Índice
editarPrimeira parte: a paróquia abandonada
editar- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
- Capítulo XXI
- Capítulo XXII
Segunda parte: a retirada
editar- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
Terceira parte: a capital
editar- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
Tinha acabado a missa conventual e só à tarde sairia a procissão de prece: a imagem da Senhora da Piedade no seu andor armado de damasco e festões de flores, carregado por virgens; o Cristo de lividez poética na sua cruz negra e desornada.
A população de B. V., pequena paróquia cearense, achava-se bem, como quem retesa os músculos depois de um pesadelo; espanejava-se num contentamento largo como um romper da alva. A maior parte dos paroquianos estava reunida a rir e a galhofar e acentuava insistentemente o contraste entre o seu aspecto de hoje e o da véspera.
— Olé! - exclamavam uns para os outros. - Você a modo que ouviu o ronco dos guaíbas ou o zunzum da Itaquatiara?
A diferença era de fato enorme. Desde dezembro uma tristeza, densa como um nevoeiro, tinha empanado os espíritos ao verem a florescência dos cajueiros esperdiçada aos calores crus do estio. Nem um suor de tempestade embaciou a atmosfera, sempre de limpidez cristalina. Começou desta data a devoção solene, mas foi inteiramente vão o apelo para o céu diante da misantropia da natureza. Os dias secos e ardentes continuaram a devastar o gado, as plantações e as pastagens, ao passo que os rios e os açudes empobreciam como fidalgos pródigos.
Também as preces, em vez de levantar os ânimos, copiaram a desolação da terra e tornaram-se a ceva mística do desalento. Quando as procissões recolhiam ao som das monodias religiosas, e extinguiam-se os archotes, e apagavam-se as velas dos altares, escureciam igualmente o templo e as consciências. A claridade elétrica do luar, caindo então sobre a comum tristeza, parecia o olhar esgazeado de miséria a magnetizar o povoado.
É que o pânico feriu, de improviso, a energia das populações de sudoeste, assim como a de toda a Província do Ceará. Estatelavam todas ante a perspectiva hostil do futuro, numa resignação de faquir que se imola, e, como se tivessem um prurido de angústias, recontavam-se histórias de outras épocas horrorosamente calamitosas. Demais, a superstição abriu logo as longas asas de corvo e pairou sobre os espíritos acovardados. Um círculo alourado em torno da lua, a queda de um meteoro, as cores do crepúsculo, tudo foi considerado prenúncio da esperada desgraça. O templo substituiu a consolação pela ameaça, a esperança pelo desconforto. Assim é que o vigário Paula, conhecido até então como pouco severo, transformou a calma desleixada do seu olhar numa austeridade fria de juiz; o tom vulgar de suas práticas de outrora numa entoação cava de agouro. As donzelas tiritavam o velo; a sua estola, roxa como o rebordo de uma chaga, e a sobrepeliz, alva como os cogumelos novos, lembravam-lhes o caixão e a mortalha, e a boca do sacerdote afigurava-se-lhes a entrada da cova inexorável.
A paróquia tornou-se um imenso beatério, que se angustiava profundamente ao ouvir explicado, com os pormenores da perversidade, um hieróglifo escrito na memória de todos por um missionário capuchinho. O vigário o repetia pausadamente:
— Em 77 muito rasto e pouco pasto; em 78 muito pasto e pouco rasto.
E explicava em seguida:
— É que haveis de fugir de vossas moradas, como a caça acuada, tendo horror ao próprio som das vossas pisadas. A seca, porém, vos seguirá os passos como um cão destro, e para onde quer que fujais, lá encontrareis o desabrigo, a fome e a morte.
Estava-se já em princípios de março, e a fatalidade parecia ratificar a crueza de tais predições. Do alto da colina, em que está a sede da paróquia, com suas casas esparsas pela extensão das ruas embrionárias e pelo contorno da praça; com a sua igreja caiada, sem torres, tendo um telheiro por campanário, viam-se os incalculáveis estragos do verão. Era um espetáculo solene e tristonho. A planície estendia-se amplamente, semelhante a uma cicatriz enorme no meio do verdor sadio das carnaubeiras novas e das grandes touceiras de mandacarus, cujos grupamentos de estolhos semelhavam-se a órgãos de esmeralda encravados na charneca. Os pequenos casais, que apareciam ao longe, com os seus tetos de palha, as suas paredes caiadas, e os currais de pau-a-pique, desertos e negros de estrume, recordavam outras tantas tendas da penúria. O rio Jaguaribe, perdida a abundância hibernal, estava reduzido a algumas poças. As suas ribanceiras descobertas, altas como dois muros; o seu leito despido em vastas coroas de areia, amarelas como o âmbar, pareciam uma vala de cemitério, babando viva gula de cadáveres. Uma nuvem de urubus, que, dividindo-se e subdividindo-se, ora pousava nas capoeiras ou no solo, servia de outros tantos marcos à morte. É que o gado caía por centenas, como num matadouro, ou, faminto e sedento, cambaleava a fraqueza das suas ossadas a roer folhas mortas pela intensidade da canícula.
Foi, pois, com uma violência selvagem que, na véspera do outono, dia de São José, a alegria irrompeu do seio da paróquia. O sertanejo não desarmou a rede nem arranjou o mocó para partir; vestiu-se de gala, porque o verão simulou chegar ao seu termo. Fria e sombrosa madrugada quebrou a monotonia das auroras enfartadas de sol; uma bafagem úmida bruniu a copa empoeirada das árvores e cochichou nos capoeirões sussurros de temporal. As nuvens obesas de chuveiros alegravam como a carranca mais feia na festa dos bobos, e a paisagem tomou o ar descanoado do convalescente a respirar o ambiente oxigenado de uma hora, ainda úmida da rega matutina.
A igreja acompanhou-a na brusca mutação. Já não dobrava como por finados; os sinos, festivamente tangidos, entoavam uma aleluia àquelas vastas ruínas, e os seus repiques prolongados penetravam pelas casas com um ruído jovial de irmãos recém-chegados, sacudindo os sonolentos e acordando-os em sobressalto feliz. Também, à hora da missa, não se via uma população mesta e combalida, mas o povo com a sua alma sonora, enchendo as ruas e a praça de uma prasenteria anárquica.
Cerca de uma hora da tarde, porém, a sede paroquial ficou silenciosa e quase deserta. A multidão, tomando a ladeira norte da colina, escoou-se alvoroçada aspirando os sons de um búzio, três vezes repetidos. Foram como um pedaço de ímã, caído sobre um monte de limalha, aqueles sons cabalísticos; atraíram, arrastaram os grupos, que irresistivelmente correram de encontro a eles. Nem as pessoas mais graduadas, as que não tinham estadiado na praça, puderam conter-se. O próprio vigário Paula, reunido à família do professor público Francisco de Queiroz e à do velho criador Rogério Monte, seguiu alegremente ao encalço da multidão.
Havia neste grupo a dignidade da proeminência social. O vigário com seu chapéu redondo de grandes borlas pretas, a sua batina lilás, colhida na cintura pelos alamares da seda, levava pelo braço, com um passo cadenciado, a filha mais velha de Queiroz. Chamava-se Eulália e era uma rapariga de 20 anos, porte direito como a palma da acácia, andar firme e resoluto, ao de leve sacudido, como o ramo do ingazeiro que molha a ponta na correnteza. Rebentavam-lhe os seios com o vigor pujante da puberdade, tomando o corpinho branco e justo a conformação das graviolas verdes. Deles o colo enérgico tirava a curva das estátuas, e como que a cintura desbastava mais a circunferência de cone truncado junto ao ápice. Coroava-lhe o tronco forte uma cabeça sibilina, sumida artisticamente numa cabeleira negra, farta e lustrosa, enquadrando um rosto oval, moreno, corado e carnudo, recebendo um tom de nobreza principesca dos olhos à flor das pálpebras, vividos, maliciosos, e das narinas graciosamente vincadas. Ia pensativa, contra o seu hábito que era uma ponta de estroinice, desfeita em risadas de uma alegria clara, como as pojaduras de leite.
O vigário, por sua vez, guardava um retraimento cavalheiresco, de quem não quer incomodar. Só de vez em quando demorava o passo, e com uma voz meio autoritária, meio meiga, fazia notar as devastações da seca.
Estava ao natural. Era frio como as pedras de ara, pouco familiar no trato, exceto para com Eulália e o professor, com o qual havia colegiado - bom tempo de que um velho muro guardava a recordação numa frase obscena. O corpo atlético, mas proporcional e correto, ostentava músculos demais, que no entanto não impediam que se lhe sentisse facilmente o estremecimento do coração. O rosto de puro tipo indígena, embutido numa cabeleira dura e corredia, bebia nos negros olhos fundos, extraordinariamente brilhantes, uma expressão entre o escárnio e a piedade. A sua arma predileta era o desprezo, e, quando lhe chegava aos ouvidos alguma murmuração desagradável, movia desdenhosamente os ombros para não se desculpar.
Já em meio da ladeira, Eulália, que se tinha limitado a concordar com o seu companheiro, dirigiu-lhe por sua vez a palavra.
— Quero pedir-lhe um favor - disse. - Durante todo esse tempo de prece, o senhor nunca se lembrou de mim para fazer parte das virgens, que levam o andor de Nossa Senhora. Peço-lhe que me dê hoje um lugar entre elas.
— Não pode ser - respondeu secamente o vigário.
— Por quê? - interrompeu-o Eulália, corando com todo o pudor dos seus 20 anos.
— Por quê? - repetiu ele com o arrependimento no olhar e meiguice extrema na voz. - Os seus ombros ficariam magoados.
— Não, não é esta a razão - respondeu sorrindo ao galanteio. - Eu não sou melhor do que as outras. Irena é mais fraca e não se tem magoado; já vê que posso.
— Mas que pecados tem você cometido para querer fazer este sacrifício?
— Isto é o que se há de dizer, para notar que eu não fui incluída no número das virgens de Nossa Senhora.
— Pois bem - tartamudeou precipitadamente o vigário - diga-lhes que eu não a convidei, porque entre você e a imagem, esta é que deve carregá-la...
Eulália fitou-o assombrada, mas já a frieza natural do vigário havia-lhe extinguido o arrebatamento e um sorriso paternal substituíra o grito do coração.
— Não se entristeça por ninharias, minha filha. Quer ser uma das virgens? Se-lo-á. Está satisfeita agora?
Ela meneou afirmativamente a cabeça, mas conservou baixos os olhos, que tinham descaído num enleio pudico, e pôs-se a demorar o passo para ficar mais próximo da família. Queria evitar que ainda uma vez ouvisse alguma frase que a impressionasse pela afoiteza estranha. Já, em poucas horas, era a segunda vez que o vigário assim se lhe dirigia: em casa, jogando as prendas, conheceu que vinha dele uma sentença que a tornou pensativa: "Está na berlinda porque faz pecar sobre a terra". Agora, num assomo sacrílego dissera-lhe... nem sabia o quê.
Paula, compreendendo que a sua ousadia magoara a companheira, e sem saber como distraí-la, apontou para o cemitério que se estendia ao lado, como um vasto supedâneo de um cruzeiro negro, em cujos braços alvejava uma coroa de espinhos. Próximo à base do cruzeiro branqueava uma carneira toscamente acabada.
— Ali dorme o velho vigário, descansado da sua asma -disse ele. - Lembra-se de que, em pequena, tinha muito medo da sua tosse e dos seus olhos esbugalhados?
Eulália sorriu, olhando para o cemitério como uma criança consolada, e o vigário acrescentou:
— Tanto medo como teve ainda agora de mim, não é verdade?
A moça continuou a sorrir, e as suas feições asserenaram. A voz dos outros companheiros veio envolvê-los, restituindo assim a paz àquele espírito timorato.
Em breve chegaram à planície, e permearam a multidão, que lhes abria alas, cortejando-os e descobrindo-se reverentemente.
— Aí está o que lhes agrada - disse o vigário, assinalando a multidão. - Deus é só para os apertos.
Os sons do búzio estrugiram com toda a sua aspereza selvagem.
Entraram em um barracão vastíssimo, ruína de um antigo engenho que pertenceu ao patrimônio dos Montes. Era um lugar triste como o abandono, e acreditavam que servia de ponto de reunião as almas penadas e de entrevistas de bruxas e demônios.
Muita gente viu aí, por horas mortas, tripúdios tetérrimos de esqueletos à luz de fogos-fátuos, cadenciados por uivos de cães e pios de noitibós. Cavava-se um enorme abismo que substituía o solo do casarão por um ambiente visível, de um colorido luminoso como as chamas de álcool num vaso de cobre. Então, como a poeira no raio de sol coado por uma fresta, a aluvião de fantasmas, movendo os maxilares num cântico sem eco, ondeava, baralhava-se, passava daqui para ali, e tomava a catadura marcial dos guerreiros nos baixos-revelos assírios. Depois vinham meiguices e ameaças, atitudes humilhadas e blasfemas, calmas de lago e cóleras de fera.
Não era também raro contar que se tinha ouvido, à noite, o estrépito soturno de um desmoronamento. Sentia-se o cavo som do baque das paredes, e depois o prolongado estralar de telhas que se quebravam. E toda a gente acreditava que era o Engenho mal-assombrado que tinha vindo ao chão. No entanto, no dia seguinte, lá estava ele de pé, com os mesmos buracos no telhado, com os mesmos esteios negros enfileirados como um pelotão de gigantes.
A imaginação popular sancionava estas criações supersticiosas por uma lenda que habitava o isolamento do triste edifício, enchendo-o de par com o vôo das revoadas negras dos morcegos. Narrava a lenda sombria uma festa esplêndida, em que se casavam rufos de adufes e cantigas de violeiros, os trilos das violas com os sapateados e palmas dos dançadores. No meio da festa, porém, uma horda de facínoras, gente dos Feitosas, entrou e, apunhalando o hospedeiro, constrangeu a sua esposa formosa a dançar em torno do cadáver ensangüentado, baldão e ludíbrio dos assassinos. Hoje, as danças dos duendes reproduziam no seu horror aquela cena medonha.
Tal era o lugar em que se achava a multidão, trepada sobre caieiras de entulho das paredes desabadas, que tornavam côncava a superfície do solo. Trouxera-a aí uma curiosidade bárbara, um apetite de desastre e de horror: o espetáculo das cobras com o Feiticeiro.
— Hum! - ponderavam alguns. - Esse demônio bate a bota brincando.
— Que o leve o diabo! - respondiam outros. - Ele faz-se besta com bichos.
— Quem sabe se as cobras têm dentes?
— No Crato houve quem duvidasse e pagou com a vida a experiência.
— Olhem, está-se mesmo a ver que ele tem parte com o diabo - apontavam outros. - Que olhos!
Do meio da grande massa popular destacavam-se dois indivíduos, que havia mais de um mês habitavam a ruína. Um, ainda criança, teria 12 para 13 anos e era robusto, muito esperto, de olhos cheios de vivacidade, boca rasgada entre os lábios grossos, e gengivas vermelhas como cardos, em que se embutiam dentes alvos e sãos; os da frente, no maxilar superior, agudos como os caninos. O outro era um homem de corpo desenvolvido, fisionomia carrancuda, antipática, olhares suspeitosos, gestos untuosos de emboscado, palavra humilde e atenciosa. Levava uma vida misteriosa, sempre em lugares tristes e de má fama. Filho do norte da Província, contavam que, a primeira vez que foi visto, saía da Bajara, a casa encantada que mãos ignoradas cavaram no maciço da Serra Grande, muito espaçosa, com grandes mesas e bancos talhados na homogeneidade da rocha. Quase toda a Província o conhecia e tinha-lhe medo pela sua profissão incrível: brincar com um bando de cascavéis. Chamavam-no por isso o Feiticeiro.
A voz da multidão punha no recinto um sussurro de mosqueiro; as mulheres conchegavam-se, os homens punham-se em bicos de pés e tiravam os chapeirões para não incomodar os vizinhos. O pequeno, o Cabrazinho, conforme o chamavam, pôs-se a intermear o povo e a receber no seu chapéu de couro moedas de cobre. Finda a miúda cobrança, começou o desejado espetáculo, na plenitude do seu assombro.
No meio do barracão havia uma espécie de abajur, feito de um estreito traçado de taquara, dentro do qual podia-se estar de pé, à vontade, e girar numa área de vinte palmos. Para aí entraram o Feiticeiro e o pequeno, ambos carregando gaiolas onde se viam os corpos das cascavéis, grossas como um antebraço atlético, medonhas apesar do seu fino colorido marrom hidrargirado. O pequeno veio depois colocar-se fora, junto à portinhola que servia de entrada, e aí recebia as gaiolas. esvaziadas pelo Feiticeiro, que sacudia no chão os seus venenosos artistas.
O terror começou a invadir a multidão, que silenciou e ficou a olhar embasbacada para aquele ente privilegiado, sereno, embora rodeado pela morte. A musculação forte das omoplatas como que tinha cintilações sobrenaturais; as nuas barrigas das suas pernas esgalgadas pareciam ter concentrado toda a força vivaz da agilidade. As cascavéis fitavam-no com a submissão de cães amigos.
O Feiticeiro rugiu então seu maracá, e aos sons do bater das pedras na esfera da lata, corno que se propagou uma alucinação geral. Os espectadores davam-se vaivéns para se arrumarem em bom lugar; as cascavéis, que estavam enroscadas e como que receosas, davam botes e queriam investir. Mas o maracá parou de súbito, e os oito monstros, raivando nas suas enormes rodilhas, por sua vez principiaram a chocalhar, vibrando as pontas das caudas, conformadas como a extremidade dos sabugos de milho.
O maracá ressoou novamente, instigando-lhes a fúria. Corria-lhes pelo corpo um arrepio de cólera, que lhes dava às cabeças contrações epilépticas, e lhes descerrava convulsamente os queixos, abrindo saída às línguas trífidas e vermelhas, rápidas como relâmpagos. O Feiticeiro, postado junto às malhas da rede, olhava-as com desdém e dizia frases de palhaço, repassadas de escárnio boçal. Os espectadores tremiam e tinham os sorrisos desenxabidos de quem dissimula o medo. Mas os demônios do sertão pareciam recear e apenas continuavam nos seus botes céleres e repetidos, que não atingiam o alvo.
— Coisas ruins! - disse por entre os dentes o Feiticeiro. - E tirando da cinta uma varinha e fustigando-as: - Fora! Não prestam para nada.
O desprezo como que doeu às terríveis envenenadoras. Desenroscando-se e levantando-se ao meio corpo, atiraram-se ao provocador. Neste momento, porém, saltou dentro do circo o pequeno caboclo, e, seminu como seu pai, pôs-se como ele a agitar o seu pequeno maracá, Possessos e furibundos, os monstros acometeram o tememário, impetuosos como se o fossem estrangular.
— Devagar! Devagar! - bradou o Feiticeiro. - Devagar!
O terror tinha invadido até a medula dos espectadores boquiabertos: alguns tentaram fugir; as mulheres tiritavam e chamavam baixinho por Jesus. Nas imaginações exaltadas, viam já estrebuchando por terra a pobre criança, talvez violentada a tamanha temeridade. O pequeno, porém, sorria, enquanto as cascavéis trepavam-lhe pelo corpo e enovelavam-se-lhe pelas pernas, pela cintura e pelos braços. O terror aumentava, a morte afigurava-se iminente; mas as cascavéis, em vez de crivarem-no de dentadas, limitaram-se a lamber-lhe o pescoço e as curvas, com a brandura de um cão a afagar seu dono. O rapazinho, encolhendo-se, assim como quem sente frio, continuava a rir sossegado, dentro de sua túnica de veneno, sonora como um chichard de guizos.
O Feiticeiro aproximou-se então, e, fitando os monstros com o seu olhar magnético, prosseguiu a enfurecê-los pelo rugir do maracá. Como que afadigadas, as cascavéis, longe de se irritarem, deitaram as cabeças submissamente. Então o Feiticeiro, semelhante ao hortelão desentrançando videiras, pôs-se a desenleá-las e a fechá-las nas gaiolas. Duas apenas, as maiores, ficaram fora, prontas como duas armas engatilhadas.
Depois que o rapazinho saiu do circo entre os aplausos da multidão, o maracá rugiu veementemente, provocando nas duas cobras, gigantescas, cólera de energúmeno com espasmos de histeria. Partiram com setas e, ora acometendo, ora enovelando-se, moviam as línguas nervosamente, começando já a querer morder os próprios corpos.
O Feiticeiro, sacudindo-se cadenciadamente ao som do rude instrumento, numa dança selvagem, resmoneava uma canção lúgubre; os espectadores olhavam com o olhar os pesadelos.
Afinal, o homem sobrenatural acocorou-se ante as duas possessas que o fitavam, agitando-se quase imperceptivelmente, como os gatos, quando face a face se encaram a ensaiar carícias brutais dos seus brutais amores. O instrumento selvagem continuou a espalhar o seu fermento de guerra, até que foi vibrado como ameaça. Num salto rápido e temeroso, as cascavéis galgaram a distância que se lhes interpunham, e com expansabilidade de uma cólera explosiva, agarraram-se aos braços do seu provocador.
— Quem compra miçangas?! gritou o caboclo, com um sorriso mau.
Mas, em seguida, deixando-se cair por terra, gemeu sentidamente:
— Ai! E desta vez que eu morro.
Rompeu então em estrebuchamentos convulsos, compungentes, que não tinham força entretanto para desvencilhá-lo das vingativas dentadas. O pequeno, junto da portinhola, tinha um olhar amedrontado, ao passo que seu pai ia aos poucos diminuindo os movimentos e caindo num relaxamento muscular assustador.
— Está morto! Está morto - gritaram. - Desencantou; fuja quem não quer morrer!
E a multidão inteira alvorotou-se, e acotovelando-se, atropelando-se, fugiu do medonho lugar, enquanto o pequeno, rindo muito, penetrava no circo para desembaraçar os braços de seu pai dos venenosos ornatos.
— Malvados! - disse o Feiticeiro levantando-se. - Deixar-me-iam morrer como um cachorro!
No meio do rebuliço e pânico geral, que esvaziara, como que por encanto, o vasto casarão, deixando-o entregue à sua habitual tristeza de esfinge, só um homem se manteve diferente ao que se passara - o vigário Paula. Durante o espetáculo persistira em seguir com o olhar um rapaz claro, de barbas e cabelos louros, corpo desbastado e esbelto, e cujos olhos insistiam em uma atenção contemplativa ao grupo formado pela filhas de Queiroz e Irena Monte. Em uma das ocasiões o olhar do vigário encontrou-se com o do moço, e este mostrou-se dominado por um vexame profundo.
— Conhece o Augusto Feitosa? - perguntou ele a Eulália.
— Sim, muito - respondeu-lhe a moça distraidamente - já o vi aqui.
Paula concluiu logo que a pertinácia daquela contemplação tinha Eulália por alvo. Lembrou-se de que entre Irena e o rapaz interpunham-se dois séculos de ódio incansável entre as suas famílias; as outras filhas de Queiroz não pensavam ainda em corresponder a galanteios. A sua suspeita, pois, não demorou em tornar-se uma certeza dolorosa, e o vigário ficou sombrio como quem acaba de ouvir as derradeiras palavras de um ente caro.
No jantar em casa de Queiroz, enquanto os outros, mastigando com o apetite sertanejo grandes pedaços de assados, riam comentando o espetáculo, ele se conservava mudo a olhar indiferente.
— Estou incomodado dos nervos - pretextou para explicar a tristeza.
À tardinha, quando na igreja distribuiu os lugares do andor da Virgem, ao passo que se dirigiu a todas com meiguice, dizendo palavras amáveis, ao chegar a Eulália, os seus olhos fuzilaram, e foi com um tom repreensivo e um gesto de contrariedade que lhe disse bruscamente:
— A senhora também.
Ela o ouviu com estranheza, mas agradecida: não seria apontada, estava entre as virgens de Nossa Senhora. E sentia-se feliz caminhando para esse lugar de honra.
A procissão desfilou esplêndida no seu luxo de fé e contrição, sob os olhos do vigário que espiava de preferência o andor da Virgem, sobre os ombros de quatro donzelas. Entre elas figuravam Irena e Eulália, esta agora livre do olhar contemplativo de Feitosa. Paula estava tranqüilo, mas de repente parou e, brandindo o crucifixo que tinha entre as mãos, resmungou com uma entoação angustiada:
— Ainda aqui, e eu não posso matá-lo!
Esta explosão de cólera tinha sido provocada por Augusto Feitosa, que se colocara ao lado do andor, e, contrastando com a fúria do vigário, abandonava-se à grande paz da multidão, que percorria devotamente as ruas do povoado.
Era um espetáculo imponente de singeleza; a crença mergulhava os espíritos num enlevo, que era como um esquecimento da vida, uma aspiração infinita de um sono profundo, como deve ser o dos arcanjos na tepidez das suas asas brancas, na calma da bem-aventurança. Os cânticos, com as notas finais muito prolongadas, trêmulas de contrição, aumentavam esse gozo suave, abafando os ruídos do vento nas árvores e os mugidos tristes das boiadas famintas das cercanias.
O crepúsculo trepou em vão pela face da sombra a ostentar o seu corpo vermelho como um campo de recente batalha, e em vão nele dissolveu os tons variegados, vivos, de cambiante indescritível. A alma do sertanejo, deixando escoar toda a sombra que, havia três meses, a escurecia, empanava todo esse brilho, toda essa grandiosa ostentação fidalga e caprichosa de colorido e luz. Para ele se conservava ainda a escuridão promissora, cheia de encantos para sua imaginação, como as faces da rainha de Sabá para a delirante paixão do rei-poeta. A treva era um prêmio da sua fé, a condensação das suas preces tristonhas, e estas ainda ele as conservava inteiras e vivazes.
Não via senão as imagens do Cristo e da Virgem, e estas exalavam tanta doçura, tanta consolação, de seus olhos amortecidos pela dor, das suas faces maceradas pela resignação, que era impossível alguém pensar nas ameaças temerosas do verão.
Mas, ao dobrar uma das esquinas, a procissão quase que recuou. Estava de pé um homem, alto e magro, dessa magreza que é o extrato da robustez. Seus olhos negros, esbotocados, como grandes laivos de sangue, tinham a vivacidade convulsiva da loucura; os cabelos grandes, emaranhados e muito grisalhos, atufavam-se sobre a cabeça, como um turbante de estopa. Descalço, com as roupas estilhaçadas e sórdidas, esse homem parecia um vômito da penúria deposto aí para envilecer a devoção.
— Mau, mau - rosnava-se -, vizinhança de doidos é como traseira de poldro xucro; cuidado! - diziam os fiéis, desviando-se dele receosos.
— Coitado! - murmuravam as mulheres - Como anda agora desprezado o pobre Joaquim Maluco! A gente não sabe para que tem filhos.
— Qual coitado nem meio coitado - respondia-se-lhes. - Está com o diabo no corpo: te esconjuro!
Hirto, embasbacado, a alguma distância das casas da rua, braços cruzados sobre as costas, imóvel como uma estátua, o doido contemplou por largo espaço o desdobramento luminoso do préstito; mas, quando passou o primeiro grupo de virgens, vestidas de branco, com as cabeças cobertas com toalhas alvíssimas, sobressaltou-se e, fundindo em lágrimas, rompendo em soluços, ajoelhou-se com as mãos postas levantadas sobre a cabeça.
— São os anjos - repetia o desgraçado -, são os anjos que vêm buscar minha filha.
A sua voz, com a inflexão despedaçada do desespero, mudou o temor geral em compaixão; todos esqueceram a antipatia supersticiosa para homologar a sua angústia.
— Não se esquecerá nunca, o desgraçado! - diziam os paroquianos.
E contavam o caso baixinho aos que não sabiam:
O velho era o Joaquim Mateiro, honrado como os que o são. Um dia soube-se na sua casa que a filha mais velha estava grávida e confessava que o seu amante era o defunto vigário, que a seduzira pela quaresma, ao confessá-la no dia das Dores. O Joaquinzinho, irmão da seduzida, calou-se e saiu com a sua espingarda de caça. A matriz estava aberta e o vigário celebrava a missa, já no ponto de levantar a hóstia. Impelido pela alucinação, o moço levou a arma ao rosto e desfechou um tiro contra o vigário, mas a bala apenas varou a hóstia e foi cravar-se na imagem de Nossa Senhora, que estava em frente. Desarmado, perseguido, doido de indignação, o moço correu até a casa, e, no meio da estupefação geral, armou-se com a sua faca de mateiro e cravou-a até o fim da lâmina no coração da irmã. O suicídio concluiu essa tremenda tragédia, e o pai, não podendo resistir a tamanha dor, enlouqueceu.
Os grupos de virgens continuaram a desfilar, e o velho, sempre de joelhos, repetia a sua frase de alucinado, sentida e comovente. Subitamente, porém, levantou-se e, caminhando até o meio da ala, atirou para o andor da Senhora da Piedade uma blasfêmia horripilante:
— Parem; os anjos da minha filha, os anjos de Deus não devem carregar esta alcoviteira do vigário. Parem, parem!
— Virgem Mãe de Deus! - bradaram centenas de vozes.
— Perdão, perdão!
— Mãe de Deus, não! Não! - gritou o doido. - Foi ela, a malvada, quem disse à minha filha: "vai, escuta o vigário".
Os cânticos cessaram, e a massa popular inteira caiu de joelhos, enquanto um grupo arrastava para fora o doido, que se debatia com a força de um tigre uivando amordaçado por mão possante.
As claridades do sol posto bruxuleavam no ocaso como uma fresta iluminada por onde algum ente sobrenatural espiasse para a terra. Reinava um silêncio tumular em torno das imagens, que pareciam mais tristes.
— Agnus Dei qui tolis peccata mundi - cantou por vezes o vigário, com voz trêmula e comovida, até que o povo lhe respondeu com uma entoação dolorosa:
— Miserere nobis.
Passou finalmente o estupor e a procissão prosseguiu, envolta em cânticos tristes, repassados da fé ardente que a violenta comoção havia produzido. Sentia-se a contrição profunda dos espíritos no tom das singelas melopéias, que buscavam dar à Virgem um desagravo solene; e foi sob o influxo deste sentimento que o préstito entrou no templo, já noite fechada, à luz ondeante dos archotes.
Soprava esperto vento de leste, pondo um farfalho tépido nas gravioleiras dos quintais. A pardacenta homogeneidade das nuvens rompera-se em grandes rasgões, onde luziam estrelas com o alegre contraste das moitas de mimoteias no escuro dos brejos. Dir-se-ia, enfim, que desde o crepúsculo tinha cessado a hospedagem divina, tanto o aspecto do céu prognosticava agora a volta dos luares imaculados e dos dias ardentes, de um esplendor perdulário.
Mas a cegueira benéfica da fé adiou a dolorosa desilusão. Embebida nas harmonias acariciadoras dos salmos melancólicos, torturada pela cena do agravo da Virgem, mas certa do perdão, a multidão volveu às suas moradas sem reparar que o dia de São José tinha passado sem chuva. A contrição e a esperança enchiam-lhe o pensamento.
O vigário, porém, saiu da igreja sombrio e intratável, sem ter feito prédica.
— Tenho o inferno na cabeça - disse ao sacristão. - Arrebento.
— Como não, sr. vigário? Aquele endemoninhado...
— Sim, o endemoninhado; mas há piores do que ele, e não obstante vivem.
Quando chegou a casa, o seu coração de misantropo sangrava como as veias de um estóico dentro do banho suicida. Os movimentos automáticos traiam a inconsciência do delírio; as pupilas negras nas córneas avermelhadas lembravam manchas de gangrena e pareciam querer saltar das órbitas. Estouvado e brutal atirou com o chapéu sobre a mesa; bateu com as janelas, e pisando forte e compassadamente, pôs-se a passear com uma regularidade de pêndulo. A mobília pobre de jacarandá lustrado, com o seu canapé forrado de sola, parecia ter medo. A mesa grande, no meio da sala, como que recuava diante dos seus passos. Um pequeno, que vinha sempre ajudá-lo a despir-se, entrou e, sem ousar interrogá-lo, saiu deixando um castiçal sobre a mesa.
Só, estrangulando-se com o seu despeito, o vigário, com o olhar fixo de um gato à espreita, andava, de extremidade a extremidade da sala, de quando em quando segurando a batina, sacudindo-a como um tigre os varões de ferro da sua gaiola.
De repente, porem, parou, levantou os punhos cerrados e a cabeça com uma expressão compungente de desespero e de angústia. Como se pulsos de aço o impelissem e subjugassem, cobriu o rosto com as mãos espalmadas e deixou-se cair sobre uma cadeira, com a fronte sobre a mesa.
— Sr. vigário - murmurou da porta o pequeno - mandam chamar vosmecê da casa do sr. Queiroz.
— Diga que estou doente; não posso ir a pagodes. Não me traga mais recados; safe-se.
O pequeno, estremecendo de susto, retirou-se de pronto, mas, antes que tivesse chegado à porta da rua, ouviu de novo a rude voz do seu amo, já menos colérica:
— Ouça; pergunte de quem trouxeram o recado.
— Da sinhá Eulália - respondeu de fora uma voz de mulher.
