padre José ao Colégio, fez o padre provincial uma prática, e leu a patente do nosso padre geral, entregou o cargo ao Padre José, e se despediu beijando os pés a todos com muitas lágrimas, assim dos superiores como de todo o colégio que estava presente. O Padre José aceitou o novo trabalho com muita dor e sentimento seu, e ao dia seguinte, fazendo outra prática, em que nos pediu a todos o ajudassem com suas orações, lhes beijou também os pés.

Virtudes que mostrou no governo — 1578

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Começou a governar a Província no ano de mil quinhentos e setenta e oito, e o continuou por obra de sete anos com muita prudência e inteireza, temperando-a com sua natural brandura e benignidade, sendo em todo aquele tempo o que sempre fora, na oração e familiaridade com Deus, e no tratamento de sua pessoa mui exemplar, e nada pesado aos súditos, antes a todos um vivo retrato de virtudes, de modo que, calando, parece que dizia o que São Paulo escreve aos filipenses, capítulo quarto, que fizessem o que dele aprenderam, por obra e por palavra, quae didicistis et accepistis et vidistis in me haec agite. Então se mostrava com todos mais fácil e humano, de modo que folgavam de se confessar com ele os de casa, antes que com seus confessores ordinários. Nas viagens que fazia por mar, vigiava toda a noite, para que os outros dormissem descansados, e quase todo esse tempo gastava em contínua oração. Caminhando por terra sempre conservou seu antigo costume de andar a pé e descalço, com o bordão na mão.

Mansidão

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Tinha singular graça e modo para temperar discorde, e consolar afligidos, e desassombrar tentados, mas o que ele muito se enxergava, era uma contínua paz e mansidão, enquanto se queriam ajudar aqueles com que tratava.

Acho nos testemunhos dos nossos padres, dois passos em que ensinou de palavra esta virtude, que em seu peito tinha mui altas raízes. O primeiro é este: ouviu contar que dizia um padre que não havia o superior de passar por falta de súdito, sem a emendar com aviso, repreensão ou penitência. Louvou o Padre José o dito, e acrescentou: “e eu digo que não há de haver falta, no súdito, que o superior a não chore duas a três vezes primeiro, diante de Deus, que lhe falte nela”.

Segundo passo: perguntou o Padre José, sendo provincial, porque se houvera asperamente com um súdito. Respondeu: “quem me deu o ofício de ministro, me instruiu que não deixasse passar ocasião, em que pudesse exercitar os súditos em paciência, que o não fizesse”.

A que o Padre José, acudiu dizendo:

“Pois eu in nomine Domini, vos dispo agora esse hábito de rigor e vos visto outro de mansidão, com que nunca deis ocasião a nenhum súdito de impaciência, senão de todo amor e afabilidade”.

O padre que era ministro prometeu de o cumprir e assim o fez e faz hoje em dia, e conta isto que passou com o Padre José. E foi este o Padre Afonso Gonçalves.

Doenças do Padre José

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As doença e indisposições do Padre José foram muitas e quase contínuas, por todo o tempo em viveu no Brasil, que foram quarenta e quatro anos, nas quais sempre mostrou muita paciência, ânimo e exemplo. Tiveram elas princípio daquela grande que teve em Coimbra, que se lhe gerou, do que direi.

Servia na sacristia, e tinha por ocupação ajudar cada dia a oito ou mais missas, de joelhos, do qual trabalho, como noviço, se não sabia escusar, e pela devoção e gosto espiritual que sentia, não imaginava poder-lhe dali vir dano algum. Todavia daqui se lhe veio a gerar uma dor em uma ilharga, que muito o atormentava, mas não deixava de ir por diante em sua em sua santa ocupação.

E quando lhe vinha a dor, não fazia mais que, torcendo-se acudir ao lugar em que a sentia, e com a mão no ourelo apertar-se rijamente, o que fez tantas vezes, e com tanta força, que veio a abalar os ossos do espinhaço; e assim apareceu aquele jeito nele, sem nunca mais tornarem a seu lugar. Uma das coisas que mais realçava suas virtudes, oração e mais exercícios espirituais, e o zelo da salvação das almas, é que nunca suas doenças e indisposições foram causa de se negar a nenhuma empresa desta qualidade, ainda que muito trabalhosa, nem o acovardaram para deixar de fazer com muita perfeição, as obras que pedem muita atenção no interior, e no exterior devota composição.

Louvor semelhante àquele que os escritores de vidas de santos dão ao Papa São Gregório, e a São Jerônimo, e a outros grandes servos de Deus em todas as idades, que lutando quase de contínuo com as enfermidades, não afrouxaram em suas santas ocupações.

De sua morte gloriosa — Idade do Padre

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Ajuntaram-se à sua pouca saúde outras doenças, causadas de novo de frios, fomes, cansaço, e outras incomodidades corporais, das quais por irem em crescimento com a idade, entendeu serem já poucos seus dias.

Estava neste tempo, na casa do Espírito Santo; recolheu-se para uma aldeia dos índios, quatorze léguas da vila onde nossos padres residem doutrinando a gente da terra, do orago de Nossa Senhora, de quem era devotissimo. Parece que quis receber da mão de Deus a morte entre os índios, em cuja conversão, com muitos trabalhos, tinha recebido da mão do mesmo Senhor muita perfeição. Adoeceu e durou a enfermidade obra de seis meses, fazendo várias mostras de mais, ou menos saúde.

Veio-se à vila por ordem do Superior Sacramento da Eucaristia por Viático, e depois o da Santa Unção, e ao mesmo dia entrou no artigo da morte, estando presente cinco padres nossos que residiam nas aldeias.

Esteve agonizando obra de meia hora, com tanta quietação e paz, como se estivera em oração, e com os olhos agradecia as lembranças que lhe faziam. E assim deu seu espírito a Deus, em nove de junho de mil quinhentos e noventa e sete anos, dos quais viveu na Companhia quarenta e sete, e dezessete de que entrou nela, são sessenta e quatro, que foram os que viveu neste mundo, três em Portugal e quarenta e quatro no Brasil.

Sabida a morte do bom Padre José, houve muitas lágrimas e geral sentimento nos padres, nos portugueses e índios de toda a Capitania, porque todos o tinham por pai, e sabiam quanto o haviam de achar menos em suas necessidades. Foi amortalhado sem cal nem outro defensivo para a corrupção e mau cheiro, e, metido em um caixão, o trouxeram os índios às costas, e o padre João Fernandes o acompanhou a pé aquelas catorze léguas, e no cabo da jornada disseram os índios que, em lugar de cansaço, sentiram muito alívio e consolação, e o mesmo afirma de si o padre em seu testemunho. Os índios todos da própria aldeia vinham por essas praias pranteando-o, e seguindo os que o traziam, porque a todos tinha merecido muitas mostras de amor. Chegado o corpo ao porto da Vila do Espírito Santo, acudiu logo o Capitão Miguel de Azeredo, o Administrador Bartolomeu Simões Pereira, com toda a clerezia, os religiosos de São Francisco, que ali têm casa, o provedor da Santa Misericórdia com a Irmandade, bandeira e tumba, ricamente ornada, as confrarias com sua cera, e toda a gente da vila. Trouxeram-no da praia o provedor e Irmãos da Misericórdia na sua tumba, até à porta da nossa Igreja, onde os nossos padres o tomaram e levaram ao lugar da sepultura. O Administrador com os clérigos e religiosos, lhe fizeram o ofício de nove lições , com toda a solenidade e música possível, e ao outro dia lhe cantaram a missa, e o mesmo Administrador lhe pregou as exéquias, referindo alguns milagres que Deus por ele obrara, e chamando-lhe apóstolo do Brasil, com outras coisas de muito louvor de Deus, e honra do defunto. Houve grandíssimo abalo de lágrimas, assim no acompanhamento da praia, como no sermão, porque de todos era muito amado e reverenciado. E muitas pessoas houve que pela opinião que tinham da santidade do padre, em lugar de o encomendarem a Deus, se encomendavam a ele, que os favorecesse com este Senhor.

Duas Profecias

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Para Deus Nosso Senhor honrar mais a seu servo ordenou que, neste enterramento, sucedessem coisas por onde se cumprissem duas profecias, que o padre muito antes que falecesse tinha dito haviam de acontecer depois de ele morto. A primeira é esta: João Soares, morador da Vila de São Paulo, amigo antigo do Padre José, acertou de se achar nesta Capitania na doença do padre; foi-o visitar, e o padre, entre outras, lhe disse estas palavras: “filho, ficai-vos embora, que já nós não nos veremos senão no outro mundo; mas vós neste me tornareis a ver, mas será de maneira que eu vos não possa falar”.

Daí a algum tempo trouxeram o corpo do padre à vila, achou-se João Soares na praia com mais gente e, querendo os irmãos da Misericórdia levantar o caixão para darem princípio à procissão, acudiu ele, pedindo ao Administrador lhe deixasse ver o morto, que tão boa doutrina lhe tinha dado em vida. Consentiu o Administrador, abriu-se o caixão, chegou-se a ele João Soares com outros homens, viram o corpo e deram fé que não tinha nenhum mau cheiro, com haver três dias que era falecido, e trazendo-o com tanto abalo caminho de quatorze léguas, com que se cumpriu o que o padre dissera a João Soares. E ele o depôs assim em seu testemunho.

A segunda foi deste modo: muitos anos antes, sendo provincial, estando no Colégio da Bahia, avisou ao Padre Gregório Serrão que havia de ir para o Rio de Janeiro. Disse o padre:

“Sabe Vossa Reverência como eu ando?”

Respondeu o Padre José:

“Sim, sei”.

“Contudo isso me manda?”

Respondeu:

"Sim".

Acrescentou o padre:

"Bota-me de si?"

Acudiu o Padre José:

"Isto não. Vade, frater, quia postea locus nos conjunget".

E assim aconteceu, que o Padre Gregório Serrão, faleceu na casa do Espírito Santo, e está enterrado na capela de São Tiago e o Padre José foi sepultado na mesma capela junto dele, cova com cova. Por tudo seja Deus glorificado em seus Santos, amém.

Havendo de tratar neste livro das sólidas e religiosas virtudes do Padre José, é bem que demos princípio a esta matéria, pela oração, porque a comunicação familiar com Deus, que nela se aprende e exercita, é a fonte donde todas elas nascem, e donde tomam lustre e perfeição. O espírito da oração é o que dá ser à vida religiosa, acende o zelo das almas, e é o fundamento das profecias e milagres, quando Deus é servido de os fazer, por algum instrumento digno de sua santa mão.

Muitas virtudes do Padre José se mostram no que de sua santa vida se escreveu, no livro primeiro. Mas de propósito colhi e guardei algumas flores, para este segundo, porque consideradas juntas por si, fora de guerras e outros negócios, farão maior impressão na memória e maior desejo de as imitar, a quem as ler, ou ouvir ler.

Oração contínua

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Era o Padre José homem de muita oração, muito exercitado e contínuo nela, dormia muito pouco e quase toda a noite gastava com Deus, ora passeando pelos corredores sem sapatos, ora de joelhos a um canto, ora na igreja. E às duas horas depois de meia noite, se ia encostar sobre o catre, vestido, sem nunca usar de lençóis.

Em todas as coisas que tratava, grandes e pequenas, prósperas e adversas, sempre achava e andava com Deus. E o que é muito de espantar, com tanta destreza descia a cumprir com as empresas do serviço de Deus, que trazia entre mãos, que parece que nem a terra, nem no céu faltava um ponto. Assim sabia temperar a obrigação de Marta com a contemplação de Madalena, que nem o cuidado exterior do bem do próximo o perturbava, nem o trato contínuo com Deus dava lugar a o terem por ocioso. Antes muitas pessoas, quando menos o esperavam, o achavam consigo, em seus perigos da alma e do corpo, como ao diante se verá.

Tal foi o Padre José em todo o tempo de sua vida, sempre um, sempre semelhante a si mesmo, no espírito da oração, pelo que não há que espantar das maravilhas que dele se contam, nem da grande perfeição da virtude a que chegou, pois nesta escola do Espírito Santo continuou com muita diligência, por espaço de quarenta e quatro anos, que tantos viveu no Brasil.

Composição exterior na oração

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A exterior composição na oração devia de ser sempre, tal qual foi aquela em que por vezes foi visto: de joelhos, no meio da casa, as mãos postas, os olhos fechados, que de quando em quando abria, olhando amorosamente para o céu, o rosto abrasado, brandos e afetuosos suspiros, nomeando os mistérios da Sagrada Paixão de Cristo Nosso Senhor, como quem neste tesouro tinha todo seu amor, com muitas mostras de interior sentimento. Muitas vezes foi visto, estando dormindo, bater no sobrado e pronunciar o nome de Deus mui afetuosamente, como deu testemunho um homem, que fora companheiro do padre muitos anos, por nome Estevão Ribeiro, morador na vila São Paulo.

A um padre da Companhia disse o Padre José, que nos dias em que estivara recolhido para fazer profissão, meditara na Paixão do Senhor, e que ali sentira muito do que o mesmo Senhor padeceu, experimentando dores intensíssimas.

Levantando do chão na missa e oração — Gaspar Lopes

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Estando em uma aldeia com outros três sacerdotes, além de dizer missa cada dia ouvia a dos outros, de joelhos, e o mesmo fazia na casa do Espírito Santo, sendo ali superior; desta grande continuação lhe nasceu ter calos nos joelhos, e às vezes se lhe gretavem; e uma testemunha jura que lhe viu um joelho em carne viva, por esta ocasião. Ordinariamente o não achavam desocupado que não estivesse em oração; até na mesa algumas vezes se esquecia de comer, fazendo jaculatórias e falando com Deus; e essa devia ser a causa por que costumava andar sem barrete na cabeça, por andar falando com tal Senhor, como notou o Padre Miguel Viegas em sua informação.

Costumava dizer que nenhuma coisa nos impedia o andar com o pensamento em Deus, senão nossa pouca providência. Também dizia de si, que lhe não dava trabalho a guerra dos pensamentos impertinentes, de que os mais nos queixamos.

Nove pessoas juram, em seus testemunhos, terem ouvido a muitas outras, e correr disso pública fama, que o Padre José por muitas vezes fora visto estar levantado do chão, por algum espaço, estando dizendo missa ou em oração na igreja.

De vista o afirma um morador de São Vicente, por nome Gaspar Lopes, que o viu com seus próprios olhos levantado do tabernáculo do altar, obra de um palmo, antes de levantar a Deus; foi isto na Capela de São Jorge, perto da vila, no engenho de açúcar que é uns senhores principais, de Flandres, muito católicos e devotos da Companhia, por nome de Erasmos Esquetes.

Também disse que o vira posto em oração, levantado no ar, na igreja de Nossa Senhora da Escada, perto desta cidade da Bahia, Isabel Nogueira, dona viúva, com outra sua vizinha, e fazendo estrondo na igreja, para ver se tornava em si, e vendo que nada bastava, confusas e edificadas do que viam, deram graças a Deus.

Dizendo missa na igreja de Nossa senhora de Porto Seguro, o viram dez ou doze pessoas principais levantado do chão obra de um côvado, e espantados olharam uns os outros, dizendo: autentiquemos este milagre. A que disseram outros que o não fizessem, por ser o padre ainda vivo, que o não tomaria bem.

Presença contínua de Deus

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Muito ajuda para uma pessoa ter bem oração, buscar tempo desocupado e lugar recolhido, porém ao Padre José todo o tempo lhe era desocupado, e todo o lugar recolhido, o altar, o coro, o cubículo, a mesa, os corredores e as praças, os navios, a praia e os pés das árvores, o dia e a noite, levantado sobre a terra, mergulhado debaixo da água, rodeado de bárbaros furiosos no sertão, ou cercado de onças em as brenhas; sempre achava a Deus, e sempre andava em sua divina presença.

Destes passos alguns já estão escritos, e outros se apontarão adiante.

Segue-se que tratemos da mortificação das paixões, e aspereza do tratamento da própria pessoa, a qual é tão fiel companheira da oração e devoção, que sem ela tiveram os santos a oração por suspeitosa, porque no lenho verde, com os apetites vivos, mal se pode atear o espírito da devoção e amor de Deus.

Foi o Padre José muito mortificado em suas paixões, e de tal maneira as trazia enfreadas e sujeitas ao espírito, que as não deixava dar mostras de si, por muitas ocasiões que para isso houvesse; atormentava seu corpo com jejuns, e ordinárias disciplinas, dormia vestido para estar mais prestes para a oração da noite; quando em casa havia algum enfermo, depois de vigiar com ele o tempo necessário, tomava o sono sobre uma tábua, servindo-lhe de cabeçal os sapatos, metidos um no outro; a mim me contaram por coisa mui certa que, na casa de São Vicente, em um canto de um corredor, tinha um feixe de silvas em que descansava depois de orar de joelhos ou de passear.

Caminhava a pé e descalço

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Nunca andava a cavalo, por ser quebrado das costas, mas sempre caminhava a pé, e tanto que saía do povoado, metendo os sapatos debaixo do braço, continuava seu caminho descalço com o bordão na mão, e até os índios se espantavam de seu caminhar, que parece que voava por praias, serras e vales; e pela muita continuação trazia os pés gretados.

Passava pelos companheiros sem o verem

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Muitas vezes lhe acontecia deixar-se ficar atrás, mui longe da gente com quem caminhava, para mais livremente vir falando com Deus, rezando e pondo-se de joelhos amiúde, como costumava. E os companheiros olhando para trás o não viam, e buscando-o com os olhos o viam, e buscando-o com os olhos viam diante de si, sem darem fé quando passara por eles. E isto era no padre tão ordinário que, dando graças a Deus, deixavam já de se espantar.

Lendo eu este parágrafo ao Padre Pero da Costa, mui antigo mestre dos índios, em confirmação do dito me referiu o caso seguinte: Sendo o Padre José provincial, foi o Bispo Dom Antônio Barreiros a crismar os índios desta Bahia, acompanhado do padre Reitor Gregório Serrão, e de outros padres, todos a cavalo; só o Padre José ia de trás a pé, muito longe.

Tendo o Bispo feito seu ofício na aldeia de Santo Antônio, daí a alguns dias se partiram para a de São João. Só o Padre José, que ia a pé, se deixou ficar, dizendo que fossem embora, que ele logo ia. Foram todo o caminho, que eram seis léguas, os padres com o Bispo sem nunca mais o verem. O Padre Pero da Costa, que tinha cuidado da aldeia, saiu a receber o Bispo com procissão e cruz levantada, e o Padre José ao mesmo tempo se achou na procissão, descalço como tinha vindo, de que o Bispo se espantou muito, mas aos padres não foi coisa nova.

Isento de parentes

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À mortificação também pertence ser um religioso, isento e desapegado com parentes, e pouco solícito por eles. Nenhuma comunicação, tinha o padre com os seus, que eram ainda vivos na Ilha de Tenerife, uma das Canárias. E dando-lhe uma carta de uma irmã sua, leu o sobrescrito e antes de abrir disse a quem lh’a dera o que nela se continha, e com muita alegria disse que sua irmã estava conforme com a vontade divina, em uma enfermidade que padecia.

Pobreza voluntária

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Muito se prezou sempre da santa pobreza, nem tinha mais de seu uso. Que o que trazia sobre si, e era o pior que havia de vestido e calçado; mas aos súditos procurava que andassem religiosamente bem acomodados. Não usava de arca ou canastra, nem de escritório, nem tinha cartapácios que guardar, as obras que compunha dava a outrem, e as coisas de maior importância aos superiores.

E como já todos sabiam o seu espírito de pobreza, ninguém lhe dava nada, das coisas que os religiosos costumavam entre si dar e receber para exercitar a caridade, porém quando algum lhe oferecia alguma coisa, ele a tomava na mão com mostras de agradecimento e por arte lh’a tornava a deixar, ou lhe dava licença que a desse a outrem, de modo que nem o tal ficasse descontente, nem ele com o sentido ocupado do que faria dela.

Da perpétua pureza com que Deus o conservou, alguma coisa se disse no livro primeiro, capítulos sétimo e oitavo, quando esteve só entre os gentios, amparado com o favor da gloriosa Virgem Mãe de Deus, ajudando-se da oração e penitência corporal; neste passo bastará acrescentar o que um padre nosso certificou em seu testemunho, que ainda sendo ele vivo, algumas pessoas que podiam haver algumas relíquias do seu vestido, confessavam serem muito ajudadas de Deus contra os maus pensamentos.