— Estou doente - repetiu. - Demais não faço falta - e sacudindo a cabeça -; quer divertir-se à minha custa. Víbora!
A última palavra foi proferida com um engasgo de cólera demente, e o vigário, como que admirado de si mesmo, cruzou os braços sobre o peito e ficou a olhar estatelado.
Eulália recebeu o recado no seu quarto de dormir, para onde se recolhera com Irena. Tinham mudado a roupa, e sentadas, Eulália sobre uma caixa de cedro, Irena encostada na rede, conversavam pequenas futilidades, enquanto descansavam das fadigas da devoção.
Uma vela escura de carnaúba, num castiçal de ferro, ardia na extremidade da caixa; um espelho de guarnição de pinho forrado de papel com ramagens verdes e umas flores de miolo amarelo e corola acinerada, reproduzia de quando em quando os traços de Irena aos morosos vaivéns da rede. O desalinho das saias brancas muito engomadas, um vago cheiro de alfazema, a pobreza asseada do quarto, acirravam nas duas moças a necessidade de contarem intimamente o que viram, o que sentiram:
A freguesia nunca estivera tão bonita; como que não tinha ficado uma só pessoa em casa. Estavam todos fora de si; quanto contentamento! As mães e as irmãs nem davam pelo peso dos marmanjões que traziam nos braços. É que eram muito fortes e sadias. A praça parecia uma caldeira fervendo; que barulho enorme! Os homens vestidos de ceroulas aniladas, a que se sobrepunham as fraldas das camisas, também, muito azuis do anil, com os seus chapeirões de couro, os pés grandes e esparramados nas alpargatas, faziam rir com a sua originalidade primitiva. Os outros, vestidos de perneiras, véstia e guarda-peito de couro muito cheios de bordados, com o chapeirão no alto a cabeça, lembravam dias de ferra, em que todos perdiam a cabeça, e doidos metiam a galope os cavalos, em risco de serem varados pelos chifres do gado barbatão. Mas nada como as matutas com os seus cabelos longos, corredios e lustrosos, muito negros, trançados em cruz do alto da cabeça à nuca! Que dentes tão alvos, tão pontiagudos, tão bem limados! E que bem feitos corpos, modelados pela compressão das barbatanas na cassa muito viva dos seus vestidos afogados, de mangas curtas, deixando ver completamente nus os seus braços carnudos! Na igreja e durante a procissão, escondidas as cabeças em toalhas muito rendadas, eram todas formosas. Só se lhes via os rostos num oval traçado por junto das órbitas até a ponta do queixo, e assim ficavam mais salientes os seus negros olhos piedosos, as narinas intumescidas, os lábios grossos e rubros, os traços rudes, mais nobres, de mulheres enérgicas. Mas o pior fora o doido; por que o deixavam sair? Por que o não acariciavam em casa, coitado? Era digno de dó; ficou maluco por amor dos filhos; deviam tratá-lo melhor os seus parentes.
Foi, interrompendo esta conversação amiga, que as duas moças ouviram o recado de Paula, transmitido com uma fidelidade grosseira; e ambas surpreendidas perguntaram qual a doença do vigário.
— Parece que é raiva; ele batia muito com os pés; gritou com o José, e disse que não lhe trouxessem mais recados.
— Há de ser doença, a vista do doido talvez - ponderou Irena quando ficaram de novo sós -, ele nem pregou o sermão.
Eulália conservou-se silenciosa por algum tempo, a sacudir as pernas que rugiam na saia engomada, e a olha distraidamente com as pálpebras meio cerradas. Os olhos azuis de Irena, preguiçosos como águas represadas, muito fundos no seu rosto sóbrio de carnação, como os dos arcanjos de mármore, e muito proporcionado à sua estatura mediana e corpo franzino; os olhos de Irena envolveram Eulália numa tácita interrogação.
Não havia entre elas segredo, eram amigas desde pequenas, porque foi como pensionista de Francisco de Queiroz que Irena aprendeu a ler. Desde então a vivacidade de uma temperava-se com a bonomia da outra, e Irena tonificava o seu ânimo predisposto a ser dominado com a altivez de Eulália, que era a sua força, a sua inspiração, a sua consciência. Tinham intimidades desveladas, maiores do que as de irmãs, e não obstante Eulália calava-se!
— O que tem você? - perguntou Irena admirada. - O vigário deu-lhe alguma penitência má?
— Nem eu mesma sei o que tenho - respondeu com alguma demora. - Estou a pensar no vigário, na sua raiva, e, de mistura com ela, no Joaquim Maluco.
— Então a raiva é com você?
— Parece.
Pôs-se então a contar a cena da igreja, a ida para o Engenho mal-assombrado, os galanteios, as delicadezas excessivas que por muitas vezes a tinham feito pensar, mas que nunca a impressionaram muito, porque todos que viam e ouviam aplaudiam muito o vigário. Agora todas essas bondades tinham-se mudado repentinamente em grosserias para com ela, em maneiras desabridamente descorteses. Entretanto nunca o desrespeitara; tinha crescido aos seus olhos, estimava-o, e ainda hoje beijava-lhe as mãos. Seu pai repetia-lhe sempre que o vigário era o seu maior amigo, e contava-lhe que tinha sido seu decurião; que viveram sempre como viviam elas duas. "Há quem murmure do Paula - tinha-lhe por várias vezes dito - , mas é que o não conhecem bem; chamaram-no frio e mau, porque é reservado e sério; no fundo, porém, muito boa alma."
— Eu, pois - concluiu Eulália -, não lhe podia dar motivo para ser maltratada, e por isso mesmo ressinto-me.
— Mas não dê importância; é que ele anda aborrecido. Trata você como filha, e não repara no que diz e no que faz.
— Seja - respondeu Eulália, sacudindo os ombros. - E mudando de tom: - Não sei por que estou só a pensar no Joaquim Maluco.
— É outra asneira; o que ele diz não ofende a Deus; é doido.
Chamaram por elas; saíram, pois, dissimulando os vestígios da pequena contrariedade. Mais uma vez na sala, no calor do jogo de prendas, no esquecimento do "medir fitas", do "tirar do poço", do "se minha boca fora condessa", da "caixinha dos três desejos", Eulália retraiu-se e conservou-se pensativa.
Sofria sem saber por que, mas sofria; e como que se sentiu aliviada de um peso na hora em que a reunião se dissolveu entre felicitações pela chegada do inverno.
— Não pense mais no vigário nem no doido - disse-lhe Irena ao sair -, sonhe comigo.
Eulália acolheu bondosamente o pedido da amiga, e passado pouco tempo, resguardando apenas pela camisa de morim fino o seu pudor virginal à curiosidade do espelho, sacudia os ombros, alongando o lábio desdenhosamente, e metia-se na sua rede para dormir.
Lá fora luziam as estrelas com a tranqüilidade de um emboscado seguro do descuido da vítima.
Quando já não se ouvia o som de nenhuma passada de transeunte, um jato de luz entornou-se na sombra da praça. Escoara-se da janela da casa do vigário, que vinha de quando em quando debruçar-se ao peitoril, interrompendo assim um passeio automático. O seu semblante, se bem já alguma cousa serenado, dizia que ele ainda estava sob a mesma impressão; que o seu pensamento continuava a pairar sobre a imagem de Eulália, profanando-a com um beijo de sátiro.
Cálculos temerosos enovelaram-se e desdobraram-se-lhe no cismar delirante; às vezes parava de chofre e sorria, outras vezes tomava o ar grave de quem aconselha, ou o aspecto carrancudo de quem ameaça; finalmente, ajoelhando-se, exclamou, como quem calcula o efeito de uma cena romântica:
— Responder-lhe-ei: porque te amo
Este epílogo era inteiramente real. O coração frio de Paula fora aquecido aos poucos, insensivelmente, como num banho-maria, à luz dos olhos vivos de Eulália. Íntimo de Francisco de Queiroz, acompanhara todas fases do desenvolvimento daquela formosura lapidar de estátua grega. Quando voltou dos estudos no seminário tinha 22 anos e Eulália apenas cinco. Era então muito dada com todos, muito afável, e gostava de sentar-se no colo dos hóspedes para correr-lhe a mão macia pela barba. Foi crescendo, crescendo, e, sempre a dobrar de beleza e de afabilidade, ainda aos 11 anos vinha intrometer-se entre os joelhos de Paula, então coadjutor da paróquia. Ele, acariciando-a, corria-lhe a mão pelos cabelos, pela face e pelo colo, onde a demorava, sentindo-o intumescido pela primeira efusão da puberdade. Ela pagava-lhe os afagos, encostando-lhe a face morena sobre o ombro, e perguntando-lhe com um olhar de cordeiro e um tom muito suave, por que é que ele não tinha uma filha para brincar comigo; gostaria mais dela do que das bonecas que lhe davam e que suas irmãs pequenas quebravam. Depois vira-a, à medida que seus vestidos iam aumentado, diminuir as suas carícias, tomá-la um retraimento delicado, limitar-se a um beijo na sua mão grande de atleta e às perguntas pela sua saúde e pela concorrência às missas. Então este beijo, aquecido por um hálito perfumado, enfeixava, como raios num foco, tudo quanto ela lhe dera nas despreocupações da meninice.
Viveu assim satisfeito, sob o domínio de uma paixão acomodada, cujo egoísmo se limitava a uma espécie de fanatismo religioso, mas calmo, semelhante aos dos monges pelas santas dos seus conventos. Mais tarde sobressaltou-se muito: Eulália estava com 16 anos, e seu próprio pai falou-lhe em casá-la.
Todas as torturas do ciúme assaltaram-no inopinadamente com o ímpeto de uma legião, com o desespero da impotência ofendida. Mas a sua boa estrela veio-lhe em auxílio: a mulher de Queiroz morreu de parto, e Eulália jurou não casar-se antes que sua irmãzinha estivesse criada: um marido podia tirá-la de junto do berço da órfã, e isto mata-la-ia.
Paula descansou na resolução de Eulália; conhecia a energia do seu caráter, ardente como o sol, e infalível como ele. A heroicidade do seu voto havia já quatro anos embalsamava-lhe a virgindade e nunca a mais insignificante falha sobreviera. Dai aumentar-se o culto silencioso do vigário, que só ultimamente começava a querer patenteá-lo à maioridade da sua amada. Era, pois, sincero, quando, de joelhos, exclamou
— Porque te amo.
Veio então recostar-se à janela, enxugando, com a ponta dos dedos, talvez as primeiras lágrimas que tinha chorado depois do dia em que fora sagrado sacerdote. O vento soprava com maior intensidade; era quase violento, dissolvendo as nuvens ou acumulando-as em castelos opalados na curva do ocaso. Já não havia escuridão, mas um leve esfumarado, através do qual via-se o profundo azul do céu nítido e estrelado, como a cauda de um pavão enorme.
A solidão esbatia-se na sua esmagadora integridade, cheia de evocações misteriosas e de temores sobrenaturais, e do meio dela levantava-se, negra, como o futuro, silenciosa como o além-túmulo, a massa agigantada do cruzeiro do cemitério, nu e desornado, com os seus paus-a-pique muito conchegados, como se fossem um quadro de esqueletos pulverulentos acostados e unidos para se aquecerem da frialdade do relento. A paróquia inteira parecia dormir. Só uma criança da vizinhança esgoelava um choro birrento, estrídulo, inconsolável, apesar de uma acalentação monótona, paciente como de um sonâmbulo, que se ouvia quando o berreiro descaía em soluços.
Jazeu aí por largo tempo; mas as corujas com os seus ululos tristes começaram a chamar-se para os amores nas trevas; os cavalos puseram-se a soprar os seus bufos rumorosos, e batendo os chocalhos, enchiam o espaço de estridentes relinchos, enquanto os galos da vizinhança cantavam profiada e prolongadamente.
Paula estremeceu involuntariamente e, endireitando-se, aprumando-se em toda a sua estatura, olhou para o céu, já sem as pegadas da tormenta, e com a voz rude, repassada de perversidade satânica, resmungou, balanceando o corpo:
— Bom, não temos inverno, ai vêm a fome e as epidemias; isto vai ficar um inferno. Mas também quanto orgulho vai ser quebrado - acrescentou sorrindo -, quanta baixeza surgir!
Fechou pacificamente as duas janelas, e tomando da vela, que já se aproximava do fim, entrou no seu quarto, que abria sobre a sala. Já em trajes de dormir, sentou-se à beira da sua rede, de grandes franjas azuladas, pouco suspensa do chão, e persignou-se olhando de face um Cristo esgrouviado, sarapintado das moscas, e que parecia não querer encará-lo, tão pendida tinha a cabeça.
Alguns minutos depois o vigário resfolegava a respiração compassada de quem dorme um sono tranqüilo. A vela ardendo dentro do bocal, ora abatia a chama, ora exalava clarões esverdeados como a luzerna de um vaga-lume.
A placidez do sono desdobrou-se-lhe por sobre os atos do dia.
De manhã o vigário levou a aconselhar fé e resignação aos seus vizinhos, que se mostravam aterrorados vendo o estio restituído à sua ominosa soberania, constringindo a vegetação com a força dos arrochos da jibóia. Mostravam-lhe o céu límpido, o sol triunfante, e ao longe as maçarandubas desfolhadas, com os galhos pendentes como os braços de um cadáver levantado pela cintura.
Não era mais possível a esperança; urgia tomar destino.
— Até junho, objetava ele, não há de que desesperar; não virão grandes chuvas, mas sempre darão para plantar vazantes de feijão e milho; já não se morrerá de fome. Haverá penúria, é verdade, porém maior castigo merecem os nossos pecados.
Foi dizer a missa muito sereno, e, cheio de bom humor, ouviu na sacristia as lamentações do velho sacristão, queixando-se de que os pobres já não podiam viver. Ainda ontem comprara rapaduras à pataca; hoje lhe pediram um cruzado, e era se ele quisesse, apesar de serem salobras. Comia-se já a farinha com parcimônia do mariscar dos pintos, e a carne estava pela hora da morte. Ainda o que lhe valia era algum dinheiro que o sr. vigário dava à sua afilhada; mas, se a seca não parasse, já estava prevendo que morreriam de fome.
O vigário consolava-o com bonomia: - A paciência é a maior das virtudes. De hora em hora Deus melhora.
Já a sair pela porta lateral, Paula teve um movimento brusco, e gritou para o sacristão:
— Ó Marciano! Pode começar a desarmar os andores e pôr os santos nos seus nichos.
— Então o sr. vigário espera...
— Sim, sim, havemos de ter inverno.
E saiu com o seu passo demorado e firme, dando a mão a beijar aos pequenos que iam para a escola, e, descobrindo-se ao vê-lo, corriam ao seu encontro como para um pai.
Na porta da venda do Antão Ramos, um sovina que se valia da sua autoridade de inspetor para cobrar dívidas, parou ao ver a rusguenta autoridade com um chapéu de palha à cabeça, mangas arregaçadas, vendendo aguardente a dois cabras.
— Bom dia, sr. inspetor - disse sorrindo. - Vai cobrar agora os fiados, hein? Felizardo! A vida é para você.
— Muito bom dia, sr. vigário... Mas eu não espero; o inverno não parece ainda vir desta.
— É por isto mesmo; a seca é o seu inverno; com ela chove-lhe mais em casa.
— Qual! Outros serão os felizes.
— Vá, vá chorando; lá diz o ditado: quem não chora...
— ... não mama - concluiu o inspetor Antão a rir e a endireitar as ceroulas, levantando-se em bicos de pés sobre os tamancos e pendendo-se ao umbral, para onde viera. - Antes falasse pela boca de um anjo, sr. vigário.
— Para que houvesse seca, hein?
— Não, senhor; para que me chovesse em casa.
— Tire o telhado, sr. cauíla.
Antão e os fregueses riram muito desse pedacinho do sr. vigário: muito boa saída.
— É assim às vezes - ponderou Antão. - Mas quando anda casmurro, não dá nem palavra.
— Mas é homem de repentiva - ponderou um freguês.
— Dizendo um sermão - acrescentou o inspetor - é de fazer tremer e chorar um homem. Danado! A gente nem se lembra do que rosnam dele com a filha mais velha do sacristão; chora mesmo para ai.
— Isto, quanto mais desabusados, mais temíveis.
O vigário, sempre no seu passo demorado e firme, continuou a andar pela mesma face da praça, até que parou a uma das janelas da casa de Queiroz.
Uma toada alegre escoava-se: era um uníssono de vozes infantis, cristalinas e ternas, solfejo do A, B, C, essa escala singela das grandes composições do gênio. Os meninos, sentados em longos bancos de pau, já muito gastos pelo tempo, faziam movimentos ocultos de desatenção, moviam os lábios, por detrás do livro aberto, em conversas rápidas, que terminavam às vezes por visíveis ameaças, tentavam beliscar-se, careteavam, mas a toada impulsiva dissolvia tudo isso, deixando apenas substituir o eco do alfabeto, da tabuada e das leituras do Catecismo e do Expositor, como um hino grandioso ao trabalho.
Ao fundo da sala, numa alta cadeira de braços, junto a uma grande mesa, em torno da qual assentavam-se alguns meninos escrevendo e fazendo contas em lousas negras, Francisco de Queiroz, dobrado o corpo numa curva ampla, proferia censuras aqui e gabos ali, maquinalmente, com o hábito de 22 anos de ensino. Os seus olhos negros, metidos numas órbitas muito fundas, que lhe tornavam as pomas ainda mais salientes, jorravam luz e confusão no espírito das crianças. A voz alteava-se-lhe com a severidade claustral dos velhos mestres, e sua mão desenvolvida, de quarentão reforçado, empunhava uma régua com movimentos nervosos de impaciência.
— Deus esteja nesta casa - exclamou o vigário. E como os colegiais se pusessem em pé: - Deus os abençoe; continuem a trabalhar.
— Entra, Paula, já vou lá ter - disse o professor.
O vigário atravessou a sala e entrou na de jantar, que ficava próxima.
As filhas de Queiroz trabalhavam também: as duas menores lendo muito atentas junto da mesa, Eulália e Chiquinha crivando em travesseirinhas vermelhas. Só a pequenita, a caçula, brincava sentada numa banca a ninar uma boneca, de vez em quando dirigindo a sua velha tia, que fazia renda ao pé de si, observações sobre a filhinha manhosa. Um desalinho asseado revestia da respeitabilidade do lar as pessoas e os objetos.
Paula cumprimentou-as com o melhor dos seus sorrisos, a receber beijos na mão grande e carnuda.
— Pensei que estava mal conosco - disse Eulália. - Não quis vir tomar café ontem.
— Ah! Sim, ontem estive doente; os miolos estalavam-me; não sabia o que dizia; fiquei quase doido.
— Pareceu-me que o sr. vigário padecia desde a tarde, antes da procissão.
— Antes, muito antes; adoeci lá no Engenho; aquele espetáculo. .
— Pois nós todos gostamos e muito - interveio Chiquinha.
— É verdade, faz medo, mas é bonito - acrescentou Eulália. - Hei de ir sempre ver.
— Quem vai a senhora ver? - disse Paula fingindo-se distraído.
— O Feiticeiro.
— Não vale a pena o trabalho: feiticeiros encontra-os a cada canto.
O vigário refreava-se, mas nem por isso a inflexão da sua voz passou despercebida para Eulália, que levantou os olhos das suas carreiras de crivo, e fitou-o penetrantemente. A dissimulação, porém, fechou de todo o pensamento do vigário no incompreensível, e Eulália, sorrindo maliciosamente, calou-se.
A conversação travou-se então entre o vigário e d. Ana, a respeito da seca, e Paula profetizou como irredutível o tremendo flagelo.
— Vai ser um ano de penúria e de fome. Não há que ver, julgue por hoje: são dez horas, e o sol já queima como brasa; olhe para tudo e note: as árvores têm o ar de quem se despede.
— Mas Deus é piedoso, sr. vigário - disse a boa da velha com a sua voz de apática; - ele há de ouvir os nossos rogos.
— Ouvir?! Para isto era preciso que não o fizessem surdo com os pecados; mas não é assim infelizmente. Nem junto ao andor da Virgem Mãe de Deus, d. Ana, nem aí há respeito pela religião!...
— Ah! Sr. vigário, é um doido, um endemoninhado.
— Não é dos doidos que falo, é dos que têm juízo.
Eulália corou como se fosse ré, ao passo que suas irmãs e a velha d. Ana encararam o vigário e olharam-se mutuamente, enquanto Paula regozijava-se com o efeito da sua perversidade. Tinha ferido fundo, a julgar pelo espanto geral e a mudança rápida de Eulália. E então aquela alma ulcerada pelo despeito, com a autoridade da hipocrisia respeitada, sedenta de vingança, gulosa de crueldade, repetiu solenemente:
— É o que lhes digo, junto do andor da Mãe de Deus falta-se com o respeito à religião!
Eulália continuou com a cabeça baixa; o moreno corado das suas faces tomou um colorido ictérico, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas, a sua respiração começou a fazer-se a longos haustos, e a força de dissimular o que sofria quase a obrigou a dar um grito. Sentia ódio e desprezo pelo vigário, e, encarando-o sorrateiramente, mostrava que a impelia o desejo de esbofeteá-lo, calcá-lo aos pés como um inseto asqueroso. Aquelas palavras, que lhe eram dirigidas, tinham a hediondez da calúnia, a frieza da infâmia, a perversidade calculada da cobra, que se enrodilha nas moitas da estrada para morder o caminheiro. Queria visivelmente ofendê-la, torturá-la, infamá-la. Se não fosse esta a verdade, por que lhe regateara um lugar sob o andor de Nossa Senhora, e, só no dia em que de mau humor lho dera, lembrou-se de que faltava-se com o respeito à religião?!
— E hão de crer que é uma das pessoas mais queridas do lugar? - ponderou o sacerdote. - Muito pode o pecado!
O silêncio dos ouvintes era profundo; com a cabeça inclinada sobre os seus trabalhos parecia procurarem adivinhar quem seria esse ente perverso. Por fim a velha d. Ana, com a sua voz muito cantada, abanando a cabeça, disse:
— Não pode ser, sr. vigário; foi por força engano de quem contou-lhe; na procissão de ontem, foi engano por força.
— Não... eu vi - respondeu Paula tranqüilamente - com estes que a terra há de comer.
E arregalou os olhos abaixando as pálpebras inferiores com a ponta dos dedos.
Um sorriso vitorioso pairou-lhe nos lábios. O despeito da véspera esmagou-lhe o coração, sugou-lhe o que lhe restava de puro; abismou-o em torturas cruas, inquisitoriais. Todas as fúrias do ciúme tinham-se levantado de improviso diante de si, e umas apunhalavam-no enquanto outras riam; umas lhe mostravam uma câmara nupcial, com um par feliz, tímido da própria liberdade, com medo do seu direito suave subterfúgio para prolongar a ventura; outras para vilipendiá-lo, para zombar dos ímpetos do seu amor ultrajado, levantavam um crucifixo entre os seus e os olhos do noivo, e o Cristo assumia então um tamanho disforme, enchia com o seu peito o resto do aposento, como se lhe quisesse dizer que, para chegar até os noivos, ele, sacerdote, seu ministro, havia primeiro de atirá-lo em terra sacrilegamente. Então como que se sentia morrer, enquanto que nos braços do seu rival Eulália deixava-se afagar sem resistência. Vingava agora a sua noite de angústias; estavam agora trocados os quadros dos seus pesadelos; ele podia rir, olhar em face, ao passo que ela baixava os olhos como culpada, e não ousava rir, porque sabia que o seu riso acabaria em lágrimas.
Deu-se por satisfeito; o seu quarto de hora matinal, consagrado ao amigo, estava aproveitado; podia partir.
— Bem, bem - disse ele -, não posso demorar-me; vou almoçar; até logo!
Passando junto à mesa, parou um pouco e, inclinando-se sobre as pequenas que escreviam:
— Sim, senhoras - resmungou -, estão com umas letras muito bonitas, parecidas com as donas.
— Então o que é isto? Vocês conversam calados ? - disse o professor assomando à porta da sala. - Parece que estão fazendo quarto a defunto
— Ficaram admiradas de um sacrilégio que lhes contei.
— Ora você, padre-mestre, não há de perder este sestro de me pregar sermões em casa, homem? Quer converter isto em ninho de beatas?! Até Eulália já parece inclinada!
— Quais beatas, se elas são suas filhas ?
— Gratias agamus Domino Deo nostro - respondeu Queiroz, curvando-se e batendo no peito com grande força; - dignus et justus est.
Riram-se todos; o próprio vigário sorriu meneando a cabeça. Eulália, porém, não mudou de atitude, e, ela que era a mais expansiva, conservou-se calada e indiferente.
— Estás sentindo alguma coisa, minha filha? - perguntou Queiroz, suspendendo-lhe a cabeça por uma pressão carinhosa sobre a testa.
— Eu? - respondeu ela, fitando-o tristemente. E sufocou-se numa explosão de soluços.
— Vê? - observou Queiroz ao vigário. - O seu sermão fez-lhe mal.
— Ora, uma história à-toa; há de ser nervos.
E saiu com o seu passo firme e pausado.
As consolações do sr. vigário, na sua manhã de inexplicável bom humor, dissiparam-se como líquido volátil. A desolação veio sentar-se silenciosa no meio da paróquia, enquanto os últimos dias de março rolavam como avalanchas de luz, deixando após si um rastro de desilusões e pânico.
A população nem mais ousou implorar; a última esperança terminou o seu sonho de prosperidade no vestíbulo da miséria, e o céu pareceu impenetrável como um edifício bloqueado pelo incêndio. Para que levantar preces, que não voltariam à terra convertidas na piedade divina, como os vapores da terra em chuvas benfazejas? Os espíritos afizeram-se ao horror do seu destino, semelhantes às revoadas dos corvos, os hóspedes negros da podridão, ao mau cheiro da carniça. A dor atrofiou os corações, e a sensibilidade enlerdou-os com a anestesia nojosa dos cães, que morrinhavam a digestão de carnes podres, em sono pesado na areia morna do terreiro.
— É tempo de desarmar a rede e arrumar o mocó - já se dizia baixinho. - Não se pode mais esperar.
— Amanhã, infalivelmente amanhã! - exclamavam, sempre que ouviam o soturno clamor do vento da tarde, lúgubre como se fosse o uivo longínquo da fome.
Mas a terra do berço não perdia o seu encanto; despida das galas da fortuna, adquiria o prestígio da desgraça, e os pobres paroquianos deixavam-se ficar no meio da tristeza dantesca, esmagadora, que os rodeava, como os braços de mãe moribunda. A saudade descobria sempre um pretexto: junho ainda vinha longe; os cajueiros ainda tinham uns farrapos de copa com que farfalhassem ao vento agoureiro; à sombra do carnaubal ainda se respigavam frutos.
Tais eram as condições da paróquia em meados de abril, quando foi acabrunhada por mais um presságio da próxima calamidade, objeto dos prós e contras de um grupo que espairecia conversando à porta de Antão Ramos.
— A prova da seca é aqui o sr. inspetor com o preço dos seus gêneros.
— É - desculpava-se Antão -, vocês se esquecem que daqui ao Aracati é um queijo, e paga-se bom dinheiro para ter quem ponha cá os gêneros. Deus os livre dos freteiros!
— Por isso é que Vossa Mercê carrega nos pobres; eles são a sua tropa.
— Negócio é negócio, mas eu não sou o que vocês dizem de mim; uma bolacha para os pobres, com a graça de Deus, sempre hei de ter.
— Que os anjos digam amém, porque, até hoje, ninguém lhe viu os cunhos à moeda.
— Ó sr. Antão, diga-me cá, não está à espera de um cargueiro?
— Olaré, e de bem boa soma.
— Veja se aquilo que ali vem não faz parte da carga.
Voltaram-se todos e olharam para a banda ocidental da praça. Dois homens caminhavam aceleradamente pelo meio do largo e, de um grosso pau atravessado sobre os seus ombros robustos, bojava uma rede de algodão enegrecida pela poeira.
— Muito boa graça! - exclamou amuado todo o grupo. -É algum doente ou defunto: é muito boa graça!
Puseram-se então a observar para ver se conheciam os homens que transportavam a rede; e como eles tomassem a direção da igreja, Antão e os seus conversadores seguiram também para lá. À porta do templo os dois homens depuseram no chão a sua pesada carga e, arfando de cansaço, limpando com o indicador a testa, de onde borbulhava suor a lhes escorrer pelas espessas barbas negras, cortejaram os curiosos. O inspetor e os seus companheiros olharam-se assombrados e apiedados corresponderam. Os homens, empoeirados, maltrapilhos, emagrecidos, semimortos de fadiga, pareceram-lhes dois destroços do medonho desmoronamento do sertão.
— Vossas Mercês me inculcam onde mora o sr. vigário? -perguntou um dos recém-chegados.
— E acolá - ensinou-lhes Antão Ramos, assinalando com o dedo a casa do Paula. - O mais certo, porém, é que ele esteja ali.
E mostrou o casebre em que residia o sacristão.
— E o lugar mais certo - justificaram os outros com malignidade; - é a toca.
— Doença ou morte? - perguntou Antão Ramos apontando para a rede.
— E morte, sim senhor - respondeu o recém-chegado -, e nós queríamos ver se o sr. vigário encomendava e mandava fazer o enterro.
— Pois é ir acolá, enquanto é dia - ponderou o inspetor; - é ir num pé.
O sertanejo partiu.
Começaram logo as perguntas habituais na província, onde a fraternidade é um sentimento profundo, e o outro sertanejo, que ficou de guarda ao cadáver, desfiou ingenuamente as respostas:
Eram de Inhamuns, mesmo do interior do sertão; tinham abandonado um pedacinho de terra que possuíam, porque Inhamuns era hoje o mesmo que uma fornalha. A gente, de alpargatas, sentia tanto calor nos pés como se estivesse descalço sobre brasas. Ia para 30 dias que o defunto, a quem Deus falasse na alma, tinha chegado a Inhamuns. Era de muito longe; morava lá para Maria Pereira, por esses bibocões do mundo, e, muito sabido no entendimento do tempo, não quis mais esperar para ver em que dava o verão. O velho meteu a cara e veio de cabeça baixa, navegando por esses estradões fora que até, Virgem! era um desconforme. Ele vinha a ser sogro daquele que foi chamar o vigário, que era irmão do narrador. Contara o velho que lá em Maria Pereira estava tudo que era uma desgraça, e por isso tinha vindo de mudança. Pelos seus cálculos o Ceará estava perdido. Há duas pedras na serra Grande, a Itaquatiara e a que ele chamava Rei do Fogo. Quando a Itaquatiara fala com a sua voz de pedra, há inverno; mas quando por alta noite o Rei do Fogo acende o seu penacho de luz muito azul e cor de ouro, é um ano de seca. O velho soube que por três vezes brilhou a chama do facho que ninguém acende, e fugiu aos três anos de seca, de epidemia e de morte. Inhamuns, porém, estava já muito crestado da seca, e o pouco que o narrador e seu irmão tinham dava mal para sustentar as suas famílias. Extinguiu-se logo depois da chegada do velho com a sua gente, e então para fugir à fome resolveram partir. O velho coitado, não pôde resistir às longas jornadas, e nesse dia pela madrugada tinha morrido, deixando uma ninhada de dez filhos.
— Mas já está tudo tão mau por lá, que é preciso fugir? - perguntou Antão Ramos.
— Já para um ano - continuou o narrador - não pousam em bando sobre as ramagens da oiticica as nuvens de papagaios e periquitos, e há mais de seis meses come-se a farinha ralada do miolo da carnaúba. A terra está rachada de secura, e da gadaria não resta mais do que a ossada branca. Nós só deixamos a nossa terra, quando não tínhamos nem mais uma cabeça de bezerro; o último boi que apuramos é que nos tem servido para comer na viagem. Está tudo num desespero, e vem aí para baixo um povaréu de meter medo.
— Que desgraça! Santo Deus, que desgraça! - repetiram os ouvintes.
O narrador ia prosseguir para satisfazer o crescido número de curiosos que o ouviam comiserados, porque a sorte de Inhamuns era a da sua paróquia, e, talvez, a de toda a província. Mas o vigário acabava de chegar, e força era interromper-se a narração.
Os recém-chegados colocaram de novo a rede sobre os ombros e, precedidos pelo vigário, seguidos pelos curiosos, entraram na igreja, cujas portas foram no momento abertas pelo sacristão, com o seu mau humor habitual.
Dentro em pouco Paula voltou, e parando junto ao cadáver, em cujo rosto a convulsão da morte estampara o último soluço, principiou a encomendação com os gestos maquinais do homem de ofício, que tem pressa e quer aviar-se. Manejando o hissope com rudeza de pintor a sacudir a brocha, engrolou, com o adjutório do velho sacristão, a mesta solenidade, e rapidamente pronunciou, já de costas para o cadáver, o requiescat in pace.
— Que pitada deu-me o bicho! - disse voltando-se para o sacristão. - E que cara tem ele!
Os parentes do morto choravam sentidamente, limpando os olhos vermelhos nas mangas sórdidas da camisa. Paula olhou-os com a sua frieza marmórea, e com a mais acentuada indiferença:
— Venham daí - disse-lhes; - falta ainda o assentamento e... pagar a cova - acrescentou baixinho, dirigindo-se ao sacristão.