Rara obediência

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Na obediência era a todos um vivo exemplo, assim nas coisas ordinárias, como nas árduas e dificultosas, de que uma só apontarei. Estando muito mal em uma aldeia do Espírito Santo, o padre Superior da casa lhe mandou dizer que seria bom vir-se para a vila; perguntou o Padre José aos padres que ali estavam, se lhes parecia que teria ele forças para que, sem notável perigo, pudesse cometer a viagem, para o tornar a propor por carta ao padre Superior.

Disseram todos que não estava para isso; recolhe-se então o padre na cama como que queria repousar; daí a pouco disse que estava resoluto em ir para a vila, e que se morresse no caminho pouco se perdia. “Não quero, diz ele, agora no fim da vida, deixar aos mancebos exemplos de pouca obediência”. E assim o fez. E foi o Senhor servido dar-lhe saúde e mais um ano de vida.

Sentença é de São Boaventura, De processu religioso, cap. 28, que quanto um religioso mais aproveita na virtude da obediência, tanto Deus mais depressa ouve suas orações, e tanto as criaturas lhe são sujeitas e obedientes; por estes dois sinais, podemos julgar que foi mui alta a obediência do Padre José, pois Nosso Senhor ouvia suas orações, para o bem espiritual e temporal dos próximos; os homens obedeciam a seus conselhos, e até as próprias aves e brutos animais cumpriam o que lhes mandava, falando com eles em a língua brasílica, do que ao diante se verão alguns exemplos, livro quarto, capítulos sétimo e oitavo.

Foi o Padre José mui exemplar em todas estas virtudes, assim nos encontros pesados que lhe sucederam, como nas doenças que foram muitas e graves, em especial depois que, com a idade, as forças o desampararam.

Neste Colégio da Bahia, em um dia de purga, lhe deu o enfermeiro um pedaço de galinha cozida, com abóbora amargosa. Comia o enfermo mas muito devagar; rogou-lhe o irmão que comesse; o padre disse que o faria por lhe dar gosto, bebeu o caldo e comeu da carne, e depois lhe perguntou se tinha outro enfermo a quem houvesse de dar daquele caldo, e dizendo que não, calou-se o padre. Dali a pouco caiu o irmão no erro que ele passara, e disse:

“Padre, perdoe-me V. R. que o matei”.

Acudiu o padre rindo:

“Não matastes, irmão, mas antes quis Deus com isto dar saúde, por meio de gostar também a amargura do seu fel e vinagre, que ele gostou por nós, sem se queixar”.

Era manso seu falar e seu rosto sempre sereno, e nunca alterado com mostras de alegria ou tristeza, por alegres ou tristes que fossem as coisas, que a ele ou a outrem sucediam. Aos que lhe davam ocasião de alguma moléstia e sentimento, se mostrava tão benigno como se nada lhe fizeram, e tinha particular cuidado de os encomendar a Deus. E falando-lhe um dia em uma pessoa que lhe tinha dado um grande desgosto, respondeu: “mais pecou contra Deus que contra mim, e pois Deus o sofre, bem é que o sofra eu também, por amor de Deus”.

Não sofria, em sua presença, tocasse alguém faltas de ausentes, e ou atalhava a prática ou a ouvia como quem não estivera ali. A todos trabalhava consolar e meter em paz, e até os índios que vinham Ter com ele, tristes e afligidos, confessavam que iam de sua presença alegres e consolados.

Na vila da Vitória, Capitania do Espírito Santo, queria certo homem edificar umas casas, com que impedia a vista às nossas; foi-lhe o padre à mão com alguma eficácia. Depois, parecendo-lhe que se excedera no modo, disse a um da casa: “pesa-me de escandalizar a fulano, mas eu lh’o pagarei.” A paga foi que, não costumando aquele homem confessar-se com os nossos padres, daí a poucos dias se veio confessar geralmente de toda sua vida, com o mesmo padre com muita consolação de ambos.

De sua grande humildade

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Era muito humilde e grande desprezador de si mesmo assim no tratamento de sua pessoa, como nas coisas dignas de admiração, que Deus por ele obrava. E estando dotado de tantas partes, que mereciam louvor, de nenhuma delas o pretendia, antes por mais que suas virtudes o manifestavam, ele as encobria de maneira que não eram notadas, senão de pessoas que tinham já dele muito conceito, o que se viu em palavras que disse de coisas futuras, e de pessoas ausentes em muita distância, das quais se não fazia caso senão quando o tempo com o efeito as declarava. E posto que, por esta causa, se nos ocultaram muitas coisas e muitas profecias, contudo as que sabemos bastam para ilustrarem as muitas virtudes do padre José, e para nossa edificação.

Quando o mandavam os padres chamar para assistir aos batismos e casamentos dos gentios sempre tomava à sua conta o mais trabalhoso da festa, convém a saber: o ensinar e catequizar aos que haviam de batizar e casar, e o mais honroso deixava aos padres das aldeias.

Estando o Padre José um dia praticando com alguns padres e irmãos no Rio de Janeiro, vieram a falar como se havia um de aquietar no ofício e grau, em que a Companhia o pusesse, se se queria conservar na paz e quietação de sua alma. E o exemplo, com que isto confirmou, foi consigo mesmo, dizendo que nunca tivera olho ao que podia ser ao diante. E assim, sendo irmão, nunca lhe viera à memória que pudesse ser sacerdote e que, quando se não precatou, se viu com as ordens. E sendo sacerdote, nunca lhe viera ao pensamento que podia ser professo ou superior, nem em si achava parte para isto; senão quando, se viu provincial.

Tanta era a sua humildade que nunca teve para si que podia ser promovido a algum grau. Este caso me contou o irmão Mateus de Aguiar, que era um dos que estavam naquela prática.

Confiança em Deus

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Da desconfiança de si mesmo e da humildade, é mui certa e fiel companheira a confiança em Deus; esta virtude tinha mui altas raízes no coração do padre, porque tinha experimentado que o livrara Nosso Senhor de mui evidentes perigos, por meios não esperados, e lhe acudia nas necessidades e negócios árduos, quando já todo remédio humano falhava, pelo que, com muita seguridade de ânimo, aguardava o combate dos trabalhos, e tomava nesta rodela seus golpes, como se viu no seu naufrágio e voluntário cativeiro, para concluir as pazes com o gentio contrário, de que se falou no Livro primeiro, cap. 8 e 12.

Outro caso referirei, ainda que em matéria mais leve. Sendo superior na casa de São Vicente, sucedeu não haver um dia na casa que comer, mais que laranjas e farinha de guerra. Deu conta disso, o refeitoreiro ao padre, o qual lhe respondeu: “tende fé e tangei à mesa a seu tempo”. Acabado o exame da consciência que se costuma fazer na Companhia, um quarto antes de comer, tornou o irmão ter com o Padre José, que estava de joelhos na sacristia, dizendo: “é chegada a hora e não temos nada”. Respondeu o padre que tangesse a seu tempo. Assim o fez e foram todos à mesa.

E começando de se ler a lição da mesa, tocam à portaria, acode o irmão porteiro, acha um cesto com comida preparada, e quente, que logo se repartiu pela mesa, dando todos muitas graças a Deus, atribuindo às orações do padre. Mandou esta esmola José Adorno, senhor de um engenho de açúcar e principal benfeitor daquela casa, que morava dali uma légua, mas não costumava fazer aquelas caridades de ordinário.

Também foi ato de confiança em Deus, quando na casa de São Paulo, vendo que a um homem, criado da casa, levavam a rastro uns novilhos, que andava amansando, se atravessou diante deles, só com bordão que tinha na mão, e os fez parar, e livrou ao homem do perigo evidente com admiração dos presentes e clara prova do favor de Deus, com que quis mostrar a fé de seu servo.

Em suas doenças era muito sofrido, por não dar pena aos outros; de noite passava suas dores o melhor que podia. E assim disse dele um irmão, que, sendo enfermeiro muitos anos, nunca tivera enfermo mais paciente, nem de maior obediência que o padre, ainda sendo Provincial. Quando, por sua devoção, pedia ao Superior penitência por falta de guardar as regras, como temos de costume, de joelhos a pedia.

Caridade com os enfermos

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Exercitava sua humildade e caridade com os enfermos, aonde quer que estava, com muito gosto seu e edificação de todos; assim no tempo que era provincial, como em todo o mais de sua vida. E neste Colégio da Bahia, era o mais certo e contínuo ajudante que o enfermeiro tinha em todo o serviço da enfermaria, levantando e deitando os doentes, e se era necessário vigiar sobre algum, mandava dormir ao enfermeiro e vigiava por ele. Aconteceu-lhe por vezes, estando em cama, levantar-se de noite a ir à cozinha consertar os xaropes e purgas e temperar o comer para outros doentes por sua mão, por falta de enfermeiro.

Caridade com os índios

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O mesmo usava com os índios quando com eles se achava, curando-os em suas doenças, posto que molestas e nojentas, com sangrias e outros remédios, que o tempo e lugar sofriam, e como era por uma parte muito mavioso e compassivo, e por outra muito animoso, nunca se negava para os servir no espiritual e temporal, ainda que houvesse de passar fomes, frios e maus caminho, e todas as mais incomodidades que a terra e o tempo ocasionavam.

Onde desejava morrer

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Porque tudo isto ficava muito aquém daquele ânimo com que, indo uma vez com seu companheiro, ambos a pé e descalços, por um caminho muito fragoso e de muitas lamas, lhe disse: “Irmão Jerônimo Soares, uns desejam morrer nas casas e outros nos colégios, ajudados de seus irmãos, ma eu vos digo que não há coisa melhor que morrer em um atoleiro destes, por obediência e bem das almas”.

Com os companheiros

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Trabalhava de não dar moléstias aos companheiros com quem caminhava, antes servia-os em tudo. Um padre afirma em seu testemunho, que caminhando com o padre, quando vinha a noite, em lugar de descansar se punha a enxugar o fato do companheiro, e meter-lhe brasas debaixo da rede em que dormia, e o restante da noite passava em oração, passeando ou de joelhos, ou ao pé de um pau, de que o companheiro dava fé quando acordava. Até aos índios, caminhando, agasalhava de noite, estando eles dormindo em suas redes, atiçando o fogo debaixo delas, que não tem outros cobertores, nem abrigo. E isto fazia ainda no tempo que era provincial.

Queriam os índios de uma aldeia lançar ao mar uma canoa grande, e não podiam por serem poucos. Acertou de se achar ali o Padre José, e eles, pela opinião que tinham que Deus tudo fazia por ele, rogaram-lhe fosse lançar uma benção à canoa, para a poderem lançar ao mar. Respondeu que além da benção, também os ajudaria; como chegou e pôs as mãos na canoa, logo a levaram com facilidade, concorrendo a fé dos índios com a oração do padre.

Com pobres — Cristóvão Pais Dáltero

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A pobres e viúvas e pessoas desamparadas, costumava ajudar, com esmolas que para isso lhe davam, e mandavam de outras partes pessoas ricas e devotas desta santa obra, entre os quais foi Cristóvão Pais Dáltero, homem muito principal em Pernambuco, e senhor de três engenhos de açúcar, ao qual, agradecendo por carta o Padre José, a esmola que lhe mandara para dar aos pobres, acrescentou o padre que ele Cristóvão Pais era ainda o que ficava devendo, pois que por meio dos pobres assegurava as riquezas do céu.

O qual movido com estas palavras, beijou a carta, posto de joelhos e abraçando-a e pondo-a sobre o coração, disse que fazia voto ao Senhor Deus, de nunca em sua vida deixar de fazer esmola aos pobres, mas antes de lh’a dar dobrada da que até então dava, e assim o cumpriu, porque costumado antes dar semana, em certo dia, a cada pobre que lhe pedia, um vintém, daí por diante enquanto viveu dava por sua mão meio tostão, e na quaresma quatro vinténs.

Sendo o Padre José superior na Capitania do Espírito Santo, provia de vinho, azeite, sal e mais coisas necessárias a um padre que tinha cuidado de uma aldeia. Comprava e pagava por ele, e o deitava em livro, até que lhe disse uma vez: “V. R. cuida que tudo há de ser levar e nunca pagar; não haverá assim de ser, façamos conta hoje, que o hei de esfolar”.

Fizeram conta e ficou devendo uma boa soma em cruzados; disse então o Padre José, como quem conclui contas: “é certo que cuidava V. R. que lhe havia de levar alguma coisa? Não somos nós irmãos? V. R. não ajuda a manter esta casa? Enfim já tem pago, eu sou o que devo”. E com esta benignidade, lhe perdoou toda a dívida.

Mortes desatradas de pessoas que não tomaram seu conselho

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Por vezes aconteceu antever o Padre José com espírito mais que humano, os perigos em que alguns homens andavam de grandes desastres, avisá-los disso, e por eles não quererem tomar seu conselho, perderem miseravelmente suas vidas. Referirei dois casos.

O primeiro: a Frutuoso da Costa, morador na Vila de São Paulo, disse-lhe o padre que se fosse para sua casa, porque o haviam de matar. Respondeu que trazia ali negócios. Disse-lhe. ..........................

O segundo: um homem, valente e soberbo, vivia mal com a mulher de outro, desprezível. Avisou-o, o Padre José que se guardasse que o haviam de matar, o mesmo lhe disseram outros amigos, ao que ele respondia: “que me há-de a mim agora fazer fulano ?”Contudo o marido espreitou, e achando-os no malefício, os matou ambos à flechadas, por onde tomou o padre ocasião de fazer uma cantiga celebrada naquela terra, que começava:

El que muere en el pecado,
Sin arrependirse del,
Deste tal es escuzado
Campanas doblen por el

Aparece aonde não era esperado

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Os próximos mais chegados a um superior da religião, são seus súditos, a quem tem obrigação de guiar para o céu, procurando-lhes os meios necessários, e afastando-os dos perigos, e acudindo quando vão cair, que é obra de verdadeira caridade. Foi também nisto singular a virtude do Padre José, assim com orações, como com sua doutrina e vigilância, e concorria com ele Deus Nosso Senhor, com especiais favores, quais eram os de que usou com outros santos antigos, fazendo que de súbito se achasse presente aonde era necessário, trazido pelo caminho e de modo que somente o autor de tais maravilhas sabe o que fazer.

Certo superior encerrou em uma câmara, a um irmão, um dia pela manhã, em São Paulo, estando o Padre José em São Vicente, dali a doze léguas; eis se não quando no mesmo dia, antes de jantar, aparece, só, sem companheiro, abre a porta da câmara onde estava o irmão afligido, e diz-lhe: “Saí daqui e vinde-me dar de comer no refeitório”. Comeu e depois falou com o superior e com o irmão, aquietou-os e pôs em paz. Deitou a benção aos da casa despediu-se de alguns amigos antigos e continuou seu caminho na mesma tarde para a casa donde tinha vindo. E o que mais é que o não acharam naquela casa menos, o que pôs em admiração a todos os que o souberam.

Estava um irmão, por ordem de seus superiores, em uma fazenda a que não podia ir senão por mar; sucedeu achar-se uns dias mui afligido, sem Ter com quem se consolar. Nisto andando ao longo da casa, passeando no caminho, vê de súbito ao Padre José com seu bordão na mão, sem viva pessoa consigo; deu-lhe as boas vindas, e o padre lhe disse: “Só por amor de vós venho cá”. Tratou com o padre o que importava a sua alma, com muita consolação sua, e o padre se ausentou, sem o irmão saber mais parte dele, como ou em que ou com quem passava o mar, à vinda, ou à tornada.

Na Capitania do Espírito Santo andava o padre em missão, e trazia consigo ao Padre Fernandes; antes de concluírem a missão disse ao companheiro: “Vamos-nos para casa, porque o irmão fulano tem necessidade de nós”. Partiram-se logo para a vila, e chegando à casa, disse-lhe aquele irmão: “Deus trouxe a V. R. porque se hoje não viera, não sei o que fora de mim”. Comunicou com o padre sua alma, e ficou consolado e quieto.

Outra vez, estando o padre com o mesmo companheiro, em uma aldeia, de caminho para outra, lhe disse: “Vamos depressa, porque naquela aldeia os índios e o padre têm necessidade de nós”. Foram e, pouco depois de chegados, chegaram também certos homens com intento de inquietarem os índios e ao padre que deles tinha cuidado, mas tudo se pacificou com a vista do Padre José, que todos tiveram por grande benefício de Deus.

Estava um dia na praça de São Vicente, Jorge Ferreira, que isto testemunhou, com quatro ou cinco homens, e passando o Padre José caminho da serra, que vai para a vila de São Paulo, perguntou-lhe que pressa levava Sua R. Respondeu que ia aplacar ao demônio que andava solto entre dois homens principais. Tornou Jorge Ferreira a perguntar se viera de lá algum recado. Respondeu que não.

Por onde todos presumiram que seria alguma revelação, pela opinião que tinham de sua virtude; soube-se depois que era certo caso de discórdia entre os dois sobreditos. Chegou o padre com um menino índio, que o acompanhava a São Paulo no mesmo dia com duas ou três horas de sol, sendo o caminho mui fragoso, e distância de doze léguas, e assim tornou a soldar as amizades.

Pregação

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Sua pregação parecia sair mais de um peito cheio de devoção e comunicação com Deus, que não de muito estudo por livros, e assim mui afetuosa, e movia os ouvintes, à compunção de pecados, lágrimas e aborrecimentos de vícios, e amor à virtude e freqüência dos sacramentos, da confissão e comunhão, donde se seguia emendarem muitas pessoas suas vidas.

Ouvindo-o um dia pregar uma mulher simples, com muito devoção, usou desta semelhança:”o Espírito Santo põe na boca do padre o que há de dizer, assim como a pomba na boca do filho o que há de comer”.

O que passou com um herege que enforcaram

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Conquistando o governador Mem de Sá, a Segunda vez o Rio de Janeiro, quis fazer justiça de um herege muito pertinaz, que entre os soldados franceses tomara.

Encarregou-se dele o Padre José, porque havia que tratar com ele em Latim que o herege sabia. Teve dificuldade em o reduzir, e pediu mais tempo; finalmente, o reduziu com a divina graça e o fez confessar e aparelhar para bem morrer. Chegando ao ponto da execução, estava o padecente mui afligido e impaciente pelo algoz se embaraçar em seu ofício; repreendeu então o padre ao algoz, e deu-lhe ordem como o fizesse bem.

Contando o padre dali a muitos anos, no tempo que era provincial, este caso a um irmão nosso, lhe disse o irmão: é V. R. não via que ficava irregular”? – “Sim, bem advertia nisso – respondeu o padre — ,porém a minha irregularidade, não era ofensa a Deus, e tinha remédio, mas aquele pobre não tinha outro remédio, porque sua salvação tinha tempo limitado, e por salvação de uma alma ainda que ficara toda a vida irregular, o dera por bem empregado”.

Uma alma que estava em pena

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Tomou uma vez a noite ao Padre José, com seu companheiro, entre a ponta de Itapagipe e esta cidade da Bahia vindo de confessar um negro. E antes de chegarem a uma lagoa, que estava perto do caminho, entre o cantar das rãs, ouviram grandes gritos e ais muito sentidos, como de pessoa que estava em grande aflição, de modo que o companheiro, que isto testemunhou, se lhe arrepiaram os cabelos de medo.

Ao qual disse o Padre José: “não temais, chegai-vos para mim”. E parando um pouco, com os olhos no céu disse: “ó altíssimo Deus, quão grande é vosso poder”. E chegando perto da lagoa, disse ao companheiro: “rezemos ambos de joelhos aqui cinco Pater noster, e cinco Ave Maria, pelas almas do purgatório, e não se ouvirão mais aqui estas vozes”. Acabando de rezar, se não ouviram mais, e depois passando o companheiro do padre por aquele lugar, de noite, algumas vezes, nunca mais ouviu tais vozes, posto que ouvia rãs com seu costumado cantar.

Bem entendeu o servo de Deus quando se viu nestas partes do Brasil, que o Senhor o chamava principalmente para a conversão deste gentio. E como para tal empresa, procurou, com a divina graça aparelhar-se com os meios para ela necessários, que são grande cabedal de virtudes, assim das que foram um verdadeiro religioso, como das que lhe dão destreza para jogar das armas espirituais, e exercitar este santo zelo.

Empregou-se logo em aprender a língua da terra, e compor a arte dela. E com este zelo e caridade do próximo, concorria muitas vezes Deus com favores extraordinários, como por muitos exemplos se tem visto nesta história, e ao diante se verá, mais em particular.

Daqui veio que quando se soube nesta Bahia do falecimento do Padre José, em umas conferências que de sua exemplar vida se tiveram, o Padre Quirício Caxa, pessoa de muita virtude e letras disse que, de todas as virtudes do Padre José, esta o edificara e espantara muito: enterrar e meter debaixo do pé sua muita habilidade, e outras grandes partes, só por ajudar a salvar o gentio do Brasil.

Contra os que iam saltear gentios

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Procurava muito a liberdade dos índios, e estorvava quanto em si era, o irem a suas terras salteá-los e cativá-los, não por justa guerra, mas por força ou engano e manifestas injustiças, com título de ir resgatar.

E vendo uma vez, que na vila de Santos se apresentavam dois navios, para irem a este roubo, do púlpito e em particular, trabalhou com as com as justiças da terra e senhorios dos navios, por estorvar a viagem, ameaçando-os com graves castigos de Deus se lá iam. Contudo foram, porque não há soltas nem freio, que tenham mão na cega e brutal cobiça.

Sucedeu que o capitão de um destes navios sonhou uma noite indo pelo mar, que caía de uma rocha abaixo, e que o Padre José o tomava pelo cabeção e livrara do perigo, repreendendo-o da má jornada que cometera; e acordando pela manhã mandou arribar, e se recolheu ao porto donde saíra. O outro navio chegou aonde ia e se perdeu, e os índios carijós que eles iam saltear os mataram a todos, tirando dois que escaparam mal feridos, para darem estas novas.

Um gentio de cem anos

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Antes de ser sacerdote, o Padre José acompanhou a um padre em uma missão, e servia de intérprete; um dia, depois de cansados do trabalho, saíram à praia a tomar algum refresco da viração. Senão quando acham um índio velho que representava mais de cem anos; começou o irmão a travar prática com ele das coisas de Deus, das quais nenhuma notícia tinha, mas recebeu com elas muita consolação, mandou chamar a seus filhos e netos para ouvirem aquelas coisas, e o ajudarem a aprendê-las.

Não dormia de noite o bom velho, com o cuidado e gosto do que tinha ouvido; finalmente no cabo de alguns dias, foi bem catequizado e batizado na Igreja, de que se não queria ir para sua casa, mas logo direto ao céu, mas pouco lhe dilatou Deus Nosso Senhor sua petição, levando-o para si ele desejava.

Praia de Itanhaém

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As Ilha de São Vicente para o sul corre uma mui formosa praia, muito dura e esparcelada, povoada comumente de grandes ossos e corpos de baleias, as quais, confiadas na água alta em tempo de maré cheia de águas vivas, quando se não precatam, fugindo-lhes com a vasante o mar, sem o sentirem, acham-se em seco, sem remédio. Da banda da terra correm algumas ribeiras, junto das quais vivem moradores com suas famílias e índios de serviço; chamam-se pela língua da terra a praia de Itanhaém, ou de Nossa Senhora da Conceição, que é a invocação da Igreja que ali têm, até a qual fazem oito léguas de praia.

A esta chamava o Padre José o seu Peru, pelas muitas almas que por ali achava de portugueses e índios, muito necessitadas de socorro espiritual a que dava remédio, e as estimava em mais que barras de ouro nem pedras preciosas; e hoje em dia os padres da casa de Santos, continuam esta empresa com muito proveito espiritual das almas. De quantas pessoas o Padre José por esta praia ajudou a salvar, administrando-lhes os sacramentos, não temos mais notícias que esta em geral, de fazer nela por muitos anos muito serviço a Nosso Senhor.

ìndio velho, Adão

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Um só caso acho, nos testemunhos autênticos, não menos devoto que digno de admiração, no qual se vê por quão extraordinário modo executou Deus em uma alma, o efeito de sua predestinação. O mesmo Padre José o contou ao Padre Pero Leitão e foi desta maneira: indo o padre uma vez por esta praia, se desviou do caminho, sem ocasião alguma, mas como levado por outrem, se meteu um pouco pelo mato. Encontrou um índio velho, assentado ao pé de uma árvore, o qual primeiro armou a prática, dizendo: “Acaba já de vir, padre que muito tempo há que aqui te estou aguardando”. Perguntando-lhe o padre pelo nome, terra e aldeia. Respondeu que sua aldeia estava sobre o mar, e outras coisas das quais claramente entendeu que aquele índio não era natural de São Vicente, nem de toda a costa do Brasil, mas que viera ali ter , trazido por braço mais que humano, da parte do Oeste, da contracosta da Província do Brasil.

Perguntou-lhe mais a que viera, e que era o que ele queria, pois o estava ali aguardando; respondeu que a vinha ouvir a vida boa. Examinou o padre miudamente sua vida e achou que não tivera muitas mulheres, que nunca fizera guerra senão para se defender, pelas quais coisas e outras semelhantes, julgou que nunca pecara mortalmente contra a lei natural, e que tinha muito conhecimento natural das coisas e do autor da natureza.

Quando o padre lhe ia declarando os principais mistérios de nossa fé, respondia: “assim entendia no meu coração, mas não no sabia declarar”. Finalmente o padre o instruiu bastante, e batizou com água de chuva, que se conservava nas folhas dos cardos montezinhos, e lhe pôs o nome de Adão, que tanto que se viu regenerado em Jesus Cristo, pelo santo batismo, com as mãos postas e os olhos no céu, deu muitas graças a Deus, com semblante mui alegre. Agradeceu também ao padre a caridade que lhe fizera, e como quem não esperava mais que esta ditosa hora, nem tinha mais que negociar na vida, deu sua bendita alma a Deus nas mãos do mesmo padre, e se foi para o céu, cujo corpo enterrou o padre, cobrindo-o com areia. Caso por certo raro e digno de admiração, e matéria para dar muitos louvores ao Criador e Redentor dos homens.

Profecias

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Antes que saiamos desta praia, apontarei dois casos, um que sucedeu ao Padre José, posto que pertencia mais ao espírito da profecia, o segundo a outros dois padres, e foi uma horrenda visão mui celebrada por toda a costa do Brasil e ainda em Portugal.

Quanto ao primeiro: Estevão Ribeiro, morador na vila de São Paulo, vindo um dia pelo campo comigo e com o Padre Manuel de Oliveira, superior que então era das casas de São Vicente e agora reitor deste Colégio da Bahia, nos contou com muita devoção como, sendo ele moço, e acompanhando o Padre José pela praia, lhe perguntou se levava no seu cofo ou cestinho alguma coisa para comer.

E respondendo ele que não, lhe disse o padre: “pois Estevão, eu vos direi agora o que há de ser; primeiro havemos de encontrar neste caminho com um peixe que não presta para comer, e depois havemos de encontrar com outro pequeno que nos servirá, que vós metereis nesse cofo, e daí a outro pedaço, dentro no mesmo cestinho o haveis de cozer para comermos” .

Tudo assim sucedeu, porque primeiro havemos de encontrar com um baleato, e depois com uma tainha que na baixa mar estava saltando em seco, que o menino meteu no cesto, e indo mais adiante acharam uma índia velha, que estava com um tacho ao fogo, cozinhando água do mar, para a tornar em sal, diminuindo-a até certa quantidade; meteu Estevão o cesto no tacho, e ali o cozinhou. O padre falou com índia coisas de sua salvação, e continuou sua jornada.

Visão horrenda de danados

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O segundo caso me contou na casa de São Paulo, diante dos padres e irmãos dela, o Padre Manuel Viegas, que foi um dos que viram aquela visão. A coisa passou-se desta maneira: no ano de mil quinhentos e setenta e seis, indo uma noite por esta praia o Padre José Morinelo, e o Padre Manuel Viegas, viram ao longe, como em distância de três ou quatro léguas, pela praia adiante, um fogo grande, e, afastado dele, outros menores, cuja vista os atemorizou grandemente.

E falando entre si daquela visão, ela se lhe apagou e desapareceu da vista, senão quando de repente a tornam a ver pelo mesmo modo, mas tão perto de si, que claramente a enxergavam ser como um corpo humano que botava grandes chamas de fogo da cabeça, como se cada cabelo fora uma grande tocha, e a luz de cada uma de diversa cor. E posto que esta vista era mui horrenda, muito mais o era quando abria as costas, e pela abertura lançava maior labareda do que a que sai pela boca de uma fornalha de engenho; e isto com tanta claridade, que os padres distintamente enxergavam os ossos e as entranhas do que quer que era, que tal fogo lançava de si.

Da mesma maneira eram, ainda que menores, os fogos que as outras dez ou doze figuras humanas lançavam de si, que eram de menor estatura, que representavam moços de doze até quinze anos. Estes iam em contínuo baile, ora todos diante, ora ao redor do grande amo, que lhes fazia festa.

E esta visão os padres por espaço de três horas ou mais, por muitas vezes, indo sempre caminhando, ora mais perto ora mais longe.

O Padre Manuel Viegas quando estas figuras se chegavam a ele, escondia o rosto detrás das costas do outro padre, o qual foi sempre atento, e dizia depois que os ouvia falar pela língua da terra, mas que os não entendia. Este padre italiano ficou depois tão assombrado, que, quando daí a muitos anos, lhe perguntavam por este caso, a resposta era dar logo em tremer e perder as cores, como homem pasmado; e isto lhe durou toda a vida.

Sabendo-se o caso, houve no povo diversos pareceres, entre os quais uns diziam que eram certas pessoas, que haviam pouco tempo que morreram ali em mau estado. O certo é que semelhantes figuras são mostra das penas do inferno, as quais Deus Nosso Senhor algumas vezes permite que nos apareçam, para que quem as ouvir contar ou vir pintadas, como esta foi a Portugal, cobre temor de sua divina justiça, para emenda de sua vida.

Bem se cumpriu no Padre José a sentença do Santo Evangelho, Lc 14, qui se humiliat exaltabitur, que quem por amor de Jesus se humilha a abate, por mão do mesmo Senhor é levantado, ainda diante dos homens, porque foi mui grande o respeito e veneração em que foi tido de pessoas de toda a sorte, que com ele tratavam, e em especial das principais em autoridade e governo.

O santo mártir Inácio de Azevedo, primeiro visitador desta Província, tinha grande conceito da virtude e santidade do Padre José; o mesmo tinha o Padre Manuel da Nóbrega, sendo provincial, e nos negócios de importância levava-o consigo, nem fazia coisa grave sem seu conselho, ainda antes de ser de missa. E quando o mandou de São Vicente, a tomar ordens a esta Bahia, lhe ordenou que, de caminho, visitasse a casa e aldeias do Espírito Santo, o que fez com muita edificação e consolação de todos.

O Bispo do Brasil, Dom Pedro Leitão, dizia do padre que era servo de Deus, e uma luminária que a Companhia tinha nestas partes. E outras vezes usava desta semelhança: “a Companhia no Brasil é um anel de ouro, e a pedra preciosa dele é o Padre José”.

E outra testemunha lhe ouviu estas palavras: “mais farei o que me disser este canário, que todos os mais da Companhia, porque é o espelho em que todos eles se podem ver”. Chamou-lhe canário assim por ser o Padre natural das Ilha Canárias, como porque este nome tinha nos estudos de Coimbra, por ser um dos melhores latinos que então havia, e deste tempo o conhecia o Bispo, dizendo mais que já então corria entre os estudantes a fama de sua virtude.

O Administrador Bartolomeu Simões Pereira, pregando na nossa casa de Santiago, Capitania do Espírito Santo, as exéquias do padre, lhe chamou Apóstolo do Brasil. O Capitão Jerônimo Leitão, governando a Capitania de São Vicente, por obra de vinte anos, sempre fez muito caso do conselho do Padre José.

Diogo Flores de Valdês

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Mas ninguém, a meu ver, declarou com tão graves palavras a reputação em que tinha ao Padre José, como Diogo Flores de Valdês, General da armada da Espanha, que S.M .El Rei Filipe, segundo de Castela e primeiro de Portugal, mandou ao estreito de Magalhães, e à costa do Brasil, no ano de mil quinhentos e oitenta e um. Estando esta armada no Rio de Janeiro tratou o General muito familiarmente com o Padre José que era então provincial, e o ia buscar em pessoa muitas vezes ao colégio, e alcançou muito de sua virtude.

Aqui sucedeu o caso seguinte: mandou o Padre José ao Padre João Batista, fosse pedir ao general, desse liberdade a um inglês que ali prendera; não tomou bem a petição, mostrou-se agastado, e escusou-se de o fazer; o padre João Batista se desculpou dizendo que seu superior, o Padre José, o mandara fazer aquele negócio.

Ouvindo o general falar no Padre José, amansou e respondeu: “solte-se logo, e faça-se assim como o padre manda, porque nunca Deus queira que eu deixe de fazer o que ele me mandar. Porque a primeira vez que o vi, nunca pessoa mais dejecta e desprezível se me apresentou, porém depois, olhando bem para ele, nunca em presença de alguma majestade me vi tão apoucado”.

Deste respeito e autoridade com os homens se ajudava o servo de Deus, não para se levantar e crescer no conceito e estimação de si mesmo, mas para, por esta via, dar a mão aos que tinham necessidade de sua valia e intercessão.

Contra o capitão de uma vila cometeu um morador um caso grave, digno de morte, e de feito estava já para se fazer nele execução de justiça; entendeu no negócio o Padre José, e finalmente acabou com o capitão perdoasse ao delinqüente, e se fizeram amigos.

Outro capitão de um forte por S. M. estava para justiçar dois soldados do presídio, e muitos homens lhe tinham pedido lhes perdoasse, o que nunca quis fazer. Chegou o Padre José para lhe pedir o mesmo, e com sua vista lhe entregou tal temor no coração, que logo lh’os entregou, dizendo que fizesse deles o que quisesse.

Estava doente um homem rico e honrado, por nome João Fernandes Brum, o qual tinha querelado de dois homens de certos casos de justiça. Pediram-lhe alguns homens de respeito, e entre eles dois padres da Companhia, lhes perdoasse, o que não quis fazer. Um dia foi o Padre José visitar o enfermo, e entrando pela porta, lhe inspirou Nosso Senhor no coração que fizesse tudo o que o padre lhe pedisse; falou-lhe o padre no perdão, e logo lh’o concedeu de muito boa vontade.

Não me parece que satisfaço a quem ler este tratado, com dizer em algumas partes dele, que os padres da Companhia ensinam aos índios a doutrina, sem declarar juntamente o trabalho e ocupações que com eles tomam, por amor de Deus, e o fruto que dali se colhe, assim no que toca ao conhecimento de nossa santa fé, como ao melhoramento de seus costumes.

E não trato como algumas vezes os vão buscar ao sertão, com cópia de índios das aldeias, daí mais de cem léguas, e ainda mais de duzentas, com imenso trabalho de fomes, sedes, calmas, frios, asperezas do caminho, e perigo de os saltearem, ou de lhes resistirem aqueles que vão buscar, por não conhecer o bem que lhes vão oferecer, com outros muitos descontos e incomodidades.

Mas, depois de trazidos e agasalhados em suas casas, o modo ordinário de os conservar e ensinar é o seguinte:

Rosário do nome de Jesus

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Todos os dias, em amanhecendo, se tange às Ave Marias de pela manhã e daí a pouco à missa, que acabada se lhes ensina a doutrina na sua língua. E depois vai cada um a seu serviço; em algumas partes, como as aldeias da Capitania do espírito Santo, entre as Ave Marias e a missa, se ajuntam os meninos e meninas na Igreja ou à porta de fora, e repartidos em coros cantam em alta voz pelo português, o rosário do benditíssimo nome de Jesus, desta maneira.

Entoam os meninos:

“Bento e louvado seja o Santíssimo Nome de Jesus”.

E respondem as meninas:

“E da Santíssima Virgem Maria, Madre sua, para sempre, Amém”.

E no cabo das dez, dizem:

“Glória Patri”etc.

Desta maneira entoam os meninos e prosseguem até cinqüenta, que parece àquele tempo uma alvorada de anjos.

A doutrina que a todos se ensina são as orações e parte do Diálogo que contém a declaração dos artigos da fé, e após isto se recolhem os meninos para a escola, cada um à sua estância, uns a ler, outros a cantar cantochão e canto de órgão, e outros a tanger flautas e charamelas, para oficiarem as missas em dias de festa, e solenizarem as procissões na aldeia e na cidade, e em outros atos públicos, como quando se examinam na sala dos estudantes do curso para bacharéis e licenciados, e quando tomam os graus.

Às cinco horas da tarde se torna a tanger o sino à doutrina, a que acode a gente que se acha pela aldeia, e se lhes ensina a doutrina com a outra parte do Diálogo, que contém a declaração dos sacramentos. Finalmente à boca da noite saem os meninos em procissão, da porta da Igreja até à cruz, cantando algumas orações e encomendando as almas do fogo do purgatório.

Administração dos sacramentos — eucaristia — disciplina das endoenças

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Além deste trabalho e ocupação de cada dia, têm os padres outras, a seus tempos, de não menos importância, como são: batizar as crianças, catequizar os adultos para batismo, e instruí-los para receberem o sacramento do matrimônio; procurar sua liberdade; curá-los em suas doenças; administrar-lhes o sacramento da Santa Unção, enterrar os defuntos com tumba e a modo cristãos.

E sobretudo – o que dá maior matéria de admiração e amor de Deus – escolhem os padres alguns de melhor vida e mais capacidade, e com práticas espirituais, pouco a pouco os vão dispondo para receberem dignamente o santíssimo sacramento da Eucaristia, assim homens como mulheres, o que eles além da obrigação da Páscoa, continuam algumas festas do ano, quando o confessor julga que convém.

À véspera do dia em que hão de comungar, está a aldeia mui quieta, tratando cada um consigo de se aparelhar para a confissão. E no dia recebem o Senhor devotamente, e o restante dele gastam em virem visitar a Igreja muitas vezes, rezando de joelhos um pouco, e outro pouco assentados, sem tratarem aquele dia de outro negócio algum.

São mui devotos da paixão de Cristo Nosso Senhor, em memória da qual não perdem disciplina, que todas as sextas-feiras da quaresma tomam. Na Igreja, depois da prática que a este fim lhes faz o padre, e principalmente na procissão das endoenças, se disciplinam cruamente, com muita edificação dos portugueses. E até as crianças seus filhos, com os rostinhos cobertos, vão arremedando os pais.

Tão poderosa é a graça de Deus, e tão eficaz sua palavra, que faz de bárbaros devotos cristãos, e de pedras filhos de Abraão, e dá a seus servos paciência e perseverança, para continuarem com alegria estes trabalhos, e deles tira o fruto tão suave.

Suavíssimo fruto é a glória de Deus, que sempre daqui se colhe o merecimento dos obreiros desta vinha, a salvação de muitas almas que não tinham outro remédio, o proveito temporal dos portugueses, a mudança dos costumes desta gente bárbara.

Têm neles os portugueses fiéis e esforçados companheiros na guerra, cuja flecha muitas vezes experimentaram os estrangeiros, que cometeram de entrar com mão armada algumas vilas deste Estado, e confessaram que mais temiam a flecha destes que o nosso arcabuz. Também têm neles um grande freio contra os negros de Guiné, de cuja multidão é para temer não ponham alguma hora em aperto algumas Capitanias da costa do Brasil. Servem mais aos moradores em suas fazendas; e para isso se põem com eles por soldada, por certos meses, por seu estipêndio, conforme ao regimento de S. M.

Vestido de que usam

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Vivem os índios por sua lavoura de mantimentos que plantam e semeiam, de caça, de pescaria e criações.

As mulheres, quando hão de ir à Igreja, ou hão de aparecer diante de gente, vestem-se mui decentemente, convém a saber, com uma camisa ou hábito muito bem feito, cerrado, largo e comprido até o chão; os cabelos que são compridos enastrados com suas fitas, e nas mãos suas contas de rezar. Os homens andam com o vestido que podem, mas na Igreja e pelas festas muitos deles se tratam à portuguesa, como soldados bem pagos, seus chapéus forrados de seda, sapatos, meias e mangas de cores, e vestidos de pano do Reino, que ganham por sua soldada.

Esta é a vida dos índios do Brasil, depois de alumiados com a luz do Evangelho e cultivados com os contínuos trabalhos dos padres da Companhia. Este é o fruto que destes trabalhos se recolhe nos celeiros da Igreja, de mais de cinqüenta anos a esta parte.

E assim parece que basta o dito nesta relação, porque tão impertinente trabalho seria querer escrever a cegueira e bárbaros costumes, em que eles e seus maiores tantos mil anos continuaram, quão escusado seria trazermos nós à memória a idolatria e outros desatinos, em que nossos antepassados na Europa viveram tantas centenas de anos, antes que a verdadeira luz do céu lhes amanhecesse.

Mais de quarenta pessoas de crédito e virtude, juraram em seus testemunhos autênticos, que fora o Padre José um religioso de santa vida e obras, e muitas delas afirmam, que dizia muitas coisas que sucediam em distância de muitas léguas do lugar em que ele estava, e depois se achavam serem certas e verdadeiras.