Os homens acompanharam-no até a sacristia, onde sobre uma velha mesa um Cristo amarelecia o corpo e empoeirava as chagas ao desabrigo.
— Sabem que têm de pagar a cova? - perguntou Paula, recostando-se no espaldar da sua cadeira.
— Sim, senhor; mas nós vamos de viagem, e só temos dez tostões para as despesas.
— Isto é pouco - refletiu o vigário, olhando para o tinteiro e batendo com a caneta na beirada da mesa -, com dez tostões não se enterra um homem em sagrado.
— Mas é o que nós temos.
— Pois, meus ricos, o que querem que lhes faça? Vocês podiam ter enterrado o homem no caminho: punham-lhe uma cruz em cima, e livravam-me de incômodos.
Os dois sertanejos fundiram-se em lágrimas, e um deles, com uma acentuação triste, respondeu:
— É que a gente, com ser pobre, pensa que deve ser enterrado como cristão.
— É, mas precisa pagar a cova. Eu já dispenso a encomendação.
Os infelizes, com os olhos baixos e fazendo girar nas mãos os seus chapeirões de couro, calaram-se, abafando os soluços que lhes rompiam em bando. Paula, porém, não mudou de atitude; tamanha dor não teve força para impressioná-lo.
— Em que ficamos? - perguntou depois de algum tempo de espera. - Está quase a anoitecer, e não posso estar aqui até amanhã.
O genro do morto meteu a mão precipitadamente dentro de um bornal, que trazia a tiracolo. Quando a tirou, trouxe suspenso um pequeno cordão de ouro, de cuja extremidade pendia uma cruz.
— Isto chega para pagar a cova, sr. vigário? - perguntou timidamente. E acrescentou. - o mais que eu tenho.
O vigário tomou desdenhosamente o objeto, e depois de examiná-lo por miúdo, escovando na lila da sua batina a pequena cruz:
— Chega! - disse molhando a pena. - Ficará para Nossa Senhora da Piedade, e sairá da minha algibeira ~ dinheiro da cova. Diga o nome.
Pôs-se a lançar o assentamento, e depois, dirigindo-se ao sacristão, fez-lhe sinal para acompanhar os dois fregueses.
— Avie-se, Marciano; eu fico esperando-o aqui.
— É num pulo - resmungou o velho sacristão.
Paula foi debruçar-se à janela, cantarolando e enrolando um cigarro descansadamente.
As últimas claridades do dia confundiam-se já com os primeiros brilhos do luar. Pairava no ambiente uma tristeza sobrenatural, que se podia chamar a melancolia de Deus. O carnaubal distante, já invadido pela noite, vergando com uma branda flexão aos assopros do vento vespertino, espalhava uns frêmitos convulsivos e tristes, como se ele fosse a boca por onde se espalhassem os soluços da esterilidade. Os bois magros e trôpegos desciam para o leito do Jaguaribe à procura de água, semelhantes a um bando de esqueletos recolhendo-se a vala mortuária, e junto das poças, com as ventas muito dilatadas, bebendo a longos haustos e ruminando a não satisfeita gula do pasto, mugiam longamente a sua fome, entristecendo ainda mais a hora melancólica da tarde.
O vigário, porém, indiferente ao que lhe ia em torno, fumava a longas baforadas, imerso numa distração profunda. Tinha os olhos pregados na casa de Queiroz, onde Eulália e suas irmãs apascentavam também a sua curiosidade no grupo formado à porta do templo. Esse olhar agudo, cheio de lubricidade de sátiro, como que rompia todos os arcanos do pudor de Eulália, e mergulhava o observador no delírio de uma festa orgíaca. Balançando-se nas pernas encurvadas e bambas, acendendo cigarros uns após outros, o seu semblante reproduzia o contentamento do tigre aspirando o cruor quente da vítima. Sentia-se bem naquela preguiça que o deixava na posse inteira do seu desejo, sem que o mais leve temor o perturbasse e o desviasse da sua contemplação. Vendo diversas pessoas correrem para o lado da igreja, sorriu agradecido: era um novo fomento à curiosidade da moça, e mais algum tempo de gozo que lhe era dado ao coração de condenado. A noite, porém, interpôs-se, e o encanto rompeu-se bruscamente.
— Está pronto, sr. vigário; lá ficou o homem - disse Marciano.
— Bem, vamo-nos embora; leve aquele cordão para a sua Mundica e diga-lhe que me guarde o café logo mais.
— Muito obrigado, muito obrigado - repetiu o sacristão, que estava acendendo uma vela -, Deus é quem o há de pagar.
Na parede caiada, a sombra do velho esgroviado reproduziu-lhe com um desenvolvimento gigantesco a zumbaia da desonra.
E saíram ambos. Marciano na frente, deixando retinir uma cambada de chaves, alumiava e fechava com estrépito as portas e janelas da sacristia. Paula seguia-o a alguma distância com o seu chapéu redondo na mão. As pisadas rijas do vigário e o chap-chap demorado, raspado pelos chinelos do sacristão no soalho tosco, reboavam.
Quando a chama da vela abriu-se, semelhante a uma pupila enorme, na escuridão da nave, aumentou-se um burburinho que vinha da porta principal, e no corpo da igreja ressoaram passadas em tropel.
— O que teremos mais? - perguntou Paula. - Quer ver que nos trazem outro demônio a encomendar?
— Macacos me mordam, se eu duvido - respondeu o sacristão. - Os homens disseram-me que a sua gente vinha pousar na freguesia, e como estão todos a morrer de fome..
— Entendem que eu hei de estar aqui às ordens para encomendá-los um por um! Não se façam bestas.
A claridade esbateu-se em cheio sobre parte dos que entravam, enquanto os outros formavam círculo em torno do vigário e do velho Marciano. Destacava-se da massa um grupo de vinte e poucas pessoas, entre as quais dois sertanejos já conhecidos do vigário. Dir-se-ia um volvo da miséria trazida ao templo acintosamente, e ao vê-lo misturava-se a comiseração com o nojo. Nos rostos escaveirados, a máscara da fome estagnava-lhes os olhares numa quietação comatosa, e dava-lhes às fisionomias a acentuação do idiotismo. O desleixo enxovalhava a mocidade; envilecia a velhice e deformava a meninice. Uma velhinha de pele pergaminhada, já não podendo suster-se nas pernas fatigadas, sentou-se covando um colo e mostrando os pés inchados, com profundos vincos das correias das alpargatas. Pestanejando silenciosa, com os braços descaídos, lembrava-se a gente das parcas sombrias que o cinzel assenta sobre os túmulos. Duas mulheres, que traziam nos braços os filhos cobertos com uns farrapos, esforçavam-se debalde por acalentá-los: as crianças, ao contato daqueles seios muxibentos, vagiam com o ruído fraco e triste dos sapos magnetizados. As moças, meio corpo em camisa, deixando a descoberto os colos queimados pelas soalheiras e empastados por escuras mascarras de suor e poeira, pareciam as personificações do desânimo. Os seus olhos cearenses, olhos cheios de erupções de altivez, ou de humildades de escrava, conservavam-se baixos, como se quisessem defender-lhes os seios virgens, que tufavam no morim encardido das camisas puídas. As crianças completavam o quadro: vestidas com umas camisolas que mal lhes cobriam os ventres hidrópicos, cabelos emaranhados e piolhosos, olhos ictéricos, o tórax deprimido, braços e pernas atrofiados, pés inchados até os artelhos, assemelhavam-se a rãs mortas. Perfiladas e seguras aos vestidos das mulheres, chupando gulosamente os dedos, narravam no seu semblante bisonho uma longa história de sofrimento.
— Sr. vigário - disse Antão Ramos, que aproveitava todo ensejo de mostrar-se autoridade -, este povaréu pede uma pousada. É uma pobre gente de Inhamuns, lá para os confins daquele sertão.
— É uma obra de caridade dar pousada aos peregrinos - disse o vigário.
— Mas são 23 pessoas; custam a arranchar-se. Nós nos lembramos de Vossa Mercê, por ser na paróquia a pessoa que tem menor família. Eles pedem só para dormir.
— Lá está a casa - respondeu Paula, dissimulando a contrariedade com um sorriso -, mas não será só por uma noite, porque as crianças e os grandes mesmo não resistem a mais jornadas sem descansar, pelo menos, quatro dias.
Muitas vozes concordaram; estavam dizendo justamente isto. Se os retirantes não parassem para descansar, talvez não deitassem mais duas jornadas fora, sem ficar algum pelo caminho.
— O melhor, portanto - continuou Paula serenamente -, é fazê-los acomodarem-se no Engenho: ficarão à vontade, e o tempo que quiserem.
— Mas hoje não podem ir para lá - interrompeu Antão Ramos. - Aquilo está um monturo.
— Na verdade, aquilo está um monturão - repetiram os circunstantes -, até hão de morar cobras nos entulhos. Demais, o Feiticeiro é má vizinhança.
— A minha casa lá está, já o disse - acentuou o vigário.
— Somente hão de dormir sobre os ladrilhos, porque eu só disponho de dois armadores para redes.
— Três podem ser armadas na meia-água da minha casa, que já está às ordens - observou Antão Ramos.
— Mais de três podem ficar na minha bolandeira - disse Rogério Monte, que acabava de chegar.
— Graças - exclamou o vendeiro. - Está tudo arranjado...
E mais baixo:
— Fez-me não sei o que por dentro a cara desses cabras: isto é boa gente por força.
O sertanejo, que à tarde entregara ao vigário o cordão de ouro, teve um movimento brusco de contentamento, e, para testemunhar a sua gratidão, que era partilhada pela família inteira, inclinou-se e beijou a mão do vigário.
— Que lábia - resmungou o sacristão. - É que acha tolos.
O tom escarninho do velho impressionou profundamente os que o ouviram. Sabiam que Marciano era a crônica viva daquelas paragens, embora não tivesse arredado pé da paróquia havia mais de 30 anos. O pior é que dizia sempre a verdade, e que os seus olhos perspicazes como que viam, dentro de todos, os pensamentos os mais íntimos. Esta qualidade adquirira-lhe inimigos irreconciliáveis e antipatias invencíveis, no número das quais estava Antão Ramos.
O que é que está aí resmungando, velho Marciano? Lembre-se de que está com os pés na cova e tem filhas. Não e bom ser palmatória do mundo - disse o inspetor.
E, com mais severidade, acrescentou:
— Se você não escorropichasse galhetas, veria como não lhe sobrava o tempo para espiar a vida alheia.
Marciano caminhou direito para o sertanejo, e, pondo-lhe a mão na testa, exclamou, com um tom impertinente:
— Eis aqui por que eu falo; veja bem, sr. Antão, repare Vossa Mercê, antes de mostrar que tem quijila de mim.
A sua voz roufenha, incômoda, inclemente, alteou-se então, e, cortante como um punhal, fez ressoar esta tremenda injúria:
— É um ladrão que está aqui, uma corja de ladrões, uma ninhada de ladrões.
O efeito de tais palavras foi medonho; subitamente a piedade mudou-se em cólera, e os mesmos que pediam agasalho para os caminheiros gritavam agora que os pusessem fora e os acossassem até longe, como se faz às onças que não podem ser mortas.
O sertanejo, humilhado, cambaleando, levou maquinalmente a mão à fronte, como se quisesse apagar daí o sinal infamatório, mas retirou-a logo com ligeireza de quem se queimasse num ferro em brasa. O pânico e o desespero injetaram-lhe os olhos de sangue e deixaram-no boquiaberto.
— É tarde já para esconder - chasqueou o sacristão. - Todos viram. É uma cruz, por sinal que é feita por mão de mestre e por uma ponta de faca bem afiada.
— Eis aí a pobre gente que, sem mais nem menos, queriam meter-me em casa - disse o vigário sorrindo. - Mais cuidado para outra vez, mestre Antão, quando oferecer a casa alheia.
O inspetor, olhando de revés para o sertanejo, apenas pôde responder humildemente:
— Tem Vossa Mercê toda a razão, sr. vigário, enganei-me.
— Eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo - soluçou o desventurado, a quem visavam as acusações. - Não sou um ladrão.
E, caindo aos pés do impassível Paula, ajuntou:
— Deus, que nos está vendo, fulmine-me com um raio se eu minto...
A impaciência dos espectadores interrompeu-o: não queriam ouvi-lo, estavam fartos de lamentações iguais; que se pusesse fora com todos os seus e bem longe do povoado.
Em vão as mulheres sufocavam-se em soluços, e o Cristo, muito branco e triste, abria no lusco-fusco do templo o seu abraço de perdão: a palavra de Marciano tinha empedernido todos os corações.
Todos os episódios do quadro comovente daquela família fugitiva desapareceram para deixar lugar apenas à cruz infamatória, que se lhe desdobrava agora por toda a altura do porte e pela extensão dos seus braços abertos.
— Não acha que é hora de desatravancar a igreja, sr. vigário? E já noite fechada - ponderou o velho impiedoso.
Paula meneou afirmativamente a cabeça e tentou seguir; mas o sertanejo, caindo de joelhos, abraçando-se-lhe às pernas e insistindo no juramento, constrangeu-o a parar. Quando viu que eram vãos os seus rogos, apelou para as crianças: não tinham culpa da sua desgraça; por ele nem pediria, mas as pobrezinhas tinham fome, precisavam descansar, e agora era impossível caminharem mais.
— As crianças - concluiu ele - não roubam.
O velho sacristão, sorrindo escarninhamente, aproximou-se de um dos meninos, e, segurando-lhe o queixo, resmoneou:
— Estezinho, pelos olhos, já devia ter também a sua cruz; já pode furtar galinhas.
O sertanejo levantou-se com a elasticidade de uma espiral de aço que deixa de ser comprimida, e, cego de cólera, mudada em delírio a resignação, precipitou-se sobre o provocador brutal. Braços possantes, porém, subjugaram-no, enquanto o seu irmão defendia a família das selvagens ameaças.
— Fora, assassino ! Fora, ladrão - gritavam impelindo-o brutalmente.
O desgraçado cedeu ao seu destino de precito. Desde que se lhe estampou na fronte aquela cruz aviltante, a sua sorte era amargar afrontas. Todas as portas negavam-lhe agasalho, todos os corações, piedade. Nem as suas lágrimas, nem as de todos os seus conseguiram apagar o estigma, que lhe circunscreveu todo o horizonte da vida. Em toda a parte ensinavam-se até às crianças a chamarem-no - ladrão!
Saiu, pois, trôpego e humilhado, seguido pela vergonha dos companheiros dos seus padecimentos, da impiedade dos paroquianos e da indiferença do ministro da religião, do perdão e do arrependimento. O céu desnublado vestia-se de um luar deslumbrante; uma viração benfazeja refrigerava o ambiente cálido ainda das irradiações do sol; uns cajueiros esgalhados agitavam os ramos seminus como fazendo um sinal de convite.
— Vamos para acolá - disse o sertanejo -, talvez não nos ponham fora.
— Não - exclamou Rogério Monte, batendo no ombro do precito -, vamos para ali.
E apontou a sua casa, que alvejava em frente, modesta como a bondade.
Duas vozes feminis coroaram a piedade do velho Monte, que se viu colhido entre os seus braços.
— Muito bem, faz muito bem! disseram-lhe Irena e Eulália. - Não há de morrer por aí à toa.
— É como eu entendo também a caridade - disse Queiroz, que, atraído pelo barulho, conduzira as duas moças até a igreja. - Faze o bem e não olhes a quem.
— Está um lindo luar - observou o vigário, que se aproximava do grupo venerando -, dava-se agora um ótimo passeio.
O ato de Rogério para com os sertanejos não foi senão um lampejo da sua fidalguia moral. Vazado no velho molde dos primeiros povoadores e seus descendentes, o seu coração tinha a heroicidade sã da bondade e o desassombro calmo da justiça. Dois terços da paróquia agradeciam-lhe pão e agasalho, consolações na enfermidade, e a cova em que repousavam os entes queridos. Entre os dotes de Irena, a sua filha única, assinalava Monte as suas qualidades de enfermeira, a piedade com que pensava os doentes que vinham acolher-se muitas vezes ao abrigo desinteressado daqueles 16 anos.
Orgulhoso de ter calos nas suas mãos fidalgas, despreocupado da ambição de enriquecer, não podendo resistir ao impulso filantrópico e bom, que o levava a enxugar as lágrimas com que deparava em seu caminho, era chamado pródigo pelos seus amigos. Trabalhava de longa data, cerca de 40 anos, e, no entanto, a sua fortuna era apenas a sua fazenda de criação, fortuna precária que o sol do verão podia facilmente dissipar.
Os prejuízos do velho criador na quadra atual serviam de confirmação aos seus amigos, que, cheios de severidade, repetiam-lhe o rifão: quem dá o que tem a pedir vem.
— Mas encontra quem lhe dê também - respondia Rogério tranqüilamente.
Não era, porém, um ente privilegiado; o seu caráter tinha uma enorme falha. O respeito supersticioso pelos seus maiores fazia-o conservar, como relíquia sagrada, ódio encanecido, invencível, intransigente à família dos Feitosas. Sua alma evangélica negar-lhes-ia um gole de água. Quando, na intimidade, fitava o Engenho mal-assombrado, Rogério deixava perceber que a ponta do punhal do facínora da noite lendária atingia-lhe o coração através de dois séculos, e, como que para vingar a dor da esposa alucinada, historiava a longa série de vinganças, de sevos desforços tomados pelos seus antepassados, com a exaltação de quem aplaude.
— Não me falem em Feitosa - dizia ele. - Este nome faz-me ficar perverso.
E o seu rosto magro, os olhos castanhos desassombrados, os seus movimentos e gestos sempre afáveis mudavam de súbito para uma acentuação frenética, e, aprumando a sua estatura desenvolvida, acrescentava:
— Tenho sangue-frio suficiente para atravessar-lhes o coração a um por um e beber o sangue a essas feras.
A história da província explica, se não justifica, o ódio secular das duas famílias, hoje desmembradas e espalhadas pela vastidão do território cearense, balda de fortuna e de prestígio. Todo o século 18 reboou com o ruído das batalhas desses poderosos rivais, que, de par com os Lyras, foram os Deucaliões do sul do Ceará. Ramos do mesmo tronco genealógico, uma questão de terras separou-os para sempre, e ambos puseram-se em campo, em guerra fratricida, guerra em que as crueldades assombram, as devastações aterroram. As tribos selvagens, assoldadas por eles, foram os executores dos seus tremendos veredictos, e basta isto para perceber-se a monstruosidade das execuções. Ao anoitecer a quietação claustral das fazendas era perturbada pelo toque dos instrumentos guerreiros. Uma seta inflamada atirava o cartel fatal aos moradores, e as labaredas vermelhas de um incêndio, rompendo a custo novelos densos de fumo, apelavam para um, combate sem tréguas. E, no meio da confusão, do alvoroço e do terror, barulhando-se na treva ou arquejando ao calor insuportável do incêndio, os dois exércitos encontravam-se braço a braço, depois de se terem crivado por nuvens de flechas, por descargas de mosquetaria, e ferozes, sanguissedentos, disputavam linha a linha a vitória, cujo coroamento era o sacrifício de mulheres, de crianças e de anciãos. Debalde as justiças da Metrópole tentaram pôr fim a essas contendas ensangüentadas; as ciladas esperavam-nas, e a derrota das milícias era infalível diante dos poderosos sertanejos, senhores de barço e cutelo das povoações, influências invencíveis nos senados das câmaras, agasalho de perseguidos e facínoras. A rivalidade irreconciliável terminou por desmoronar essa grandeza colossal, intumescida de orgulho e de crimes, e no presente século as ruínas apenas sobrenadam ao vasto mar de sangue que teve por praias a extensão de um século.
Não obstante, os velhos descendentes não mudavam na adversidade a paixão dos tempos felizes.
O vigário Paula sintetizou um dia o caráter de Rogério numa das suas frases de fino espírito:
— É um bom homem, que há de ir parar no inferno a dar esmolas.
Queiroz, ouvindo-o proferir esta sentença contra o seu velho amigo, repeliu-a com azedume, admirado de que fosse Paula quem tal dissesse de um homem cujo valimento dera-lhe a paróquia.
— O que quer você, Queiroz? Eu digo o que sinto. A maior virtude do homem é o perdão, e Rogério não sabe perdoar.
— Ora, adeus, homem - respondeu-lhe o professor.
Mas, impressionado pelas palavras do vigário, tentou remover do coração do amigo aquela mancha, que tinha herdado aos seus maiores. Vão propósito: o ódio de Monte estava dissolvido no seu próprio sangue.
Tal era o homem, que não se arreceou de agasalhar a "corja de ladrões" com aplauso de Irena e Eulália e do bondoso Queiroz.
Os paroquianos, comentando a cena da igreja, mostravam-se arrependidos. No fim de contas aquela gente era desgraçada, merecia compaixão, e tanto que soube corresponder à bondade de Rogério cavalheirosamente. Desde o dia seguinte foi instalar-se no Engenho, na vizinhança do Feiticeiro.
Abonançada a inquietação dos primeiros momentos, ninguém mais se lembrou de chamar temerário ao velho Rogério Monte, e a paróquia recaiu na sua vida monótona, dividida entre os comentários dos acontecimentos dos últimos dias e as antevisões dolorosas do seu destino, entre a devoção matinal e o sono letárgico logo ao cair da noite.
Paula continuou a dizer tranqüilamente as suas missas a meter-se três vezes à mesa durante o dia, a consolar o queixoso Marciano, a passar as tardes no casebre deste, a dar o seu quarto de hora de manhã à palestra e duas horas por noite à bisca na casa de Queiroz.
Estas duas horas e pouco eram o seu maior tormento e o seu maior prazer. Via Eulália, sempre confusa diante dele, como que amedrontada, a querer abrir-se em uma fraqueza, e a hesitar. O seu despeito folgava com essa tortura lenta, agravada pelo pudor de Eulália; mas o coração repercutia-lhe dolorosamente aquele sofrimento, que já ia alterando a fisionomia santa do seu ídolo, e então Paula custava a domar o desejo impetuoso de ajoelhar-se junto à moça, pedir-lhe que o perdoasse ou desprezasse, mas que vivesse feliz, despreocupada como outrora. Porém o hálito morno do beijo que lhe embalsamava a mão, sempre que entrava ou saía da casa do professor, alucinava-o de novo, e acordava-lhe, ruidosa como um temporal, a paixão que se estorcia na sombra como as torturas do Ugulino dantesco, venenosa como as serpentes, feroz como as panteras. Lábios que tinham hálito tão perfumoso, de uma tepidez tão suave, deviam dizer carícias angélicas, enquanto as mãos delicadas desfiassem afagos de fazer estremecer, como o rolar de uma gota de água pela medula. E que temeridade, que energia heróica não teria aquele amor, erupto de um coração que acordava com a violência da mocidade, depois de um sono cataléptico de quatro anos, consagrados somente à piedade filial? Não; não podia deixar que outrem fruísse os gozos que a fatalidade, aquela batina cruel, que ele sacudia com as raivas do tigre, lhe proibia. Não seria sua, mas também não seria de ninguém!
E todos os dias, preocupado com a sua vingança recalcada pelas conveniências, frio como as escamas das cobras, calculava como irritar os brios de Eulália, e afastar para sempre Augusto Feitosa, ainda que para consegui-lo fosse preciso vê-la morta.
Uma tarde, a conversar com ela, na horta, achou ocasião de apunhalar-lhe pela terceira vez o mísero coração.
— Por que foge sempre de mim - perguntou-lhe -, ou fica tão contrafeita quando me vê?
Eulália admirou-se de ouvi-lo com uma entoação meiga e tanta bondade no olhar. Estava agora acostumada a outras maneiras, ao desabrimento brutal ou descortesia hipócrita, e por isso o tom manso e cordial do padre fê-la estremecer; mas logo, lembrando-se das palavras de Irena, alvoroçou-se de contentamento. Tratava-a, de feito, como seu pai, e por isso não percebia que às vezes a magoava muito.
— Eu? - respondeu-lhe. - O sr. vigário é que parece continuar mal comigo.
— Não hei de tratá-la com intimidade, quando a vejo esquivar-se...
— É desconfiança.
— É verdade; eu sou meio caboclo, e desconfio muito, principalmente de quem calcula.
— De quem... ? - perguntou a moça, que não ouviu bem a última palavra.
— Digo que - repetiu o vigário, sorrindo e sacudindo o seu longo indicador - não gosto de quem faz cálculos para fazer-se estimada.
— Mas é comigo que fala? - interrogou Eulália, corando muito.
— O padre sou eu, minha sonsinha - respondeu com bonomia. - Eu sou quem pode confessar; você apenas deve cumprir as penitências, de que precisa bem.
— Eu calculo, para ser estimada? ! Por quem?
— Há de ser por mim; pois por quem há de ser mais?. Aviso-a com o segredo do confessionário.
E retirou-se, deixando-a humilhada, perplexa, diante da acusação que o seu recato de virgem considerava esmagadora.
— Eis aí por que me maltrata - disse ela; - eu vi logo a ponta da intriga: hei de desfazê-la.
E perdeu-se num mar de conjeturas, para atinar com a origem da ignóbil difamação.
Toda a paróquia com as suas pequenas murmurações, com os seus dichotes à meia voz, desfilou-lhe pelo pensamento, num préstito sombrio e lúgubre, a olhá-la vesgamente como para um ente abjeto. Deixava de ser a santa filha de Queiroz, alegre como o gazear dos pássaros, para ser a mulher sonsa a calcular com os seus encantos - diziam todos talvez a essa hora. Quando passasse, ouviria o cascalhar represo das risadas malignas, provocadas pela infame calúnia, que se insinuara sorrateiramente no ânimo da paróquia, e, sem que ela própria o sentisse, estampara-lhe na fronte um ferrete ignominioso, quem sabe se indelével!
A calúnia era infame demais para que a revelasse e pedisse a seu honrado pai uma desafronta. Fora amargurar-lhe a existência, ferir-lhe no âmago a vida, enxovalhar-lhe a nobreza. Demais, o sr. vigário impusera-lhe o segredo do confessionário.
Não havia, pois, outro remédio senão ficar abatida aos próprios olhos, deixando-se devorar em silêncio por aquela amargura, até que um dia a justiça do céu se incumbisse da sua reabilitação.
Apressou o passo, e chegando-se timidamente ao vigário:
— Mas o senhor não acredita nessa mentira, não é verdade? perguntou com acanhamento.
— A mulher perdeu o mundo - respondeu sorrindo... - Eu sei lá ... . mas se diz que não...
— Juro que não, pela alma de minha mãe!
— Não é bom falar nos mortos, d. Eulália - replicou austeramente; - não se deve profanar as sepulturas; errar é dos homens.
As lágrimas rebentaram em fios dos olhos tristes da moça, e os seus lábios trêmulos mal puderam tartamudear:
— Seja o que o sr. vigário quiser.
— As lágrimas fazem-na tão bonita, Eulália, que eu não tenho forças para deixar de acreditá-la! - exclamou Paula com uma ternura infinita, apertando entre as suas a mão abandonada de Eulália.
Estremeceram ambos ao mesmo tempo, como se um olhar indiscreto os surpreendesse. A moça apertou o passo para entrar em casa, e Paula conservou-se imóvel a olhar para o chão, como se uma força ignota lhe violentasse o olhar.
Uma toada triste rumorejou então distante, com um eco soturno e lúgubre.
Era o Joaquim Maluco, pai inconsolável, que passava, cantando a sua desgraça na inconsciência da loucura.
— Será um aviso do céu?! - murmurou Paula perturbado.
Mas logo, sacudindo os ombros:
— Seja - continuou consigo. - Prefiro o inferno com ela!
De volta à sala de Queiroz, Eulália e Paula estavam apoderados de sentimentos diversos.
A filha do professor tinha medo de si mesma. Lembrava-se de que um enleio inexplicável avassalou-a e converteu-a em títere de um impulso ignoto, mas triunfante, que a entregaria ao vigário como escrava. O calor daquelas mãos, que apertaram as suas com um tremor carinhoso, coara-se-lhe como um veneno pelas veias; sentiu-se alquebrada, sem vontade, sem domínio sobre si, e deixar-se-ia até beijar se não fosse o canto providencial do doido.
Semelhante recordação afogueava-lhe o pudor e obrigava-a a ocultar-se para esconder as lágrimas. Mas a solidão fazia-lhe medo; via-se fraca, dominável por tudo, inerte ao ponto de se deixar vencer até pelo raio do sol moribundo. O polido do espelho do seu quarto figurava-se-lhe uma lanterna que lhe acendiam dentro da consciência, a cuja luz não podia esconder que o vigário a impelia com um aceno, escravizava-a com um olhar. Lutava então contra o amargor de tão triste certeza, mas a imaginação baralhava-se-lhe num cismar cambiante como as vistas de um caleidoscópio. No entanto, não tinha forças para repreender-se severamente, porque o que sentia agora não era senão a reprodução do que sentira desde a infância pelo sr. vigário.
Recordava-se de que, em pequena, era de um gênio violento e excessivamente traquinas. Em vão as carícias paternas e as de sua boa mãe buscavam contê-la: continuava sempre, e, se a castigavam, cedia por temor, mas não por estar convencida de que fizera mal. Entretanto, se a ameaçavam dizendo que iam contar ao sr. vigário, aquietava-se logo, e, sem ressentir-se, distraía-se e ia ler ou amimar sua boneca. Depois de crescida, já mocinha, sentia uma satisfação untuosa, fresca como o contato de uma pele, ouvindo as prédicas daquele homem que fazia estremecer todos os corações, que falava em nome de Deus, e não obstante na sua casa desfazia-se em afagos e em meiguices para consigo. Depois foi gradativamente compreendendo que Paula era um homem de espírito, superior à gente rude da paróquia, que o maldizia porque não o entendia, e não se compenetrava de que o pároco, gravitando em outra esfera, não podia deleitar-se com os seus divertimentos grosseiros e com os seus costumes semi-selvagens. Este conceito exagerado, que cimentou-se com as repetidas afirmações de Queiroz, predispuseram-na a deixar-se levar pelo vigário, a quem devotava uma afeição quase igual à que dava ao pai; afeição desinteressada, sem laços materiais, como se evidenciava do desassombro com que ouvia falar na filha do sacristão, a formosa Mundica.
Hoje, porém, descobrira em si fraqueza demais na sua afeição; fora obrigada a corar por ela, e sobressaltada, querendo fugir de si mesma, Eulália não tinha coragem de comunicar a ninguém o estado do seu espírito, e nem ao menos ousava repreender-se: fora confessar a si mesma um crime sem perdão.
Paula, ao contrário, deixava transparecer uma alegria serena, mas expansiva, que precisava de corrigir-se pelo seu hábito inveterado de conter-se, ainda nos momentos mais difíceis.
O seu espírito, orgulhoso do triunfo conseguido sobre Eulália, tinha necessidade de apossar-se de todo o horizonte, de ter a largueza de quem se espreguiça para afugentar os restos do sono.
O conchego da família do seu amigo era um círculo estreito para a sua respiração: abafava-o. Precisava de ar livre, da posse ampla do ambiente para que os seus pulmões resfolegassem com a amplitude do seu contentamento.
— Vou fazer uma obra de caridade - disse ele a Queiroz: - vou até o Engenho conversar com essa pobre gente que lá tem arranchado;
— É um belo passeio - ponderou-lhe Queiroz -, mas é um pouco distante e você voltará já com a noite.
— Que quer? É o meu oficio.
— O que vale é que faz luar.
— O dever não espera pelo escuro, nem pela claridade.
— Nem sempre - respondeu o professor, batendo-lhe no ombro.
Paula saiu com o seu passo firme e compassado, e enveredou pela ladeira norte da colina, a cumprimentar aqui e ali os paroquianos, que se descobriam todos ao vê-lo. Pouco demorou a estar fora do povoado e a ficar só, no isolamento sussurrante da estrada e no júbilo do seu amor, agora esperançado.
A soledade dava-lhe alguma coisa de fantástico: parecia o luto visitando a devastação. A sua batina negra como que distendia-se por diante do povoado, extensa como a espessa barreira de trevas em que a população inteira vinha abismar-se e asfixiar-se na desesperança e no pranto.
A vegetação combalida, agitada pelo vento da tarde, parecia estremecer ante o hóspede inesperado, as claridades do crepúsculo recuavam diante dele como diante da noite. O cruzeiro do cemitério, sobranceiro aos arbustos de copa emurchecida, envolvia-o com o seu olhar sem pupilas, o agudo olhar da crença que penetra no mais insondável do desconhecido. Mas Paula caminhava com o mesmo passo inalterável, tranqüilo, absorto na sua alegria, sentindo talvez nas suas o calor virginal da mão trêmula de Eulália.
A cerca do cemitério começou a aparecer diante dele, perfilada como um pelotão apresentando as armas ao seu superior, e Paula, estremecendo, malgrado seu, descobriu-se. Os zumbidos dos grilos, sobressaindo no profundo silêncio, avultavam como se fossem gemidos alados de dentro das sepulturas: um coro trépido vindo de além-túmulo.