E que outras dizia que estavam por vir, nas quais também não havia falta, e finalmente referem alguns casos, que mostram comunicar Deus a seu servo, o que passava no pensamento e consciência das pessoas com quem tratava, como tudo se verá pelos exemplos seguintes, postos por esta ordem:

MONOEL DA GAIA. – PROFECIA

Manoel da Gaia morador na Capitania do Espírito Santo, fez uma viagem para o Reino, e andou alguns anos ausente de sua casa, pelo que estava sai mulher muito triste; e vendo-a assim, sua mãe aconselhou que se fosse confessar com o Padre José, e que atentasse bem que palavras lhe dizia. Fê-lo assim, e depois da confissão lhe perguntou o padre se tinha novas de seu marido; respondeu que as não tinha boas, por que lhe diziam que fora roubado de corsários e era morto.

Disse-lhe então o padre que se não agastasse, porque era vivo e, posto que fora tomado e levado à Rochela, depois fora ter à casa de um irmão, aonde estivera doente; disse mais que não havia de vir em direitura àquela Capitania, mas primeiro havia de vir por outras partes, e ainda que viesse roubado, não deixaria de trazer algum remédio.

O que tudo ela jurou em seu testemunho, e que assim acontecera como o padre dissera; e acrescentou que fazendo seu marido outra viagem para Angola e, tornando à Capitania dos Ilhéus, se perdeu e correu fama que o gentio alevantado o comera. Mas o padre a consolou, afirmando-lhe que era vivo, e que dia de Ano Bom, depois de jantar lhe entraria pela porta, como na verdade entrou no mesmo tempo.

Antônio Jorge — profecia

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Muito semelhante a este foi o caso seguinte: Antônio Jorge, morador na mesma Capitania, foi com o Capitão Miguel de Azevedo à guerra dos Guaitacases, gentio bárbaro e cruel; e por não haver novas do sucesso, estava a mulher muito triste. Foi a visitar o Padre José, que era superior da casa, e achando-a desconsolada, lhe disse que não estivesse triste, porque cedo viriam as novas do que na guerra se passava, ainda que seu marido Antônio Jorge havia de vir ferido de uma flechada no peito esquerdo, mas que nã era perigosa, por ser entre a pele e a carne.

Disse mais que, por causa da ferida, era já partido, e que dali a oito dias o fossem buscar à Vila Velha; foi a mulher ao dia sinalado, e achou o marido na dita vila; tudo isto sucedeu sem ser ainda chegada pessoa alguma da guerra. Queixava-se uma mulher, na Capitania de São Vicente, diante do Padre José, que seu marido tardava muito, que era ido à terra dos índios contrários, dali a mais de cem léguas, e não havia novas dele. Respondeu o padre: — “Ainda não sabeis que é morto?”

Depois se achou ser assim.

Profetiza duas vitórias

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No tempo que o gentio tamoio molestava com a guerra a Capitania de São Vicente, sucedeu profetizar Padre José duas vitórias:

A primeira: sendo Capitão Jorge Ferreira, foram os portugueses fazer guerra aos contrários, dali a vinte léguas, e antes de haver nova alguma do sucesso dela, disse o Padre José na Vila de Santos, que naquele dia renderam os nossos a aldeia dos inimigos, sem morrer homem da nossa parte, e que ao outro dia teriam recado na vila, antes da noite, o que tudo assim passou como o padre tinha dito.

A Segunda vitória: sendo Capitão Jerônimo Leitão, foi com muita gente fazer guerra ao mesmo gentio, dali a setenta léguas, e andando lá perto de dois meses, não havia recado deles; mas o Padre José, pregando na Vila de Santos, esteve por um espaço sem falar, cobrindo os olhos com a mão, e tornando em si disse: rezemos todos, um Pater Noster e uma Ave Maria, pela vitória que Nosso Senhor no dia de hoje deus aos nossos, contra os tamoios nossos inimigos; e depois de virem da guerra, se achou que naquele dia em que o Padre José mandara dar ao povo graça a Deus pela vitória, esse mesmo dia houveram a vitória.

Do Padre Adão Gonçalves, e do irmão Bartolomeu Gonçalves — Também soube da morte deste irmão, no mesmo dia sucedeu

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Entraram na Companhia dois homens, pai e filho, e dali a anos, na era de mil quinhentos e setenta e seis, o pai chamado o Padre Adão Gonçalves, veio a ser Superior na casa de São Paulo, e o filho por nome Bartolomeu Gonçalves, estava no Colégio da Bahia.

Sucedeu que estando o Padre Adão, em oração em uma varanda, com os olhos no céu, de madrugada, viu passar pelo ar um tropel de gente, mas não divisou que gente era, somente ouviu uma voz clara que lhe disse: “pai, pai, eu sou, rogai por mim a Deus”. Pareceu-lhe que era a voz do filho, e ficou espantado, e muito triste.

Sendo manhã clara viu consigo na mesma casa ao Padre José, que vivia na casa de São Vicente, muitas léguas da casa de São Paulo, que parece o não levou lá Deus, mais que para consolar ao velho, o qual sem mais outra palavra lhe perguntou:

— “Padre, como está Bartolomeu”?

O Padre José lhe respondeu:

— “Já está bem, não tem V. R. para que se entristecer”.

E mudando logo a prática não falaram mais nisso. Dali a mais de um ano, aconteceu acharem-se ambos estes padres no Colégio do Rio de Janeiro, e indo um navio desta Bahia, levou novas da morte do Irmão Bartolomeu Gonçalves. O que sabendo o Padre Adão pediu ao Padre José dissesse algumas missas pela alma do defunto, mais das que ordinariamente costumamos dizer pelos nossos que falecem. Respondeu o Padre José:

— “Já lhe disse cinco quando logo morreu, bastam-lhe, não há mister mais”.

Sendo assim que não podia saber humanamente da tal morte, logo quando faleceu, porque entre a Bahia e São Paulo há mais de duzentas léguas. Isto contou o Padre Adão Gonçalves no Rio de Janeiro, a um padre que o testemunhou com juramento.

Que um irmão havia de adoecer

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O padre reitor do Colégio do Rio de Janeiro, enviou um irmão a negócios fora da cidade, e deu-lhe por companheiro ao irmão Francisco de Lemos; passado ambos por uma aldeia, onde estava o Padre José, disse ao irmão que ia negociar deixasse ficar ali aquele irmão, e ele fosse ao Colégio buscar outro, porque lhe bastava a ele seus trabalhos.

Assim o fez; dali a dois ou três dias, adoeceu este irmão tão gravemente que chegou quase ao ponto da morte, donde se conclui que o Padre José anteviu a doença, que a um havia de sobrevir, e o trabalho do outro se o levava consigo, e tudo atalhou, como se achará no testemunho do Padre Estevão da Grã.

Darei princípio, a este capítulo por uma coisa bem pequena para que se veja que nem estas se escondiam ao espírito do Padre José.

Antônio de Sousa, morador no Rio de Janeiro, caminhando um dia a pé com o Padre José e outros homens, queixou-se no cabo da jornada que perdera uma faca de preço, e que havia de tornar a buscar. Respondeu-lhe então o padre:

— “Ora já que a quereis ir buscar, a achareis em tal parte”.

Foi e deu com ela no mesmo lugar, que o padre dissera; e vindo depois ao Rio de Janeiro, contava este caso com grande admiração, dizendo que era santo e que Deus lh’o revelava, porque caminhando sempre naquela jornada diante de todos, não podia humanamente saber aonde caíra a faca, ao homem que vinha de trás.

Que era morta uma mulher em Lisboa — profecia

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Estava um irmão nosso neste Colégio da Bahia, em sua câmara, escrevendo a uma irmã sua que tinha em Lisboa. Entrou o Padre José e disse-lhe: — “Que estais ai agora gastando o tempo em balde”?

— “Escrevendo a minha irmã, disse o irmão.

O padre sorrindo-se disse:

— “Ide-me vós dar de comer, a mim, e a vossa irmã mandai-lhe cartas ao céu”. Daí a algum tempo soube o irmão por outra via, ser morta sua irmã, e que morrera no mesmo tempo em que o padre lh’o dissera. Pediu então ao padre dissesse algumas missas pela alma da defunta. Respondeu o padre: — “Já lh’as disse logo quando Deus a levou”.

Há da Bahia a Lisboa, mais de mil léguas, mas a distância das terras não impede os favores do céu.

Profecia

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Na Vila de Santos, dava uma mulher honrada quatro caixas de marmelada, ao Padre José, para dar a um filho seu que tinha no Rio de Janeiro, para onde o padre então partia em uma canoa. O padre lhe disse que escusasse isso, porque seu filho havia de vir ao dia seguinte jantar com ela em sua casa, e que não tomasse trabalho de lh’as mandar; insistiu ela e o padre lh’as tomou, por lhe fazer a vontade, dizendo:

— “Manoel de Oliveira, mas dará, para ajuda da minha matalotagem, hoje às horas da ceia”.

O que tudo assim sucedeu, dando todos o que o souberam muitas graças a Nosso Senhor, e tenho a seu servo em maior estima.

Estando os moradores do Rio de Janeiro, ainda com poucas forças para poderem resistir aos inimigos, mandaram pedir socorro à Capitania de São Vicente contra duas naus francesas que estavam na barra.

Fez-se a gente prestes para o socorro. O Padre José lhes disse que fossem, embora, mas que não tinham lá que fazer, porque naquele mesmo dia eram as naus partidas da barra, o que assim se achou ser verdade, com haver do Rio de Janeiro a são Vicente quarenta léguas.

Que as árvores haviam de cair sobre uma choupana

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Partiram uma vez da casa de São Vicente para São Paulo, o Padre José e o Padre Vicente Rodrigues, e no meio da serra se aposentaram em uma choupana. E na mesma noite uns homens que vinham de São Paulo pela serra abaixo se agasalharam em outra, meia légua antes de chegarem donde os padres estavam.

Nisto lhes manda o Padre José recado por um índio, que se viessem logo para onde ele estava, e não dormissem ali, porque aquela noite haviam de cair as árvores sobre a choupana, e não os tomassem debaixo. Vieram logo, pelo crédito que lhe tinham, e antes que entrassem na choupana do padre, lhes disse que se confessassem todos com o padre seu companheiro. E fazendo assim todos, disse a um que se tornasse a confessar, como fez. E acrescentou, como por graça: “não entreis vós outros cá com essa mofina que trazeis, não nos abranja também a nós”.

Aquela noite fez grande tormenta e, vinda a manhã, os padres continuando seu caminho, foram dar na choupana daqueles homens, que acharam feita em pedaços, com as grandes árvores que lhe caíram em cima; e deram graças a Deus pelo modo com que livrou aqueles homens da morte.l

Este caso contou o Padre Vicente Rodrigues ao Padre Pero Leitão, que assim o depôs em seu testemunho.

Outra: que a justiça vinha a prender um homem

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Na Capitania do Espírito Santo, estava um homem homiziado em sua fazenda, com sua família, fora da vila, e o Padre José em uma aldeia, obra de meia légua dele.

Nisto manda o padre um recado à mulher do homiziado, à meia noite, que avisasse ao marido se pusesse em cobro, e ela que se fosse logo para a vila, porque a Justiça lh’o ia prender; fizeram-no ambos conforme ao aviso do padre, e ela no caminho achou a Justiça que lhó ia prender. E da vila à aldeia onde o padre estava havia algumas léguas.

outra: que não morreira um índio

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Em uma aldeia da Capitania do Espírito Santo, três ou quatro léguas da vila, estava um índio muito doente havia dias, nem tinha mais que os ossos, ungido já, e chorado pela aldeia, sem nenhum sinal de vida mais que alguma quentura; deu o padre conta do caso ao Padre José que estava na casa da vila, e respondeu:

“Eu o encomendarei a Deus; José não morrerá desta”.

E assim foi que viveu depois muitos anos.

Outra: que era morto outro índio

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Na Capitania de São Vicente, querendo o padre dizer missa, rogou a um homem por nome Pedro Fernandes, lhe ajudasse, e estando com o amito, e vestindo a alva, disse o Pedro Fernandes ao padre que um índio doente se queria confessar a ele. Tirou logo a alva e o amito, e o foi confessar; e tornou a dizer missa, pelo mesmo doente; e estando no meio da missa: — “já lá vaia, já faleceu o índio”. E assim era.

A primeira ida que El-Rei Dom Sebastião, que Santa Glória haja, fez à África, se soube na Capitania de São Vicente pelo Padre José; e daí a um mês chegou um navio do Reino que deu as mesmas novas.

Estando já o Padre José muito mal na casa do Espírito Santo, acertou de ver um espelho na câmara, que tinha ali o Padre Jerônimo Rodrigues para pôr sobre uma imagem; e era seu enfermeiro. Tomou o padre o espelho na mão e falando consigo disse:

Vi-me agora um espelho
E comecei de dizer
Crocós, toma bom conselho
E faze bom aparelho
Porque cedo hás de morrer.
Mas, com juntamente ver
O beiço um pouco vermelho,
Disse: fraco estás e velho,
Mas pode ser que Deus quer
Que vivas, para conselho.

E assim aconteceu, porque não tardou muito que fosse do Colégio do Rio de Janeiro ordem ao padre superior da casa do Espírito Santo, que não fizesse nada sem o consentimento do Padre José.

Vendo andar um irmão, tão fraco que se não podia Ter, lhe disse: — “Essa fraqueza é de fome, porém vós não comais, porque ainda agora começais”. Profetizando-lhe grave doença, que logo lhe veio.

Pescarias - profecias das pescarias

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Houve um dia neste Colégio da Bahia falta de peixe, e os pescadores da rede vieram sem nada. O Padre José chamou ao moço que era mestre da rede, e levou-o a uma janela do Colégio, e dali lhe mostrou certo lugar em distância de légua, na barra chamada Pirajá, dizendo que fosse lá lançar a rede e trouxesse peixe para os padres.

Assim o fez e tomou grande soma de tainhas, e trouxe para casa. E era comum prática entre os índios, que quando o padre se achava nas aldeias, quando queriam fazer boa pescaria, perguntassem primeiro ao padre onde a iriam fazer, porque no lugar onde o padre apontava, ali lhe sucedia bem, ainda que fora da conjunção da maré e tempo.

Um homem português indo deitar uma rede, pediu a bênção ao Padre José, que acertou de encontrar no caminho; e com ele fez um laço extraordinário, o que atribuiu às orações ao Padre.

Diz os lanços aos pescadores - profecia - Aires Fernandes

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O padre reitor do Rio de Janeiro, mandou um irmão com índios a fazer uma pescaria, para provimento do Colégio, a uma lagoa chamada de Maricá, aos quais acompanhou o Padre José, assim para se dar mais a Deus, desocupado de negócios, como para lhes dizer cada dia missa.

Perguntava aos índios pescadores que casta de peixe queriam tomar, e respondendo eles tal ou tal casta, ele os encaminhava a certos postos, aonde tomavam aquela sorte de peixe, e às vezes em tanta quantidade, que levantavam a rede para que se não rompesse com o grande peso dos peixes; e isto sem nunca até então ter ido àquela lagoa, nem Ter notícias de tais postos. Estando o padre nesta pescaria, um grande amigo seu lhe escreveu, quisesse ir ver a outro seu amigo, por nome Aires Fernandes, que estava muito mal. Esta carta trazia um preto de Guiné, escravo daquele homem, e no caminho correu muito risco de vida, por causa das muitas onças que há naquela paragem.

Antes que o preto chegasse com a carta, estando o padre ceando com seu companheiro, guardou uma posta do peixe que ceavam; pediu-lh’a o companheiro, respondeu:

“Deixai-a guardar para quem o há mister mais que vós”.

E pondo-se em oração, disse:

“Encomendemos a Deus, um pobre que está em perigo”.

E daí a duas horas chega o escravo com a carta, fazendo grande escuro, com muito frio e chuva. O padre lhe deu o peixe que guardara, e sem ler a carta, fazendo grande escuro, com muito frio e chuva. O padre lhe deu o peixe que guardara, e sem ler a carta, nem o preto ter falado, disse o que nela vinha. Acudiu então o irmão:

“Pois, padre, vamos”.

Respondeu o padre:

“Mais o hei-de ajudar de cá que de lá”.

No dia seguinte disse missa pelo doente, a qual acabada perguntou o irmão: “Aires Fernandes, morre ou vive?”

E respondeu o padre:

“Mal há de passar, mas escapa desta”.

E assim foi que viveu depois muitos anos.

Manda pescar fora de tempo

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Achando-se o padre um dia na aldeia do Espírito Santo, distrito da Bahia, disse aos índios:

“Como está tão calada e triste esta aldeia?”

Responderam:

“Porque não há que comer”.

A que o padre acudiu:

“Pois vamos todos à praia, a buscá-lo”.

Disseram eles:

“Não é agora conjunção de tempo, nem de maré”.

“Contudo vamos todos, e não fique ninguém, porque todos virão contentes”.

Foi o padre com toda a aldeia, e saindo à praia, acharam a maré quase cheia; disseram então os índios:

“Vedes, padre, que não é conjunção para pescar”.

Disse então o padre:

“Que peixe quereis tomar?”

Responderam:

“Garamirim”. Xaréos pequenos, que são pouco mais de palmo. E isto diziam zombando, porque este peixe não corre naquele tempo, senão dali alguns meses.

Apontou o padre pela praia, adiante, que fossem dali quase a um quarto de légua, e tomassem quanto quisessem; foram, e com suas redinhas e à mão, tomaram com muita facilidade daquela casta de paixe, quanto quiseram; e espantados do caso, deram muitos louvores a Deus.

Os índios se encomendavam em suas orações

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Por esta e outras maravilhas, que Nosso Senhor obrava pelo Padre José até os índios lhe tinham tal respeito, que quando falavam nele, falavam como de homem que tinha poder sobrenatural. E assim diziam: “aquele padre que nos dava o peixe que nós queríamos, e nos livrara da morte e dos perigos quando lh’o íamos pedir”.

Porque, quando o padre estava em alguma aldeia, os índios havendo de ir à caça, ou a outra parte, primeiro iam ter com ele e lhe diziam: “Padre, eu vou a tal parte, dize que não morra eu lá, e que ache o que vou buscar, e que torne com bem para minha casa, e que me não morda alguma cobra”. E com a resposta do padre iam muito contentes, e se davam por seguros de todo o perigo, e certos de todo bom sucesso.

Profecias - Pe. Manuel de Couto - Que havia de chover

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Acerca de chuva referirei duas profecias, encontradas no efeito de chover, e não chover, que bem mostram como suas palavras de coisas futuras, não eram singelas profecias, mas efeito das eficazes orações do Padre José. Juram em seus testemunhos estes casos, cada um o seu, o Padre Manuel de Couto, e o Padre Pero Leitão.

O primeiro: na Capitania do Espírito Santo, onde estão estava o santo Padre José, não choveu um ano, da quaresma até o fim do mês de agosto; deu ordem o padre de como se fizesse uma procissão, que se fez um Sábado, véspera de Santo Agostinho, fazendo boa calma.

Estava na vila uma bandeira nova da misericórdia, que um homem levava para a Capitania de São Vicente; pediram-lh’a para ir na procissão, e dando-se por seguro que se não molharia, a deu. A que o Padre José disse, como por graça: “vá ela, que boa há de vir!”. Começou a procissão com tempo sereno, e quando chegou à Igreja matriz começou a chover; e, à volta para a nossa casa, foi tanta a chuva que não podiam vir pela rua com água, e a bandeira vinha toda molhada, como o Padre José tinha profetizado.

Do caminho enxuto, chovendo

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A Segunda profecia ou milagre. No ano de mil quinhentos e oitenta e quatro, acabada aquela pescaria de que neste capítulo fiz menção, e ainda em outros faremos, era tempo de se recolherem para o Colégio; mas primeiro haviam de ir à aldeia de São Barnabé que estava dali três léguas; mandou o Padre José se fizessem prestes para o dia seguinte.

E vendo seu companheiro que toda aquela tarde chovera muito, e continua por toda a noite, disse ao Padre José:

— “Bom tempo escolheu V. R. para a jornada”.

Respondeu:

— “Assim fôssemos nós bons como Deus tem cuidado de nós, porque não somente nos não há de chover amanhã, mas nem agora chove no caminho por onde havemos de caminhar amanhã”.

Partiram ao dia seguinte para a aldeia, e acharam todo o caminho de três léguas, enxuto, sem lhe chegar água em distância de quinze passos por uma banda outros quinze por outra, da qual maravilha deram a Deus muitas graças, com admiração do seu servo.