A solenidade da morte, pairando sobre o terreno limpo do campo-santo, impunha-se com todo o seu respeito supersticioso. Paula sentia a conquista desse poder inexplicável, e tanto que, apesar seu, apressava o passo e fazia ressoar pisadas mais fortes.
Em frente à cancela que fechava o cemitério um outro homem impressionava-se também e punha o ouvido à espreita. Era o Joaquim Maluco, o endemoninhado. Todas as noites o mísero pai vinha exacerbar a sua loucura com uma visita ao jazigo dos filhos, ou, como ele dizia, esperar o vigário, que tinha fugido para muito longe. Esta visita dolorosa foi principalmente a causa de o julgarem endemoninhado, porque havia noites em que, nas violências dos seus acessos, o velho Joaquim, depois de abraçar-se com o cruzeiro solitário, rogar-lhe piedade e justiça para a sua angústia, indignava-se contra o seu silêncio e concluía por um grito sacrílego:
— Ah! Não me respondes? Vou esbofetear-te, cuspir-te na face, filho daquela alcoviteira; espera!
E marinhava alucinado pelo madeiro nu, até chegar aos braços onde julgava encontrar o Cristo, para profaná-lo. Lá em cima, despeitado e receoso, o doido, escarranchando-se no cruzamento dos dois madeiros, atordoava o povoado com uma vozeria horrífica, misto de blasfêmias e de pedidos de socorro, seguido de gargalhadas medonhas.
— Fugiu; fugiu também com o vigário; ele também fugiu! Vejam, ele fugiu porque sabia que eu vinha cá em cima esbofeteá-lo!
O povoado inteiro abalava-se então, e, transido de terror, suplicava ao endemoninhado que descesse.
O Joaquim Maluco, certificando-se de que alguém se aproximava, levou o indicador aos lábios, e, acocorando-se por detrás do esteio da cancela, esperou.
Quando Paula ia passar em frente, o doido, pulando com a elasticidade da loucura, veio colocar-se-lhe em frente, agachado como um tigre preparado para dar o bote.
— Pare aí, pare! - bradou o desventurado... - Então pensava que ela estava aqui sozinha como no confessionário? Vai morrer já, agora mesmo.
Paula, com os cabelos eriçados, a fisionomia descomposta pelo susto, estremecendo convulsivamente, tinha estatelado em face do velho Joaquim. O doido aparecia-lhe com as cores sobrenaturais do remorso; o seu olhar esgarado subjugava-o com a força de um pulso de aço e deixava-o imóvel, mudo e passivo como um cadáver.
— Quer rezar primeiro? - perguntou-lhe o doido. - Venha rezar para morrer.
Travou-lhe violentamente do braço, puxou-o após si até junto do cruzeiro. Paula, tendo nas veias a anestesia do remorso, deixou-se ir, abandonado àquela fúria que, ao mesmo tempo que o torturava, fazia-lhe bem. A lembrança de Eulália, não tendo tido tempo de esvair-se, sobrestava-lhe o pensamento, radiante no abandono da cena da horta, prestes a vergar ao menor aceno audaz. Ser-lhe-ia agradável morrer assim; a morte viria como um desmaio suave, sob o contato carinhoso daquela imagem imaculada.
— Ajoelhe-se e reze - continuou o doido -, eu vou acordá-la; ela está acolá; há de gostar de vê-lo estrebuchar.
Retirou-se, olhando de vez em quando para o vigário, que, de pé, o fitava também, imóvel e silencioso. Mas a alguns passos deteve-se, e voltando-se rapidamente, veio de novo parar diante de Paula.
— Ajoelhe-se - repetiu o desgraçado. - Tem medo da morte?... A minha filha adormeceu sorrindo; o meu filho, o que está ali fora de sentinela, não pestanejou quando teve de partir. Reze!
Livre da pressão do seu temível ameaçador, Paula foi pouco a pouco recobrando o seu sangue-frio habitual. Conservou-se de pé, olhando o doido que se afastava, e sorriu, meneando a cabeça piedosamente. Depois, cruzando os braços sobre o peito, relanceou os olhos pelo cemitério, como quem procura alguma coisa. Encostado à cerca, próximo à cancela, luzia o aço polido de uma enxada, como o olhar facínora, ávido de um crime.
Paula, com o seu sorriso de desprezo, encarou para o instrumento, e depois volveu o olhar à direção tomada pelo doido.
— Coitado, talvez eu tenha de feri-lo ou estrangulá-lo! -resmungou desdenhosamente.
Continuou imóvel à espera, sombrio como a premeditação nefanda de um crime hediondo. A perversidade daquela natureza avultava em todo o seu relevo, na plenitude dos seus contornos. As mangas largas da batina deixavam-lhe ver os pulsos sertanejos, grossos e achatados, traindo a força dos vaqueiros que derrubam com uma laçada os touros bravios, e semelhantes a duas jibóias enroscadas esperando presa. Mas Paula cansou por fim, e com o seu passo firme e pausado, relanceando o olhar em torno de si, retirou-se sem que fosse sentido.
O mísero pai, alucinado, de joelhos sobre uma sepultura na extremidade do cemitério, ocupava-se exclusivamente em acordar o esqueleto soterrado da filha.
Já o vigário estava no Engenho, sentado a conversar com os seus novos habitantes, e quem passasse pela frente do cemitério veria ainda o doido, ajoelhado, batendo com as mãos espalmadas na terra, e ouvi-lo-ia, com uma rouquidão carinhosa, exclamar repetidas vezes:
— Acorda, filha; vem, ele está ali; eu vou matá-lo.
À noite, Eulália e Irena estavam juntas, e, conforme o seu costume, fecharam-se por dentro, na alcova da primeira.
Mais do que a porta de cedro, separava-as do resto da família a abstração em que elas se achavam. A caçula dormia e os velhos, na sala das aulas, jogavam calorosamente a bisca, emparceirados com d. Ana e Chiquinha. Duas caboclas, que eram as criadas da casa, encostadas aos umbrais da porta, espiavam o jogo.
As duas moças, atravessadas na rede, que Eulália impelia de quando em quando, fincando no ladrilho a pontinha do pé, puseram-se a conversar.
— Tem-no visto? - perguntou Eulália.
Irena fitou significativamente a sua amiga e meneou a cabeça, afirmando.
— E não está alegre?
— Você bem sabe que eu não posso ficar alegre quando o vejo; cada olhar seu parece que me afasta de meu pai para sempre.
Estas palavras, proferidas com a sincera acentuação de uma dor verdadeira e profunda, foram seguidas por um longo silêncio, durante o qual as duas moças, balançando-se sem se encarar, olhavam com indiferença para o espelho que as refletia em frente.
— Você já sondou seu pai, Irena? Talvez não se zangue, ele estima-a tanto! - ponderou Eulália. - Cede por força.
— Acredita? Pois era o mesmo que dar-lhe uma facada.
E Irena, sentando-se, desfiou as razões da sua afirmação peremptória:
Tinha-o conversado sobre os Feitosas, a propósito das palavras do vigário; lembrara-lhe que mais de um rio de sangue já havia passado sobre as ofensas das duas famílias e nada mais devia existir entre os seus parentes e os seus rivais.
O velho pai respondeu-lhe, porém, com o laconismo da intransigência:
— Os Feitosas são homens que insultam mulheres, que assassinam as crianças dos seus inimigos; não serei eu, nem filho meu, que os perdoe.
— Então não há nenhuma esperança?
— Nenhuma - suspirou tristemente Irena -, e tenho vontade de dizer-lhe que o melhor para nós ambos é o esquecimento. Mas...
— Não pode - continuou Eulália. - E assim mesmo quando se encontra um embaraço.
— Não posso, minha amiga, não posso.
Pôs-se então a dizer com que profunda dedicação amava Feitosa. Foi através de dois séculos de ódio, separados por um rio de lágrimas e sangue, em cuja correnteza boiavam cabeças decepadas de anciãos, de mulheres e de crianças, recordações tristíssimas das cenas mais bárbaras, destroços de habitações, novelos de fumo ainda prenhes de labaredas de incêndio; foi através da antipatia mais arraigada que se viram. Foi isto em janeiro, em uma procissão de preces. Feitosa estava na paróquia havia poucos dias e era o alvo dos comentários de todos, e só por isso levantou os olhos para ele. Os seus olhares se encontraram, os seus cabelos loiros e a pele muito fina, suando sangue, impressionaram-na. Pareceu-lhe não ser um Feitosa, mas um gêmeo seu, com a mesma alma tímida, com a mesma índole condescendente. Desde logo Irena sentiu que ele também se impressionara consigo, e, de volta da procissão, olhavam-se com um olhar comunicativo, sem sombras, quase sem receio, prestes a ser íntimo.
Em fins de janeiro, Rogério Monte deixou por alguns dias o povoado, para ir até a fazenda, e Irena ficou em casa de Queiroz, onde, pela primeira vez, falou com Augusto Feitosa. As poucas palavras que trocaram entre si foram uma revelação invencível, espontânea, partida ao mesmo tempo de ambos, ardente, expansiva, irredutível. Só mais tarde, quando já a saudade alimentava-lhes a paixão, quando o impulso do coração desmoronava os brios tradicionais, pensaram na rivalidade das duas famílias. Feitosa jurou imediatamente contrapor a espontaneidade do seu afeto à resistência dos seus, mas Irena, certa de que era a única alegria do velho Rogério Monte, hesitou e tremeu pelo futuro. Deveria sacrificar ao egoísmo do coração a honra do pai? O amor respondia-lhe peremptoriamente - sim! Mas a piedade filial aconselhava-lhe que - não! Pensou então em suplicar-lhe, em demovê-lo do pensamento mau que lhe pairava como ave agoureira sobre a integridade do caráter, mas não teve coragem de levar por diante a sua tentativa, porque viu alevantar-se ameaçador, intransigente, o ódio vivaz com que o velho tinha sido aleitado, embalado na meninice, alimentado na mocidade. O seu espírito condescendente conciliou por um adiamento as dificuldades da sua posição, e Irena deliberou continuar clandestinamente a amar Feitosa, apesar de seu pai.
Um dia o noivo falou-lhe em fugir, e tremeu depois da sua revolta. Pediu-lhe que a deixasse, que não a quisesse perder, assassinando seu pai; mas aos poucos a certeza da intransigência paterna habituou-a com o triste pensamento, e foi ela mesma quem, mais tarde, disse que às vezes tinha vontade de fugir.
— E o que há de por fim acontecer - concluiu Irena, enxugando as lágrimas que lhe borbulharam incontinenti.
Osilêncio interpôs-se de novo à confidência, e os vaivéns da rede tornaram-se mais fortes, fazendo ranger a corda nos armadores. De espaço a espaço ouviam-se as risadas e os protestos de Chiquinha, arrebatada no calor do jogo, e a barulhada de todas as vozes, comentando a mão acabada.
— Penso mal, não é, Eulália?
— Não sei, filha; se não houver outro remédio!... Mas pense bem primeiro; talvez se faça por gosto dele: pense bem.
— Qual! - murmurou Irena, meneando a cabeça. - Meu pai não volta atrás o que diz.
— Você está resolvida então?
Irena afirmou com o gesto, mal contendo os soluços, e escondeu a cabeça nos punhos da rede, para ocultar da amiga o rosto envergonhado. Eulália calou-se amigavelmente e, inclinando-se sobre Irena, beijou-lhe a face escaldada pelo pudor.
— Eu também resolvi ainda agora uma coisa contra o vigário - disse Eulália. - Não o quero aturar mais.
— Continua com os seus modos? - perguntou Irena.
— Cada vez mais desabridos; eu sou o seu adufe.
— Mas de onde tirou o vigário estes modos com você, ele que a estimava ternamente?...
— Agora - disse Eulália, sorrindo tristemente -, eu calculo para ser estimada, como da outra vez eu faltava o respeito à religião junto do andor de Nossa Senhora.
— Você calcula? E que ele ainda está doente. Mas você por que não diz isto a seu pai?
— Eu?! - disse Eulália sobressaltada - Nem com você podia falar: foi um segredo do confessionário.
— Ah!
Quando reataram a conversação, Irena parecia alucinada; o seu coração impoluto, ferido pelo golpe desfechado em sua amiga, atinou facilmente com a causa das descortesias insensatas do vigário. Foi com um abraço estreito, com um beijo, longo como o seu sofrimento, que ela começou a revelar à amiga a sua suspeita.
— Você vai ficar mal comigo, Eulália, vai abandonar-me.
— Está doida, menina! - respondeu Eulália, com uma erupção brusca de jovialidade. - Olhe, o melhor é abreviar antes de tresler.
— Antes estivesse doida; mas infelizmente sou eu quem está sendo motivo para seu sofrimento!
— Você?
— Sim; eu pelo Augusto.
— Ah! Que malvado é o tal sr. vigário!
— Você bem disse que nós somos bem infelizes! Eu sou a culpada do que você sofre.
— Você? Que culpa tem você de que eles julguem mal os outros? Deixa-os ! Eu serei sempre sua amiga.
— Mas é preciso desconvencer o vigário, dizer-lhe que se enganou.
— Se eu pronunciasse o nome de Augusto era pior ainda: aquele homem é um perverso.
A última frase foi acentuada com o amargor da convicção, e a fisionomia de Eulália testemunhava a sinceridade com que fora ela proferida. Dir-se-ia que a filha do professor estava pronta para abrir luta com o maior amigo de seu pai; que lhe pagaria ofensa por ofensa, descortesia por descortesia. Mas o eco da voz de Paula penetrou, como um espião, dentro do quarto, e trazia umas palavras cheias de doçuras para o coração de Eulália.
— Onde estão as meninas? - perguntara o vigário.
— Enterrando os vivos e desenterrando os mortos - respondeu Queiroz. - Estão fechadas no quarto a conversar... Aproveita a vaza, Ana, não há mais trunfo fora.
— Contou mal, contou mal! - gritou Chiquinha, rindo muito. - Cá está o valete.
— E aqui um reizinho, minha filha, e você bem sabe que o rei mata.
— Mas não faz a gagosa, não passou escoteira.
— Paciência, mas vocês tomaram capote.
— Boas! Conte.
A voz de Queiroz continuou a penetrar no quarto de Eulália, agora com ecos da contagem, e afinal exclamou o professor:
— E quatro, oitenta e nove, e dois, noventa e um! Passa o capote ali para o vigário.
— Que grande coisa! Quando se está infeliz, tudo acontece.
— Tem razão - interveio Paula -, eu ia ainda agora morrendo.
Eulália, contendo a tempo um grito, buscou esconder a Irena a sua comoção, e perguntou-lhe sorrindo, com a sensaboria da dissimulação:
— Ouve o que ele está dizendo? Que ia morrendo... Irena, que levantara os olhos para a amiga, ficou assombrada de ver como estava descomposta a sua fisionomia.
— O que tem você, Eulália?
— Nada!... não sinto nada.
— Mas está tão pálida!
— É que eu não posso ouvir mais a voz do vigário; mas isto passa. Vamos lavar o rosto, porque você também está com os olhos pisados.
— É como lhes digo - continuou Paula -, fui assaltado pelo Joaquim Maluco, que me obrigou a voltar acompanhado.
Eulália lavava-se sofregamente e apressava Irena, como se lhe quisesse comunicar a própria impaciência.
Quando acabaram:
— Vamos para a sala - disse ela -, antes que nos chamem. Evitamos alguma graça do sr. vigário; principalmente eu.
Entraram na sala e depuseram os seus beijos respeitosos na mão de Paula, que prosseguia em historiar a cena da tarde com o doido.
— Aquele é um perigo para você, vigário - ponderou Rogério.
— É pedreiro livre - riu Francisco de Queiroz -, inimigo do altar.
— Ora, o que se lhe há de fazer? Há maiores doidos que vivem e ninguém os incomoda. Não concorda, não pensa do mesmo modo, d. Eulália?
— Mas esses outros são mansos - respondeu a moça; não querem matar os outros de emboscada.
— É exato, há diversos modos de ser doido.
Quem olhasse atentamente para Eulália veria quanto fel semelhantes palavras lhe haviam coado no coração. Mas felizmente para o vigário só Irena compreendia o amargor que as repassava, e esta limitava-se a desesperar com a sua amiga.
Paula demorou-se pouco; viera só deixar a perplexidade no espírito de Eulália, de certo ainda impressionada pelo que se passara na horta. O efeito estava produzido com mais eficácia do que tinha calculado. Saiu, pois, satisfeito, com o seu passo firme e pausado.
Rogério Monte entendeu também que devia cessar o jogo, e tomou o chapéu.
— Perdoe-me o que eu lhe faço sofrer - disse Irena, mal contendo as lágrimas.
— Não me faça padecer mais, Irena; que tem você com isso ? Você faz-me detestar ainda mais aquele miserável.
Maio entrou pela paróquia com a tristeza profunda de um féretro. Os dias ardentes, mas de uma claridade mesta como a chama dos brandões funerários, envileciam o seu brilho. esbatendo-se em quadros lutulentos.
Não havia pôr-de-sol em que o povoado não visse passar, sujos como as enxurradas do inverno, grupos de emigrantes misérrimos, em cujos semblantes transpareciam, com a mesma intensidade, as torturas da fome e da saudade do torrão natal abandonado.
O Engenho, com as suas lendas supersticiosas, com o seu aspecto sombrio de crasta alumiada por uma fraca lâmpada tornou-se ainda mais tristonho: parecia um corvo colossal cobrindo com a asa negra desmesurada a sua pútrida carniça. Os seus arredores exalavam o cheiro nauseabundo das sentinas não desinfetadas, o seu interior tresandava as exalações dos curtumes. Já não era a multidão despreocupada, sussurrante, feliz, ávida de contentamento, quem o enchia a transbordar, dando alma às ruínas, evocando-lhes o passado pletórico de vida dos tempos do poderio da família dos seus possuidores. Enchia-o agora a inundação da miséria, o vômito da esterilidade do sertão, gente seminua, cadavérica, faminta, que era atirada pelo cansaço por sobre os seus entulhos, como o náufrago moribundo cuspido pelo mar no lodaçal de um mangue.
A vasta área, que serviu de cenário ao espetáculo do Feiticeiro, estava agora dividida em muitos cubículos, feitos pelo envaramento de ramagens, que recatavam-lhes o interior com a folhagem seca. Nos claros deixados, viam-se aqui e ali lareiras improvisadas por três pedras soltas, sobre as quais as panelas negras de fuligem ferviam para escaldar o tapichã, enquanto a lenha, apenas emurchecida, chiava, deitando novelos de fumaça, debaixo da qual a chama vacilava em crescer, como se o próprio fogo se houvera tornado preguiçoso. Em torno das lareiras ou dos borralhos extintos, as crianças quedando sentadas, com a resignação hereditária do cearense, lembravam grandes entranhas acocoradas à beira do brejo.
O efeito moral da população adventícia no ânimo da paróquia prostrou-a num abatimento invencível, e, além disso, o tifo começou a tomar um desenvolvimento epidêmico. Pairou então sobre o povoado o ar consternado do penitente na noite do oratório. Via-se condenado a morrer por uma sentença irrevogável, porque a fatalidade pusera-lhe estreito cerco. De um lado, o sertão trasbordava, de outro lado, assustadoras notícias de Aracati diziam que, em quase todas as cidades e povoações, a morte engordava nas hecatombes da fome.
A intensidade do horror tinha sugerido uma crueldade atroz ao instinto de conservação da paróquia, tanto mais vivaz agora que a frialdade da cova já invadira, em parte, pelo terror.
O Feiticeiro e vários retirantes haviam abandonado o Engenho, deixando alguns deles a mísera família abandonada à desgraça, sem que ao menos lhe dessem, por despedida, uma palavra de conforto. Um pensamento ocorreu logo a todos e impôs-se como certeza. A fama dos Viriatos dos Cariris tomava grande vulto na voz pública; contavam-se já façanhas medonhas dessa quadrilha de ladrões, que se aliara com o flagelo da seca para levar a ruína e a miséria aos cearenses. Onde o sol abrasador, os ventos impetuosos e áridos não podiam chegar, penetravam as mãos dos bandidos; o que não conseguiam as moléstias reinantes, faziam os seus punhais cegos e desapiedados, que eram a guarda de honra que lhes garantiam as suas espoliações.
Falava-se muito também do desaparecimento de muitos homens de força provada, de agilidade aclamada. De um dia para outro ninguém mais os descobria: partiam sem deixar rasto, como se o chão os houvesse tragado. Começou-se, pois a suspeitar que esses homens eram voluntários que se iam alistar na temível quadrilha dos Cariris. A paróquia inteira, portanto, ao saber da fuga dos retirantes, volveu os olhos para as bandas de sudoeste, onde se levantavam com um azul de turquesa os picos da cordilheira infestada pelos Viriatos.
Alguns indícios apagados, mas ainda assim conducentes a justificar a suspeita, ficaram após os fugitivos. Durante muitos dias o Feiticeiro pareceu olvidar-se das suas cobras, que puderam dormir e enfurecer-se à vontade nas suas estreitas gaiolas. O homem misterioso tinha sido invadido por uma piedade estranha pelos miseráveis que co-habitavam o Engenho, e distribuía esmolas pelas crianças. A sua bolsa tornou-se o complemento da do velho Monte, a cujas expensas se mantinham os retirantes. Rompera-se carinhosamente o seu antipático silêncio; sorrisos paternais desbastavam-lhe a aspereza hostil do semblante: fizera-se conversador e tratável.
A seu convite, os homens mais valentes passavam as tardes a provar forças e travavam lutas corpo a corpo, porfiadas, e até algumas vezes ameaçadoras a ponto de ser necessária a intervenção do seu promotor.
— Eh! - resmungava o Feiticeiro. - Isto é só para desenferrujar para as viagens: não é de vida ou de morte.
Dois dias antes da fuga, o homem misterioso, conversando à tarde, tinha dito aos ouvintes:
— Homem! Vocês têm ouvido nomear uns tais Viriatos ?... É gente para se ter respeito - continuou ele após a resposta afirmativa; - é gente de pegar: onde eles chegam, fecha-se o tempo.
— São ladrões desabusados - disseram entre os ouvintes -, má casta de gente.
— Vingam muitos pobres inocentes - replicou o Feiticeiro - chamados ladrões por tirar uma cana, e às vezes ratada.
— Lá isto é verdade - concordou o grupo.
— E aqui mesmo há exemplo - continuou o Feiticeiro -, há muita gente que passa por ladrão sem nunca ter furtado nem a porção de açúcar que uma formiga carrega.
— Muita verdade, muita verdade, tio Luís - responderam;
— lá em Inhamuns toda a gente fala no Virgulino; ele que o diga.
Os olhos voltaram-se todos para o homem que na sacristia entregara o cordão de ouro ao vigário Paula, em paga da sepultura do seu sogro.
— Ora o que lá vai, lá vai - ponderou Virgulino -, para que falar mais nisso?
A insistência do grupo obrigou-o, porém, a vir em auxílio das suas palavras
Tinha sido morador num sítio de criação, e ali nunca houve nenhum vaqueiro mais estimado. Era como um filho da casa, confiariam dele montes de ouro em pó. Todas as tardes o filho mais velho do situado vinha prosear no seu rancho e balançar-se na rede da sala, contando histórias divertidas, muito de se ouvir, porque ele tinha ido a estudos na Fortaleza. Era, em suma, um rapaz da praça, bem falante e muito floreador. Virgulino recebia-o em casa sem diferença de irmão; ele e o Anacleto, que os ouvintes estavam vendo, eram uma e a mesma coisa. Mas, uma tarde, o moço adiantara-se com uma das irmãs de Virgulino, que, ao ver semelhante desacato ao seu pundonor de cearense, ainda teve prudência de lhe dizer acomodado:
— Mais devagar, amigo; guarde esses modos lá para a praça, quando for ao Ceará.
A resposta foi de ferver o sangue:
— Cala boca daí; tomara você que eu a queira.
Uma onda de indignação engoliu de um trago a prudência do vaqueiro, e, fora de si, rugindo injúrias pungentes, agrediu o rapaz temerário, espalmando-lhe uma tremenda bofetada.
O covarde vacilou, bamboleou e rodou por terra, onde o foi subjugar a cólera de Virgulino, que, por desprezo, cuspiu-lhe ainda na face. A vingança não demorou a se fazer sentir atroz, quanto fora brutal a afronta. O próprio pai do rapaz, o velho situado, abriu-lhe na fronte a cruz infamatória, corrente fatal de galé que nada pode quebrar, porque os seus elos são fundidos com o próprio sangue do condenado.
— Eis ai por que eu sou apontado como ladrão - terminou Virgulino.
— Mirem-se agora neste espelho - exclamou o Feiticeiro - e tenham raiva aos Viriatos.
E, prosseguindo com a sua voz pausada, enrouquecida, o Feiticeiro comentou a cena da igreja e a pouca piedade da paróquia.
— O velho Monte não pode sozinho matar a fome a mais de cem pessoas; dá o que pode o bom do velho, mas os outros nem um real! O sr. vigário nem confessa a gente, e dá a comunhão; mas a hóstia santa e o gole de água não matam a fome ao cristão. Aqui é como se vê sempre: a presença do pobre não faz dó, mete medo; o rico pensa logo que o infeliz o vem roubar. Eu não vivo da esmola; vivo do veneno das cobras. O veneno é menos cruel do que a esmola. Não preciso de rogar o bocado para a boca. Por isso mesmo não me vexo com o desprezo de todos; não sinto que olhem para mim como para um pesteado. Mas vocês...
A voz do Feiticeiro tomou então uma acentuação lúgubre. Enrugou-se-lhe a pele do rosto entre os supercílios, e os seus olhos vermelhos, meio ocultas as pupilas no sobrecenho carregado, luziram como duas brasas.
— Não posso ver o que se está passando – continuou ele -, os homens são irmãos e um não deve morrer de fome à porta do outro. Nem ao menos dão o pano para mortalha; os mortos não merecem mais um bocadinho de respeito. Eis a razão por que eu não odeio os Viriatos; quem tem medo de dar uma cuia de farinha ao pobre, quem teme que esta obra de caridade lhe traga a fome em casa, é bem que perca tudo, e venha a sofrer o que os pobres sofrem. Os ouvintes ficaram profundamente impressionados; e alguns ponderaram, para significar a sua aprovação às palavras do Feiticeiro:
— E a verdade é que eles não fazem mal aos pobres.
— São o castigo de Deus - acrescentou o Feiticeiro.
Dois dias depois, dera-se a fuga, figurando no número dos fugitivos o Feiticeiro, Virgulino e seu irmão. O mistério do seu desaparecimento propagou o terror por todo o povoado, que não acreditava que fosse possível alguém abandonar a família moribunda, desamparada, a não ser pela alucinação de um crime.
O Feiticeiro passou, portanto, a ser considerado um ladrão, e o povoado ficou à espera para repelir o seu assalto.
Antão Ramos, que era o mais diretamente ameaçado, teve então uma idéia, que em outra qualquer ocasião ele mesmo só julgaria digna da fria perversidade de Marciano. O atemorizado inspetor passava os dias a olhar para as pilhas de carne e para os sacos de farinha, e estremecia, como se a sua imaginação lhe pintasse os ladrões sentados a rir, a mofar da sua consternação, enquanto os seus molares afiados mordiam os seus gêneros. Torturado por tão lutuoso temor, Antão Ramos foi ter com o vigário para merecer-lhe um conselho.
— Na minha qualidade de inspetor - perguntou ele -, não posso mandar retirar esta gente que está no Engenho?
— Homem, tudo se pode fazer; a questão é querer.
— Pois então eu vou fazê-lo; não é por desumanidade, sr. vigário, mas por cautela. Os outros fugiram, estes podem querer vir arranjar-se aqui mesmo no povoado. Não acha que previno um grande mal?
— E se os que fugiram estiverem aí por perto?
— Qual ! Nesta não caíam eles.
— Homem, lá diz o rifão: o melhor para o ladrão esconder-se é mesmo na casa em que roubou. Os homens viriam então saquear o povoado.
— Neste caso havemos de morrer aqui pesteados por esses diabos?!
— Há ainda um outro recurso.
— Qual é? Diga pelo amor de Deus, sr. vigário.
— Deitar fogo ao Engenho, deixá-los ao tempo - respondeu Paula serenamente.
O conselho de Paula avultou como um dom sobrenatural no espírito de Antão Ramos. Achou nobre, justa a monstruosidade sugerida e, num transporte de expansibilidade, atirou-se-lhe ao pescoço, a abraçá-lo calorosamente.
— Vossa Mercê é um homem de cabeça; está tudo feito exclamou o inspetor; - foi um excelente achado, uma riqueza.
— Não parece mau - ponderou Paula. - Eles cozinham debaixo do casarão; uma brasa esquecida, o Engenho muito velho, o vento da noite explicam tudo.
— E vão lá saber - sorriu o inspetor.
— A gente mostra-se triste, insiste com eles para que fiquem, eles relutam, partem e.. . acabou.
— Olhe que Vossa Mercê sempre é.... Melhor só Deus a engenhava. Muito boa!
E alegre, pojando o seu egoísmo em risadas e oferecimentos, Antão Ramos, com os braços cruzados sobre as costas, sacudindo-se morosamente, contemplava Paula. A fecunda espontaneidade dos seus alvitres, que honrariam uma longa reflexão, espantava o inspetor, que não se fartava de olhá-lo muito e insistentemente.
— Olhe, sr. Antão, não vá pensar que lhe dei o conselho por ter mau coração!...
— Nem eu penso, nem ninguém. Vote! Pensar mal de quem nos livra dessas pestes? Nunca! Eu sei, eu conheço Vossa Mercê.
— Obrigado; mas saiba que eu não lhe aconselharia coisa alguma, se o Evangelho não dissesse: "A árvore, que não dá bom fruto, corta-se pela raiz".
— Sim, senhor; e ninguém pode negar que, se essa gente continuar aqui, o povoado está perdido. As febres já aí andam.
— Pois é ter coragem. Você é a única autoridade que ficou entre nós; proceda como deve.
Antão tomou o seu chapéu para sair, e estendeu ao vigário a sua mão de sertanejo robusto.
— Perdoe-me; são horas, e eu vim cá num pulo. Por entanto, sr. vigário, Deus lhe agradecerá.
— Amém - respondeu O vigário; faça-o, eu encarrego-me do mais.
— Por entanto...
— Adeus, Antão Ramos.
Depois da saída do inspetor, o vigário impressionou-se profundamente; mas não demorou a espairecer e a reintegrar-se na sua indiferença habitual. Recostou-se na rede a fumar e a cantarolar um salmo, e em pouco tempo adormeceu acalentando com os vaivens suaves a quebreira canicular.
Não o deixaram gozar por muito tempo o tranqüilo repouso. O velho Marciano veio procurá-lo, porque pediam o Sacramento para o Engenho, e o pequeno José, o timorato criado, entrou pé ante pé pelo quarto a fim de chamar Sua Mercê.
— Sr. vigário - murmurou o pequeno, vendo-o acordar meio estremunhado -, é o sr. Marciano quem está chamando para Vossa Mercê ir confessar no Engenho.
— Raios te partam, demônio. Não me acordes nunca para dizer tolices.
Marciano, que estava na sala, repetiu o chamado, e acrescentou:
— Tenha paciência, sr. vigário; quem se aluga a S. Miguel...
— Quer saber de uma coisa, Marciano? Nem sempre se está para brincar - respondeu Paula rudemente. - Diga lá a quem lhe trouxe o recado que eu não saio com esta soalheira; se quiser traga cá à igreja o doente.
— Foi isto o que eu disse ao portador. Não se zangue Vossa Mercê; eu vou já.
Marciano saiu cortejando o vigário com a inalterável boa vontade do seu aviltamento, e na porta de casa passou adiante as palavras desabridas do vigário.
— E se quiser - concluiu ele respondendo às objeções do portador do recado. O sr. vigário não há de ir por este sol fora dar tamanha caminhada.
— Mas a doente não pode também apanhar este sol: morrerá antes de chegar à igreja.
— Espere então para logo mais; com a fresca da tarde, talvez lhe faça bem. Até logo, ou até já, como quiser.
O portador voltou desconsoladamente ao Engenho, e, entrando em um dos cubículos, acercou-se de uma rede, onde uma pobre mulher arquejava sobre a umidade de dejeções disentéricas, e disse-lhe à meia voz:
— Não é melhor que você espere mais um pouco, até de tarde, para tomar o Nosso Pai?
A enferma sacudiu a cabeça, e a sua voz muito fraca murmurou tristemente:
— Já, já.
— Mas é preciso que a levemos lá; o sr. vigário não pode vir até cá: está muito quente o sol.
— Eu vou - disse a moribunda; - é melhor até ser na igreja, levem-me lá.
O homem, enxugando silenciosamente os olhos, saiu a pedir o auxílio de alguém, a procurar um companheiro. Os miseráveis habitantes do Engenho puseram-se todos à disposição do infeliz.
— Pronto - disse o primeiro a quem falou.
— Prontos - ofereceram-se os que o ouviram.