A este lugar pertencia aquela grande maravilha da nuvem carregada de água, que esteve em cima do teatro por espaço de três horas, sem a deitar, enquanto se representava uma obra tão devota que durou mais de três horas; mas já fica escrita no livro primeiro, no fim do capítulo nove.

Da armada de sua majestade. Profecia do Irmão Francisco de Escalante

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Quando a armada de El-Rei Dom Felipe Segundo, de quer era General Diogo Flores de Valdês quis entrar no Rio de Janeiro, esteve surta fora obra de uma légua. Alvoroçou-se a cidade e se pôs em armas, cuidando ser de inimigos, porque tinham disso aviso; e também os padres no Colégio começavam de pôr em cobro os ornamentos da Igreja; mas o Padre José, que era provincial, disse que não era isso necessário, dando a entender que a armada era de paz e não de inimigos.

E estando olhando para ela disse estas palavras: “Ali nos traz Deus um carpinteiro, muito bom oficial, para ser nosso irmão, e muito bom religioso”. A qual palavra entendemos se cumpriu no Irmão Francisco de Escalante, que hoje está nesta província, coisa que a todos põe em admiração, pois nenhuma conjetura humana a isto podia chegar.

Perigo de quatro naus

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Depois que S. Majestade mandou esta armada ao estreito de Magalhães, enviou a Dom Diogo de Álcega por cabo de outras quatro naus, que traziam mantimentos e socorro. Estas passando o Cabo Frio, se meteram em uma enseada antes de chegarem à barra do Rio de Janeiro, e estiveram mui arriscadas a se perderem ali todas; foi a nova à cidade do perigo que ali correram; o Padre José se pôs logo em oração, na sua câmara.

Daí a pedaço, estando ainda o padre em oração, veio recado que já saíam as naus do perigo; nisto vai o padre Estevão da Grã dar a nova ao Padre José e abrindo a porta o viu alevantado do chão com as mãos postas, e o rosto muito abrasado, e antes que falasse nada, se veio a ele o Padre José com estas palavras: “não é nada, não é nada, já a armada vem à vela, não se perdeu mais que um navio que vinha com ela, e nele se não perdeu pessoa alguma”. O que tudo foi verdade.

Estorava um casamento. Profecias

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Andava no Rio de Janeiro um homem em mau estado e pretendia casar com uma filha de um morador, fingindo ser viúvo; o Padre José fez com a Justiça que o deitasse da terra. Queixava-se o morador que o Padre José, descasava sua filha, a que o padre respondeu: “esse homem é casado, e tem mulher viva, e antes que ele chegue a Angola para onde vai, há lá de chegar sua mulher”. E assim foi que vindo a mulher do Reino em busca do marido ao Brasil, o navio em que vinha arribou a Angola, e chegou lá três dias primeiro que este homem, para se cumprir a palavra do servo de Deus.

O perigo do navio

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Navegou o padre uma vez no navio da Província, do Rio de Janeiro para a Bahia, e saindo de uma ilha das que estão na barra, para dobrar o Cabo Frio, saiu o padre do camarote e disse ao piloto que navegasse para o mar, porque se não fazia assim, não havia de dobrar o Cabo Frio, e se havia de perder. Respondeu o piloto que iam bem navegados, mas tomou o conselho do padre, e com tudo isso ainda se achou junto ao Cabo Frio junto de terra, e prosseguindo a viagem perto de seis léguas, deitaram ferra na Ilha da Âncora, pelo tempo ser contrário.

Estando assim torna o padre a sair do camarote, e manda ao piloto levantar âncora com brevidade; e recusando o piloto e marinheiros pelo tempo estar quieto, o padre lhes deu pressa que o fizessem, dizendo que não haviam de Ter tempo para o fazerem bem.

E assim foi, porque sobreveio tanto vento sul, que para se acudir às velas foi necessário levar a âncora a rastro um pouco, o que com clara razão pareceu a todos os que iam na embarcação, que o não podia o padre saber, senão revelando-lh’o Nosso Senhor, porque não tinha notícia das coisas do mar, e os que a tinham o não entenderam.

O que tudo jurou em seu testemunho Lopo Fernandes, morador no Rio de Janeiro, que vinha no mesmo navio.

Duas limas escondidas

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Estando o Padre José com o Padre Vicente Rodrigues, assentado na escola dos meninos, na casa de São Paulo, mandou a um menino fosse ao quintal e lhe trouxesse meia dúzia de limas doces; foi e trouxe-as.

Nisto chama o padre a outro por nome Domingos, e diz-lhe:

“Ide ao quintal e trazei-me uma limas, que estão em tal buraco, que fulano aí escondeu”.

Trazidas, lhe disse:

“Chamai ao outro menino”.

Veio, e o padre lhe deu as limas dizendo:

“Tomai e não furteis”.

O que vendo, o menino arrebentou em lágrimas, e as não quis comer de vergonha.

Deram muitas graças a Deus o Padre Vicente Rodrigues e os que souberam do caso, vendo que sem se bulir daquele lugar, dera o padre fé do que o menino fizera no quintal. Este caso me referiu o Padre Garcia, que então era o menino Domingos, a quem mandara o padre buscar as limas escondidas no quintal.

Bem por vir estava o cargo de provincial em que entrou, quando muito antes o disse, como também que São Jorge Soares o havia de ver depois de sua morte, e que havia de ser enterrado junto do Padre Gregório Serrão, o que tudo assim se cumpriu como no livro segundo fica dito.

Que escaparia de uma cólica o Padre Inácio Toloza - Profecias

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Acrescentemos outros exemplos. A muitas pessoas que estavam mal de graves doenças, profetizou a vida e saúde como depois se viu; um deles, foi o Governador Geral Lourenço da Veiga, como me contou Nuno do Amaral que então servia de seu veador.

Vindo do Rio de Janeiro para o Colégio da Bahia, com o Padre Visitador Cristovão de Gouveia, e outros padres, no Cabo Frio adoeceu um deles de tão aguda e apressada cólica, que tratavam já de o enterrarem ali, ou tornarem a levar seu corpo para o Colégio do Rio.

Neste comenos o Padre José chamou um irmão que entendia de cura, e lhe disse que aplicasse ao enfermo alguma mezinha dissimuladamente, como de si, e acrescentou: “não há de morrer desta, mas não digais isto a ninguém”. E hoje em dia vive o enfermo da cólica que é o Padre Inácio Toloza.

De outro irmão

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Chegando de São Vicente ao Rio de Janeiro, foi logo visitar ao Irmão João Marinho, que estaca mui mal; e saindo-se foi ao coro visitar ao Santíssimo Sacramento, e descendo disse lhe que não dessem a Santa Unção, que não havia de morrer daquela. Assim se fez, e o irmão sarou e viveu depois mais de vinte anos.

Que não morreria uma doente

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Foi o padre um dia confessar fora da cidade uma mulher que estava muito no cabo, cujo marido chamado Domingos Saraiva, muito choroso, saiu a receber ao padre, que vendo-o tão sentido, lhe disse: “não vos desconsoleis, bom velho, que vos não há de morrer desta, vossa companheira”. E isto foi antes de chegar à casa onde a doente estava. O padre o disse e Deus o confirmou, e a doente viveu depois muitos anos.

O mesmo de outra

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Tinha Manuel de Oliveira Gago, uma filha, na vila de Santos, para morrer, e já pranteada de toda a família. Chegou o Padre José, e disse ao pai e mãe que não chorassem, que a enferma não havia de morrer daquela doença, e que havia de casar, mas que eles se aparelhassem, porque primeiro haviam ambos de morrer que não a filha, e o pai não duraria mais que um ano. Deu à doente um pouco de vinho e mandou-a sangrar, e logo tornou em si. E quanto o padre disse tudo foi verdade sem faltar coisa alguma.

Qual havia de ser o marido de uma moça

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A mãe da dita enferma por nome Felipa da Mota, sendo moça em casa de seu pai, estava apalavrada para casar com certo homem honrado; mas desfez-se o casamento, com muito sentimento do pai e mãe.

Foi-os consolar o Padre José, e lhes disse e não desconsolassem, porque não era sua, e seu marido havia de vir de Lisboa, e a capa que trouxesse aos ombros havia de ser sua própria, sem dever nada a ninguém mais que a Deus; e que havia de ter tantos filhos que não saberia quais eram as camisas de uns e de outros. O que tudo assim sucedeu.

Da filha de Diego de Amorim

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Sendo morador na cidade da Bahia, Diogo de Amorim, casado com Andreza Dias, lhe nasceu uma criança de sete meses, por causa de uma queda que deu a mãe, de que correu muito risco de vida e a mãe padeceu muito trabalho. Foi-a ver o Padre José, e por a criança vir muito fraquinha, rogaram ao padre que a batizassem; escusou-se dizendo que não morreria então, e que mais honra seria batizá-la na Sé, mas que lhe não tirassem o nome de Maria, pois nascera em dia da Assunção de Nossa Senhora; que a criassem muito bem, porque havia de ser alegria daquela casa, e que morreria em dia de Nossa Senhora dali a onze anos, mas não na Bahia onde nascera.

Depois se mudaram seus paris para o Rio de Janeiro, onde a menina faleceu no mesmo dia, ano e idade. Isto referiu a mãe ao Padre Pantaleão dos banhos, dizendo que juraria quando lh’o mandassem.

Aires Fernandes

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No tempo que o Padre José andou entre os tamoios, esteve também com ele um amigo seu, por nome Aires Fernandes, a quem os inimigos tinham retido como preso para o matarem e comerem. Deu conta disso ao padre que lhe respondeu: “não vos gasteis que vos não hão de matar; amanhã a tais horas há de vir um barco a tal porto, e nele vos podeis pôr em salvo”. E assim sucedeu.

Do que pedia ser recebido na companhia e depois se arrependeu

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Concluirei este capítulo referindo um triste caso que o Padre José prognosticou a um homem, que se não quis aproveitar de seu conselho. A história foi esta: sendo o Padre José provincial, e estando no Rio de Janeiro, um homem viúvo lhe pediu o recebesse na Companhia; o padre lhe deu palavra que sim, mas que seria na Bahia, para onde ambos estavam de caminho, tanto que ele concluísse seus negócios.

Veio o homem primeiro com aquela boa intenção, e depois chegou o padre dali alguns dias, e acertaram ambos de se encontrarem na praia; e com o padre, seu companheiro, que notou bem o que ali passaram; perguntou-lhe o padre: “pois, Belchior Gomes, como estais de vossos negócios, não vos acabastes ainda de desembaraçar?” Respondeu: “já, sr. Padre, mas mudei o conselho, porque quero ir morrer a Portugal e lá pedirei a Companhia e morrerei nela”. O padre se chegou a ele, e batendo-lhe com a mão no ombro lhe disse estas palavras, com semblante severo, como que lhe denunciava uma sentença divina: “Belchior Gomes, ir a Portugal ireis, mas o morrerdes e acabar, não será lá nem na Companhia, mas cá no Brasil, e de maneira que merece quem vira as costas ao chamamento de Deus”.

Este pobre homem dali a alguns anos se foi a Portugal, e tornou com provisões para fazer uma nova povoação no Cabo Frio, onde, andando pelo mato, se perdeu dos companheiros, e ali acabou sem mais aparecer, senão que dali a um ano o foram achar mirrado, debaixo da lapa de um penedo.

A um homem que ia do Colégio do Rio de Janeiro para Pernambuco, mandou o padre fazer a matalotagem, de depois de feita chamou o irmão dispenseiro, e lhe mandou que lh’a desse dobrada, dando por razão que aquele homem tinha dobrada jornada para andar do que cuidava. E assim foi, porque arribou às Antilhas, e não tomou Pernambuco.

Do Padre Manuel do Couto

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Sendo provincial, mandava, ao Padre Manuel Couto, que era ainda irmão, do Colégio da Bahia para o do Rio de Janeiro, o qual perguntou ao padre quanto havia lá de estar. O Padre José olhando para outro padre que já estivera no Rio, lhe perguntou: “quantos foram os anos de sua estada”? Disse que três e meio. Respondeu então o padre ao irmão Manuel do Couto, que outro tanto estaria no Rio. Notou o padre o dia e a palavra do Padre José. E quando tornou para a Bahia, achou que se cumpriu pontualmente o dito tempo, sem o padre intervir na tomada do Rio, porque já não era provincial.

De um pelouro

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O amigo do Padre José, Aires Fernandes trazia, metido em uma perna, um pelouro de espingarda das guerras passadas, e estando um dia falando com o padre, lhe disse o mesmo padre que o pelouro lhe havia de cair em uma laje, que está na barra do Rio de Janeiro.

Foi assim que, andando folgando, em uma canoa, daí a muito tempo, por aquele lugar, veio um mar que o botou sobre a pedra. E com este movimento e força achou que lhe caíra o pelouro, de que deu muitas graças a Deus, assim por cumpiri a palavra de seu servo, como pelo benefício que recebeu de sua divina mão.

Do Padre João Fernandes

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Em uma aldeia da Capitania do Espírito Santo, estava o padre João Fernandes, a quem o superior da casa mandou chamar, somente por ida e vinda. Mas o Padre José que também se achou na aldeia, lhe disse que não tornaria senão dali a quatro meses, e assim sucedeu sem nenhum deles o pretender nem intervir nisso.

Este mesmo padre quando começou a aprender a língua da terra, andava enfadado por se ver com poucas esperanças de sair com a empresa, e significando ao Padre José este seu desgosto, o padre o consolou, dizendo que antes de muitos meses seria língua, e saberia bastantemente para confessar e pregar nela. E assim foi, de que se infere que o ajudou com santas orações para alcançar seu santo intento.

Manuel do quintal, filho de Camila Pereira, dona viúva, moradora no Espírito Santo, sendo noviço no Colégio da Bahia, contava aos irmãos algumas coisas que lhe aconteceram com o Padre José, sendo o padre ali superior, e ele trazendo as chaves da portaria; das quais me contou e deu por escrito o Padre Manuel Cardoso estas duas.

A primeira: chamou-o o padre com muita pressa, ao seu cubículo, e mandou-lhe fosse à torre a repicar os sinos. Acudiu a gente da vila ao sinal do rebate, e perguntando a causa do repique, respondeu o padre que se pusessem em armas, e aparelhassem a defender a terra, porque ao dia seguinte haviam de vir à barra inimigos corsários. Como de fato aconteceu, mas vendo a gente postas em armas não ousaram acometer a terra.

A segunda: estando o padre em seu cubículo, recolhido, abriu a porta e chamando depressa por Manuel, lhe mandou fosse correndo abrir a porta, para entrar um homiziado que vinha fugindo à Justiça. Foi, e achando o homiziado à porta, o recolheu.

Dos filhos que havia de ter Iria Barbosa

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Sendo o Padre José provincial, e querendo-se partir do Colégio da Bahia, para visitar as casas do Sul, foi em romaria a Nossa Senhora da Vila Velha, que está desta cidade obra de uma légua, em dia de Nossa Senhora da Vitória, orago da Igreja Matriz. Ali lhe falou Iria Barbosa, mulher de André Rodrigues, que por ter muito conceito da santidade do padre, lhe pediu que rogasse a Deus, lhe desse fruto de bênção.

Respondeu o padre: “eu vou agora para baixo, e quando embora tornar, hei de ouvir dizer que vão batizar um filho, ou filha vossa, e o mais certo é que será filha, e chamar-se-á Ana; lográ-la-eis pouco tempo, mas Deus vos dará depois outros”.

Chegando o padre de baixo, chegou o navio por perto da Vila Velha; saiu um barco, e perguntaram que navio era, responderam: “é dos padres”. Acudiu então o Padre José: “que gente é aquela que vai por aquele outeiro arriba?” — “É Isabel de Ávila, filha de Garcia de Ávila, pessoa principal nesta terra, que vai com aquele acompanhamento, a ser madrinha de uma criança, que nasceu, a Iria Barbosa”.

Disse então o padre que lhe lembrassem que assim lh’o tinha dito, o dia de Nossa Senhora passado. A menina viveu doze anos, e tudo o mais sucedeu assim como o padre tinha dito.

Isto me contou uma pessoa digna de fé, diante do Padre Manuel de Sá e de outras pessoas na Pitinga, pelo natal de seiscentos e cinco.

Promete aos bárbaros que viria ao dia seguinte, a tais horas

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No tempo que a perseguição dos tamoios andava acesa contra os moradores de São Vicente e o Padre José estava entre eles; tratou do resgate de certos homens que tinham cativos. Afligiam-se daí a dias os presos, e os inimigos também, por lhes parecer que tardava o resgate; e falavam já em os matar. Acudir a isto o padre, e disse aos bárbaros: “esperai até amanhã até o sol ir aqui – apontando com a mão —, e se até não vier aqui Ter fulano, com tal e tal resgate – nomeando as peças, e pessoas que vinham com o resgate – matai-me logo a mim”.

Aquietaram-se com a resposta, e muito mais quando ao outro dia, às horas assinaladas, viram cumprida a promessa e profecia, com as pessoas e peças do resgate, assim como o padre profetizara. Ficaram todos espantados, dando graças a Deus, e os portugueses com vida e liberdade.

Do vinho

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Também saiu verdade, o que o padre disse haver de acontecer, em outra matéria ainda que menos lustrosa. Um dia, véspera de São Francisco, se queixou ao Padre José um homem honrado que tinha a cargo o engenho dos Erasmos, em São Vicente, que não tinha vida, sem uma gota de vinho, e que havia mais de um ano que não viera navio do Reino, e tanto que se lhe acabasse um pouco que tinha, logo era morto. Respondeu o padre como por desdém: “não vos agasteis que ainda o dia de São Francisco não é passado”. E logo no dia seguinte do seráfico São Francisco veio um navio do Reino, dirigido ao mesmo João Batista Málio, morador na Capitania de Santos, no qual vinha muitas fazenda e também a droga que ele desejava.

Notaram o caso todos os que estavam no engenho, e disseram: aquele padre não podia deixar de ter espírito de Deus, dado por sua boa vida e costumes, conforme a outras coisas que lhe viram fazer e dizer, que todas saíam verdadeiras, pelo que era tido em muita reputação, de todas as pessoas que dele tinham notícia, assim em toda a costa do Brasil, como em Portugal.

Sendo o Padre José provincial, andava neste Colégio da Bahia um pedreiro por nome João Fernandes, casado em Portugal. Sucedeu que trabalhando ele no campanário da nossa Igreja e assentando uns sinos, passou o padre por baixo e falou-lhe em alta voz, dizendo: “João Fernandes, acunhai bem esses sinos, porque vós haveis de ser o primeiro irmão da Companhia, por quem eles se hão de dobrar, nesse lugar”.

Daí a alguns meses os padres da casa persuadiam ao Padre José, que fosse visitar o Colégio de Pernambuco, conforme a obrigação de seu cargo, por se irem acabando as monções; mas ele ia dilatando a jornada sem dizer a ninguém o porquê. Somente a um padre disse estas palavras: “apertam comigo que me vá a Pernambuco, e eles não sabem que quer Deus que me ache eu aqui no dia de Nossa Senhora da Conceição, porque neste dia tenho aqui quer fazer”.

Do Padre Luís da Fonseca

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Finalmente se resolveu em cometer a viagem, e à despedida, abraçando aos padres e irmãos, encontrou com o Padre Luís da Fonseca, e lhe disse: “ficai— vos embora, meu companheiro, que vós haveis de ir comigo a Pernambuco, e do mar vos hei de tornar a buscar”.

Partiu e dali a mais de trinta dias arribou, entrou no Colégio em dia da Conceição da Senhora, e querendo os padres levá-lo aos seu cubículo, eles lhes disse que tinha que fazer em outra parte, e deu a andar para outra casa em que agasalhavam os pedreiros do Colégio, em que estava doente o sobredito João Fernandes, havia já meses, e neste tempo soubera ser falecida sua mulher em Portugal.

Chegou-se o padre à cama e começou de o consolar, dizendo: “João Fernandes, a Virgem Nossa senhora me manda cá, que vos receba na Companhia por irmão nosso, na qual eu vos hei por recebido de hoje para sempre, e vos encarrego que tenhais lembrança de mim diante desta Senhora, pelo bem que vos hoje faço, pelo seu amor, diante da qual vos haveis de ver, de hoje a sete dias”.

Depois de o ter assim recebido daí a quatro dias, indo-o a visistar o padre, lhe disse com notável alegria: “Irmão João Fernandes, alegrai-vos com uma boa nova que vos trago, que vossa boa companheira está diante de Deus, esperando por vós”. E saindo da casa do enfermo disse aos irmãos que o acompanhavam: “não era possível que mulher de tão bom homem como este, se perdesse”.