O nobre coração cearense revelava-se inteiro em tamanha espontaneidade. A desgraça encontrava ainda a fraternidade dos tempos prósperos, em que surpresas delicadas vinham honrar o trabalho e arraigar o sentimento de solidariedade entre os vizinhos. Corria a notícia de que um amigo andava a convidar gente para fazer uma derrubada. Calavam-se os vizinhos e, certos do dia em que devia começar o trabalho, lá iam de véspera invadir a mata com os golpes dos seus machados e foices, afiados pela amizade a mais sincera. Quando o proprietário levava a sua gente para o trabalho, mãos desconhecidas já o haviam feito.
Foi este sentimento o que ouviu o pedido do esposo da moribunda.
Os preparativos para a condução da mísera crente não demoraram. Dentro em meia hora dois homens colocavam sobre os ombros uma rede asseada, e, seguidos por quase todos os habitantes, subiam a colina, ao som do canto tristíssimo do Bendito.
A natureza em torno, silenciosa na sufocação da canícula, as carnaubeiras, perfiladas aqui e ali, pareciam grandes pontos de admiração, comentando a cena compungente. Os milhares de focozinhos radiantes, feitos pelo sol nos seixos do areal do Jaguaribe, pareciam miríades de olhos esgarados para verem o requinte da crueldade clerical. Mas os trapilhos, os exilados não participavam da indignação da natureza; absortos na assonância do cântico lúgubre e sentido, limitavam-se a invocar a piedade divina para a infeliz que se avizinhava do túmulo, e cantando, pedindo e prometendo perdão, fizeram a sua entrada tristonha no povoado, que se consternava sem poder explicar o que via.
O vigário não se perturbou, apesar dos olhares interrogativos e dos cochichos que o hostilizavam na passagem pelo corpo da igreja. Relanceou o olhar indiferente sobre o grupo que cercava a rede, e disse:
— Tragam a doente para junto do confessionário.
O esposo infeliz ajoelhou-se para tomar nos braços a moribunda, e, como esta olhasse com uma fixidez assustadora, inclinou-se muito e perguntou-lhe quase ao ouvido:
— Não está melhor, não, minha velha?
E acrescentou em seguida:
— Vamos para junto do confessionário, sim?
A moribunda nada respondeu, e nem sequer pestanejou; os seus olhos, brilhantes como a malacacheta, conservaram-se imóveis, nessa estagnação contristadora que gera o pavor do túmulo e dá ao moribundo o ar de quem escuta atentamente um ruído longínquo.
— Eu creio que ela já não ouve - exclamou o marido; - não me responde. Chamem depressa o sr. vigário, depressa.
Um sussurro piedoso acolheu as palavras do infeliz, e diversas pessoas saíram apressadas para chamar o vigário.
Paula já havia saído da sacristia e, revestido com a sua sobrepeliz, atravessava o corredor que desembocava na capela-mor.
O sussurro promovido pelas palavras do retirante chegou-lhe aos ouvidos e fê-lo sorrir mofareiramente.
— O que vem a ser isto?
— Toleimas - respondeu o sacristão; - estavam a dizer que Vossa Mercê é que devia ir ao Engenho.
— Tanto melhor para eles - respondeu encolhendo os ombros; - não me faltava mais nada.
Paula caminhou até o confessionário e daí, com o seu tom rude, disse em voz alta:
— Então não trazem a doente?
Responderam-lhe que ela não podia mais ser ouvida de confissão; perdera a fala.
— Dá-se-lhe a extrema-unção - ponderou desdenhosamente.
E caminhou até junto da rede.
Comprimindo as narinas entre o polegar e o indicador, o vigário começou a administrar o sacramento, e, tendo de aplicar os santos óleos, disse dirigindo-se ao marido da infeliz:
— Veja se pode levantá-la.
— Hei de poder, sr. vigário, hei de poder; mas vou incomodar a coitada. Se Vossa Mercê pudesse agachar-se um nadinha?...
— Sim, sim, posso; incomodo-me eu.
Marciano sorriu quase imperceptivelmente, aprovando a ironia do protetor da sua filha mais velha e seu compadre. Os outros espectadores não tiveram tempo de perceber a finura da sátira característica do seu pastor espiritual.
Quando a cerimônia religiosa terminou, deixava um cadáver estendido sobre o pavimento do templo.
— Que fedentina - ponderou o vigário, desrevestindo-se na sacristia. - Vamos ficar com a igreja empestada. É preciso lavar aquele lugar e queimar incenso.
— Sim, sr. vigário - disse o sacristão -, mas se todos os dias vier algum doente confessar-se...
— Não, havemos de remediar isso; eu vou ver o que devemos fazer.
Neste momento o triste enviuvado parou à porta da sacristia, pedindo licença para entrar. Vinha pedir à Sua Mercê licença para que o corpo ficasse depositado na igreja. Era trabalho penoso reconduzi-lo para o Engenho. Não o dizia por si mas pelos seus companheiros que não tinham obrigação nenhuma. Já muito lhe haviam feito, subir de cabeça acima a colina, por este sol danado, carregando o peso de um corpo. O sr. vigário de certo lhe faria o grande favor de consentir que o corpo ficasse em depósito.
— Por mim, filho, pode ficar - retorquiu Paula -, mas não sou eu quem cuida de abrir e fechar as portas da igreja; é ali o Marciano; fale com ele.
O velho sacristão, que estava dobrando a sobrepeliz, voltou-se bruscamente, e, depois de olhar para o vigário que se fingia distraído, disse timidamente:
— Vossa Mercê bem sabe que eu não vivo só de ser sacristão; tenho outros ganchos, e não os posso perder para ficar vigiando a igreja. Mas Vossa Mercê manda...
— Eu nada tenho com isso; é lá entre vocês dois - respondeu o vigário.
E tomando o seu chapéu redondo, de grandes borlas pretas, afastou-se batendo cadenciadamente com os tacões um passo firme e regular.
No corpo da igreja, porém, Paula foi obrigado a parar para falar com Rogério Monte que, depois de cumprimentá-lo, pediu-lhe para consentir que o cadáver ficasse depositado na igreja, pelo menos até a tardinha.
— Pois não! - respondeu Paula prazenteiramente.
E voltando-se para um dos espectadores:
— Diga lá na sacristia ao Marciano para deixar ficar o corpo.
— Pobre gente, meu Paula! - ponderou Monte.
— É verdade - murmurou o vigário - Desgraçada gente!
O velho Marciano, com todo o império de um sacristão ínfimo do sr. vigário, já havia respondido com um não redondo às súplicas do viúvo, quando lhe chegou o recado de Paula.
— Graças, meu Deus! - exclamou o viúvo, ouvindo o portador - Graças!
— Agora, sim senhor - advertiu-lhe Marciano; - manda quem pode.
O ajuntamento foi rareando gradativamente, e dentro em uma hora apenas eram vistos no templo o cadáver, muito espichado no pano azulado da rede, com uma vela amarelada à cabeceira, e algumas pessoas que ficaram de quarto com o viúvo.
Os paroquianos, porém, continuavam a comentar o procedimento do sr. vigário. Era incompreensível. A seca ainda não tinha dado senão os primeiros passos, e já ele, agoureiro como as corujas, pregava apontando-a como um castigo sem esperança de perdão. O seu olhar surpreendeu no desconhecido os horrores do futuro e desdobrou-os na pungente nitidez dos seus contornos. Daí a ineficácia das preces, onde o arrependimento bracejava, náufrago no oceano tenebroso da indiferença divina. Mas ainda assim esse congraçamento de lágrimas e dúvidas, de dores e desesperanças, esse caos de agonias que se enovelavam e se distendiam, afundavam-se e sobrenadavam, enoiteciam e clareavam no seio insondável do desconforto, dava à paróquia a solidariedade da desgraça, estendia por toda ela a mesma sensibilidade, como na circunferência de uma água-viva. Paula, não obstante, suprimiu as preces, como se quisesse interpor-se à terra e ao céu, separando-os para sempre com o esplendor dos dias estivos, fatal como a claridade bíblica às portas do paraíso. Não satisfeito ainda, voltou as costas a todos aqueles que precisavam do seu olhar de sacerdote cristão, para minorar os padecimentos da sua desventura. Era inqualificável tanta crueldade, e o próprio Marciano já resmungava à porta do templo:
— Eu posso perder o meu dia de trabalho, mas os sete palmos de terra não se dão de graça.
— Vamos nós tirar uma porção? - ponderou um grupo estacionado a pouca distância da igreja.
— Só assim não veremos outra cena igual à de hoje: um moribundo não ter quem lhe vá levar Nosso Pai e vir morrer na igreja.
— E o melhor; falemos nisso ao velho Monte, e se ele quiser está tudo feito.
Na mesma tarde começou-se a tratar da porção, ou subscrição paroquial para aumentar a côngrua do sr. vigário, caso ele quisesse encarregar-se de todo o trabalho, ou então para contratar um coadjutor.
Paula, informado da resolução dos seus paroquianos, que era uma tácita censura ao seu procedimento, não aprovou nem desaprovou, mas refletiu secamente:
— Eu não preciso que me ensinem o caminho a seguir; só eu posso regular o meu procedimento, enquanto for vigário.
O seu despeito mostrou-se mais acentuado ainda à tardinha. Foi à igreja e aí, em face do cadáver já amortalhado, subiu ao púlpito para encetar uma nova série de práticas. Pôs-se a discorrer; mas em meio da descrição do quadro contristador da paróquia, seviciada pelo sol, estrangulada pela canícula, empestada pela febre, vendo-se aqui o luto - hóspede forçado em quase todas as moradas - acolá o terror - companheiro sombrio de todos os homens -, por toda parte o pensamento do exílio emboscado em todas as consciências, Paula suspendeu a sua torrente de horrores. Lembrou-se do conselho dado a Antão Ramos, e imóvel, com os braços levantados, os olhos fitos na telha-vã da nave, o semblante ensombrado por um recolhimento ascético, lembrava os antigos profetas invocando o Deus de Israel. Só depois de longos minutos de espanto e de contrição dos ouvintes continuou a falar, mas agora com a hesitação dolorosa que é às vezes a eloqüência da sinceridade, e outras a arma da perfídia.
Sonho ou realidade, disse, acabava de esmagá-lo uma visão tremenda. Era um lugar para o lado do Norte, triste, abandonado, pouso das aves da noite, cercado de uma paisagem lôbrega. A vegetação combalida lembrava a floresta dantesca em toda a sua tristeza. Neste lugar ouviam-se queixas e gemidos de velhos e de crianças, que morriam, pedindo em vão socorro aos seus semelhantes, tanto ou mais desgraçados do que os que pediam. De repente um clarão enorme abrira-se nesse lugar de tantas dores e de tanta desventura. Espirais longas de fumo rolando pelo espaço, turbilhonantes como os anjos rebeldes na sua queda, embaciaram a transparência do espaço. Um fragor, soturno como o rodar de um ventilador, mas permeado de ruídos estridentes, fez-se ouvir e logo depois as labaredas vermelhas, assanhadas como um bando de cobras enclausuradas numa gaiola negra, relampejaram, colearam e ergueram-se faiscando sobre o pedestal de fumo. A multidão, que aí habitava, acordando em sobressalto, sem tempo ao menos para salvar os filhos, queria arremessar-se às chamas temerosas, e contida, subjugada, debatia-se na profundeza da sua imensa dor. A noite aqueceu-se no brasido enorme daquela rápida fogueira, e, ao amanhecer, os olhos viam caídos pela estrada, como se ao peso da maldição de Deus, dezenas de pessoas mordendo a terra, desconsoladas como a própria morte.
— Ninguém pode penetrar nos arcanos divinos – exclamou o vigário terminando. - O homem não tem olhos para sondar o futuro; o olhar se enturva se quer lobrigar alguma coisa nesses domínios da Providência.
A palavra restabeleceu-lhe a força moral em toda a sua integridade; fazia tremer como nas primeiras prédicas repassadas da poesia tenebrosa das superstições. O seu vulto excepcional cresceu até a sua altura de outrora, e foi triunfante que desceu do púlpito, que lhe dava maior majestade do que um trono.
A sua perspicácia percebeu logo a inteireza da reabilitação, e Paula, com uma solicitude e sofreguidão pouco habituais, procurou entre os fiéis o timorato Antão Ramos. Quando o encontrou fez-lhe sinal para segui-lo até a sacristia, e aí o conduziu para o recanto de uma janela.
— Está ainda disposto a fazer aquela obra de caridade?
— Não sei, sr. vigário - respondeu o inspetor -, falta-me a coragem. Pensei no caso; pareceu-me perversidade; não tenho coragem. Eu fugirei daqui.
— E a paróquia, e todos ficarão expostos ao roubo, ao assassinato, porque a autoridade não tem força para fazer o bem geral. É muita covardia.
— Seja, sr. vigário; mas eu tenho filhos e pensei que pode não haver tempo de salvar as crianças.
— Pense melhor, sr. Antão Ramos; eu sou um ministro de Deus e não lhe aconselharia um crime. Os seus filhos serão talvez as primeiras vítimas. Roubado você, eles terão a mesma sorte. Pense que a conservação própria é um dever.
— Eu sou fraco, sr. vigário, não tenho coragem.
— Não é necessária a mão do homem para fazer o que virá diretamente da mão de Deus. Pode ir.
Paula afastou-se e foi ajoelhar-se em frente ao Cristo que ornava a grande mesa da sacristia.
O seu rosto sereno, sem a mais leve comoção, o seu olhar claro, embebido nos do crucifixo, alucinaram o simplório inspetor. Não era possível que Paula o aconselhasse a uma perversidade, quando podia fitar desassombradamente a imagem de Deus.
Este pensamento conquistou-lhe o espírito e expeliu o receio piedoso que o enchia, dando corpo ás ameaças tremendas do vigário. Frio invencível percorreu-lhe o organismo; as pernas fraquearam-lhe, e, azoinado, sentindo arrepiarem-se-lhe os cabelos, o supersticioso inspetor caminhou até junto do vigário, que, parecendo arrebatado num êxtase, continuava a orar ao Crucificado.
— Eu vou, sr. vigário, vou já - segredou-lhe Antão Ramos -, não peça a Deus que faça cair sobre mim o sangue do povoado; eu vou, tenha piedade de meus filhos.
— A misericórdia de Deus não precisa do braço do homem, sr. Antão Ramos. O povoado será salvo pela graça do Onipotente.
— Não importa - resmoneou o supersticioso -, eu farei a Deus este sacrifício.
Levantaram-se ambos, e Paula, abraçando ternamente o inspetor, disse-lhe a sorrir:
— Está bem, meu amigo, acalme-se, o sacrifício, para ser recebido, deve ser feito de ânimo calino.
— Obrigado, sr. vigário, muito obrigado.
Os olhos de Paula foram então encontrar-se com os de Marciano, que a um canto da sacristia acompanhava atentamente a cena, sem poder compreendê-la. Esse olhar aguçado pela curiosidade fez estremecer o vigário.
— Marciano, vá acender as velas nos altares, e diga ao povo que eu vou rezar um responso por alma daquela infeliz.
O velho retirou-se, depois de acender uma vela junto ao Cristo, e os dois interlocutores puderam ficar sós.
— Eu posso detê-los por aqui por mais de uma hora; depois ainda há o enterramento; ninguém o verá, vá.
Antão Ramos saiu com o ímpeto da alucinação, enquanto Paula, sorrindo, vestia a sobrepeliz para ir rezar o responso.
— Hão de agora respeitar mais os meus atos, sandeus; não hão de resmungar mais.
Era já noite fechada quando o inspetor estava preparado para levar a efeito o seu sacrifício à guarda da paróquia. O céu, apenas estrelado, não tinha luz para alumiar o caminho, e Antão Ramos pôde tomar a direção do Engenho sem que ninguém o visse. Só a consciência ia-lhe ao encalço, pondo ruídos assustadores na folhagem das árvores, abrindo mil olhos nos troncos ressequidos, articulando psius indiscretos no rumor trépido dos matagais.
A superstição não o tinha investido da coragem necessária para ficar indiferente à revolta silenciosa do seu espírito contra si mesmo, e o inspetor estremecia, hesitava, corria, estacava, sentindo latejarem-lhe as têmperas, encandearem-se-lhe os olhos, tornarem-se-lhe trôpegas as pernas ágeis.
Uma secura de febre ressequia-lhe a boca e aportava-lhe a garganta com a constrição do terror.
De repente parou, como se o tivessem chumbado ao solo. Estava no começo do cemitério, e a massa negra do cruzeiro pareceu-lhe um embuçado caminhando ao seu encontro, com os braços abertos, como para estrangulá-lo. Perdeu de todo a coragem e encostou-se à cerca para não dar em terra, tonto pela aluvião de pensamentos monstruosos que o salteavam, como num pesadelo.
Um rugido de chocalhos fez-se então ouvir no profundo silêncio, e uma voz rouca, ecoando forte, gritou claramente:
— Arriba, arriba!
Longe de acalmar-se, a exaltação do inspetor deu a estes sons uma origem sobrenatural. Pareceu-lhe que todas as covas se abriam, e que um bando de esqueletos, levantando-se morosamente das suas tenebrosas moradas, caminhavam para ele, brandindo grandes archotes e oferecendo-lhos por escárnio: "Toma, toma; vai incendiar o abrigo dos desgraçados".
Quis gritar, mas o seu espanto não tinha voz; quis fugir, mas conservou-se imóvel, como se um laço inquebrantável o amarrasse ao pau-a-pique da cerca.
— Arriba, arriba! - ecoou novamente na treva, de par com o bater dos chocalhos.
Um estrépito soturno, demorado, de tropa morro acima, ressoou em frente ao cemitério, e na treva alvejaram os pelos brancos dos animais e as camisas dos freteiros. Mas Antão Ramos, no seu delírio, via nos que passavam seres sobrenaturais, e, vencido pelo cansaço, deu em terra com um corpo inerte.
A tropa, ressoando os seus chocalhos num passo cadenciado, subiu a pequena ladeira e entrou pela praça da paróquia a alegrá-la e a confortá-la.
— Boa noite!
— De quem? - perguntaram os transeuntes ao freteiro.
— Do imperador - respondeu o freteiro, o Marcelino de Silva, com a sua voz muito cantada e melosa. - É a esmola do imperador.
— Bom, homem, chega mesmo ao montar! Como vai por lá o Ceará? Houve chuva?
— Que esperança! Está tudo torrado e o povaréu vai por aí de cabeça a baixo que é até um destempero.
— Virgem!
— As carnaubeiras por aí fora estão num destroço; a força do povo deu nelas com a fome, que é uma calamidade... Ê como uma mata brocada.
— É de morte?
— Está no Aracati o andaço da febre e do desandamento da barriga: cai gente como folha seca. Mas parece que não há nada, porque o povo é como a cabeça d'água de uma enchente, transborda pela cidade.
— Forte desgraça!
— E como vamos por cá?
— Na mesma toada, homem; está de amarrar a alpargata; num mês já lá vão para mais de 20 ao cemitério. A gente cai para aí com um febrão que é um Deus te livre, e já se sabe que é ir comprar a mortalha. Em menos de quatro dias está lapeado. Na igreja está se encomendando uma cabra de Maria Pereira.
— Então acho lá o sr. vigário.
— Visto.
— Tenho uma carta para ele e outra para o Monte, com muita recomendação.
O comboio estacou à esquina da igreja para deixar passar o saimento do cadáver. Um facho junto da rede e outro no meio da multidão alumiavam o caminho aos habitantes do Engenho, silenciosos pelo respeito inato aos mortos. O vigário, sobressaindo na mó, com a sua batina de lila muito preta, aumentava a solenidade da cena.
O freteiro, que se havia apeado, caminhou para Paula, e, tirando o chapéu de couro e saudando-o, entregou-lhe a carta, em cujo sobrescito lia-se o S. P. dos ofícios do governo.
— Serviço Público - exclamou Paula. - Vejamos o que diz; chegue-me cá este facho.
O vigário sorria à medida que ia correndo os olhos pelo bastardinho cuidado da carta, e, terminando a leitura, exclamou alegremente:
— Muito bem; saibam que não passarão mais fome. Está tudo remediado. Você, Marcelino, vá ter com o José em minha casa e deixe lá a carga.
O freteiro, cavalgando de novo, tangeu a tropa na direção da casa de Paula, enquanto os que se tinham demorado apressavam o passo para ficar mais próximo do caixão mortuário.
Uma impaciência invencível começou então a torturar o vigário; com o olhar agudo, penetrante, investigava todas as moitas, e, de vez em quando, enganado por um ruído, dirigia-se à beira da estrada para espiolhar.
— Como que ouvi pisadas - dizia ele, ao ver-se enganado.
— Seria capaz de jurar que as ouvi.
— Pois é engano seu, sr. vigário - respondiam-lhe alguns curiosos da paróquia que o vinham acompanhando.
Paula, porém, não se distraía do seu cuidado, e, sem poder mais conter a causa de tanta solicitude, perguntou:
— Viram na igreja o Antão Ramos?
— É verdade - responderam-lhe -, não apareceu lá, apesar de gostar de espiar tudo.
— E não estava também na venda - acrescentaram.
— Oh! diabo - exclamou o vigário.
Mas contendo logo a sua exaltação, ajuntou:
— Eu que precisava tanto conversá-lo!
— Isto é algumas diligências que ele foi fazer - ponderou um do grupo, que sorriu maliciosamente.
À porta do cemitério, o vigário pôde resfolegar livre da impressão que, mau grado seu, o subjugava. Algumas pessoas correram até junto da cerca, e, com exclamações de dó, puseram-se a levantar um homem que estava caído.
— Tragam cá o facho - clamaram -, está aqui um homem expirando.
Paula foi o primeiro a correr para o grupo, mas, em vez de entristecer-se como os circunstantes, o seu semblante alegrou-se.
— Ah! - exclamou ele, aspirando uma onda de ar -Felizmente.
E, como reparasse que tinha chamado a atenção de todos, acrescentou:
— Tive um aviso mau a respeito deste infeliz.
— Está ardendo em febre!
— Foi um susto, isto há de passar; chamem aí quatro desses homens para conduzi-lo até o povoado. Um gole de água com aguardente é quanto basta.
E, entre dentes, resmungou:
— Pedaço de poltrão!
O freteiro, depois de deixar a carga em casa de Paula, foi bater à porta de Rogério Monte para entregar-lhe a carta que vinha do Aracati.
O velho, depois de reparar para o sobrescrito, agradeceu e despediu o freteiro, dizendo-lhe tranqüilamente:
— É do meu correspondente, muito obrigado!
Pôs-se a ler; mas em meio da carta a sua fisionomia perdeu repentinamente a serenidade, e foi com as mãos trêmulas, os olhos banhados em lágrimas a custo retidas, que Rogério concluiu a leitura.
— Cão! - exclamou ele - E eu que fiava-me tanto nas suas palavras!
— O que foi, meu pai? - perguntou de dentro a voz meiga de Irena.
— Nada, filha, negócios - respondeu Monte buscando modificar a entoação colérica da sua voz.
Irena, porém, amedrontada pelo tom rude de seu pai, tom de que ele se apenas servia quando falava dos Feitosas, correu para junto de Rogério. Ao vê-lo estremeceu pelo seu amor: o semblante demudado, as lágrimas, que marejavam-lhe e bailavam-lhe nas pálpebras inopidamente, eram o testemunho de uma dor profunda, e esta dor, pensava Irena, só lhe podia causar um Feitosa.
Saberia ele já da sua paixão condenada? Saberia que a vida de uma filha dos Montes dependia hoje do amor de Augusto Feitosa? Na véspera, seu pai tinha estado com o vigário, e bem podia ser que esse homem sem coração, cujos olhos seguiam os passos de Eulália, como a cascavel o rasto da vítima, tivesse surpreendido alguma coisa que deixasse perceber não ser Eulália, mas sua amiga, a amante de Feitosa.
A palidez dos cadáveres estampou-se no rosto de Irena, desde que lhe roçou a imaginação a ponta de semelhante pensamento. Paula não seria tão discreto que o ocultasse; gostava de ferir, e não se importava com a profundidade do golpe, senão para torná-lo maior. Seu pai já sabia do seu amor, pensou Irena; e foi com um tom suplicante, quase ajoelhando-se, que ela perguntou a Rogério:
— Está zangado comigo, meu pai?
— Não; não estou mal contigo, não, minha filha; mas deixa-me: quero ficar só. Deus te abençoe.
Irena saiu torturada pela suspeita desesperadora. Cada hipótese que figurava para explicar a repentina tristeza de Rogério ia enfarontar com o seu amor. Estava, pois, perdida, presa de um dilema horroroso: ou morrer, ou desonrar seu pai, que não lhe perdoaria nunca a profanação das tradições da família. Uma aluvião de pensamentos contraditórios tripudiavam sobre a sua exaltação. Ora via-se feliz, recebendo as carícias de Augusto, arrebatado num êxtase, suspenso da meiguice dos seus olhos azuis muito úmidos; ora via Rogério, taciturno, inconsolável, satisfazendo-se em agravar em silêncio a dor que ela, sua filha, causara-lhe já no declínio da vida, quando tinha direito a receber-lhe carícias, em troca das que lhe prodigalizara durante a infância e ainda agora na puberdade. Ora via-se pálida, desgrenhada, emagrecendo silenciosamente, irritando-se com tudo, aborrecendo todos, censurando intimamente seu pai como causa do seu infortúnio; ora o velho Monte, na intimidade de Queiroz, queixando-se da ingratidão inesperada, que o tinha vindo tomar de assalto na hora em que ele, com o coração transbordando de ternura, chegava-se, como de costume, à porta do quarto, para deitar a bênção à filha idolatrada.
E o espírito timorato de Irena, lutando na onda de contradições, não sabia resolver! Queria ao mesmo tempo a bênção paterna e as caricias de Augusto, e, no entanto, era obrigada a escolher entre elas, porque a fatalidade as separara para sempre.
Pé ante pé, Irena veio coser-se com o umbral da entrada da sala e espiar seu pai, o que era o mesmo que açular o seu padecimento.
Rogério continuava sentado, mas o peso do sofrimento fizera-lhe pender a cabeça, que conservava sobre os punhos cerrados. A vela, com a sua claridade frouxa, colocada a pouca distância dos cabelos brancos do criador, repassava a sala de uma tristeza indefinível.
As lágrimas rolaram em borbotões dos olhos de Irena, que se viu forçada a fugir, para não ser traída pelos soluços.
— E sou eu a causa! - murmurava ela, sentada na rede do seu quarto. - Como pude ficar tão ingrata!
Monte, por sua vez, pensava em Irena. De espaço a espaço levantava a cabeça e, olhando para a porta por onde Irena tinha saído, agitava as mãos com os movimentos do desespero. Afinal levantou-se e caminhou até a porta do quarto da filha.
— Até amanhã, Irena! - exclamou; e como sentisse que ela se levantava para vir ter consigo: - não te incomodes, até amanhã.
Mas a moça não se conteve, e, saindo, tomou-lhe da mão, e, beijando-a, molhou-a com as suas lágrimas. Rogério tornou-se ainda mais desfigurado: abraçou-se com a filha, e deixou transbordar a sua comoção em soluços que pareciam vir do fundo de 50 anos de honestidade. Mas a energia do seu caráter para logo reportou-o à compostura do infortúnio honrado, e o velho, desligando-se delicadamente de Irena e enxugando morosamente as lágrimas, que lhe rolavam das pálpebras sobre os louros cabelos da filha, disse com uma resignação simulada:
— Guardemos as lágrimas para mais tarde, para quando tivermos de separar-nos eternamente. Vá dormir - acrescentou com um sorriso triste -, não seja manhosa.
Uma vez separados, Rogério foi tomar o seu lugar junto a mesa, e Irena deitou-se de bruços na sua rede, debulhada em lágrimas.
As palavras de Rogério tinham-lhe agigantado a suspeita: sabia já, decerto, tanto que lhe falara em separação eterna, pensava ela; e, injuriando-se, maldizendo-se, lutava com o seu amor como que para esmagá-lo.
Era uma luta inglória: o sentimento que a absorvera tinha raízes profundas e força tamanha que rompera através dos preconceitos de dois séculos. Bradava-lhe com o egoísmo impassível do avaro, que não ouve lamentações as mais doridas, e inexorável, frio, desdenhoso, levantava-se-lhe diante, exigindo-lhe vida e expansão.
— Minha mãe, minha boa mãe - repetiu Irena -, salvai-me!
Os soluços e o pranto estancaram-se-lhe por momentos, e levantando-se, alisando precipitadamente as têmporas, murmurou resolutamente:
— Vou dizer-lhe tudo, ele há de perdoar-me: não quero, não devo casar-me com um Feitosa.
Não chegou porém a mover o terceiro passo. Estatelada, comprimindo o seio com a mão alva e pequena, afogando-se de novo em lágrimas e soluços, exclamou com entoação desesperada:
— Não posso; não quero morrer!
Tamanho sofrimento foi na manhã seguinte duplicado ainda por um novo golpe.
Muito cedo o mal-estar da insônia fê-la deixar o conchego morno da rede, e levantar-se cautelosamente, para ir colocar-se à janela do quarto que dava para a horta. A claridade esparsa no calor da lua cheia afluía para o oriente, congestionando-o de luz. Os cajueiros muito esgalhados, diante das gravioleiras folhudas, muito copadas, pareciam entes aflitos suplicando piedade a poderosos indiferentes. A hortaliça meio amarelada, quase rente com o solo nos canteiros escuros de estrume, como que pediam lhe que fizesse apressar a rega.
Começavam a chocalhar à entrada da pequena feira os animais de carga, e muitos dos moradores da praça vinham espreguiçar-se à porta, esticando os braços até bater nos umbrais com os punhos cerrados. Grande número de pessoas encontrando-se, parando, desviando-se, voltando atrás, subiam e desciam as ribanceiras descobertas do Jaguaribe, e uma vez sobre o seu leito, acocoravam-se em torno dos poços para tirar água com as vasilhas negras de barro, ou com as borrachas, espécie de albornozes fechados, com um estreito gargalo.
Mas no céu, como na terra, não havia esse regozijo deslumbrante do nascer do dia, senão uma tristeza que buscava disfarçar-se com a prodigalidade da luz, com as risadas dos carregadores de água, com o verdor das gravioleiras.
Irena, com os braços seminus cruzados sobre o peitoril, os cabelos louros arrufados pelas reviravoltas da insônia, os olhos amortecidos, as pálpebras manchadas pelo pranto, olhava sem fixidez para tudo isso, como se tudo fosse novo, desconhecido para si.
De súbito, estremecendo toda, tiritou com um calafrio, e encurvou a mão em roda da orelha avermelhada pela pressão noturna. Fraco, porém perceptível, espalhou-se no silêncio o ruído do abrir de uma fechadura enferrujada, e momentos depois passou pela frente da horta, cabisbaixo, com um passo tardo, o velho Rogério Monte.
— Vai lamentar com os nossos amigos a minha desobediência - pensou Irena.
Depois, sacudindo tristemente a cabeça, exclamou:
— Desgraçado pai!
E imóvel como se estivesse presa, conservou-se na janela apesar do sol nascente envolver-lhe já a cabeleira farta no calor dos seus raios. Foi aí que o velho Monte, de volta da sua excursão matutina, veio abraçá-la e deitar-lhe a bênção paterna, e emoldurá-la num olhar suplicante.
— Estás doente, minha filha? Estás tão pálida!
— Fiquei triste ontem - respondeu timidamente a moça -, vi-o tão abatido!
— Ah! É verdade, estive deveras acabrunhado, mas passou.
Uma palidez mortal traiu-lhe porém o desassombro que afetava com as palavras, e os seus lábios depuseram convulsamente um beijo na fronte de Irena.
— Ouve cá, minha filha: prometes não ficar triste com o que te vou contar?
O olhar da moça teve o movimento inexprimível da resignação, enquanto os lábios mentindo ao coração, como valido ao seu rei, murmuraram com uma inflexão tristíssima:
— Prometo.
— Tua mãe era corajosa; no princípio da nossa vida tudo parecia conspirado contra nós, e ela confortava-me sempre. Tu és boa como ela, sê forte também. Prometes?
Irena meneou a cabeça afirmativamente, e acompanhou seu pai até a sala. Sentaram-se ambos. Então Monte, tirando do bolso a carta que recebera na véspera, leu com voz trêmula:
"Dificuldades de nossa casa obrigaram-nos a dirigir-nos a todos os nossos honrados amigos do sertão, a fim de nos entendermos sobre a maneira de liquidar prontamente as nossas transações.
Assim, pois, ficamos à espera de ordens de V. Sa. para que possamos, amigavelmente como até hoje temos sempre resolvido os nossos negócios, desobrigar-mo-nos mutuamente dos nossos encargos.
Pela conta corrente junta, verá V. Sa. que das nossas transações resulta para V. Sa. um débito de 4:578$000, a que temos direito".
Irena resfolegou no fim da leitura: não era ela a causa do sofrimento de seu velho pai, e esta certeza deu-lhe ao coração azo para desafogar num suspiro.