Fala o padre com os nossos

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No dia em que este irmão faleceu, achando-se o Padre José com os mais padres a seu passamento, em acabando de expirar, se levantou logo o padre em pé, e disse com notável sentimento estas palavras formais: — “Irmãos, a este homem que agora de sua alma nas mãos de Deus, depois de haver sido toda sua vida pedreiro, e a mais dela casado, deu Deus em sete dias o prêmio da Religião e vida religiosa, porque se entregou a Deus de todo seu coração, para com ele no dia do juízo julgar e confundir alguns dos que aqui estão presentes neste cubículo, os quais depois de muitos anos, por não darem seu coração a Deus, não hão justamente de alcançar o prêmio da religião”.

E dito isto se saiu logo, deixando a todos atônitos, e com as cores mudadas, sem nenhum falar palavra, mas como se cada um dissera no interior de sua alma, assim mesmo: Nunquid ego sum? 1 E o tempo descobriu bem ser aquela palavra dita por alguns dos que ali estavam, que não perseveraram na Companhia. Este caso bem considerado, contém em si muitas profecias. Das quatro primeiras os homens podiam dar fé serem cumpridas e alcançarem seu efeito, como na verdade se viu, porque o novo irmão faleceu no prazo assinado dos sete dias e por ele se tangeram a primeira vez os sinos naquele lugar; o Padre José de fato arribou e, para que nada ficasse por fazer, achou no Colégio recado de nosso Ver. Padre Geral para que o Padre Luís da Fonseca fosse seu companheiro, e não o padre que levava dantes. Quanto às outras duas palavras, que tocam à salvação dos dois, um dos quais estava já diante de Deus esperando pelo outro, de crer é também se cumpriram, pois seu humilde servo assim o significou. Glória seja ao mesmo Senhor, Qui est mirabilis in sanctis suis.

Do irmão Francisco de Escalante

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O Irmão Francisco de Escalante afirma que a primeira vez que foi à portaria do Colégio do Rio de Janeiro a pedir a Companhia, disse ao porteiro lhe chamasse ao Padre José; e indo o porteiro chamar o padre lhe respondera: “ide embora que já sei quem é, e o que quer”. Sem nunca o ter visto. Diz mais que o mesmo padre lhe profetizou haver de morrer na Companhia, com que viveu muito consolado.

Desenterra e batiza um menino diferente do outro

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Diante do Padre Domingos Monteiro, e outros da casa contou o Padre José este caso, que lhe acontecera em São Vicente, sendo irmão, e tendo cuidado de ensinar ao gentio.

Soube o padre que dali a meia légua nascera a uma Índia um menino aleijado; e que pelo ver assim, o enterrara logo, como cega e bruta que era. Tomou logo o chapéu e bordão, e com muita pressa se foi onde o menino estava já enterrado, e o desenterrou, e o batizou, porque ainda o achou com algum sinal de vida, e logo lhe expirou nas mãos; e vindo para casa contou o sucesso com muita alegria.

O mesmo caso aconteceu ao Padre Jerônimo Rodrigues, em outra aldeia, e acontece a outros padre que andam entre o gentio.

Repreende a um mancebo

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Na casa do Espírito Santo, um Domingo à tarde, mandou o padre chamar a um mancebo para cantar na doutrina; não no acharam em casa, mas tanto que soube do recado veio ter como o padre à sacristia, dizendo: “não me acharam em casa, mas eis-me aqui”.

Respondeu o padre:

“Já vos não quero nada, que quem vem donde vós vindes, não houvera de vir aqui”.

De que o mancebo ficou pasmado e corrido.

No tempo da guerra dos tamoios, contra a capitania de São Vicente, viviam nela duas irmãs casadas, uma na vila e outra no campo. Esta foi à casa da irmã ajudar-lhe a fazer uns rolos delgados de cerca da terra, e, entre rolos, fez duas velas mais grossas. E repreendendo-a sua irmã que lhe gastava a cerca, disse ela: “estas velas faço para o Padre José me dizer missa com elas, quando eu for santa”.

Daí a dias deram os inimigos um assalto na capitania, onde levaram algumas pessoas, e a esta mulher entre os mais, que foi entregue a um principal, mas nunca quis consentir com ele, gritando: “sou cristã e sou casada”. E isto por tantas vezes que o bárbaro, dando-se por afrontado, a matou por esta causa em terreiro, que é como em alto público e judicial, com uma morte cruel e afrontosa.

Uma mártir pela castidade. Diz missa dela.

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E na mesma manhã, que esta ditosa mulher triunfou do bárbaro cruel e desonesto, foi o Padre José pedir as velas à outra irmã, e disse missa com elas, não de requiem, mas de uma mártir, nomeando-a por seu nome; havendo distância, entre são Vicente onde o padre estava, e o lugar onde ela foi martirizada de setenta léguas.

Soube o padre provincial Manuel da Nóbrega do caso, e perguntou-lhe diante dos padres que mártir era aquela, de que dissera missa. Respondeu que era fulana que em tal hora entrou no céu, mártir pela castidade. E daí a alguns dias, vindo homens que no salto foram tomados com ela, contaram cada um por si esta morte da mesma maneira.

Este caso contou por vezes o Padre José, e o relataram o Padre Vicente Rodrigues, e o Irmão João de Sousa neste Colégio da Bahia, que se achavam na casa de são Vicente, no ano de mil quinhentos e sessenta e oito. De outras duas mártir se fez menção que morreram pela castidade, no livro I, capítulo 6º, infine.

Diz missa por um nosso padre que aquela noite faleceu em Itália

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Na mesma casa de São Vicente, disse o Padre José missa de requiem, dia de São João Evangelista, a Segunda oitava do Natal.

Perguntou-lhe o Padre Manuel da Nóbrega, diante de alguns de casa, como deixaria a missa de tão grande Santo por uma de requiem, a fim de que o caso fosse manifesto para glória de Deus. Respondeu que dissera por um padre da Companhia, que fora seu condiscípulo e amigo, sendo estudantes em Coimbra, que aquela madrugada, dera sua alma a Deus no nosso Colégio do Loreto, em Itália. Acudiu o Padre Nóbrega: “que é feito agora dele?” Respondeu: “já saiu do purgatório, quando levantei a Hóstia a Segunda vez”.

Este caso contou o Padre Vicente Rodrigues, que estava em São Vicente. Dizem que há, de São Vicente a Lisboa distância de mais de mil léguas, e de Lisboa a Roma mais de quatrocentas, mas entre Deus e seus servos, não há nenhuma.

Do forte da Capitania do Espírito Santo

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Na Capitania do Espírito Santo, contou ao Padre Jácome Monteiro, Maria Alves, dona viúva, que estando ela muito doente e desconfiada de sua vida, de seu pai e mãe, a fora visitar o Padre José, e lhe dissera que não havia de morrer daquela. E ainda hoje é viva.

Ao mesmo padre contou um mancebo, por nome Fulano Godinho, que quando se fazia o forte que está da banda vila, dissera o Padre José aos moradores, que não tomassem mal o trabalho de o fazer, porque cedo haviam de vir ingleses, como vieram. E posto que no princípio fizeram algum dano, contudo tanto que chegou o socorro dos índios das aldeias, largaram tudo e se acolheram com as mãos nos cabelos, deixando alguns as armas e muitos a vida.

E isto sucedeu governando a Capitania Dona Luisa Grimalda, mulher que fora de Vasco Fernandes Coutinho, com o Capitão Adjunto Miguel de Azeredo.

Guardei de propósito para este capítulo, alguns exemplos tirados dos testemunhos da vida do Padre José, que parece que claramente provam valer ele nesta vida, e andar em tão alto grau de privação com Deus Nosso Senhor, que muitas vezes lhe revelava, os segredos e pensamentos e consciências das pessoas com quem tratava, da qual notícia usava o servo de Deus, com as mesmas pessoas, ou para aquietar suas consciências temerosas, ou para atalhar pecados e graves desastres.

E posto que de outros santos se escrevam semelhantes coisas, como raras e em prova de santidade deles, em o Padre José era isto tão certo e ordinário, que alguns dos nossos receiavam de estar na casa onde ele era superior. E um deles diz em seu testemunho estas palavras: “o Padre José me descobria muitas coisas que eu com os de casa pensava, que só Deus e eles podiam saber, e assim andávamos muito sobre nós, por entendermos, que nada se lhe encobria, e que Deus lhe revelava tudo”.

Inácio Toloza - Descobre um pecado ao mesmo penitente

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Estava o padre Pero André doente no Colégio da Bahia, sendo provincial o Padre José; entrou um dia pela manhã o enfermeiro e achando que estava em perigo, foi logo sem falar com ninguém em busca do Padre José, pedir-lhe viesse confessar ao enfermo.

Viu ao padre de longe no cabo de um corredor, e antes de lhe dizer nada, nem lhe declara o conceito que levava, lhe disse o Padre José em voz alta: “ide depressa à portaria, e chamai ao Padre Inácio Toloza, que deixe a confissão que está fazendo, e vá em meu lugar confessar ao padre doente”. Assim se fez. Acabada a confissão perdeu logo o juízo, e não no cobrou até a morte. Um homem testemunha de si mesmo este caso: que sendo ele moço, se confessara com o Padre José, e encobria certo pecado, mas o padre lh’o disse claramente, o que ele vendo, pelo conceito que tinha da santidade do padre, se rendeu e fez confissão inteira como devia, entendendo que Deus lh’o revelara.

Aquieta a dois, de seus escrúpulos, sem os ouvir

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Um padre confessado do Padre José, foi uma vez para se confessar com ele; respondeu-lhe que fosse dizer missa, que não era mais necessário. Replicou que tinha um escrúpulo. Acudiu o padre: “vá embora que esse escrúpulo é de tal matéria, e nisso mais mereceu do que desmereceu”. Com que o padre se aquietou, sendo assim que por via humana era impossível saber a matéria do escrúpulo, e muito menos se merecera ou não. Da mesma maneira, a um padre que vinha com outro escrúpulo, antes de lhe ouvir palavra alguma da matéria, o aquietou dizendo que não tivera nisso culpa.

Livra do perigo a um padre

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Mandou a um padre que fosse confessar certa pessoa doente, e ele foi dizer missa. O confessor, querendo fazer seu ofício, achou-se lá em um perigo, de que Deus o livrou por orações do Padre José, a quem o mesmo Senhor o revelou na mesma missa. Porque tornando o confessor para casa, entrou na sacristia ao tempo que o Padre José se estava despindo; ao qual antes de falar palavra disse o Padre José, que o ajudara naquele perigo, usando daquelas palavras que o Senhor disse a São Pedro: Ego rogavi pro te, Petre, ut non deficiat fides tua.

Entrou o Padre José em um Colégio, e um irmão que nunca o tinha visto, em o vendo, formou dele fraco conceito, pelo ver de estatura e presença pouco vendável; e disse em seu coração somente: “para que é agora cá isto?” Não se escondeu este pensamento ao humilde padre, por mais secreto que foi, e quando chegou a abraçar este irmão, lhe disse com muita alegria e caridade: “assim é, irmão, como vós cuidais, e só vós me conhecestes; para que sou eu cá?” De que o irmão, ficou não menos confuso pelo conceito que formara, de que espantado de ver que o padre conhecera o que em seu coração passara.

Outro irmão, por se achar muito fraco, pediu ao dispenseiro lhe desse alguma coisa para merendar. Respondeu-lhe: “não há licença e logo o padre provincial o há de saber, ainda que ninguém lh’o diga”. Daí a pouco vai o Padre José ao cubículo do enfermeiro, e diz-lhe: “daí ao irmão o que vos pede, porque tem necessidade”.

Livra a um irmão do espírito da ira

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Um irmão andava com uma pesada melancolia na matéria de ira, e sem dizer nada a ninguém acerca dela. Nisto perpassa por ele o Padre José, e diz-lhe assim: “fora, fora com isso que não presta”. E deitando-lhe a bênção, o deixou tão desassombrado, como se tais pensamentos nunca por ele passaram.

Livra certos homens de cometerem alguns pecados

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O testemunho autêntico de João Soares, morador em São Paulo, diz assim: perguntado ele, testemunha, do que sabia do Padre José de Anchieta, que está em glória, disse: que era verdade que havia obra de trinta e cinco anos, que conhecia ao dito padre nesta costa do Brasil, e muitas vezes o acompanhara por caminhos e povoações, e se criara ao bafo de sua doutrina. E o tinha por Santo em sua vida, porque muitas vezes ia ele testemunha a cometer brigas e outras coisas de pouco serviço de Deus, sem dar conta a ninguém, e o padre se ia Ter com ele e lhe dizia: “filho não vades fazer o que levais determinado, não vades com tal propósito, porque vos castigará Deus, Nosso Senhor”.

E assim me tirava de meus maus intentos com suas santas palavras e exemplos.

E disse mais, que um dia foi cometido de um amigo para irem matar um homem, e juntamente a mulher do mesmo seu amigo, que andava já fugida de casa; e que estando eles tratando o como, sem saber do caso viva pessoa, chegou o Padre José e lhes disse: “filhos não façais o que estais determinado”. E lhes deu tão eficazes razões que ficaram fora de si. E não somente os tirara do mau propósito, mais ainda ficou o homem tão mudado, que logo disse: “padre, trazei minha mulher para casa”.

E logo ele João Soares a foi buscar, com recado do Padre José, à fazenda onde estava escondida do marido, e a trouxe à vila, onde o padre, e ele testemunha, a entregaram a seu marido. E daí por diante viveram em paz e serviço de Deus, que seja glorificado em seus Santos.

Nem profecias nem obras maravilhosas, por si só foram nunca prova infalível da santidade de algum servo de Deus, porém sempre ajudaram muito, quando eram feitas ou denunciadas por pessoa de vida exemplar, acompanhada de virtudes evangélicas, caridade com Deus e com o próximo, humildade, mortificação, e outras semelhantes.

Tais foram as virtudes do santo Padre José, pelo que não há o que espantar, de fazer Deus por ele, as obras maravilhosas a que as forças humanas não podiam chegar, as quais, por muitos testemunhos autênticos, se mostra e prova ter Deus por ele feitas em diversos lugares, matérias e ocasiões.

Estando com outros homens ia e tornava sem darem fé disso

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Coisa muito rara e privilégio singular é que um homem em carne mortal, cada vez que quer, estando em conversação de outros homens, se faça invisível, e se ausente deles, e torne à conversação sem darem fé quando foi, nem por onde tornou. E outras coisas desta sorte que logo tocaremos. Nem eu pudera escrever, nem imaginar do Padre José, se a autoridade das testemunhas me não assegurara o campo.

Miguel de Azeredo

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Miguel de Azeredo, capitão da Capitania do Espírito Santo, depôs em seu testemunho que, andando o Padre José com muitos índios, e alguns padres das aldeias, abrindo uma levada para um engenho de uma pessoa de obrigação, dali de entre todos se ausentava, e se ia à sua oração, sem o acharem menos, e quando cuidavam que tardava, o tornavam achar entre si, do que se espantavam todos, por não saberem quando ia nem quando vinha.

Semelhante caso se tocou no livro segundo, capítulo segundo.

Luís Gomes

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Luís Gomes, morador na mesma vila, diz que indo em uma galé de que era capitão Belchior de Azeredo, na qual ia também o Padre José, muitas vezes o buscavam para cear, e não o achavam no lugar onde primeiro o buscaram. E perguntando ao mesmo onde se escondia sua R., que o não achavam, respondia que estava ali na proa rezando e que nunca dali se bulira. E conclui que não podia ser estar o padre ali.

O mesmo me contaram os padres acontecer-lhe muitas vezes com ele, assim caminhando e conversando em terra como navegando por mar.

No mesmo tempo em diversas partes

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Estevão Ribeiro, morador na vila de São Paulo, vindo à Capitania do Espírito Santo, e falando com um padre nas coisas do Padre José, lhe disse fora visto, e falaram com ele no mesmo tempo, diversas pessoas, em diferentes partes, em São Vicente e em São Paulo, havendo entre estas vilas obra de quatorze léguas de distância. O qual dito, de Estevão Ribeiro, confirmou o Padre Vicente Rodrigues, companheiro do Padre José em muitas viagens.

Do missal

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Contou o mesmo Padre Vicente Rodrigues, no Colégio da Bahia, a um padre, o caso seguinte: ia ele com o Padre José e outros padres, de São Vicente para São Paulo, e no meio da serra se acharam sem missal, sendo dia da Ascensão de Jesus Cristo Nosso Senhor. Ofereceu-se o Padre José para o tornar a buscar, à casa de São Vicente. Tornou e daí a meia hora, vem com um missal debaixo do braço, com que disseram missa.

E continuaram seu caminho, louvando a Deus as maravilhas que obrava por seu servo, mas não nas achando por novas no Padre José, sendo dignas de admiração, porque o padre não foi visto na casa de São Vicente, nem dela faltou tal missal. E para desandar e tornar a andar aquelas seis ou sete léguas, escassamente bastara todo um dia a um valente andador; mas são favores, e milagres de Deus Nosso Senhor.

Enxuto na chuva

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Andava o Padre José, com muita gente, fazendo um caminho novo pela serra, entre São Vicente e São Paulo, em companhia de Afonso Sardinha, que jura enxugar-se o vestido ao padre ao entrar na choupana, vindo de fora molhado. Disse mais que o padre se deixava estar dentro na casinha, até que lhe parecia que Afonso Sardinha dormia, e logo se saía, e posto ao pé de um pau, com as mãos alevantadas, passava a maior parte da noite em oração.

Afonso Gonçalves, morador no Rio de Janeiro, afirma que acompanhando ao Padre José com um cunhado seu, deram ambos fé que, em um dia de muita chuva, pela mesma serra, indo eles ambos ensopados em água, só o padre ia enxuto, e que dizendo isto ao padre, respondera que da sua roupeta por ser boa, logo escorria a água, sendo ela na verdade muito velha.

Do breviário

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No ano de 1601, Damião da Costa Favela, morador no termo da cidade da Bahia, contou a um padre da Companhia este caso: sendo ele moço e acompanhando ao Padre José pela praia de Nossa Senhora da Conceição, por outro nome Itanhaém, com outro irmão nosso, no meio do caminho perguntou o padre ao irmão pelo seu breviário, e achando que não metera no alforje, o Favela se ofereceu a tornar em busca dele, o que o padre não consentiu. E chegando à Igreja e feita oração, o padre tomou de cima de um altar o breviário, e se pôs a rezar por ele, e acabando de rezar o deu ao irmão, dizendo: "outro dia não vos esqueça de o meter no alforje". E era o mesmo do padre, que, por esquecimento, ficara na casa de São Vicente. Donde entendi, diz este homem, que algum anjo lh'o trouxera ali.

Doente da gota coral

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Camila Pereira, dona viúva, moradora na Vila de Vitória, Capitania do Espírito Santo, estava um dia tão mal da cabeça, que lhe parecia perder a vida e a cabeça com dores, de modo que estavam já para lhe dar a santa unção. Mandou chamar ao padre, que lhe pôs as mãos na cabeça, e lhe disse que não morreria daquela, e lhe prometeu uma missa para o dia seguinte.

Dita a missa, tornou à casa da enferma, e lhe disse que se não agastasse que seu mal era de gota coral, que se lhe havia de ir, e não lhe tornaria mais; e assim foi porque sarou e não lhe tornou mais aquela doença.

Sara um leproso com o santo batismo

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Achando uma vez a um índio gentio e leproso, o catequizou, e bem instruído na fé, o batizou. E com este divino lavatório foi Deus servido limpá-lo na alma e corpo, como aconteceu ao Imperador Constantino Magno, com a mesma água do santo batismo, dado pela mão do Papa São Silvestre.

Da mão escaldada

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Servia um irmão na cozinha neste Colégio da Bahia, e acertou que tirando do fogo uma tigela grande de peixe cozido que estava fervendo, se lhe entornou o caldo sobre as costas da mão direita, e lh'a queimou. Nisto passou acaso pela cozinha o Padre José, viu a mão maltratada, e tomando-a com a sua esquerda, dissimuladamente lhe fez o sinal da cruz com a direita dizendo: "ora basta, não vos doa". E ele mesmo a chegou ao fogo, com que logo sarou, e o irmão tornou a continuar com seu ofício.

Doente de quartãs

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Neste mesmo colégio andava o Padre Francisco Fernandes, sendo ainda irmão, doente de quartãs havia muitos meses. Neste tempo chegou a festa de Nossa Senhora da Escada, a vinte e um de novembro, e iam alguns da casa a celebrar a festa daqui duas léguas, em uma Igreja do Colégio, da mesma invocação.