Monte, comovido e quase humilhado, dobrou a carta e, depois de metê-la cuidadosamente no bolso, principiou a desdobrar a sua vida à filha atenta e compungida:
Ficara muito moço com os encargos da casa paterna, havia cerca de 40 anos, e através das perseguições que sofrera dos seus rivais, que se aproveitaram das comoções revolucionárias da época para continuar a série das suas vinganças, conseguiu honrar a memória de seus pais. À força de trabalho conseguira, com o concurso de sua finada esposa, colocar-se em pé de resistir à seca de 45 e manter-se sempre em posição que, se não era a abastança, era pelo menos o necessário para a vida e socorrer aos desvalidos. Agora, porém, a fatalidade tomara-o de assalto, e tinha de voltar talvez à penúria dos primeiros tempos da vida. Por isso, ao receber a carta que o sentenciava à pobreza, o seu primeiro impulso foi responder enviando para o Aracati, a fim de reembolsar os seus credores, os únicos bens de valor que lhe restavam: as suas duas mucamas, os três escravos e a cria que era o encanto da filha.
— Não há de ser preciso, meu pai; Deus lhe dará outros meios... Olhe! Para que não vende o sítio que não dá agora lucro nenhum? - perguntou Irena sofregamente.
Um sorriso desconsolado de Rogério Monte acolheu o conselho da inexperiência da moça. As terras nada valiam agora; o sol sugara-lhes a seiva e reduzira-as à infecundidade; ninguém daria hoje por elas nem a décima parte do seu preço. Os únicos valores atualmente eram os escravos, e era deles que lançaria mão na hora extrema. Ia ao Aracati combinar com os seus credores, e de lá voltaria para seguir para o Ceará, onde tinha parentes. Estava tomada a sua resolução, porque, apesar de não ser soberbo, não teria forças para pedir no lugar em que sempre dera.
— Está, pois, assentado - concluiu Monte. Devo partir amanhã e tu irás ficar na casa de Queiroz.
— Mas não seria melhor que ficássemos aqui? Vive-se com pouco tão bem como com muito - ponderou Irena.
Não entendes felizmente disto, minha filha; dentro em pouco a fome há de vir bater a todas as portas.
— Com licença - exclamou da porta o vigário Paula... - Continuem, se não é segredo.
— Não, não é segredo, e demais eu não os teria consigo. Entre e sente-se.
Irena saiu ao encontro de Paula para beijar-lhe a mão, e aproveitou o ensejo para sair da sala, onde era obrigada a sufocar o tumulto do seu coração contra a resolução tomada por Monte: a mudança da paróquia de B. V.
— Traz-me aqui hoje um interesse da religião e do governo - disse Paula -, e venho pedir-lhe auxílio.
Desencapou demoradamente o ofício que recebera à noite, e entregou-o a Rogério Monte.
— Leia; é o primeiro a quem me dirijo.
Era uma circular do governo. O coração benfazejo do velho presidente da província alarmara-se desde o segundo dia de abril, com a chegada de grupos famintos e maltrapilhos na capital. Nesta mesma noite o honrado funcionário fora até a praça da Assembléia levar a consolação e o amparo aos retirantes que aí tinham estadiado, inundando de consternação a cidade estupefata.
Desde logo o governo provincial, apesar de seus escassos recursos, pôs-se em campo a fim de evitar que o sertão desabasse para sobre as cidades do litoral, e criou comissões por toda parte, autorizadas a socorrerem os miseráveis, e a detê-los nas suas circunscrições. Tais instruções continha o ofício, pelo qual Paula, Rogério Monte e Francisco de Queiroz eram solicitados pelo presidente a aceitar o cargo de comissários dos socorros públicos.
— Infelizmente não posso ter a honra de servir - respondeu Rogério, restituindo o ofício ao vigário.
— Por quê?! Não era isto o que eu esperava de seus sentimentos caridosos...
— Vou liquidar os meus negócios aqui, meu amigo, e retirar-me da paróquia.
— Está zombando de mim, seu velho? Vá com Deus, porque eu também não me demorarei muito; mas enquanto está, aceite.
— Não posso. As minhas dívidas reduzem-me atualmente a precisar ser socorrido, e eu não quero ser acusado de tirar do governo às ocultas o que ele manda ser dado às claras.
— Ora, que escrúpulos tão fora de propósito!
— São modos de pensar.
Houve um silêncio embaraçoso, que foi finalmente quebrado pelo vigário.
— Quase que não tenho coragem de fazer-lhe um outro pedido.
— Paciência.
— Eu vinha pedir-lhe também consentimento para que a nossa meiga Irena fizesse parte de um grupo de virgens destinado a cuidar das crianças e dos enfermos. Mas a sua frieza...
— A minha tristeza antes. Irena não se negará decerto; eu não posso servir, leia esta carta e dê-me razão.
— Mas, que diabo! Por quatro contos e quinhentos você quer enforcar-se? - exclamou o vigário após a leitura.
— É tudo quanto possuo hoje!
— E as terras, e o gado, e tudo isso que o fazia tão estimado como esmoler?
— Ouça, Paula, você tem o mau sestro de rir sempre que os outros sofrem, e isto é mau.
— Não estou galhofando - respondeu sentenciosamente o vigário -, sinto até bastante o que lhe acontece, mas não hei de morrer por isto. Mande no que eu possa.
— Obrigado, meu... amigo; muito obrigado - respondeu Monte. E alteando a voz: - Quer você alguma coisa para o Aracati? Sigo breve.
— Boa viagem e pouca demora.
Paula saiu sem mostrar a mínima comoção. O seu coração frio, cheio de desprezo por tudo e por todos, bem que compreendesse quanto sofria o honrado criador, não teve para dar-lhe uma consolação sequer. A sociedade esmagara-lhe toda a aspiração lícita ao amor, e ele retribuía a opressora com a mais imperturbável perversidade. Por isso já uma vez havia dito:
— Não tenho parentes na terra; nada prende-me aos seus destinos: lavo portanto as mãos.
Para o velho Monte, pois, começara a via dolorosa da humilhação. Fora ele quem mais diretamente concorrera para que o padre Paula fosse colado vigário da paróquia. Dera-lhe a mais íntima familiaridade, estimava o mesmo, apesar de notar-lhe grandes erros e defeitos. Doeu-lhe por isso mesmo a inexplicável frieza que mereceu-lhe a história do seu infortúnio, e chamando por Irena, o velho disse com uma entoação sentida:
— Ouviste, filha? Olha como é o mundo: a adversidade tem o cheiro da lepra, que só pode ser tolerado pelos amigos sinceros.
— Se estes que nos conhecem tratam-nos assim, o que não farão os outros, meu pai?
Era uma reflexão dolorosa, mas verdadeira. Paula, com os seus oferecimentos e protestos de ponta de lábios, com a sua condolência banal, era apenas o primeiro termo da progressão de desgraças que lhes cumpria percorrer. O mundo da miséria, com as suas estradas tortuosas, lamacentas e fétidas, os seus dias de mendicidade suplicante e abatida em face dos insensíveis, dos maus e dos cruéis, rasgou-se-lhes diante com avareza cruciante de terra e de céu, de risos e lágrimas, de estimas e maldições, monótono, sombrio, esmagador. É verdade que o velho Monte não havia pensado em estender a mão aos transeuntes, em viver da comiseração passageira, da esmola sem carícia às vezes até desdenhosa dos agradecimentos que recebe. Mas o seu futuro era contudo um problema assustador, cuja solução limitava-se à piedade. Ou os seus credores recebiam-lhe a honra em caução das dívidas, ou teria de recorrer aos seus parentes e aos amigos velhos. Em todo o caso a sua vida ficava dependente da piedade alheia, e esta é sempre inconsistente e variável.
— A frieza dos desconhecidos doerá menos, minha Irena - concluiu Monte -, custará menor tristeza e humilhação.
— Mas não era hoje, meu pai, que vosmecê devia resolver; está ainda muito vivo o golpe.
— Amanhã estará ainda mais profundo e incurável: as feridas da infelicidade são mais fáceis de gangrenar que de cicatrizar. É preciso que partamos, que saiamos daqui, e prouvera a Deus que pudesse ser já!
A comoção violenta, produzida por estas palavras no ânimo de Irena, bebeu-lhe de um sorvo todo o sangue. Pálida, entontecida, avassalada pela angústia, pediu ao velho Monte que a levasse para junto de Eulália, ou trouxesse esta para junto de si.
— Pobre filha - suspirou Rogério saindo para levar o chamado -, como sofre, e como é pobre de forças para o martírio que a espera!
O vigário, retirando-se da casa de Rogério Monte, fora dar os bons dias e levar a honrosa nova ao professor. Francisco de Queiroz, porém, respondeu-lhe com os mesmos escrúpulos de Monte, e recusou formalmente a distinção que lhe era dada pelo governo.
Paula, que não achava decentes num professor público semelhantes razões, ponderou-lhe que era uma desculpa sem valor e concluiu por disfarçar uma ameaça:
— Se o governo souber que você negou-se à comissão sem um motivo justo, pode tirar-lhe a cadeira.
— Paciência - respondeu o professor -, serei castigado por ter brio.
Paula não perturbou-se com esta outra negativa, e calmo, escarninho:
— Fazem bem - disse a franzir os lábios; - já vejo que era até impossível servir com vocês: os escrúpulos deitariam longe.
— Já vê que procedemos bem; confesse-os você ao seu gosto e proceda como entender.
— E o procedimento há de ser aplaudido por todos. Ouça: um grupo de virgens se incumbirá de tratar das crianças e dos enfermos. Que lhe parece?
— Bom - respondeu sinceramente o professor -, muito bom.
— Então espero que a sua falta de religião não impedirá que suas filhas façam parte do grupo.
— Certamente.
— Eu contava com esta resposta; vamos a ver o que dizem as meninas.
Eulália e Chiquinha mostraram-se entusiasticamente dispostas a aceitar a tarefa, e a primeira acrescentou:
— É uma obra de caridade; assim é que devem ser tratados os infelizes, e não como naquela noite da expulsão da família chegada de Inhamuns.
Desde a vez em que Paula insinuara a Eulália que ela era uma doida, nunca mais tinham trocado palavras, exceto as de cumprimento à entrada e saída do vigário que, ao sentir o hálito morno do beijo habitual da moça, maldizia-se de haver-lhe provocado a frieza hostil. Eulália por sua vez pensava em Paula, mas com o desejo de vingar-se, de humilhá-lo, ferindo-o no seu crédito, desprezando-lhe a amizade. Olhou, pois, em face o vigário, para ver o efeito produzido pelas suas palavras.
— A caridade não deve exagerar-se ao ponto de proteger ladrões - respondeu Paula com máxima serenidade. - É verdade que os apóstolos de hoje pregam o contrário, mas em compensação fogem ao menor sacrifício.
— Não é por ser apóstolo que eu estranhei; é que sou sincera - replicou Eulália meio embaraçada.
— Deus a conserve sempre assim. Bem! Vou ao Antão Ramos.
A conversação passou de chofre para os comentários acerca do encontro do inspetor diante do cemitério.
— Ele vai melhor? - perguntou o professor.
— Deve estar bom já. Dormiu sempre ontem.
— Parecia estar doido; falava em incêndio, em serviço a Deus, nos retirantes...
— Era um delírio - interrompeu Paula, um pouco perturbado -, mas passou.
— Esteve mal o pobre homem; dizia que você o tinha mandado incendiar o Engenho. Que trapalhada! Que febre!
— É - ponderou o vigário -, talvez já estivesse doente quando lhe contei o sonho que repeti ontem na prédica; impressionou-se demais. Até logo, vou justamente à sua casa convidá-lo para fazer parte da comissão.
— Até logo.
Eulália e Chiquinha beijaram a mão do pároco, que batendo-lhes carinhosamente na face, agradeceu em nome do céu o favor que lhe iam fazer.
Em meio da sala das aulas, porém, o vigário foi obrigado a retroceder. Monte, que entrava na ocasião, pediu-lhe para servir de companheiro a Eulália até que entrasse em sua casa.
— Irena está tristíssima com a partida, e pediu-me para lhe levar a amiga. Faz-me este favor? - perguntou Rogério.
— Com todo o gosto.
— Ó Queiroz, deixa a tua filha ir ficar alguns minutos com a minha! - exclamou Rogério entrando na sala de jantar.
— Eu preciso de conversar, e Irena está inconsolável. O vigário ficou à espera para acompanhar Eulália.
O sobressalto da moça não deu lugar a que se acentuasse a contrariedade que lhe causava a companhia de Paula. Não hesitou; apenas demorou-se a consertar as tranças, e saiu muda e apressada.
O vigário, apertando um pouco o passo cadenciado, envolvia-a com a lubricidade do seu olhar. O seu vestido e cassa, muito justo no tronco e escorrido sobre as saias sem goma, iludia o recato virginal e deixava completamente desenhados os contornos luxuriantes, a altivez feérica dos seios impolutos, e a tumescência escultural dos quadris das Pomonas de mármore.
O sussurro do roçar das saias no chão arenoso da praça chegava-lhe ao ouvido com a sonoridade dos coros das lendas orientais: música suave, que era a surdina das frases quentes e das exuberâncias de gozos de paixões estimuladas por encantamentos de fadas. Paula, sentindo-se só na vida, como que queria dissolver-se nesse mágico som, como os palácios solitários, que eram o abrigo daqueles amores, dissolviam-se com as névoas nos primeiros rumores do dia, prestes, como se fossem eles os materiais com que a aurora construísse o vestíbulo cambiante que dá entrada ao sol no domínio absoluto do firmamento. Trêmulo, ofegante, delirando, o vigário seguia a jovem arrebatado pela paixão, a querer pedir-lhe um gesto, uma palavra, e no entanto mudo e automático. Os lábios secos pelo acesso violento de fascinação embebiam-lhe a voz como a esponja seca embebe a gota de água, e ao passo que o seu andar rítmico devorava a distância, a celeridade desse turbilhão de formosura e pudor punha-lhe no crebro a vertigem da perdição.
Eulália percebia o esforço de Paula para colocar-se ao seu lado, e por isso mesmo esmerava-se em malográ-lo acelerando cada vez mais os seus passos. Maltratara-a muito, sem que lhe desse causa; era mister castigá-lo com a mesma crueza, deixando aos olhares da perspicácia maligna verem uma posição equivoca para o vigário, que não gozava de bom nome. Isto bastaria para sua vingança.
Mas entre a casa de Queiroz e a de Rogério Monte ficava a do velho sacristão, ao fundo de um pequeno terreno ensombrado por grandes cajueiros. Ao passar em frente, Eulália encarou com a Mundica, a rainha da formosura aclamada pelo povoado inteiro.
— Entre um instantinho, Eulália; há que tempos não a vejo - gritou Raimunda correndo para a cancelinha da cerca. E dirigindo-se a Paula: - Bom dia, sr. vigário; está também se tornando fruta.
— Não posso; vou com muita pressa - respondeu Eulália, que se limitou a acenar-lhe com a ponta dos dedos.
Mundica encostara-se à cancelinha e estendeu a mão ao vigário, detendo-o.
— Por que não veio ontem? - perguntou meigamente, repreensiva.
— Pelas ocupações, filha; até logo.
— Sim? - murmurou a voz suave de Mundica - Olhe que eu tenho ciúmes.
— De quem? - perguntou Paula afastando-se.
— De todas...
— E as outras todas nem se lhe aproximam..
Raimunda, que havia intrometido no engradado da cancelinha a cabeça sedutora, como um ideal de deusa pagã, contraiu os finos lábios num muxoxa; depois levando à mão a boca:
— Vá depressa; creio que o vento já está soprando para aquele lado - disse.
E assinalou Eulália.
A beleza oriental de Mundica fez espairecer um pouco o vigário, que, reportando-se à frieza habitual, seguiu no seu passo ordinário. Eulália diminuiu também a celeridade do andar; por duas vezes voltou-se disfarçadamente para trás, e, mordendo os lábios, seguiu ainda mais devagar como para se deixar apanhar. Mas o adiantamento que levava tornava impossível o vigário aproximar-se, sem que ela parasse, antes da casa de Monte, que estava à distância de uns vinte e tantos passos. Cada vez mais percebia-se no andar da moça a dissimulação da vontade de ver-se alcançar, descrita pelo poeta nas ninfas da ilha dos Amores. No entanto prosseguiu até que chegou à porta da casa, de onde via ainda a cabeça encantadora de Mundica.
— Anda muito - disse Paula reunindo-se-lhe a sorrir; - é em tudo a Diana caçadora.
— Muito obrigada pelo favor de trazer-me - respondeu Eulália.
E tomando-lhe a mão, inclinou-se para beijá-la.
Paula reteve na sua a mão de Eulália, e fixou nos dela os seus olhos, que fitavam-na com a magia de 15 anos de domínio. Amável, abandonada a uma força que era superior ao seu desejo de vingança, Eulália deixou-se ficar com os olhos baixos sob o magnetismo desse olhar invencível.
— Temos estado com os papéis invertidos - murmurou o vigário; - quem deve beijar-lhe a mão sou eu.
E fez menção de beijá-la; mas o pudor da mulher reagiu contra a fraqueza da menina de outrora, e Eulália, arquejante de vergonha e de energia, repeliu-o bruscamente, e entrando:
— Eu não sou a Mundica, ela ficou mais para trás -resmungou quase a chorar.
— Já tem ciúmes? - perguntou Paula baixinho.
E alteando a sua voz autoritária, acrescentou:
— Lembranças à Irena, ouviu?
Eulália em bicos de pés e despercebida, entrou até a sala de jantar.
O sol, debruçado por sobre a janela que dava para a horta, parecia um ladrão escarranchado no peitoril, com o pulo já firmado no pé fincado no solo. Um grande quadrilátero de luz punha um tom alegre no fulvo sombrio do enxadrezado do ladrilho. As cadeiras desarrumadas lembravam pessoas tresnoitadas, adormecidas aqui e ali, no desleixo do torpor.
Sobre uma corda, amarrada por uma das extremidades à parede da casa, um terno de roupa cheia de dobras e muito preta, aquecia-se, para ser desempoeirado. O abandono e a tristeza, congraçados no silêncio apenas quebrado pelo ferver pouco ruidoso das panelas, na cozinha próxima, davam a tudo um aspecto desolado.
A porta do quarto de Irena, apenas encostada, cedeu ao delicado impulso da mão de Eulália, e a claridade da sala rompeu o crepúsculo em que a janela cerrada mantinha o aposento.
Irena, toda vestida, estava atirada sobre a rede, a cujos pés uma cabocla velha, com o braço apoiado sobre um joelho, sentada no chão, cochilava e cabeceava. Eulália parou e inclinou-se diante da rede, e depois de contemplar o rosto pálido, as pálpebras roxas, as veias azuladas muito visíveis nos punhos e no colo de Irena, sentou-se em frente à cabocla, e encostou a cabeça à fronte lívida da amiga, que resfolegava demoradamente o seu pesado sono de prostração e de angústia.
Esteve muito tempo assim, até que em uma das contrações que de quando em quando obrigavam-na a exalar um longo suspiro, Irena abriu os olhos muito azuis, e conchegando a sua face à de Eulália, prorrompeu num choro histérico, arquejantemente soluçado.
— Vá Matilde, vá cuidar das coisas - disse Irena à cabocla; - eu não tardo também.
— O que é isso, minha filha? - perguntou Eulália pela terceira vez. - Que desespero! Não sabe ter um pouco de paciência?
— Ah! Você não pode calcular o que nos aconteceu! Seu pai não lhe contou nada?
— Disse-nos que você ia amanhã lá para casa, porque seu pai vai ao Aracati a negócios.
— Não, não é só isto.
E interrompendo-se a cada instante, para dar curso ao crebro soluçar, Irena desfiou a história do repentino descalabro da casa paterna.
— Mas não vale a pena você afligir-se tanto - disse-lhe Eulália. - Moraremos todos juntos; meu pai há de gostar de poder retribuir ao seu as muitas finezas que lhe deve.
— Não é possível, minha filha, e esta é a causa da minha aflição; meu pai quer mudar-se da paróquia e ir para o Ceará, para não viver humilhado aqui. Já vê que eu tenho de partir também.
— Partir ... - repetiu Eulália.
E confundiu as suas com as lágrimas da amiga.
Conchegadas as faces, e misturando o pranto e os hálitos, jazeram por largo tempo. Cada olhar que trocavam era um fermento ao padecimento e fazia recrudescerem os soluços, e redobrar-se o amargor do choro.
— Mas, não; eu não parto!
— E seu velho pai, Irena?! Há de você desobedecê-lo, quando ele sofre tanto?
— Nunca pensei em proceder assim, mas é o meu destino.
— O desespero é quem está falando por você: pense melhor.
— Parece que você deixou de ser minha amiga, Eulália - disse a filha do criador, sentando-se de improviso no bojo da rede.
— Eu?!
— Sim, não era de admirar; o vigário, que se mostrava tão amigo de meu pai, soube indiferente da sua desgraça.
— Está bem - balbuciou Eulália sentidamente -, eu já dei motivos para ser igualada àquele ser abjeto!
As palavras da amiga, pronunciadas com o amargor do ressentimento, como que acabaram de alucinar a desditosa Irena. Descendo precipitadamente da rede, foi sentar-se junto de Eulália, e abraçando-a, pousando a cabeça sobre o seu ombro, suplicou-lhe a arquejar:
— Não me queira mal, minha amiga; eu nem sei o que digo!
Estava como doida; o coração tornara-se insensível para tudo que não fosse Augusto, que não viesse dele, que não tendesse para ele. Olhando para o fundo da consciência, via todos os seus sentimentos estrebuchando aos pés do seu amor triunfante e bárbaro na vitória. A amizade por seu pai e Eulália ia a pouco e pouco afastando-se-lhe do coração, triste como ao pôr do sol retiram-se das bordas do açude as garças assustadiças. Tinha tido um sonho medonho. que era a tradução fiel de sua alma: Feitosa tinha saltado a janela do seu quarto, e, trêmulo, carinhoso, tinha-a tomado nos braços. Ela madornava, e só acordou traspassada pela frialdade da noite e pela claridade indiscreta do luar, mas nem sequer teve o menor estremecimento. O brilho sereno dos seus olhos pediam-lhe perdão e prometiam-lhe um mundo infinito de alegrias imaculadas, feito de constelações de beijos e das irradiações ardentes do seu amor. Passaram as horas a conversar venturas, a fazer castelos. Tomavam a vida entre os dedos, como a criveira a sua agulha, e com ela bordavam os relevos de um paraíso de amor no tecido de lágrimas do passado. Ao nascer do dia, ela tinha-se vestido de branco, cercado a cabeça por uma coroa de flores de laranjeira e ensombrado o rosto com um véu de escumilha; Augusto, vestido de preto, dera-lhe o braço, e sozinhos, absortos no seu íntimo contentamento, foram ajoelhar-se aos pés do vigário Paula e juraram amar-se até além da morte. A igreja estava solitária, e o Cristo, emoldurado pela claridade da banqueta acesa, tinha a quietação de quem duvida e espera. Ela e seu noivo subiram ao altar, e, depois de ajoelharem-se e rezar, levantaram-se para casar para sempre as suas almas num beijo deposto aos pés do Homem-Deus. Feitosa tomou o crucifixo, e, conchegando o rosto muito descorado ao seu, que escaldava de rubor, aproximou o corpo do Cristo aos lábios de ambos. Porém, como neste momento levantassem os olhos, não viram na cruz o Deus que perdoa, mas Rogério Monte, de uma lividez transparente, deixando ver o coração a sangrar pela fenda de uma punhalada.
— Uma gota de sangue - concluiu Irena - caiu entre nós, e então uma força que eu não via começou a separar-nos sempre, sempre, até a morte!
— Minha pobre amiga.. ai! Nós somos bem infelizes.
— Eu; você não, porque não ama.
— É verdade - exclamou Eulália, dominando um tremor convulsivo -, não amo!
— Não sabe que dor profunda é amar - continuou Irena exaltando-se - sem poder dizer a ninguém que este amor vive, cresce, escraviza, e matará!
— Ai! Desgraçadas de nós! - soluçou Eulália com uma entoação desesperada.
Calaram-se, e cruzando as cabeças uma sobre o ombro da outra, quedaram abraçadas estreitamente, como se quisessem consorciar as suas dores gêmeas.
O isolamento dava-lhes uma investidura sobrenatural. Pensar-se-ia, ao vê-las, ter diante dos olhos uma dessas páginas rendilhadas dos bons tempos da cavalaria, em que os donzéis galhardos justavam lanças pela posse de nobres damas. Elas eram as castelãs requestadas, lacrimosas, inconsoláveis, no desvão desornado do castelo feudal, sem outra coragem do que enviuvar na virgindade e esperar resignadamente que a morte viesse entressachar de goivos as suas grinaldas puras.
De fora vinha a toada triste de uma canção sertaneja, muito prolongada em assonâncias contraltinas, e de quando em quando um arrulho de rolas, escoado dentre as copas das árvores. De mistura com eles ouviu-se dentro em pouco uma voz gutural, áspera, roufenha, arremedando a toada tristonha que os escravos do criador cantavam revolvendo nos canteiros a terra ressequida.
— Que voz tão feia - ponderou Eulália, desligando-se dos braços de Irena -; causa-me calafrios.
— Há de ser o Joaquim Maluco, que vem almoçar - disse Irena. - Ele também há de sentir muito, quando eu me for embora.
A toada e o arremedo continuaram, até que o doido, sacudindo-se na cerca, bradou num assomo de cólera:
— Calem-se, não cantem que podem acordar minha filha. Eu não quero que ela vá hoje confessar-se com o vigário; calem-se!
Uma gargalhada respondeu ao grito adoidado daquele coração de pai, sublime ainda na loucura.
— Cabocla, vai dizer lá fora que não zanguem o doido! - gritou Irena.
E pálida, desfigurada, voltando-se para Eulália, acrescentou:
— Eu morreria de dor, se meu pai enlouquecesse.
— Não fale, não fale assim... Esse homem é uma perseguição; antes morresse.
— Padece muito; ainda há pouco, desapareceu de casa, e só dois dias depois foi encontrado, porque souberam pelo vigário que ele estava no cemitério.
A toada sertaneja cessou, e o doido, deixando a cerca, acrescentou:
— Vamos, vamos ao outro anjo, ao anjo do velho daqui, meu amigo; quando a minha filha acordar há de vir também.
— Coitado! - murmurou Irena.
E levantando a voz, chamou pela cabocla.
— O que é que você vai fazer? - perguntou Eulália.
— Mandá-lo entrar para comer.
— Não, não o faça entrar; eu tenho medo, tenho vergonha dele.
— Você?
Eulália escondeu o rosto nas mãos, como que para ocultá-lo de si mesma, e murmurou:
— Sempre que o vejo, lembro-me do sr. vigário, e tenho medo.
— O sr. vigário é um perverso, frio como as cobras -acentuou Irena.
Eulália confirmou e continuou a maldizer do vigário. Parecia deleitar-se em torturá-la sempre. Desde a procissão de prece, nunca entrou em conversação consigo sem acerar no fim uma grosseria que a ficava pungindo cruelmente. Mas o pior, o que a assustava, era que as suas insinuações já como que lhe compraziam; eram como um remédio sobre uma chaga prestes a cicatrizar. E certo que lhe doíam muito, mas era uma dor que passava rápido, uma nuvem negra que se desfazia logo, para deixá-la mais claramente ver o passado que era todo de Paula. Lembrava-se das suas afabilidades de então, e via-o muito carinhoso, chamando-a para junto de si inclinando-se cheio de ternura e beijando-a nas faces. Nesse tempo, o vigário não a maltratava. Tinha, ao contrário, por si desvelos de pai. Queria saber se tinha estudado, como ia cosendo, como já crivava e, sempre que havia portador para o Aracati, mandava-lhe vir bonecas bonitas, com os cabelos louros como os de Irena. Agora que, sem razão, não tinha a dizer-lhe senão palavras desabridas, ela voltava-se para o passado, onde ouvia aquela mesma voz repassada de ternura. Ah! Se pudesse esquecê-lo, se houvesse o que lhe suprimisse da memória os 15 anos de bondade e de carinhos, como seria feliz!
Irena, que se ia impacientando à medida que Eulália confiava-lhe o segredo do seu pensamento para com Paula, teve um movimento brusco ao ouvir estas últimas palavras.
— Mas então esse vigário continua a fazê-la sofrer?
— Muito, muito!
— Oh! Meu Deus! - ponderou Irena receosamente. - Quer ver que você o ama!
— Eu?! - interveio Eulália, profundamente enleada. - Amo-o sim... como sua filha.
À esta mesma hora o vigário conversava com Antão Ramos.
Paula sentia-se bem, tinha tomado uma sangria para se desencalmar, pois viera soalheira em fora, para não dar ao inspetor o azo de pensar que ele se esquecia dos amigos. O quarto, ainda que estivesse com as janelas fechadas, era fresco, atraía pelo asseio e além disso pela presença da mulher de Antão. Era uma trintona de carnes luxuriantes, muito afável, rindo a mostrar toda a dentadura sã, e deixando cair a cabeça para trás, movimento que lhe mostrava o pescoço roliço como um estipe, braços fortes e principalmente olhos prometedores. Estava aleitando uma criança robusta, que, já meio saciada, brincava, ora abandonando, ora pegando de novo no seio nu, moreno, que ele sustinha entre as mãos pequeninas. Paula para a enquijilar, ia de espaço a espaço meter-lhe os dedos entre os lábios e afastar o bico do seio, que depunha na face próspera da criança a gota de leite pendente, essa pérola sacrossanta do eterno diadema da mulher. A criança, revirando-se no colo, voltava-se para o vigário, mas em vez de enfadar-se sorria, e Paula então, cravando com um delambimento hipócrita os seus olhos negros nos da senhora, gabava tamanha mansidão.
— Não foi coisa de cuidado, e ainda bem, porque faria agora grande falta - ponderava o vigário, de quando em quando.
— Hoje, sr. vigário; mas ontem quando este homem entrou em braços, pensei que os meus filhos iam ficar sem pai.
E a sra. d. Teresa passava a mão pela testa do marido, como se temesse ainda perdê-lo e não quisesse regatear-lhe carícias.
Alguns minutos depois da chegada, Paula tinha ferido o ponto principal da sua visita, e recebera de Antão Ramos a resposta que esperava.
— Muito agradecido pela honra, a Vossa Mercê; conte comigo.
— As pequenas compras de gênero hão de ser feitas na sua casa... Felizardo ! - acrescentou o vigário - Vai ser milionário...
— Qual, sr. vigário! A farinha e a carne não dão para isso.
A conversa estancou de pronto, porque o sr. vigário tinha ainda de ir arranjar um terceiro comissário. Queria que ele fosse o Augusto Feitosa; era um rapaz que tinha algo de seu e pelos modos parecia bom procedido. Retirou-se, portanto, o presidente da comissão de socorros em direção à casa do indigitado.
Contava com o efeito das suas visitas àquela hora, porque importava um sacrifício. O sol no meridiano lançava sobre a terra os raios potentes, como o tigre as suas unhas tremendas nas carnes da presa. O solo irradiava o calor de um ferro em brasa, e nem um sopro de vento refrescava a atmosfera. Os grandes como os pequenos dormiam nas suas redes, sem ousar pôr pé fora de casa: seria apanhar febre maligna, que era andaço e que não tinha cura. Só o vigário ousava afrontar a canícula, por amor da caridade, e isto impunha a aceitação do que pedia.
Foi, portanto, sem nenhum transporte que recebeu do moço a resposta de que aceitava a comissão.
Amanhã, pois, o senhor estará em nossa casa para fazer comigo a distribuição de víveres.
— Sem dúvida, sr. vigário; hei de fazer por cumprir o que me for ordenado.
Paula começou a discorrer longamente sobre o que tinham a fazer, as medidas para manter o moral entre os desgraçados, os cuidados com que teriam de lutar para bem distribuir os socorros. Concluiu pelo grande concurso que viria à comissão do auxílio de um grupo de moças que se incumbissem das crianças e dos enfermos.
Teriam neste número as filhas das maiores pessoas do lugar, o que era um exemplo às outras, e ao mesmo tempo a segurança com que trabalhariam. Entre essas graciosas belezas da paróquia estava Eulália, a filha do professor, uma flor de carne que exala perfumes do céu.
— O senhor conhece Eulália, não é verdade, sr. Augusto Feitosa?
— Conheço - respondeu Feitosa ingenuamente. - É para o meu modo de entender uma das boas almas daqui, um coração leal e dedicado, fidalga nas afeições.
— Então conhece-a bastante?
— Muito, muitíssimo. Porém, permita-me uma indiscrição: a Irena Monte faz parte do grupo?
— Não podia deixar de convidá-la: dou-me, há muitos anos, com Rogério, e hoje, que ele está próximo da miséria, devo ao menos salvar as aparências.
— Longe de mim a menor censura contra o seu procedimento, sr. vigário. De coração lhe confesso, estimo até que assim entendesse.
— É um nobre procedimento - disse Paula meneando a cabeça como quem está admirado.
Os olhos do vigário desmentiam-lhe, não obstante a aparente cordialidade. Revestia-os já o brilho felino habitual, e foi saturando de escárnio as suas palavras que reatou a conversação.
— Está definitivamente assentado; espero-o amanhã pelas dez horas.
E tomou o seu chapéu redondo para sair.