Encontrou o Padre José, que era provincial, com o irmão e perguntou-lhe porque não ia com os mais. Respondeu que por causa das quartãs. Disse-lhe então o padre: "ora ide, e não as torneis a trazer para casa, deixai-as lá". Foi e deu-lhe lá uma mui rija febre; vai-se então à Igreja e diante do altar da imagem da gloriosa Virgem, pede que lhe dê remédio, alegando que o Padre José lhe mandara não tornasse para o Colégio com elas. Ouviu a Senhora Mãe de Deus as orações de ambos, e o irmão tornou para casa com perfeita saúde, sem lhe tornarem mais as quartãs.

Doente de fastio

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Estava o Padre José doente no seu cubículo, e um irmão na enfermaria muito mal de fastio. Levaram ao padre um frangão consertado, para jantar. Tomou o prato na mão, e assim como estava, o mandou ao irmão enfermo, e que lhe dissessem da sua parte que o comesse e que não tivesse mais fastio. Ouviu o recado, ajudou-se da fé e obediência, comeu o frangão, e logo começou de se achar melhor, e convalesceu em poucos dias. Tanto obrou a oração do padre, e a fé do irmão.

Do lacão

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Outro enfermo, irmão nosso, estava mal, e também o apertava o fastio; visitou-o o Padre José e perguntou-lhe que comeria. Respondeu que comeria um pequeno de lacão; mandou o padre pedi-lo ao dispenseiro, que disse que o não havia em casa. Foi então o padre à dispensa, e de um cesto que estava pendurado com peixe assado, tomou um pedaço, levou-o ao doente, o qual o comeu, e o achou muito bom presunto.

Depois perguntou o irmão ao dispenseiro porque não lhe dera da primeira vez o lacão, que o Padre José lhe mandara dar. Foi-se o irmão dispenseiro à dispensa e trouxe uma posta de peixe, da qual o Padre José tomara o que deu ao enfermo feito lacão. E era xaréu assado.

Do menino doente

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João Batista Málio, morador na vila de Santos, tinha um filho, criança de onze meses, tão doente que havia dois ou três dias que não tomava o peito da ama. Pediu ao Padre José o favorecesse com suas orações diante de Deus. Respondeu o padre que se não agastasse, que encomendasse o menino a Nossa Senhora da Conceição, que ela lhe alcançaria a saúde. Feito isto no mesmo dia, a criança começou a mamar, e sarou, tendo-o já por morto.

Do menino mudo

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Outro menino de quatro ou cinco anos havia, na Capitania do Espírito Santo, mudo que nunca falara, por nome Estevão. Sucedeu que se fez uma grande festa na aldeia de São João, a que acudiu muita gente da vila, e também o Padre José com outros padres. Entre danças e outros jogos houve também correr o pato, e entre dois de cavalo houve diferença sobre qual deles o levara. Fizeram juiz do caso ao Padre José, o qual olhando para Estevão, lhe mandou que dissesse quem ganhara o pato. O menino, recobrando logo a fala, respondeu desembaraçadamente, dizendo: "é meu, dêem-mo, para o levar a minha mãe".

Deram-lhe o pato, que levou, juntamente com a fala restituída, de que todo o povo que presente estava, deu muitos louvores a Deus por tão grande maravilha. De crer é que tinha o Padre José de antemão visto e tratado este negócio com Deus, e alcançado esta mercê com suas orações, para glória do mesmo Senhor.

De um inchaço

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Vindo o Padre José da Capitania de São Vicente para o Colégio do Rio de Janeiro, achou ao Irmão Gonçalo Luís muito doente, com um inchaço debaixo do braço esquerdo, que por mais remédios que lhe punham não abrandava, antes se encruava mais.

Chegando o padre a ele lhe disse: "irmão, que é isso que vos dói?" E pondo-lhe a mão no inchaço, e fazendo o sinal da cruz, daí a nada por si arrebentou. Veio o médico, e sabendo o que passara, ficou atônito, e os de casa deram a Deus muitas graças.

Doente de câmaras de sangue

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João Soares, morador na Vila de São Paulo, de que se tem feito menção em outros lugares, veio à Capitania do Espírito Santo, onde estava o Padre José, e aí adoeceu mui gravemente de câmaras de sangue; e apertou a doença tanto com ele, que já ninguém fazia caso da sua vida.

Veio um dia o Padre José visitá-lo, e assentando-se na cama, lhe disse: "filho, não vos levanteis mais, porque confio em Deus que sarareis". E correu-lhe a mão pelo corpo, e logo com ajuda de Deus se lhe estancaram as câmaras, e se lhe foi o fastio que também o atribulava, e logo comeu, e bebeu de um frasco de vinho tinto, que o padre lhe mandara com outras coisas.

Ido o padre da casa do enfermo, chegou o Administrador Bartolomeu Simões Pereira a visitá-lo, e perguntando-lhe como estava, respondeu João Soares: "depois que o Padre José aqui chegou, cessou a doença, não me levantei mais, com me levantar a noite passada cento e tantas vezes". Disse então o Administrador: "quem podia alcançar isso de Deus, senão o Padre José?"

De suas relíquias para todas as doenças, em especial dor de cabeça

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Pela fama de sentidade do padre José, confirmada com tão notáveis exemplos quotidianos de sua rara virtude e obras milagrosas, que Deus, por este vaso escolhido fazia, muitas pessoas tomavam por devoção de se ajudarem das relíquias do vestido do padre, para suas enfermidades, em especial para dor de cabeça, como algumas pessoas o juram em seus testemunhos, terem-no ouvido e visto em outras, e ainda experimentado em si mesmas.

Uma delas diz que, estando com uma dor mui aguda em uma ilharga, entrou o Padre José a visitá-la, e lhe rogou deixasse por a manga da roupeta donde tinha a dor, com que incontinenti se achou bem e livre da pontada.

Doença de cobrelo

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Há uma grave doença, que chamam de cobrelo, que dando na parte direita, com grandes dores vai cingindo uma pessoa pela cinta, com um vergão de um dedo, e em chegando ponta com ponta, não há ordinariamente remédio de vida. Desta doença ia mal tratado o nosso Irmão Francisco Dias,

acompanhando no navio de casa ao Padre José, no ano de mil quinhentos e setenta e sete. E chegando à Capitania de Porto Seguro, por não haver ali remédios humanos, determinou de se entregar só à Divina Providência, e aos remédios espirituais.

E assim pediu ao Padre José, lhe fosse o dia seguinte dizer uma missa a Nossa Senhora da Ajuda. Respondeu o padre: "untem-vos primeiro com o azeite do Santíssimo Sacramento, que se não agravará a Mãe de pedirem primeiro socorro ao Filho". E assim se fez, e logo abrandou algum tanto a dor. No dia seguinte foi o padre a Nossa senhora a dizer uma missa, e dita ela se foi o irmão lavar na fonte de Nossa Senhora, e logo se desfez e desapareceu o cobrelo, e cessou a dor, no que se viu ser esta obra de Deus, feita por intercessão da Virgem gloriosa, intervindo a oração do padre e a fé do irmão, que me referiu a mim este caso no ano de seiscentos e cinco.

Doente de asma

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Estando o Padre José na fazenda de Magé, distrito do Rio de Janeiro, veio ter com ele um homem, muito maltratado de asma havia muitos anos; o padre lhe disse que fosse beber em uma fonte, que está na mesma fazenda, junto a um engenho, e que rezasse cinco vezes o Padre Nosso e cinco Ave Marias, à honra das cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que logo seria são. Fê-lo assim, e incontinenti sarou, sem nunca mais lhe tornar o mal. Este homem é morador no Rio de Janeiro, por nome Baltazar Martins Florença.

Aleijado que andava em muletas

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Outro vizinho da mesma cidade, por nome Francisco Domingues, jura em seu testemunho que andando em muletas, por não poder dar um passo sem elas, foi ao Colégio visitar ao Padre José, o qual mandou que deixasse as muletas; e dizendo que não podia andar sem elas, o padre lhe deu um bordão. Deixou as muletas e levou o bordão, e daí por diante se foi achando bem, até que de todo sarou, sem lhe vir mais a dita doença; mas o bordão ainda traz consigo em memória do benefício recebido de Deus, por orações de seu servo José, e o mostrou quando deu este testemunho diante do administrador Mateus da Costa Aborim.

De um excomungado

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Outra vez vindo o padre da Bahia, e querendo entrar na Capitania do Espírito Santo, se levantou uma mui grave tempestade, que não deixou entrar o navio; disse então o padre: "algum excomungado vem aqui, venha a mim que eu o absolverei".

Veio logo um homem Ter com o padre, que tinha tomado um livro da mesa do Governador Dom Francisco de Sousa, e publicando-se carta de excomunhão, não quis sair a ela. Deu o livro ao padre e recebeu a absolvição. Cessou a tempestade, e acudiu vento em popa que o meteu pela barra adentro.

Amansa um boi bravo

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Foi o Padre José com o Padre Vicente Rodrigues, a confessar a gente da fazenda e engenho de Magé, que pouco há nomeamos; andavam para meter na moenda um boi muito bravo, e não podiam. Chegou-se o padre ao curral, e deitou uma bênção ao boi, com que ficou tão manso que logo se foi à canga, e um negrinho o meteu nela.

Não tocou o bicho na sua letra

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Até nos papéis e escritos do Padre José, faz Deus maravilhas. O padre Jerônimo Rodrigues, andando na missão dos Carijós, em uma carta que escreve ao Padre Provincial Fernão Cardim, da Lagoa dos Patos, a vinte e seis de novembro de seiscentos e cinco, depois de escrever uma perda que tiveram de cartapácios, breviário e outras coisas necessárias, diz assim: "mas consolamo-nos muito, porque vindo entre estes livros que de todo se perderam, algumas coisinhas do nosso bendito Padre José, nenhuma delas se perdeu, e comendo o bicho um cartapácio, tanto que chegou a uma folha onde estava um hino escrito de letra do padre, não foi mais por diante, deixando atrás muitas comidas: Sit nomen Dei benedictum in sanctis suis".

Do barril de azeite

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Coisa muito celebrada foi, nesta Província do Brasil, o barril de azeite da casa de São Vicente, o qual por mais vezes que o esgotavam, sempre achavam que tirar, como fonte de pouca água que, em tempo de grande seca, o povo à noite a deixa sem água, e quando vem pela manhã sempre lhe acham alguma. O caso foi este. Sendo o Padre José superior das casas de São Paulo e de São Vicente, na qual residia, sucedeu haver em toda a Capitania falta de azeite, de modo que somente havia um pouco na casa de São Vicente, em um barril ou quarto de dois em pipa. Do qual se provia a casa para comer, e as lâmpadas das Igrejas de ambas as casas, para se alumiar o Santíssimo Sacramento, e além disto os pobres que o vinham pedir para suas necessidades.

O azeite ia minguando, e o Irmão Antônio Ribeiro, que era dispenseiro, ia cada vez empinando mais o quarto até que de todo o deu por acabado, e pedia ao Padre José lh'o deixasse tirar dali para servir de outra coisa. Mas o padre lhe disse que não tirasse do lugar onde estava empinado, antes gastasse dele, e desse aos pobres, porque Deus era pai de misericórdia e o acrescentaria. O irmão assim o fez, por todo aquele tempo que foi um ano ou dois, que não houve azeite na terra, provendo dele as lâmpadas e pobres de toda a Capitania; e cuidando muitas vezes o irmão que o deixava sem gota de azeite, contudo quando tornava, sempre achava quanto bastava para aquela presente necessidade, entendendo todos os que sabiam do caso, que Deus o acrescentava, por orações do Padre José, como se via claramente.

Estando a terra neste aperto de falta de azeite, chegou a nau dos Erasmos, senhores do engenho de São Jorge, situado na dita Capitania, dos quais em outro lugar se tocou, e nela vinha uma pipa de azeite, que aqueles senhores mandavam de esmola aos padres. E tanto que a pipa entrou na dispensa, logo se acabou de todo o azeite do quarto. Do que todo o povo deu muitas graças a Deus, assim por durar o azeite tanto tempo, como por se acabar naquela conjunção.

De uma tormenta

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Vindo uma vez o Padre José da Vila de São Paulo, para a de São Vicente, estando no alto da serra para a começar de descer, deixa-se vir uma tão escura cerração, que sendo de dia se não viam uns aos outros, e se armou juntamente tão espantoso chuveiro que, se lhes chegara, corriam todos risco das vidas.

Rogou então o padre a Nossa senhora, que lhes valesse em tão grande perigo, e logo de improviso se lhes abriu a cerração pelo meio, e se lhes descobriu um caminho por onde desceram abaixo, e se agasalharam em uma choupana. Nisto sucedeu outro perigo da chuva, o restante daquele dia e noite seguinte, e ao outro dia, que foi necessário ao padre valer-se outra vez da gloriosa Virgem, e pedir-lhe desse tempo para poder chegar a São Vicente, como de feito lh'o alcançou a Mãe de Misericórdia e piedade.

Outra tormenta

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No ano de mil quinhentos e oitenta e cinco, vindo do Rio de Janeiro para a Bahia o padre Cristóvão de Gouveia, segundo visitador geral desta Província, e com ele o Padre José e outros religiosos, lhes deu uma tão grande tormenta, que os ia lançar à costa nos arrecifes, e todos, até a gente do mar, se davam já por perdidos, e assim deixavam de marear o navio.

Os padres debaixo da tolda, se estavam aparelhando para bem morrer, confessando-se uns aos outros. Porém o Padre José estava em cima da coberta, em pé, pegado às cordas do navio, com os olhos no céu, fazendo seu ofício de rogar a Deus pelo remédio e vidas de todos.

Neste comenos chegou a ele um irmão, pedindo-lhe o ouvisse de confissão. Respondeu-lhe: "não é agora necessário". Acudiu o irmão: "Por quê? Não se há de perder o navio?" Respondeu o padre: "Não". Secundou o irmão, para se afirmar mais na resposta: "Havemo-nos de afogar, havemos de morrer?" Aqui o padre então, como agastado, levantou algum tanto a voz, dizendo que não. Ao que o irmão disse: "Pois vou lá abaixo, a dizer isso aos padres, que estão mui atribulados" — "Deixai, não vades; que se perde em chamarem a Deus?" Aquietou-se então o irmão e se foi deitar sobre um caixão, bem seguro e descansado pelo que ouvira ao Padre José. E de fato, quebrou a fúria da tormenta e o mar sossegou, e deram todos graças a Deus, por se verem livres da fúria do mar e da garganta da morte.

O primeiro destes milagres, certificou Antônio de Siqueira, escrivão do público e judicial e da Câmara na Vila de Santos, debaixo de seu juramento e público sinal, por estas palavras:

"É verdade que indo eu, os anos passados, em companhia do Padre José de Anchieta para a Vila de São Paulo, indo mais em nossa companhia três ou quatro homens, levava o padre uma cabaça de vinho de mel, que lhe dera um seu devoto, por nome Nicolau Grilo, que podia ter um quartilho de vinho da medida desta terra, que é muito maior que a de Portugal.

E pusemos no caminho três ou quatro dias; e cada dia, bebíamos do vinho ao almoço, jantar e ceia, cada um três ou quatro vezes de vinho, da dita cabaça de água; e quando tornávamos a comer e beber da cabaça, achávamos ser vinho tão bom e melhor do que o deram ao padre, e todos os que ali íamos, claramente vimos que era milagre.

E outrossim, certifico que nesta Capitania, foi público o dito padre fazer muitos milagres, e o tinham por homem santo."

Batizou o padre um índio ressuscitado

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Segue-se o segundo milagre:

Grácia Rodrigues, mulher casada, jurou diante do padre vigário da Vila de Santos que, falecendo um índio em sua casa, por nome Diogo, depois de o ter amortalhado, e a cova aberta, daí a obra de duas horas o vira bulir. E chegando-se ela ao defunto, lhe falou dizendo: "senhora, desate-me desta mortalha em que estou cozido". O que ela logo fez. E assentando-se junto dele, lhe disse Diogo: " mande, senhora, chamar ao Padre José de Anchieta". Ao que ela disse que o padre não estava na vila, mas daí a duas léguas, na casa de São Vicente. Replicou Diogo: "já é vindo, e eu vim em sua companhia até o ribeiro junto a esta Vila de Santos, e aí o deixei por me dizer que viesse adiante". Mandou logo a senhora buscar o padre, e o acharam como Diogo dissera; deram recado ao padre como o índio ressuscitado o mandava buscar; veio logo o padre, e o índio lhe disse: "padre, que é do relicário que me mostrastes, no caminho?"

E tirando o padre do seio o relicário, o índio se alegrou muito, e praticando com o padre, lhe disse, entre outras coisas, como fora ao outro mundo, e que lá lhe disseram que não ia bem encaminhado, porque não estava batizado, como na verdade se achou não no estar até aquela hora, cuidando ele que era cristão pelo nome que os brancos lhe puseram, quando foram à sua terra dele, e lhe chamavam Diogo.

Pediu o índio ao Padre José que o batizasse logo, porque estava de caminho para a outra vida; instruiu então o padre de propósito e o batizou com muitas lágrimas e consolação sua, dizendo que ainda que não viera ao Brasil, para mais que ganhar aquela alma, tivera por bem empregada sua vinda e todos os trabalhos passados.

Despediu-se da senhora e lhe pediu desse o fatinho a algum pobre, e lhe mandasse dizer duas missas, e lhe desse uma vela que lhe meteu na mão acesa. Rogou também ao padre se não fosse dali até ele não dar sua alma a Nosso Senhor, cuja era. O que tudo se fez; e ele deu sua alma a Deus nas mão do padre diante de outras pessoas que ali estavam.

Até aqui o testemunho que achei nos papéis autênticos. Caso é este raríssimo, e digníssimo de ser por ele glorificada a divina bondade, e que em si encerra outros mui grandes milagres, e singulares favores, que um gentio adulto, morrendo sem batismo, não seja logo lançado no inferno, e que lhe dêem licença para ir buscar quem o batize, e que a alma venha acompanhando o padre, e que dê fé do seu relicário e que o padre o mande de si a se meter no corpo, antes que seja enterrado.

Mas tudo são caminhos para se cumprir a divina predestinação, assim como achar o Padre José na praia ao índio centenário, da terra não sabida, e batizá-lo, ou desenterrar a criança que estava ainda palpitando, e batizá-la e morrer-lhe nas mãos.

Profecia

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Estando o Padre Francisco Pinto doente na enfermaria do Colégio da Bahia, e em estado que lhe tinham já aparelhado os sagrados óleos, para lhe darem a santa unção, e partindo-se o Padre José, que era provincial, para Pernambuco, se foi despedir dele e lhe disse: "ficai-vos embora, lá darei novas da vossa saúde a vossa mãe e irmãos. Vós quereis assim entrar no céu a mãos lavadas; não há de ser assim. Longa tibi restat via, e tendes ainda muitos serviços que fazer a Deus na Companhia, e não haveis de entrar no céu por morte folgada. Levantai-vos logo e ide ao coro dar graças ao Santíssimo Sacramento, que vos deu saúde.

E virou-se para o enfermeiro, dizendo: "irmão, dai-lhe logo seu vestido". Deu-lh'o, e foi-se e não tornou mais à enfermaria doente.

Depois disto procedeu este padre com muito exemplo na Companhia, de devoção, virtude e zelo da salvação das almas, por espaço de vinte e quatro anos.

Jornada dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira ao Rio de Maranhão

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Até que no ano de seiscentos e sete, concluiu sua vida em santos trabalhos, na missão que fez de Pernambuco ao rio do Maranhão, como refere o Padre Luís Figueira, que foi seu companheiro na jornada, na relação que dela fez, que em suma é a seguinte: "corre de Pernambuco para a parte do norte do rio Maranhão, uma grande costa de perto de duzentas léguas, do mar do Brasil, que pertence à Coroa de Portugal, toda povoada de infinitos índios bárbaros e selvagens.

Desejaram muito os nossos padres, de começar a romper esta mata tão espessa, com o modo mais suave, que é indo fazendo pazes com eles, com dádivas de ferramentas e outras coisas que eles estimam. Para superior desta empresa foi eleito o Padre Francisco Pinto, homem de cinqüenta e quatro anos de idade, excelente língua e grande experiência das coisas do Brasil, onde tirou muitas mil almas para o rebanho de Jesus Cristo e grêmio de sua Igreja. E, sobretudo, religioso de muita prudência e sofrimento, para poder entrar com esta gente, e pôr o peito às dificuldades e perigos que o estavam ameaçando, e que tinha já feito outras quatro ou cinco jornadas. Era mais de singulares virtudes e dom de oração, tão zeloso do aumento da fé e salvação das almas, que todo o Brasil lhe parecia pouco para trazer a Deus. E como tal ele foi o que se ofereceu para esta jornada, e a pediu aos superiores com muita instância, com esperança de fazer a Deus muitos serviços.

É o rio do Maranhão mui grande e muito afamado, que dista cem léguas de outro maior que chamam Orelhana e das Amazonas." O Padre Luís Figueira, mais mancebo na idade, mas de muitas partes de virtudes e letras, com grande fervor e instância procurou e alcançou dos superiores esta milagrosa missão. Partiram de Pernambuco por ordem do Padre Provincial Fernão Cardim, e com licença e ajuda do Governador Geral Diogo Botelho, em janeiro de seiscentos e sete; foram por mar cento e vinte léguas, até Jaguaribe, daí por diante fizeram seu caminho por terra, a pé, com seus bordões nas mãos, acompanhados por alguns índios cristãos, da mesma Nação daqueles a quem iam buscar; caminharam deste modo mais de cem léguas, a maior parte por lamas e atoleiros, por ser no inverno, e algumas vezes descalços por matos e brenhas, sem mais caminho que quanto os índios iam rompendo, com comerem tão pouco que, muitas vezes, não tinham mais com que passar que umas ervas.

Chegaram à serra chamada Ibiapaba, a cem léguas do rio Maranhão, e vendo que tinham diante de si três nações de gentio bravo, por meio dos quais necessariamente haviam de passar, intentaram fazer pazes com eles. Aos primeiro mandaram recado por duas vezes, com seus presentes; não acudiram; e aos segundos da mesma maneira. Os terceiros deram por resposta matarem a todos os índios que levavam o presente, tirando um moço de dezoito anos que guardaram para lhes ensinar o caminho, quando viessem dar sobre os padres.

Morte do PAdre Francisco Pinto

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Passado algum tempo, aos onze de janeiro de seiscentos e oito, se deixou descer da serra uma manada destes bárbaros; começam às flechadas aos nossos índios, e arremetem pela banda da choupana, onde o bom padre estava rezando suas horas.

Sai o padre à grita, querendo-os pacificar, e os nossos índios a bradar, que aquele era o Padre Abaré que lhes vinha ensinar as coisas do céu, e da salvação das almas; respondiam que não tinham de haver com isso, que o haviam de matar; finalmente, matando primeiro a um índio que o defendia mui esforçadamente, chegando-se ao padre lhe deram com pau tantas pancadas na cabeça, que lh'a fizeram em pedaços, quebrando-lhe os queixos, e deitaram-lhe os olhos fora.

Enquanto a briga durava, foi um mocinho gritando, onde estava apartado dali o Padre Luís Figueira: "apressa-te, pai, apressa-te, pai". Que o ouvindo o padre, se meteu pelo mato onde escapou com a vida, posto que os inimigos o andaram buscando para lh'a tirarem, mas não dando com ele, deram volta sobre a choupana e roubaram todo o fato dos padres e da Igreja.

Idos eles, saiu depois o padre e ajuntando os índios, se foi com muitas lágrimas onde estava o corpo do Padre Francisco Pinto, e lavando-lhe o rosto e a cabeça, cheia de sangue, terra e feita pedaços, o compôs em uma rede e o levou a enterrar ao pé da serra, com a dor e sentimento que se deixa entender, dando-lhe a sepultura, a que o tempo deu lugar, no meio daquela cega gentilidade que paga com morte cruel, a quem por meio de tantas incomodidades e trabalhos, lhe vinha oferecer a vida, a vida da alma.

Tal foi o fim daquela jornada que parece que nãso quis Deus por ora tirar dela outro fruto, mais que cumprir os desejos de seu servo, que era dar a vida pela obediência, em seu serviço, e salvação das almas.

Poderosa é a divina bondade e misericórdia, para em algum tempo criar desta pequena semente uma formosa seara de gente cristã, de que, muitos grãos se venham a recolher, em os celeiros da glória. O pau com que estes gentios mataram este bom padre, com os sinais de seu sangue, trouxe o Padre Luís Figueira, e está guardado neste Colégio da Bahia.

E finalmente desta maneira, depois de vinte e cinco anos, se cumpriu a profecia do Padre José: "longa tibi restat via. Não haveis de entrar no céu por morte folgada".

Não se contentou a divina bondade, de honrar a seu humilde servo, com o fazer amadon e respeitado dos homens, como por tantas vias até aqui se tem mostrado, mas ainda quis que dos mesmos brutos animais tivesse testemunho sua santidade, fazendo que a seu modo o reverenciassem, não somente as aves, posto que por natureza são esquivas, mas também as feras, bravas e montezinhas, que a ninguém guardam cortesia, antes andam buscando ao homem para lhe beberem o sangue, como se com juízo e discurso souberam fazer diferença, entre este servo de Deus e o comum dos outros homens.

Porém o certo e verdadeiro é que outro juízo soberano, e braço poderoso, a que ninguém pode resistir, queria por este modo, tão singular e sobrenatural, dar a conhecer ao mundo a virtude do santo Padre José, para que, sendo de muitos invejada e conhecida, pudesse ser de muitos imitada.

De passarinhos

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Disse um padre antigo desta Província, que havia mais de trinta anos ouvira sempre dizer a padres e irmãos nossos, e a pessoas de crédito, seculares, que quando o Padre José andava de caminho, algumas vezes chamava com a mão os passarinhos, dizendo: "põe-te aqui e louva a Deus". Obedeciam de davam sua música no dedo. E então os despedia, com dizer: "já louvaste a Nosso Senhor, vai— te embora".

Também na casa do Espírito Santo, comumente se dizia que, estando o padre à janela do seu cubículo, lhe faziam a mesma festa as andorinhas. Venhamos agora aos casos e testemunhos particulares.

Estêvão Ribeiro, morador na vila de São Paulo, jura ter ouvido dizer que andando umas rolas comendo, no refeitório da casa de São Vicente, os moços as lançaram fora, mas que o padre, pelejando com os moços, as tornara a chamar, que viessem comer, e que vieram.

Canário

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O Padre Gaspar de São Pérez, valenciano da nação, diz assim no seu testemunho: "Eu vi com os meus olhos, na Capitania do Espírito Santo, que pregando o Padre José em dia do Espírito Santo, em a nossa casa, veio voando um passarinho como canário, e se lhe assentou sobre o ombro esquerdo, e foi-se depois que o padre o enxotou a segunda vez, mansamente".

"Disse-me também o Padre José: 'quereis que vos diga, Gaspar? Nesta terra dizem que eu faço milagres e que chamo os pássaros e que vêm a mim. E foi que, vindo eu em um navio, voava sobre ele um pássaro destes do mar. Então estendi o braço e o pássaro pousou nele, fazei de conta como se houvera de assentar em outra parte. Também dizem que me viram levantado no ar...'

E não me lembra que saída me deu a isto. Mas não negou o estar levantado". Até aqui são palavras do Padre Gaspar de São Pérez.

Um passarinho pintado

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Quando Afonso Sardinha, morador na vila de São Paulo, trata em seu testemunho do voluntário cativeiro em que Padre José se foi meter, para efeito de fazer as pazes com os tamoios, diz assim: "ensinava a doutrina aos gentios, e depois tomava seu breviário e se ia pelos matos, a rezar, e em rezando lhe vinha um passarinho, muito formoso, pintado de cores, andar por riba dos ombros, braços e livro".

Corvos marinhos

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Quando fazia a pescaria de que em outros lugares tratamos, andavam corvos marinhos, gaivotas e outras aves, molestando os índios que salgavam o peixe, com grande sobejidão. O Padre José que ali andava falou com elas na língua brasílica, dizendo: “ apartai-vos daqui vós outras aves, e não sejais sobejas, que quando nos formos daqui vos deixaremos vosso quinhão”.

Dali por diante não enfadaram mais os moços, mas, afastadas e quietas, como se foram capazes de obediência, esperavam que acabasse a gente o serviço, e então acudiam a comer o que achavam.

Guarazes fazem sombra à canoa

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Ia o padre em uma canoa, atravessando a baía do Rio de Janeiro, para a cidade; o companheiro que ia detrás do Padre José, queixava-se da grande calma. Nisto viu o padre uns três ou quatro guarazes, que são aves como frangas de cor vermelha finíssima, postas em uma árvore, e disse-lhes pela língua: “ide chamar vossas parentas, e vinde-nos aqui fazer sombra”.

E logo estendendo os pescoços deram um grito, como que diziam que sim, e foram-se voando; dali a pouco espaço veio um grande bando delas, e ajuntando-se em uma nuvem, foram fazendo sombra à canoa por obra de uma légua, enquanto a sombra foi necessária. E em entrando a viração, o padre lhes disse que bastava, ao que responderam com grande grita, como que se despediam e se foram.

Em ambos estes casos, foi companheiro do Padre José o Padre Pero Leitão, que o jurou em seu testemunho, diante do Padre Provincial Fernão Cardim e de outros padres, dos quais eu era um.

Onças

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Na comarca do Rio de Janeiro, desta banda do Norte sobre o Cabo Frio, há uma praga de onças de diversas castas, mui cruéis, umas pela cinta grossas e ruivas ou pintadas, outras negras pelo meio, e delgadas que são tigres verdadeiros; também dizem que há leopardos, todos mui bravos e ferozes. Passando por esta paragem o Padre José um dia, com alguma gente, depois de feita a choupana e agasalhados todos, se saiu de noite fora da casinha, e se deteve por grande espaço de tempo; tornando a entrar, tomou um cacho de bananas, e partindo-o o lançava fora, e dizia pela língua da terra: “tomais vós outras”. Sem se ver com quem falava.

Perguntando-lhe o irmão, seu companheiro, a quem dava as bananas, disse que àquelas suas companheiras. E quando foi pela manhã viu o rastro de duas onças, que estiveram com ele assentadas no lugar em que o padre estivera em oração, e depois de acabada o acompanharam até à porta da choupana. Outra vez, estando o padre naquela pescaria de que por vezes falamos, apareceram da banda de além, de um braço de água, duas onças, e se puseram a olhar para a gente que estava salgando o peixe. Disse então o irmão que folgara de as ir lá ver; o padre lhe respondeu que acabando o que estava fazendo, as iria ver.

Neste comenos se iam dali as onças, mas o padre lhes bradou, pela língua brasílica, que tornassem dali a pouco para as irem ver. Elas obedecendo, tornaram ao tempo em que os índios tinham acabado o serviço. E as foram ver de perto, em duas canoas, estando elas quedas, e o padre lhes lançou o quinhão de peixe que lhes levava. E assim se foram contentes.

Bugios

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Acabada a pescaria, se foi o Padre José com seu companheiro e gente, para a aldeia de São Barnabé; e os índios no caminho mataram um bugio grande de barba, com uma flechada; e logo ao grito que deu, acudiram outros muitos, e os índios começaram a matar neles para comerem. O padre lhes mandou que não matassem mais, mas que se fossem desenfadando com eles de palavra. E aos bugios disse na língua da terra: “vós outros acompanhai vossos defuntos”. O que eles fizeram, gritando e pranteando a seu modo, falando e fazendo momos aos índios, uns pelo chão e outros saltando de árvore em árvore, por espaço de duas léguas até chegarem perto da aldeia. Então lhes tornou a dizer o padre que não fossem mais por diante, porque os não matassem os índios da aldeia, a que logo obedeceram, não passando mais dali.

De duas víboras

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Indo o padre por um caminho, a pé e descalço, como costumava a caminhar, encontrou com uma víbora, e o companheiro se afastou depressa. Chamou-a o padre, e disse à víbora que esperasse, e esperou; e chegando a ela lhe pôs o pé em cima, dizendo: “morde-me aí esse pé, e vinga as injúrias que tenho feito a teu Criador”. Levantou ela o colo e meneou a cabeça para uma e outra parte, mas não no mordeu. Deixou-a então o padre e disse-lhe: “vai-te embora, não faças mal a ninguém”.

Semelhante caso aconteceu ao padre com outra víbora, como relata em uma certidão Luiza Fernandes, dona viúva, moradora na cidade da Bahia, por este modo.

Estando ela em sua fazenda, se acharam um dia uns índios da aldeia de Santo Antônio e m sua casa, e armando entre si práticas sobre as coisas do Padre José, entre outras coisas contou esta um deles, por nome Cristóvão; vindo, diz ele, com outros muitos, em companhia do Padre José, achamos no caminho uma víbora muito peçonhenta; fugimos dela todos, mas o padre nos disse que não fugíssemos; tornamos.

E o padre chamou a víbora e vei a seu chamado; assentou-se e tomou-a com sua mão, e a pôs no regaço, afagando-a; tomou disto motivo para falar aos índios de Deus e lhes encarecer como todas as coisas, até aquele animal tão feroz, obedeciam a quem obedecia e guardava os mandamentos de Deus. E passado algum tempo nesta prática, deitou uma bênção à cobra, e mandou fosse quietamente, como fez; e os índios continuaram seu caminho com o padre, maravilhados do que viram e louvando a Deus nas maravilhas de seu servo.

Do milagroso caso da maré

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Darei fim a este capítulo com uma maravilha maior, e mais digna de se dar por ela muitas graças a Deus Nosso Senhor, que todas as passadas, que à obediência dos brutos animais, porque obedecerem uns homens a outros, convencidos da razão ou maior autoridade, coisa ordinária é; respeitarem os animais bravos ao homem, convencidos de benefícios, algumas vezes se viu. Porém ter acatamento e guardar decoro ao homem, o mar e curso da maré, é milagre singular, pois nunca soube este elemento obedecer mais que a seu Criador, ou a algum homem por seu especial mandado.

O caso foi este: estando o padre naquela pescaria, desapareceu um dia, sem darem fé dele, por espaço de três ou quatro horas. Foi-o a buscar o companheiro por diversas partes, até que foi dar com ele assentado na praia, em lugar em que chega a maré de baixa-mar, ou de maré vazia, no qual lugar, segundo mostrava p rastro, tinha o padre passeado.

Começou de encher a maré, foi crescendo por espaço de seis braças, pouco mais ou menos, e sendo a praia igual, contudo a água não tocou aquele espaço em que o padre passeara, e onde estava assentado, antes fez um modo de parede, assim da banda do mar como das ilhargas.

Receiava o companheiro de entrar por aquele boqueirão, cercado com muros de água; bradava de fora, e vendo que o padre não acudia, fazia estrondo com paus para o espertar. E quando viu que nem isto bastava, se animou e entrou pelo boqueirão dentro, pegou do padre e o espertou, dizendo: “padre, vamo-nos que é tarde”.

Levantou-se o padre, e começou a caminhar e o irmão detrás, mas, sentindo que a água lhe vinha tocando os calcanhares, se pôs diante do padre, que lhe disse: “não sabeis que os ventos e mares obedecem a Deus?” E tanto que saiu fora, a água encheu o boqueirão vazio, e ficou toda igual.

A quem por tão diversas maneiras, tantos e tão grandes testemunhos teve na terra, em confirmação de sua virtude e santidade, parece que já não faltava mais que ter algum do céu, e dos celestiais moradores. E até com este regalo divino, a bondade infinita favoreceu ao santo Padre José, que na vida mortal e carne fraca, fez uma vida angélica em seu espírito, e na conversação exterior muito exemplar e digníssima de ser imitada.

Estando por vezes em oração no seu cubículo, entrava o porteiro com algum recado; e era tão grande a claridade que dentro via, que ficava espantado. Um dia, como outros muitos costumava fazer, veio o Padre José, com o Padre Manuel Viegas, da casa de São Vicente à fortaleza da Bertioga, situada em uma das barras da Ilha de São Vicente, com ocasião de se ver com o gentio maromomi, cuja língua, diferente da geral de toda a costa, começa de aprender e a queria meter em regras e arte, para por si e por outrem, ajudar a conversão destes pobres, em tudo desamparados.

E de fato, alcançou o que pretendia com a graça divina, que era fazer um modo de arte, catecismo e doutrina naquela língua. E muito mais alcançou Deus o que pretendia, que era recolher alguns deles no céu, e deixar o caminho feito para os que haviam de entrar, e facilitar esta empresa, aos que a houvessem de seguir.

Mandou o Padre José, ao Padre Manuel Veigas fosse buscar algum daqueles gentios, para continuar com sua doutrina; e andou lá dois dias. Entretanto pediu o padre ao hóspede, o deixasse ir dormir a uma ermida de Nossa Senhora, que estava mui perto da fortaleza, obra de trinta passos de distância. Foram com o padre para o agasalharem, na ermida o hóspede e um genro seu, de nome Afonso Gonçalves, com candeia. E tornando a trazer consigo a candeia, o deixaram só às escuras, e se recolheram na torre, onde viviam com as suas famílias. Sendo já alta noite, e estando todos dormindo, só a mulher de Afonso Gonçalves estava esperta, a qual o acordou dizendo: “senhor, acordai e ouvireis uma coisa maravilhosa”. Acordou, levantou-se, abriu uma janela da fortaleza e viram ambos com os seus olhos a ermida, por entre as telhas e porta, e por cima dos flechais, toda com seu alpendre alumiada, com grande resplendor, que os pôs em admiração.

Juntamente ouviram uma música tão suave, que o enlevou a ele e tirou de seu sentido, como em seu testemunho jura. E querendo descer abaixo, para ver onde a música se dava, por lhe parecer que a ouvia de longe, imaginando que seria algum navio que viesse entrando pela barra, àquelas horas da noite, querendo descer como digo, se lhe arrepiaram os cabelos com temor, e lhe pareciam que pegavam e tinham mão dele; e assim não se atreveu a ir ver o que era. Durou a claridade e música por bom espaço de tempo, de que ambos ficaram por extremo consolados. Vinda a manhã fizeram diligência pelos moradores da fortaleza, e por sua gente de serviço, se levara alguém lume à igreja; e acharam que não. Falaram então ao mesmo Padre José, e tratando do resplendor e da música que ambos viram e ouviram, a resposta do padre foi obrigá-los, como filhos seus espirituais que eram, não descobrissem a ninguém, o que viram e ouviram daquela claridade e música enquanto vivessem.

O que eles pelo amor e respeito que tinham ao padre, guardaram inteiramente, sem o descobrirem a pessoa viva, até aquele dia que era três de outubro de seiscentos e dois anos, em o qual dia, sendo então morador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, perguntado juridicamente, pelo Reverendo Padre Martim Fernandes, vigário geral da mesma cidade, se sabia coisa da vida do Padre José de Anchieta, jurou tudo o acima dito.

E acrescentou o dito Afonso Gonçalves que lhe parecera aquela música e resplendor coisa do céu, assim pelo grande temor que em si sentira, e juntamente muita consolação, como por se ver atalhado sem poder ir ver o que era; e também como o mesmo padre querendo primeiro encobrir esta maravilha, e vendo que não podia, lhes mandou o tivessem em segredo.

Bendito seja Deus em seus Santos, e permita que este bem-aventurado seja com brevidade ilustrado, com a beatificação e canonização da Igreja Santíssima Romana, para glória do mesmo Senhor, e proveito dos cristãos, em especial de seus devotos, como merecem tão heróicas virtudes e milagres.

LAUS DEO, ET BENEDICTAE VIRGINI CONCEPTAE SINE PECCATO ORIGINALI.

Do ano de mil quinhentos e quarenta e nove, até o ano de mil seiscentos e nove

  1. Tomé de Sousa
  2. Dom Duarte da Costa
  3. Mem de Sá
  4. Luís de Brito e Almeida
  5. Lourenço da Veiga
  6. Manoel Teles Barreto
  7. A mesa do Governo — o Bispo Dom Antônio Barreiros, o Ouvidor Geral Martim Leitão, e o Provedor-mor Cristóvão de Barros
  8. Dom Francisco de Sousa
  9. Diogo Botelho
  10. Dom Diogo de Menezes

Do ano de mil quinhentos e quarenta e nove, até o ano de mil seiscentos e nove

  1. Padre Manuel da Nóbrega
  2. Padre Luís da Grã
  3. Padre Inácio de Azevedo, mártir
  4. Padre Inácio Toloza
  5. Padre José de Anchieta
  6. Padre Marçal Beliarte
  7. Padre Pero Rodrigues
  8. Padre Fernão Cardim
  9. Padre Manuel de Lima
  1. Padre Inácio de Azevedo, mártir
  2. Padre Cristóvão de Gouveia
  3. Padre Manuel de Lima