— Eu não me furtarei a nenhum trabalho; mande, sr. vigário.
— Para o inferno - resmoneou este -, raça de cães e assassinos
Depois acrescentou alto:
— Hei de aconselhá-lo.
O ódio recalcado de Paula, insurrecionado pela espontaneidade de Feitosa, pintou-lhe o movimento de caridade como indecente manobra para obter mais tranqüilas, mais fáceis, mais longas entrevistas. Cabisbaixo, vacilando como se estivesse tonto pelo ardor da soalheira, caminhava para casa com a celeridade dos seus pensamentos apaixonados. Não via, não atendia, não cumprimentava, e à porta de venda do inspetor não se demorou senão para certificá-lo da aceitação de Feitosa.
Mundica, que viera assentar-se a coser sob o arborizado da frente de sua casa, convidou-o em vão para descansar, mas ele respondeu friamente:
— Estou a arder com dores de cabeça.
— Há de ser cansaço; venha deitar-se na rede e verá como fica bom.
— É o que vou fazer.
— Mas por que não me faz a vontade, vindo descansar aqui?
— Prefiro o silêncio; adeus
Passou adiante e, vendo na sala da escola Queiroz e o velho Monte, limitou-se apenas a dizer que voltaria depois; agora precisava de repouso.
Mas em casa o primeiro cuidado de Paula não foi fechar-se no seu quarto para deitar-se. Sentou-se diante da mesa da sala de visitas e tirou de sob os papéis um canivete-punhal, cuja lâmina pôs a nu. Limpou-a cuidadosamente na manga da batina, provou-lhe o fio na palma da mão e, fitando-o com uma atenção de joalheiro, murmurou sombriamente:
— Ê preciso que estejas ao meu lado; quem sabe o que teremos de fazer!
A tristeza entrara na casa de Queiroz, e muito principalmente na de Monte, para não mais deixá-las.
Algumas horas tinham bastado para ruir até os fundamentos do edifício construído, havia dois séculos, e cimentado com tremendas mortualhas. Rogério Monte, o último dos representantes que podia bruxulear o brilho dos seus maiores, via diante de si a miséria, e, ameaçado por este inimigo tremendo, não tinha outra saída além da humilhação da esmola ou a prisão perpétua do favor.
O velho Queiroz, apalpando com o tato finíssimo todo o horror da situação do seu velho amigo, sofria com a mesma intensidade o desgosto profundo que lhe havia sido reservado para os últimos dias da existência.
— Parto, pois, amanhã - disse-lhe Monte no silêncio da sala das aulas; - se eu morrer no Aracati, espero que minha filha não ficará sem pai.
— Basta o que já sofres, homem - respondeu-lhe Queiroz; - não me fales em morte.
Os dois honrados amigos não tinham, entretanto, medido a extensão da mútua desgraça, apesar da larga e tristíssima face que lhes era dado ver. Para que os seus corações fossem precisamente cruciados pela realidade, era mister que penetrassem no quarto de Irena.
Aí as duas amigas continuavam a agravar pela imaginação os seus sofrimentos.
O amor violento e intratável de Irena sobreexcitava-se quase até a loucura, e como que despertava no espírito da amiga o desejo de ser também infeliz pela mesma causa e com o mesmo arrebatamento.
— Sabe o que hei de fazer, Eulália, sabe o que eu hei de fazer ... Não, não posso dizer.
E alucinada, escondendo o rosto nas mãos brancas de jaspe, contava à amiga que tinha medo. Parecia-lhe que a alma de sua mãe, condenava-lhe o amor: ela não tinha conhecido as veemências da paixão; levara uma vida serena do berço até a cova, cercada pelos afagos de seus pais, pela afeição calma do esposo, pelas bênçãos sinceras da pobreza, de que fora mãe desvelada. Sua alma tinha-se desprendido do corpo sem uma contração dolorosa; saíra como o ar respirado pelas plantas; imperceptivelmente. O seu viver foi calmo e bonançoso; nos dias de penúria ela banqueteava-se com o farto quinhão de afetos que lhe talhava o esposo na própria vida. Não podia, pois, compreender por que um outro coração se exaltasse até o delírio e principalmente sendo esse coração de sua filha. A alma de sua mãe devia por força amaldiçoá-la à esta hora.
A tristeza de semelhante pensamento fazia com que Irena não exprimisse a sua resolução; julgava que, fechando-a na consciência, escondia-a do olhar do duende que a sua imaginação mesma criou para torturá-la. À semelhança do Caim do poeta, que sobrepunha muros a outros muros e mandava construir moradas subterrâneas para furtar-se a um olho medonho, que o espiava desde o dia do fratricídio, Irena procurava esconder no seio da ternura filial, da saudade, das lágrimas, da amizade sincera, do silêncio, do desespero enfim, a triste resolução que lhe foi aconselhada pelo amor infortunado. Mas, como a sentinela de Caim não se rendia ao cansaço, a consciência de Irena não se deixava vencer e, de quando em quando, a moça, enxugando as lágrimas, repetia:
— Sabe o que hei de fazer, Eulália?
— Ser um pouco mais resignada, e esperar - respondeu-lhe a amiga.
— Não - replicou por fim a mísera Irena: - fugir!
— Nunca, minha amiga, nunca! Seria a morte de seu pai.
— É a esperança do meu amor.
— Doida! soluçou Eulália.
— Desgraçada é que eu sou.
A compleição fraca e doentia não lhe dava forças para comportar a violência da paixão e arcar com o horror do seu fadário.
À noite, um relaxamento muscular invencível invadiu-a, e, depois de escandescê-la na intensidade de uma febre delirada, prostrou-a na atonia semelhante à da inalação prolongada do clorofórmio.
Durante a febre falava em pujança de cavalos, gabava-lhes o esgalgado dos canelos, a compostura nobre com que enfreavam, resfolegando alto e batendo vigorosamente o chão com a presteza da andadura. Faziam-lhe entretanto medo, porque eram russos, e na claridade do luar podiam servir de alvo à perseguição; demais disso, relinchavam freqüentemente, como se quisessem denunciá-los. Se eles fossem murzelos, se tivessem no pêlo o colorido negro do destino dos cavaleiros, seria muito melhor; mas até a cor dos animais rebelava-se contra o seu afeto.
Monte, lendo nos olhos de Eulália a impaciência e o temor que lhe causavam as palavras de Irena, perguntou-lhe de que falava a filha, se lhe conhecia algum segredo que justificasse o delírio: ela repetia freqüentemente que a odiavam, que era impossível obedecer, e que preferiria morrer!
— É uma história que lemos de dois noivos, que fogem, porque os pais se negam a consentir no casamento - respondeu Eulália.
— E que motivos tinha o pai? - sorriu bondosamente Rogério Monte, desafogado da impressão que lhe causara o delírio de Irena.
— Odiavam a família do noivo!
— Não era motivo bastante; se ele fosse digno...
— Ouvindo essa história, Irena observou-me que seria muito desgraçada se amasse um Feitosa.
— As mulheres pensam sempre em impossíveis! - acudiu Rogério com exaltação. - Uma filha dos Montes não pode dedicar o coração a um filho daquela raça amaldiçoada!
— Felizmente ele não ama - disse Eulália corando muito.
— Felizmente; porque eu preferira não vê-la mais levantar-se daí!
— Augusto! Augusto! - bradou a doente. - Não insultes meu pai!
— É muito singular este delírio! - ponderou o velho Monte.
— É o nome do noivo - explicou Eulália. - Ela impressionou-se muito; o senhor sabe quanto Irena sente as dores alheias.
O velho Monte, porém, não despreocupou-se de todo com as explicações de Eulália, e um receio assustador lhe sobreveio.
A semelhança da história com a situação das duas famílias rivais, o nome do protagonista, podiam ter inclinado o espírito de Irena para o representante dos Feitosas, que era galhardo e sedutor.
De madrugada, ao despedir-se para partir, parou junto da rede em que Irena ressonava a sua profunda prostração. Olhou por largo tempo para aquele rosto pálido, para as olheiras roxas e os cabelos desfeitos pelo desalinho, e disse ao velho Queiroz:
— Estou com vontade de ficar; não sei o que me diz que faço mal em deixá-la.
— É o mesmo que a faz sofrer: a tristeza da separação, a saudade antecipada.
— Deve ser isto só!... Não é possível que Irena ame Augusto.
— E se fosse?...
— Matava-o! - interrompeu Rogério Monte. – Mas... é impossível.
Pousou na testa de Irena um beijo, longo como as noites de insônia, e saiu a enxugar as lágrimas que lhe choviam nas barbas brancas.
— Adeus; eu estarei de volta em oito dias, em princípios de junho - disse abraçando Queiroz. - Vele pela minha filha; Deus sabe se não será você em breve o seu pai, ou se eu não a chorarei.
— Coragem! Isto é desanimar antes de tentar os meios de remediar. Vá tranqüilo por este lado, meu velho; eu a confundi sempre com Eulália. O pior é criar fantasmas.
— Não seria o primeiro caso, e a fatalidade não mede os golpes. Mas eu devo obedecer à minha palavra de honra: adeus.
— Até breve; que volte mais animado.
Quando Monte se afastou e sumiu-se no declive da ladeira, Francisco de Queiroz voltou-se para Eulália que os ouvia:
— Tu deves saber se Irena ama o Feitosa; não mintas a teu pai.
— Eu não sei - respondeu Eulália -, mas, se soubesse, meu pai mesmo me ensinou que não revelasse nunca o segredo das minhas amigas.
Queiroz abaixou a cabeça, humilhado pela indiscrição, sem ter forças para encarar com Eulália. Toda nobreza da sua alma ergueu-se desde então para resgatar a falta momentânea, e a revelação de Irena ficou sendo aparentemente uma inconseqüência de delírio.
O serviço dos socorros tornou-se a preocupação de Paula. Passava os dias assistindo ao corte das rações, distribuindo-as, e visitando as casas das pessoas mais abastadas para pedir-lhes consentissem que as filhas se ocupassem do socorro aos enfermos e às crianças. Tinha perdido em parte os modos rudes para com os retirantes, que já subiam a mais de quinhentos, e era com afabilidade que tratava os desvalidos do povoado.
Somente alguns malévolos resmungavam de uma providência que foi tomada por Sua Reverendíssima, e era que os socorros distribuídos às mulheres deviam ser recebidos em sua casa.
Mas essa murmuração dissolveu-se no seu próprio eco; a pureza das intenções do vigário ressaltava para o juízo geral do povoado, da corporação de virgens que ele havia formado.
— Que tal está o serviço? - perguntava Paula, ancho e satisfeito. - Pode haver tão bom, hein? Porém melhor há de ser difícil.
— Nem tão bom - respondiam-lhe sinceramente os paroquianos.
Era merecido o elogio: todas as semanas um dos comissários estava à porta da despensa, para ouvir as queixas das socorridas e assistir à distribuição das rações, proporcionais ao número das pessoas de família. À tarde o comissário corria o interior do Engenho. Então já os habitantes tinham transbordado pelos arredores. Uma porção de palhoças alinhadas junto às suas faces, constituíam o centro de um núcleo de povoação a que o vigário chamou cidade da miséria. O comissário visitava também as ruas, no seu trabalho vespertino, e parava de porta em porta para atender os queixosos.
A corporação das virgens encarregava-se de ir à casa do vigário receber os socorros para as crianças e os enfermos, as roupas para as mulheres, e à tarde, ia também à “cidade” examinar se tinham cumprido as suas prescrições.
Paula não se furtava aos mais árduos trabalhos do seu ministério; dizia missa todas as manhãs e à tarde levava o Sacramento aos moribundos. Todos os dias dobrava de dedicação e com este exemplo mantinha o pessoal no entusiasmo dos primeiros dias. Logo a excelência do serviço fez o povoado inteiro julgar que tinha sido injusto com o seu pároco, e dar razão ao professor Queiroz, que o apregoava como homem superior. Toda a severidade dos bons tempos mudou-a ele em cordura para os desgraçados, em dedicação temerária mesmo, porque passava horas nos cubículos fétidos dos disentéricos e à cabeceira dos doentes de febre, enfim, nos próprios focos da epidemia, que prosseguia, grassando com intensidade.
A satisfação era, pois, geral, a excetuar-se o velho Marciano, que entendia não estar pago do acréscimo do serviço com os gêneros que recebia da comissão, para alimentar a família. Passou dias azedando silenciosamente, até que estourou em queixas ao próprio sr. vigário.
O vigário desrevestia-se depois da missa e, ao desapertar a alva, notou que estava ficando magro.
— E isto é Vossa Mercê, que pode passar bem - resmungou a sacristão; - imagine os pobres cristãos que nada tem...
— E quais são eles?
— Eu há muitos dias que ando para dizer ao sr. vigário: a minha vida não pode continuar assim.
— Você fala de barriga cheia, meu caro - disse Paula, batendo-lhe no ombro.
Estava já em batina e recostou-se pachorrentamente na alta cadeira de espaldar, com um joelho apoiado na beirada da mesa. Mandou fechar a porta da sacristia e pôs-se a enrolar um cigarro.
O Cristo parecia ter voltada a cabeça para não vê-los.
— Então o que é que lhe falta? Peça por boca e não se zangue.
Ó velho sacristão desenrolou a meada das suas queixas. Faltava-lhe principalmente o sossego. A Mundica passava os dias a maldizer-se e a arrepelar a irmã, a Amelinha, porque, dizia ela, falava agora muito no sr. vigário: era um inferno. Mundica estava sempre a queixar-se, e ultimamente agravara-se o seu mau humor, porque o sr. vigário havia já seis dias não se tinha dignado ir àquela choupana. O sr. vigário bem devia saber o que são raparigas quando estimam deveras. Levava a falar em desprezo, em ingratidão, em mil coisas, e nem a própria autoridade paterna era por ela respeitada.
— Ora, já Vossa Mercê avalia - concluiu ele -, que não é possível continuar a viver assim; não tenho sossego, e nem ao menos tiro algum interesse.
— Mas você tem gênero para a sua gente, homem, e pode guardar o que ganha.
— Vossa Mercê diz bem; mas não é uma cuia de farinha um taquinho de carne o que dá para o futuro dos filhos.
— Ah! você quer então contos de réis? Não os tenho infelizmente.
— Mas Vossa Mercê podia ao menos aumentar-me o ordenado.
— Não se adiante tanto, Marciano - respondeu o vigário.
E levantando-se acrescentou:
— Quando for tempo terá, mas por agora diga a sua filha que não estou para a aturar.
Bateram neste momento à porta, e o vigário, que se ia retirar, abriu-a com precipitação..
— Sou eu que vim saber a causa da demora de meu pai; nós tínhamos ficado no corpo da igreja, à espera - murmurou Mundica enleada.
A humildade daquela voz, comparada com os arrebatamentos descritos pelo sacristão, dava a medida da afeição que a rapariga votava a Paula; a utilidade do pretexto realçava-lhe a veemência da paixão que a fazia imponente de dedicação, a melancolia que lhe envernizava de tons de santidade a figura escultural, duplicava-lhe a grandeza do sacrifício.
Paula estremeceu, como se tivesse diante de si um juiz inexorável; mas tomando-lhe a mão carinhosamente, aproximou-a de si, e fitou-a compassivo.
— Vá, pode ir - disse Marciano sorrindo maliciosamente; - diga às outras que lá vou ter em casa.
Mundica tentou retirar-se, porém, o vigário deteve-a com uma branda pressão, e dirigindo-se a Marciano: — Vá você apagar as velas do altar - disse -, enquanto eu ouço Mundica repetir as queixas de que você me falou.
O velho saiu com a impassibilidade da desfaçatez, e o vigário, fechando de novo a porta, perguntou a Mundica:
— Tem tido muita raiva de mim?
A moça não respondeu; limitou-se a olhá-lo com os seus negros olhos úmidos e a sorrir; mas como Paula tentasse colhê-la nos braços:
— Olhe - murmurou.
E estendeu o indicador apontando.
O Cristo, muito lívido, parecia, de envergonhado, ter pendido mais a cabeça sobre o peito ensangüentado. Paula recuou, como que impelido por uma força invisível, e Mundica, correndo à porta e destrancando-a murmurou, acenando-lhe com os dedos:
— Até logo, sim? Eu espero!
Mas o vigário parecia não ver a onda lúbrica emprocelada nos olhos negros de Mundica. Continuou a fitar atentamente o Cristo, com a prevenção de quem espera ser agredido. Dir-se-ia que ele o via descer da cruz e, ameaçador como as visões dos pesadelos, caminhar direito a si para fazê-lo estalar entre os braços, à semelhança dos demônios exorcismados.
Mundica por sua vez embevecia-se na contemplação do seu ídolo. Paula não foi o seu primeiro amor, nem foi ele quem, pela primeira vez, fê-la curtir longas ansiedades suspiradas ao pôr-do-sol, ou ao luar sob as árvores da entrada de casa. Mas com certeza couberam-lhe todas as veemências daquele temperamento selvagem, toda a pletora daquela voluptuosidade silena, e era com elas que Mundica o encarava.
— Vamos, menina, são horas, - resmungou no corredor o velho Marciano, fazendo retinir a cambada de chaves; - as outras lá estão à espera.
Mundica afastou-se com os olhos baixos; o sacristão entrou arrastando os chinelos e, olhando de soslaio para o pároco, foi colocar a um canto o caniço de que se servia para apagar as velas. Voltou para junto do vigário, colocou as mãos nas ilhargas, e sorrindo tranqüilamente:
— Há muito tempo - disse - ando com vontade de falar com Vossa Mercê, para mandar fazer um nicho com uma cortina para aquela imagem. O que acha?
— Não vale a pena - respondeu Paula distraidamente.
— Sempre era mais bonito e fazia melhor vista; eu mesmo o faria.
— É uma imagem velha e sem valor. Temos outras necessidades.
— Pois eu, no caso do sr. vigário, já havia tomado esta providência; podia ficar mais à vontade, sem temor do olhar de Deus.
— Aquele - exclamou Paula escarninho - não faz medo; é um olhar de verniz. Vou almoçar.
E saiu deixando após si, embasbacado e imóvel, o velho Marciano.
Mundica retirava-se já com as irmãs e a mãe decrépita, que tossia muito a sua asma, quando Paula assomou na capela-mor. A família, ao vê-lo, parou e foi em companhia dele que deixou a igreja.
Iam já em meio da praça, quando à janela da casa de Queiroz apareceu o busto sedutor de Eulália, vestida de branco, toucada a cabeleira negra em uma chuva de tranças, que lembravam uma pieuvre enorme agarrada no alto da cabeça a apertar-lhe o colo e as espáduas com os seus poderosos tentáculos.
— Lá está a Eulália - disse Mundica.
E pôs-se a acenar com o lenço.
Acompanharam-na todos, mas nem por isso Eulália correspondeu ao cumprimento.
— Está distraída - observou Paula.
— Ou arreliada - objetou Mundica; o sr. vigário vem nos acompanhando...
— Qual arreliada! Está olhando para outro lado.
— Quando não se quer ver alguém, há sempre desculpa.
E foram conversando até a porta de casa, Paula defendendo e Mundica acerando insinuações contra Eulália.
— Então até logo, sr. vigário.
— Não sei ao certo, filha, tenho tanto que fazer!
— É - respondeu Mundica a morder os lábios -, os pobres retirantes... O melhor é não vir mais ver-nos, para não desgostar...
— Seja feita a sua vontade; eu danço conforme tocam.
E afastou-se em face da perplexidade de Mundica.
— Tu hás de pagar-me, sirigaita - resmungou ela; - andas a passar por santa? Eu te mostro.
A suspeita de Mundica foi para o vigário um motivo de contentamento. Parou à janela do professor e desfez-se em afabilidades com Eulália: Era ela de todas as moças da paróquia a mais pressurosa em socorrer os desgraçados; viam-na todos como a um anjo: com fé, com resignação, com amor. Falava-lhe assim em nome dos desgraçados, que não queriam senão a si; pedia-lhe, pois, que não faltasse à tarde no Engenho, porque, nos dias em que não ia, azoinavam-no com perguntas e queixas.
— É bem provável que hoje não vá; meu pai tem estado a queixar-se de dormências nas pernas.
— Ah! é o reumatismo: não vale nada.
— Não, está se sentindo esquisito, com a voz rouca. Desde o dia da partida do sr. Monte, não se tem sentido bem; fez-lhe mal passar a noite em claro.
— Veja se pode ir; na volta viremos juntos, e eu visitarei o velho. Há de ser alguma cisma.
Eulália beijou-lhe a mão e ele retirou-se.
À tarde, porém, o vigário esperou debalde no Engenho a chegada de Eulália, e levou a entediar-se por largo espaço, ouvindo uma aluvião de queixas que faziam as outras moças incumbidas dos socorros. Não podiam com essa gente, diziam; nunca estava satisfeita, faltava-lhe sempre tudo. As roupas, que lhe eram dadas, desapareciam como por encanto e todos se apresentavam trapilhos e imundos:
— Bem - ponderou o vigário -, não querem ser tratados com bondade? Terão o rigor.
Deixaram-no finalmente só no Engenho entre a massa dos retirantes, a passear de um lado para outro e a expedir de espaço a espaço portadores para ver se vinham ou não "os dois anjos de Deus", como chamavam os retirantes a Eulália e Irena.
Mas, começando a anoitecer, Paula reconheceu que era em vão esperar e, acompanhado por dois retirantes, pôs-se a caminho. Quando chegou à parte já povoada da estrada, despediu os companheiros.
— Digam lá às mulheres que amanhã de manhã não venham cá à paróquia, esperem por mim no Engenho. Quanto a vocês, já sabem, vão para o serviço do adobe.
Seguiu a passos largos a sua caminhada, e depois de conversar com Antão Ramos sobre a probabilidade de faltarem gêneros para a população adventícia, que aumentava dia a dia, enveredou para a casa de Queiroz.
A noite sem luar afastara da praça os passeadores; quase todas as casas estavam fechadas, e o silêncio prolongava e avultava o som das suas passadas na areia.
De repente Paula estremeceu, levou uma das mãos ao pavilhão da orelha e encurvou-se para a frente, arregalando muito as pálpebras. Um vulto caminhava apressadamente diante de si e na mesma direção.
— Quem será? - resmungou Paula, como se falasse para algum companheiro.
Apertou por sua vez o passo no encalço do desconhecido, mas não conseguiu alcançá-lo, porque o vulto levava grande distância de si, e demais disso, era necessário pisar cautelosamente para não fazer rumor. Para maior precaução, Paula desviou-se da trilha geral, e seguiu mais para o meio da praça. De súbito, já em face da horta de Queiroz, o vulto sumiu-se como se a noite o houvesse devorado.
Olhou para todos os lados, surpreendido e atento: não viu senão a homogeneidade da noite; depois ajoelhou-se e aplicou o ouvido, mas nenhum rumor percebeu.
— Distraí-me e perdi a pista - murmurou levantando-se; - ficará para outra vez.
Dera apenas algumas passadas, quando um rosnado de cães e um latido, que para logo cessaram, chamaram-lhe violentamente a atenção.
— Ah! - exclamou levando a mão à testa. - Até que enfim!
Havia nesse brado represo a satisfação da pantera esfaimada, a pousar o olhar esgarado sobre a presa! Como se tivesse adquirido de chofre a elástica celeridade do tigre, colheu a batina e correu sem ruído para o ponto em que o vulto desaparecera. A cerca de pau-a-pique ergueu-se-lhe diante como invencível barreira. Forcejou para ver se podia destacar algum dos mourões, mas estavam solidamente fincados e a aspereza das suas faces magoava-lhe as mãos.
— Mas eu vi - murmurou guturalmente -, vi!... Começou então um trabalho paciente de ladrão, abalando, ao de leve, um por um todos os paus: estes resistiam a sua pergunta sem frase, com a pertinácia de cúmplices. Mas Paula não desanimou; a paciência da vingança premeditada, unida à alucinação do ódio, o impelia e fazia persistir. Afinal um dos mourões estremeceu, e os lábios do vigário arregaçaram-se na treva, enquanto as mãos removiam cautelosas o obstáculo à sua passagem. Entrou, depôs o chapéu junto à cerca, mas logo aos primeiros passos foi obrigado a parar e a esperar: os cães investiram-no furiosamente, e só calaram-se depois de reconhecerem-no. Agachou-se e espantou com um aceno os companheiros impertinentes, que voltaram correndo para o fundo da horta.
Paula pôs-se então a gatinhar vagarosamente, até que se pôde coser com o tronco de um cajueiro. Daí espiou em vão para todos os lados: nem o menor ruído perturbava o silêncio noturno.
Ficava próximo um pano de hortaliça que, machucada pela carreira dos cães, recendia na treva o seu cheiro ativo. A altura dos canteiros e das plantas ocultava perfeitamente um homem a caminhar de rastos, e Paula, deitando-se sobre as mãos, começou a arrastar-se por entre eles. Depois de longo tempo desta excursão penosa, a sua curiosidade foi enfim satisfeita. O cicio de uma conversação a meia voz veio acender-lhe toda a cólera, até então contida. Levou precipitadamente a mão ao bolso e, depois de tirar de lá o canivete-punhal, prosseguiu na sua marcha de serpente, até que novamente parou perto de uma gravioleira, junto à qual conversavam dois vultos, um vestido de negro e outro de branco.
— Amanhã, no Engenho - ouviu o vigário. - Vocês demoraram-se mais, deixam anoitecer e partiremos. Tenha coragem; bem sabe que é o último recurso que nos resta. Adeus!
Alguns soluços abafados responderam ao ousado plano e, à despedida, e o vulto negro afastou-se demoradamente, deixando estático junto da gravioleira o que estava de branco.
Paula seguiu-o de rastos até a cerca, com a precaução dos selvagens. Reconheceu facilmente Augusto Feitosa, e quando este, já da parte de fora, ia voltar-se para colocar no seu lugar o mourão arrancado, o vigário aprumou-se, e, levantando o braço armado, desfechou brutalmente o golpe na altura das espáduas do seu suposto rival.
— Eu morro! - bradou o agredido, cujo corpo esbelto vergou sobre os joelhos e deu redondamente em terra, a golfar sangue.
Os cães investiram coléricos para o lugar do crime, porém esbarraram de encontro à cerca, porque o vigário já havia tomado o chapéu e consertado rapidamente o pau-a-pique.
Paula fez-se então ao largo na praça e renovou por algum tempo o processo pelo qual se aventurara na horta até junto dos dois amantes, enquanto algumas janelas da vizinhança abriam-se precipitadamente, e os vizinhos, sem ousar sair inermes, perguntavam-se mutuamente se não tinham ouvido um grito.
Para logo o barulho dessas perguntas em voz alta mudou-se em alvoroço, e os moradores puseram-se a saltar pelas janelas e a correr aspirando o eco de uma voz, que bradava desesperada:
— Socorro, está aqui um homem morto!
Um grande grupo de curiosos engrossou imediatamente em torno do agredido; mas a perplexidade, a indignação, a piedade confundiam o movimento e o impossibilitavam de tomar qualquer resolução. Comentavam todos, maldiziam, praguejavam, mas ninguém se lembrava de socorrer o ferido e perseguir o criminoso.
— Tragam luzes - gritou por fim o professor, que tinha sido o primeiro a sair e era quem mostrava maior sangue-frio.
Ao frouxo clarão de uma vela reconheceu-se Augusto Feitosa.
Estava caído de costas, com o rosto muito pálido saindo do capuz do capote, arregaçado em parte pelo braço que se voltara de modo a ficar sobre a ferida aberta próximo à espádua direita; seus olhos, feridos pelo estupor do além-túmulo, tinham a majestade misteriosa da morte.
— Está morto! - exclamaram todos.
Queiroz, porém, como se não ouvisse a exclamação dolorosa, ajoelhou-se e, debruçando-se por sobre o corpo, aplicou o ouvido naquele peito sem resfolegar.
— O coração ainda palpita! - gritou jubiloso.
E desabotoando-lhe o capote apertado na garganta, acrescentou:
— Levê-mo-lo para dentro; talvez ainda o possamos salvar.
Levantaram o corpo, despiram-lhe o capote, que foi atirado de encontro à cerca, onde se esparralhou uma posta de sangue coagulado, e o grupo inteiro entrou pela casa de Queiroz.
Uma pessoa, porém, ficou de pé no mesmo ponto, com uma vela na mão, na atitude inconsciente de uma sonâmbula. Foi Eulália. O estupor geral compartiu ela com força dúplice, porque uma suspeita horrorosa alevantou-se-lhe no espírito desde que reconheceu Feitosa. O olhar de todos parecia-lhe convergido sobre si, a pedir-lhe que dissesse o nome do criminoso e desse contas do sangue derramado. E então como que sentia que, irritados pelo seu silêncio, os paroquianos possantes agarravam-na, rasgavam-lhe o colo, arrancavam-lhe o coração e liam nele o nome do culpado; mas ainda assim, imóvel impassível ante o furor geral, ela calava-se como se de nada soubesse.
Quando se viu livre do olhar dos curiosos, sacudiu de sobre si essa pressão humilhante. O rosto contraiu-se-lhe com a expressão do sobressalto, e trêmula, ofegante, pôs-se a olhar em roda, como a procurar alguma coisa. Aproximou-se da cerca ensangüentada, e alumiou-a com atenção. De repente, levando precipitadamente a mão à cerca, puxou dentre os mourões um objeto, gotejante de sangue: era o canivete-punhal do vigário Paula.
— Eu estou sonhando, meu Deus! - suspirou tristemente a infeliz - Não pode ser senão um sonho.
E trêmula, quase sem se poder sustentar de pé, Eulália escondeu no vestido o objeto que tanto a impressionara, entrou, atravessou a sala, e foi trancar-se no seu quarto.
Aí, atirada sobre a rede, soluçou por largo tempo; mas de repente, tirando do bolso a arma do crime, abriu pressurosa a caixa em que guardava as suas roupas, e sob elas acautelou e escondeu a prova esmagadora contra o criminoso.
Na sala a mais clamorosa injustiça dirigia a suspeita dos circunstantes. O comissário Antão Ramos, na sua qualidade de inspetor, fazendo o inquérito e autuando o coro de delito, meneava a cabeça a cada resposta, e afinal não pôde ter-se que não dissesse de onde lhe vinham as suspeitas.
— Querem vocês saber de uma coisa? O melhor meio de castigar o criminoso é mandar mudar aquela peste que lá está no Engenho.
E dava as suas razões: Feitosa estava na paróquia havia apenas cinco meses. Não se malquistara, antes enfeixara simpatias pelos seus modos urbanos, pelos seus cumprimentos de cavalheiro e franquezas de fidalgo. O povo da paróquia não era dos tais que assassinam e roubam: era prudente, morigerado e, portanto, não havia hipótese pela qual se justificasse uma suspeita contra qualquer paroquiano. Podia-se, pois, afirmar com a mão na consciência que o assassino era retirante.
— Mas para que pôr a culpa sobre os que estão morando aí? Lembre-se do Feiticeiro e dos outros - ponderou Queiroz.
— É verdade - concordou Antão Ramos.
E, como se temesse pelos seus bens, quis logo retirar-se.
— Alto lá! - impediu-lhe o professor. - O senhor é a autoridade e tem por obrigação acompanhar o ferido até a casa.
— Pois então avie-se, homem; o que aconteceu a este pode acontecer a minha mulher e a meus filhos, e quem os perde sou eu.
Queiroz pensou a ferida como pôde e, fazendo armar uma rede, entregou-a ao inspetor, que logo acompanhou o moço semimorto na direção da casa dos parentes.
— Não pode escapar - disse Queiroz aos vizinhos que se retiravam -, o golpe foi mortal: deve ter varado os bofes.
— E que alma do diabo perverso será o assassino?
— Não sei; só sei que há de escapar, porque o inspetor tem maior medo dos Viriatos do que do próprio inferno. Boa noite.
— Boa noite, sr. professor.
Queiroz, depois de ter fechado a porta, dirigiu-se para a sala de jantar, de onde partiam soluços abafados.
— Vamos, não é preciso chorar; o rapaz ainda está vivo: vocês o agouram.
— Não, não é isto - murmurou d. Ana -, é uma outra desgraça.
— Outra desgraça?! - perguntou Queiroz.
— Irena está como morta.
— Oh! céus, nós bem os suspeitamos.
O estado de Irena era com efeito assustador. Os seus lábios contraídos deixavam ver os dentes cerrados tenazmente, os braços e as pernas estavam rijamente inteiriçados, o rosto demudado e pálido; a algidez de todo o corpo fariam tomá-la por um cadáver, se uma frouxa respiração e o bater do coração não atestassem que a vida não a abandonara.
Havia longo tempo que estava assim. Depois de acalmado o primeiro espanto, Eulália dera por falta de Irena, e saíra em sua procura pela horta, onde a foi encontrar, imóvel e fria, caída no meio dos canteiros.
Queiroz não teve mais forças para dar um passo, e sentou-se em frente a sua velha irmã, que se debulhava em lágrimas.
— É uma coisa esquisita isto que se está passando com estas duas meninas - murmurou d. Ana; - de uns tempos para cá como que estão sempre a chorar. Agora, enquanto a outra se conserva fora de si, Eulália fica como doida, e até parece ter febre.
— Não é esquisito só, minha irmã, é muito triste. É a desgraça que persegue o pobre Monte.
D.Ana, que não podia atinar com o sentido das palavras de Queiroz, fez um gesto negativo.
— Eu no seu caso procurava saber tudo de Eulália.
— Não é preciso; infelizmente eu sei a razão por que julgo o meu pobre Monte completamente desgraçado.
Calaram-se. D. Ana dirigiu-se apressada para o quarto da sobrinha, mas foi detida ainda por uma pergunta do professor:
— Os escravos de Monte ficaram também em nossa casa?
— Não - respondeu d. Ana ingenuamente.
E entrou.
Queiroz, não podendo mais conter as lágrimas, deixou-as correr livremente; mas receoso de que lhe perguntassem a causa, que ele não daria nem por ameaças à sua vida, levantou-se e, quase arrastando-se, foi fechar-se na sua alcova.
— Oh! Que horrorosa suspeita! - exclamou com voz sumida.
Alta noite, quem espiasse para dentro veria ainda o honrado professor recostado na rede, com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados, a olhar com a tristeza da insônia para a vela que se extinguia.
Eulália, com a energia própria do seu caráter, reagiu contra a espécie de alucinação que a assaltara, causada pelos inesperados sucessos atropelados em tão poucas horas. Enxugou as lágrimas, domou a comoção, e assim conseguiu não aumentar a inquietação de Chiquinha, e principalmente de d.Ana, cujos olhares lhe faziam perguntas incessantes.
Mas como a chama de uma lâmpada, cujo maior clarão coincide com o momento da sua extinção, a razão de Eulália pareceu-lhe baquear com esse esforço; a moça sentiu-se adoidar pelo sofrimento e sua imaginação começou a delirar acordada. Via diante de si o vigário ainda com as mãos tintas de sangue, perseguido pelo clamor de toda a paróquia, entrar pelo seu quarto, com os traços em desordem, os lábios ressequidos pela febre, os olhos fuzilando o temor do castigo degradante, mas ainda assim desfiando frases ternas para si, perfumando com a sinceridade do seu afeto o cruor tonteante do sangue derramado, a pedir-lhe que lhe pagasse com o amor a desgraça que lhe votara o destino. O pudor de virgem, os escrúpulos de moça educada endureciam-na e cegavam-na às solicitações trépidas daquela paixão explosiva, que irrompera alucinada do seu mistério e demolira a punhal o obstáculo que julgou impedi-la do objeto amado. Mas os gritos dos perseguidores aproximavam-se cada vez mais; o tropel tornava-se mais distinto; já se diferençavam mesmo as vozes de alguns vizinhos, que exigiam a viva força que entregassem o criminoso. Seu pai, o velho Queiroz, severo e corajoso, impedia a passagem a essa gente, bradando: "Aqui é o quarto de minha filha, e não um couto de assassinos!" Mas não o atendiam; queriam entrar e haviam de entrar. Ombros robustos encostavam-se à porta e impeliam-na com a tresdobrada pujança da cólera. A madeira fraca já estalava, e no entanto Paula ali estava, hirto, com os cabelos ouriçados, tendo ainda à flor dos lábios uma frase de amor paralisada pelo susto. Então o seu recato de donzela soluçou, mas o coração, pagando a temeridade da paixão insensata de Paula, ordenou-lhe que indenizasse em ternura o que o infeliz lhe dera em sacrifícios, e ela, dócil, contente pela idéia de salvá-lo, desfazia as longas tranças negras, e, lavando-lhe as mãos com uma torrente de lágrimas, enxugava-as na sua cabeleira farta e cheirosa das murtas da virgindade. Um riso largo e bom enchia-lhe os arcanos da sua sensibilidade; já não temia que entrassem: era ela mesma que desejava abrir passagem. Repentinamente porém teve de recuar, porque via diante de si um dedo, curvo e brilhante como a lua no crescente, apontar inexorável para a caixa, indicando aos perseguidores uma testemunha do crime. Então Eulália, vendo burlada toda a sua esperança, teve um acesso de choro... e prorrompeu realmente em soluços.
Quando as lágrimas dissolveram os traços horrorosos deste quadro, a imaginação substituiu-o por um outro não menos contristador e travoroso. Era Irena que se alentava, e inteiriçada no seu espasmo, encostava-lhe os seus lábios repassados da frialdade dos mortos, e com esse beijo, que parecia ser dado pelo mistério de além-túmulo, acordava-lhe no seio o remorso insopitável e sanhudo, a espremer-lhe do coração a imagem de Paula, com a impassibilidade de um médico a espremer um furúnculo. Então o vácuo deixado escancarava-se como um abismo, e daí surgia, todo banhado em sangue, com a ferida muito aberta e vermelha, como ouvia na infância pintar a garganta do inferno, o corpo lívido de Feitosa a implorar-lhe vingança a troco do paraíso.
Agitada por estas visões, Eulália, ora passeava, ora parava, sem saber o que fizesse, até que, vindo ajoelhar-se junto de Irena, disse-lhe com voz sumida, sufocada entre soluços:
— Acorda, minha amiga, acorda; o teu sono mata-me.
E sacudia-a, e beijava-a, e unia àquelas faces frias a fronte escaldada pela febre.
Em vão! O espasmo continuava com a pertinácia da morte, apesar dos cuidados de d. Ana.
O vigário, esporeado pelo pavor, esgueirou-se cautelosamente, ora recolhendo-se, ora arrastando-se, com receio de ser visto. Quase no fim do largo ficava a sua casa, alvejando o caio novo e deixando perceber luz no interior, pela porta escancarada. Paula afinal parou em frente e, colando-se ainda mais com o solo, pôs-se a escutar. Nenhum outro ruído lhe chegava ao ouvido, além do sussurro das vozes dos vizinhos reunidos no lugar do crime. Ergueu então a cabeça, observou: ninguém passava. A porta de casa, ali tão perto, asserenou-lhe o ânimo. Deu alguns passos, e... estava salvo!
Entrou pé ante pé com a batina muito colhida, penetrou na sala escura e silenciosa, e resfolegou longamente. Não o tinham visto, e nem os próprios criados deram pela sua prevenida entrada.
— José, traz-me luz - rouquejou com azedume.
Entrecerrou as bandeiras da porta, ficou à espera, e quando o pequeno, todo trêmulo, com os olhos apertados pelo sono e pelo choque da claridade, entregou-lhe o castiçal:
— Estão frescos guardas para a casa - disse. - Safe-se, moleirão!
Fechou-se cuidadosamente, enquanto o pequeno trancava a porta da rua e, pisando de manso, entrou no quarto de dormir, colocando o chapéu e o castiçal sobre a mesa, onde o velho Cristo quedava na sua perpétua escravidão de piedade.
Paula, encarando despreocupadamente com a imagem, foi deitar-se na rede; espreguiçou-se muito, escancarou um prolongado bocejo, ajeitou-se nos travesseiros e jazeu tão calmo que dir-se-ia ter adormecido.
Mas pouco depois, levantando-se de um salto, pôs-se a examinar miudamente a batina e em seguida o chapéu redondo de grandes borlas pretas. A roupa empoeirada e empastada pela terra da horta, úmida da rega vespertina, estava felizmente intacta; só alguns dos botões tinham desfiado um pouco pelo prolongado roçar. No chapéu não havia o menor vestígio, a não ser uma pequena mancha de sangue.
Dirigiu-se até o lavatório, improvisado com um alto mocho e uma bacia de ferro, sobre a qual refletia o polido embaciado de um espelho. Com a cabeça baixa, os lábios contraídos num sorriso, lavou tranqüilamente as mãos e a orla da manga da batina. Depois, pingando com a ponta dos dedos gotas de água no pêlo empastado do chapéu, demorou-se a esfregá-lo com a unha. Voltou então para junto do lavatório, onde, depois de enxugar as mãos, atirou desdenhosamente com a toalha. Calmo, foi a um cabide pendurar a batina e o chapéu, e resmungou finalmente com um sorriso mais franco e acentuado:
— Procurem agora pelo homem da capa preta!
Ao pronunciar a última palavra, porém, tinha suspendido a cabeça e os seus olhos depararam com a sua imagem no polido do espelho. Inclinou-se sobre ele, passou a mão aberta sobre as faces e, a estremecer como um friorento, veio buscar a vela que deixara junto ao Cristo, tornando a ir mirar-se ao espelho.
— Sangue! - disse com um sussurro gutural.
E, depositando a vela sobre o lavatório, pôs-se a lavar o rosto sofregamente. Enxugou-se com a mesma precipitação, levantou a tremer a vela e de novo olhou para o espelho. O sorriso voltou-lhe na inteireza da sua perversidade, mas não demorou muito a extinguir-se: um fio de água sanguinolento, escorrendo sobre a volta, molhara-lhe a camisa e aí deixara uma grande mancha comprometedora.
— Que teiró - resmungou desabotoando-as convulso e atirando-as com arrebatamento a um canto.
O ar fresco do quarto ladrilhado envolveu-lhe o tronco despido, e o frio momentâneo que lhe causou como que lhe pareceu o contato do braço de um agente da justiça, que o segurasse pela nuca. Encurvou-se todo e, trôpego, caminhou para uma caixa de folha, que estava por debaixo da mesa.
A postura em que se achava punha-lhe a cabeça na altura do semblante do Cristo. Paula, ao inclinar-se, roçou por ele e fez vacilar na pequena peanha a cruz negra, de verniz já deteriorado. O fraco ruído produzido bastou para fazê-lo recuar desvairado, e como olhando em roda de si nada avistasse, encarou irritado para a imagem.
— Não, não me assusto - resmungou com acentuado escárnio; - não tremo, olho-te de face.
Mas à proporção que o desvairamento lhe inspirava estas blasfêmias, a consciência punia-o tacitamente. Todo o corpo tremia-lhe, a garganta vasculejava as palavras, os olhos esgaravam-se, os cabelos ouriçavam-se. Malgrado seu, os joelhos dobraram-se-lhe na atitude da prece, enquanto as mãos trêmulas seguravam o crucifixo. Então as lágrimas e os soluços romperam-lhe em quentes borbotões, deslizando-se pelo corpo frio do Cristo, que ele, mordido pelos remorsos, apertava contra o seio.
— Perdão! Perdão!... - soluçou contritamente. - Eu não era mau, Senhor; fizeram-me perverso; vós conheceis a minha dor... Oh! meu Deus! Ocultai a minha vergonha, escondei o meu crime para sempre!
Quem o visse, prostrado, sufocando-se em soluços, afogando-se nas lágrimas, cheio de arrependimento momentâneo, julgá-lo-ia resgatado.
As lágrimas do remorso lavam na imaginação dos crentes a mancha dos maiores crimes. Venha embora a miséria bater à porta da vítima a pedir-lhe as filhas para o alcouce, os filhos para os quartéis, a viúva para o nivelamento tristonho do hospital, não importa; a onipotência divina volta as costas aos que sofrem, e prepara os caminhos estrelados do céu para o criminoso arrependido!...
Mas Paula não se conservou por muito tempo nessa postura de penitente; erguendo-se de súbito, com o crucifixo apertado em uma das mãos, caminhou direito à batina, cujos bolsos revolveu freneticamente.
— Não está - pronunciou guturalmente -, não está!
Pegou então na vela com um dos dedos da mão com que segurava o Cristo, e dirigiu-se à rede, de dentro da qual tirou toda a roupa, que sacudiu por terra.
— Não está, não está! - repetiu cada vez mais ofegante.
E caminhou para a sala.
Todos os papéis que estavam sobre a mesa foram remexidos com impaciência febril; em seguida revistadas atentamente todas as cadeiras; mas ainda uma vez desanimado, lacrimoso, proferiu na garganta o pavoroso desengano:
— Não está!
A busca minuciosa prolongou-se por toda a sala, pelo quarto e pelo corredor; nem por isso o vigário pede achar o desejado lenitivo à desilusão angustiada, que o estortegava nas suas garras afiadas.
— Deixei-o então ficar por lá! - exclamou soluçando aterrado. - Estou perdido, perdido inteiramente!
Tinha-se deixado cair sobre uma cadeira; mas, com a inconstância dos pensamentos horríveis que se encontravam na sobre-excitação do seu cérebro, levantou-se e abriu uma das janelas.
A vela apagou-se sussurrando a uma esfuziada de vento. Cercada por uma auréola cor de ouro vinha surgindo a lua cheia, rubra como se se houvera espojado em uma sangueira. Uma claridade mortecida enchia já a praça e empalidecia a serenidade do céu, por onde nuvens muito brancas desfilavam com a celeridade das locomotivas, e rentes com o azul como com o solo do hipódromo os ventres dos cavalos disparados. Vinha um ramalhar uivado e tristonho do arvoredo dos quintais, misturado com o chocalhar e o bufar dos animais, que raspavam nos cercados os últimos folíolos de erva.
Paula chegou-se à janela e espiou timidamente para todos os lados. A solidão era completa. Fez então um jeito de trepar; o castiçal ressoando deteve-o, e ele, apressado e trêmulo, veio colocá-lo à mesa. De volta, ficou imóvel por algum tempo, como se temesse que o fraco ruído tivesse sido ouvido por alguém. A claridade tornava-se a pouco e pouco maior, e o vigário pede ver na areia o rastro que deixara.
— Está tudo, tudo a condenar-me, meu Deus! - disse baixinho.
E olhando para o crucifixo, acrescentou:
— Senhor, defendei-me, defendei-me!
O luar, pondo em relevo a pujança daquele corpo seminu, parecia rir de tamanha fraqueza, assustadiça ao menor ruído, trêmula diante de um fraco vestígio sobre a areia.
O vigário olhou ainda uma vez para a extensão da praça, fechou a janela, e foi, tiritando mais de medo que de frio, mergulhar-se na rede, onde afinal adormeceu abraçado tenazmente com a imagem do Cristo.
Só no outro dia levantou-se estremunhado com o bater desesperado do pequeno, que vinha lembrá-lo de que eram horas de celebrar a missa.
Um sossego farisaico voltara-lhe já inteiro; apenas o semblante denunciava, pela morte-luz do olhar, a luta indescritível da sua noite de remorso.
Saiu, conforme seus hábitos, a cortejar com o sorriso de bonomia e escárnio os simples paroquianos que se descobriam à sua passagem, e quando na sacristia ouviu do velho Marciano o acontecimento da noite, não teve senão uma comoção muito natural. Vestiu-se e, quando ia conchegar a alva aos cordões, perguntou serenamente:
— E morreu?
— Felizmente ainda está vivo, mas todos dizem que ele não escapa.
— Pobre rapaz! Era digno de melhor sorte!
De volta do altar, desrevestiu-se, queixando-se do calor, e, sentando-se na sua cadeira de espaldar reatou a conversação sobre Feitosa.
— E aonde apanhou o golpe, Marciano?
— Rente com a espádua, sr. vigário.
— Muito largo?
— Não, senhor; parece que foi punhal.
— Então foi muito fundo?
— Deve ser, para que ainda hoje o moço esteja tão prostrado e em perigo de vida...
— Mas não há certeza então da arma?
— Cisma-se que foi com um punhal, mas não se achou a arma.
— E quem desconfiam que seja o criminoso? - perguntou resfolegando.
— Da paróquia Vossa Mercê há de concordar que não foi ninguém; o moço está aqui há pouco tempo...
— É exato.
— Não tem vexado ninguém.
— É verdade - continuou Paula sacudindo a cabeça.
— Há de ser por força algum desses ladrões, pelos quais Vossa Mercê apanha soalheiras e faz chorar a pobre Mundica.
— Bem, bem, Marciano, não é bom fazer juízos temerários. Há testemunhas?
— Infelizmente não; porque se houvesse o tinhoso havia de ser feito em postas.
Paula levantou-se e, espreguiçando-se demoradamente, exclamou entre um bocejo:
— Veja como são os juízos dos homens! Os nossos avós diriam sabendo deste crime: foi algum dos Montes. Você, Marciano, diz hoje que são os pobres retirantes. Ah! mundo, mundo!
E saiu com o seu passo imperturbável.
— E quem sabe se ainda hoje não se pode dizer o mesmo -resmungou o velho sacristão, pondo a mão sobre a casula que dobrava; - o ódio de Rogério é tão vivo hoje como o de seus antepassados!... Mas, não - exclamou continuando o trabalho -, não pode ser ...
Desde a noite fatal, a essa de Queiroz perdeu inteiramente o ar alegre que a distinguia entre as da paróquia.
Os meninos deixaram de cantar, reunidos em aula, a musica monótona das suas contas e leituras. Entravam e saíam com uma vaga tristeza daquela sala grande, que lhes fazia saudades na ausência, e freqüentada entristecia-os.
— O mestre está bem doente.
— Vamos ter muitos suetos: é este mês todinho.
De feito, o velho Queiroz, na manhã seguinte à tentativa de assassinato contra Augusto Feitosa, queixava-se ainda mais das dormências e dores pelas pernas e braços. À tarde, indo espairecer pela horta, sentira as pernas fracas, como que desarticuladas nos joelhos, pesando muito. Dera apenas algumas voltas e, no entanto, chegando a casa, dizia-se cansado, como se houvera feito uma jornada fadigosa.
Passara este dia inteiro muito triste; ia de vez em quando à cabeceira de Irena, que havia despertado do seu prolongado espasmo, porém se conservava em grande prostração. Isto o impressionava muito e, para cúmulo de infelicidade, o vigário não tinha aparecido para dar o seu quarto de hora matinal, nem viera depois para distraí-lo com a bisca e com os comentários que necessariamente faria a respeito do sucesso da noite.
— E o Paula? - ponderou ele a sua irmã. - Como que vai se esquivando da gente pouco a pouco!
— Anda agora entretido com os seus pobres.
— Não é razão; sempre veio aqui apesar disso.
— Você é muito desconfiado; pelo vigário ponho eu a minha mão no fogo.
— Eu hoje não juro nem por mim - murmurou Queiroz; - há coisas que não se explicam.
— É verdade, e uma delas é a doença de Irena.
— Ora é muito boa esta! Pois o estado do pai, a certeza de que vai sair do lugar onde nasceu, é pouco?
— Mas também um sentimento assim é demais.
— São gênios; sempre foi assim quando pequena. Você já não se lembra que ela adoecia quando quebrava as bonecas?
Desculpando, porém, com tanto zelo a filha do amigo, Queiroz mostrava não ter convicção do que dizia, e as suas palavras junto da rede de Irena eram um desmentido solene que a si próprio dava.
D. Ana, por sua parte, limitava-se a sacudir os ombros.
Três dias depois dos múltiplos sucessos da noite do crime, um novo desgosto veio juntar-se aos muitos que torturavam o professor.
O inspetor Antão Ramos veio visitá-lo, e pediu-lhe um instante em particular. O começo da conversação foi dolorosamente embaraçoso para ambos, até que se ferisse o ponto.
— Você sabe, Queiroz: eu não desconfio nada do velho Monte.
— Mas para que declarar isto, homem?! Deve-lhe ele alguma coisa? Conte certo o pagamento.
— Antes fosse por isso; neste ponto ninguém lhe põe o pé adiante.
— E então por que havia de desconfiar?
— Eu lhe digo: rosnam que a partida do Monte para o Aracati foi uma chicana.
— E quem é que rosna este desaforo?
— Toda a gente.
O professor endireitou-se na cadeira, e baixou os olhos para esconder a sua contrariedade.
— E a propósito de que dizem esta grande tolice?
Antão Ramos demorou-se muito a responder; compreendia que as suas palavras arrastariam o professor a um transe doloroso. Mas, afinal, disse com longas reticências:
— Você sabe, bem? Deu-se aquele desastre com o Feitosa, e o rapaz não tem um só inimigo... Para serem os Viriatos, eles não se contentariam com tão pouco, tanto mais que o rapaz não trazia nada consigo. E então..
— E então?... - perguntou Queiroz, trêmulo e indignado, a olhar fixamente para o inspetor.
— Toda a gente se recordou do ódio que há entre Montes e Feitosas.
— Mas pensam esses malvados que foi Rogério quem o quis matar?
— Eu por mim não creio mas... O velho mesmo disse muitas vezes que tinha coragem de atravessar o coração a um por um dos Feitosas.
— Palavras ditas à toa, Antão Ramos... - ponderou Queiroz, titubeando -, no calor da conversa. Mas Rogério é incapaz de matar uma mosca e, se quisesse atacar um Feitosa, você bem sabe, atacava-o cara a cara.
— Tudo isto eu digo, mas o zunzum não deixa de crescer. O próprio rapaz creio que diz a mesma coisa.
— Mas é uma calúnia! - bradou Queiroz convulsamente.
— Diga-me quem a espalhou que eu vou desmascará-lo.
— Vá lá saber quem foi; anda na boca de toda a gente.
— E você também acredita?
— Eu só farei o que a lei manda, quando se tirar a limpo este negócio.
— Muito obrigado; Monte há de justificar-se. Quando o inspetor retirou-se, Queiroz vestiu-se prontamente, e saiu, arfando o seu cansaço, em procura do vigário. Achou-o em casa muito pensativo, com o rosto macerado, a voz muito rouca, e os modos muito distraídos.
— Já não aparece pela casa dos pobres, sr. vigário; todos são filhos de Deus, e lá diz o rifão: pobreza não é vileza.
— Tenho estado muito doente, e não sabia que você estava tão incomodado.
— Deixemo-nos disto: de ingratos está o inferno cheio. O que me traz aqui....
— É o seu velho amigo Monte - interrompeu-o o vigário.
— Pois você também já ouviu?
— Se está tudo cheio - ponderou Paula, contendo um calafrio. - Voz do povo é a voz de Deus, ou.
— A do diabo, como neste caso.
— Mas vá lá convencê-los.
— Você podia fazê-lo - exclamou o professor - se fosse ~r com Augusto Feitosa, se lhe dissesse que tinha lido a carta do Aracati, se provasse como isto não passa de uma emboscada de algum desses miseráveis retirantes.
— Tudo Isto já eu lhe disse - respondeu Paula friamente -, mas perdi o meu latim; deram para dizer que foi ordem do Monte, o que quer você que se lhes faça?
— Mas então um inocente há de pagar pelo que não fez?
— O Cristo morreu assim. Mas não há de que desanimar por ora; não passa de boatos.
A frieza do vigário indignara o honrado professor, que se levantou para sair despedindo-se com uma secura hostil.
A sua amizade por Monte obrigou-o, porem, a deter-se, e a suplicar o auxílio do vigário.
— É um nosso velho amigo, Paula. Você tem um gênio esquisito, mas não há de deixar que um amigo sofra inocente.
— Eu tenho um alvitre a aconselhar. Monte retira-se daqui o mais depressa possível e troca o nome; nessa leva de retirantes quem o há de descobrir?
— Mas isto é um recurso desesperado.
— É para o caso desesperado; se ele ficar, está perdido. A mãe de Feitosa jurou persegui-lo até a morte.
Queiroz voltou a casa estalando de amargura. A monstruosidade do infortúnio do seu amigo entontecia-o, embriagando-o de pesar. Pensava em ir ter com Augusto; mas por sua vez sentia-se fraco para convencê-lo da inocência, que ele afirmava como amigo, mas de que em consciência não estava convencido. O que lhe dizia o coração era justamente o que repetiam todos, e demais tinha sempre na memória as palavras de Paula: "É um bom homem que há de ir parar no inferno a dar esmolas". O ódio entranhado e indelével do amigo era capaz de tanto, ou mais.
No entanto, alguma coisa lhe dizia ao mesmo tempo que não tinha sido Monte o mandante do crime. Fora sempre leal e nobre, não atacaria de emboscada, embora soubesse que, vingando-se, morreria. Mas essa dúvida favorável desaparecia logo, porque vinha combatê-la a suspeita de Rogério acerca das relações entre Irena e Augusto, o que considerava tamanha afronta ás suas tradições que não trepidara ante a idéia de ver morrer a filha.
Enredado pelas agravantes que o próprio Monte fora solícito em acumular contra si, Queiroz por sua vez concordou com o vigário em que só havia um meio para salvar o amigo - a fuga.
— Eulália! - chamou o professor.
Quando a filha veio ter consigo, disse-lhe bruscamente:
— Você, que é a cúmplice da desgraça de Irena, vá convencê-la de que ela deve mostrar-se corajosa e não demorar aqui o pai.
As palavras de Queiroz - feriram fundo o coração de Eulália. Debilitada pelas vigílias, torturada pela cruel certeza de que fora a causa de um crime, tinha passado os dias a esconder as suas lágrimas, a reprimir os gritos da consciência, que ora aconselhavam-na a que arrancasse do mistério a origem e o autor do atentado, ora impunham-lhe silêncio em nome da paixão violenta e indomável de Paula. O tom severo de seu pai pareceu-lhe uma sentença que a exilava para sempre do seu coração, e uma dor funda, sem lágrimas, estranguladora como a laçada de um tugue, constringiu-lhe a garganta, e atirá-la-ia por terra sem sentidos, se os braços de Queiroz não a amparassem.
— Mas que culpa tenho eu? - murmurou queixosa.
— Eu sei lá, filha! - respondeu o pai arrependido; eu sei lá o que digo! Vivíamos todos felizes. Vocês eram a nossa alegria, o nosso orgulho, a nossa esperança. Chamavam-nas por aí as letradas da paróquia, e nós ríamo-nos da inveja dos maldizentes, porque víamos em vocês grande diferença das matutas nossas conterrâneas. Mas, de repente, vocês procedem da mesma sorte que elas, pior ainda do que elas...
Eulália abatida, receosa, sem coragem para defender-se, nem pestanejava, pensando que ia ouvir pronunciar o nome do vigário.
— O resultado - continuou Queiroz - é que Irena, apesar de ser uma santa, vai cavar a cova para o desgraçado pai, com o seu amor insensato.
As lágrimas rebentaram tumultuariamente nos olhos avermelhados do professor, que prosseguiu solenemente:
— Ouve, minha filha; eu sei que não era você quem devia ser a denunciante de sua amiga, mas também não lhe ficava bem servir de capa ao seu amor. Eu sei que não se pode muitas vezes fazer caiar o coração, porém responda: uma filha deve condenar á morte, á vergonha, à ignomínia o pai que a idolatra?
— Meu pai! - suplicou a mísera Eulália - Não a condene assim; ela tem sofrido muito.
— Não há sofrimento que impeça um filho de salvar a honra de seu pai.
— Mas também - balbuciou a filha - o ódio dos pais não deve servir de obstáculo à felicidade do filho.
— Não se trata disto - respondeu Queiroz visivelmente contrariado. - É da honra de Rogério que se trata. É preciso que Irena se decida a partir hoje, amanhã, agora mesmo, no instante que seu pai quiser.
— Mas isto é condená-la à morte, meu pai.
— Que morra, entendeu? Mas salve o nome de seu pai, que, de outra sorte será arrastado à prisão, infamado e punido como tendo tentado assassinar Feitosa.
Um ai! repassado de angústia indefinível rompeu dos lábios trêmulos de Eulália, que se precipitou nos braços paternos sufocada a soluçar.
O professor, ameigando a voz, continuou:
— É preciso ter coragem, filha, se quer salvar Irena, salvando a honra de seu pai. Ela não resistiria ao golpe de vê-lo manchado com o labéu de assassino.
Surda às consolações do velho, Eulália parecia querer dissolver-se na abundância das lágrimas. Os lábios continham-lhe a custo o segredo, cuja integridade o coração impunha-lhe guardar. Sentia-se bem a luta que lhe ia no espírito, pelos seus movimentos bruscos, ora levantando a cabeça do ombro de Queiroz, ora fitando-o para logo recair nos angustiosos soluços.
— Vai, minha filha, vai ter com tua amiga - insistiu o professor. Eu sei quanto ela sofrerá, mas Deus há de ajudar-nos a descobrir o criminoso, e então quem sabe se o próprio sofrimento que hoje nos tortura a todos, não será um meio de unir para sempre Irena e Augusto?
O honrado professor enxugou amorosamente os olhos pisados de Eulália e, beijando-lhe a testa, conduziu-a silencioso até a porta do quarto, onde Irena quase passava os dias em madornas sucessivas.
Ficando só, conservou-se Eulália de pé por algum tempo a conter a onda tumultuária de soluços que se lhe emarolava no seio, e só entrou para ver se subtraia-se a sua velha tia, que, deixando a costura, veio saber o que tinha havido entre ela e seu pai.
A boa senhora, porém, acompanhou-a.
— Esta casa parece estar excomungada, disse d. Ana; é desde manhã até a noite choros e mais choros, e sem se saber por quê.
— Quer que me ria, quando não tenho vontade, titia?
— Pois não tem razão para viver assim; aqui ninguém a maltrata. Estes choros até hão de fazer o mano pensar que é alguma coisa com a gente. Isto é por força e obra de satanás.
— Não é então coisa de perigo; benze-se a casa, e tudo cessa.
— Oh! Sr. vigário - exclamou d. Ana amaciando o tom de molestada com que falava à sobrinha. - Bons olhos o vejam. Pensei que estava ofendido conosco.
Paula assomou na porta da sala de jantar; sorrindo estendeu a mão a d. Ana, que lhe saíra ao encontro, e voltando-se para o lado de Eulália, perguntou-lhe afetuosamente:
— Foi você quem trouxe o diabo para casa, menina? É preciso uma semana de penitência.
— Eu vou avisar o mano - continuou d. Ana; - a sua presença aqui é agora para cantar-se a boa nova.
E a excelente senhora tomou o pequeno corredor que conduzia à sala das aulas, chamando pelo irmão.
Eulália, apoiando-se com uma das mãos ao umbral da porta do seu quarto, quedou com os olhos baixos, e Paula, meio perturbado, estatelou também no lugar em que falara com d. Ana.
— Já não lhe mereço um aperto de mão? - murmurou depois de um breve silêncio. - É mais severa do que todos, e no entanto é quem não tem razão para isso.
Eulália levantou os olhos lacrimosos e encarou severamente com o vigário, que não pôde sofrer de fronte erguida o olhar da moça, misto de indignação e de espanto.
Mas, ainda tentando sufocar a consciência, disse com um tremor fraco na voz:
— Não sei por que provoquei-lhe tanto ódio...
Um impulso brusco de Eulália escancarou a porta, deixando ver no interior do quarto o rosto lívido de Irena, meio reclinada e adormecida, e ao mesmo tempo a moça travou do braço do vigário com violência igual a sua angústia.
— Veja, senhor, veja - disse com voz sumida: - Feitosa está moribundo e a minha pobre amiga está assim.
O hábito da hipocrisia deu ainda ao vigário forças para sorrir e voz para responder:
— Queixe-se do Monte.
— Que diz?!
— É pelo menos o que todos dizem.
— Mente, mente - articulou a moça com voz surda. - Eu vi!...
— Mais baixo, mais baixo, que me perdes, acudiu o vigário trêmulo e agarrando a mão de Eulália.
— Nunca lhe tinham feito mal e o senhor fê-los desgraçados.
— Mais baixo, mais baixo, por piedade! - segredou Paula ansioso e aterrado... - Se te ouvem, estou perdido - suplicou querendo ajoelhar-se.
— O senhor fala em piedade, mas não teve...
— Não - atalhou o vigário alucinado -, não podia tê-la! Não podia tê-la, porque te amo!... Amo-te como doido, e ele também te amava... Oh! não me interrompas: amo-te!... entendes?... E não serás de outro ainda que eu tenha de despenhar-me no inferno em vida!
E erguendo-se de improviso, colheu nos braços a cintura de Eulália, em cujos lábios tentou depor seus lábios abrasados de paixão.
Eulália defendeu-se arrebatadamente; soltou-se dos braços que a prendiam, recuou cambaleando para dentro do quarto e foi cair sobre uma caixa. Ai toda a indignação deliu-se de súbito na sua própria energia: com a cabeça pendida entre as mãos, presa de extraordinária ansiedade, derramando amarguradas lágrimas, murmurou afinal entre soluços abafados:
— Oh! meu Deus! É um miserável... mas eu... o amo!
No corredor tinha-se feito já ouvir a voz de d. Ana:
— Desculpe, sr. vigário, mas o mano não pode vir cá; doem-lhe muito as pernas e não pode firmar-se nelas, porque fez um excesso ainda agora.
Paula, com uma suprema força de vontade, tinha já recuperado a calma.
— Quem sabe se não é o beribéri? - ponderou a d. Ana. - Tem havido muito este ano.
A velha senhora, que se havia aproximado, pôs-se a olhar para a rede em que jazia Irena na sua prostração assustadora.
— Vê o sr. vigário o que são desgraças? Tem padecido muito esta pobre criatura.
— Coitadinha!... Se ela vê o pai quase perdido.
D. Ana agitou o indicador negativamente.
— Como não? - perguntou o vigário a meia voz.
— O mano pediu-me que acompanhasse o sr. vigário até o quarto dele. Vamos?
Depois de darem alguns passos, pararam, e a boa senhora pôs-se a vazar no ouvido de Paula as suspeitas que nutria.
— Quanto a mim a doença dessa menina é pelo Feitosa.
— Qual, d. Ana! Acredita que estas duas famílias chorem uma pela outra?
— O certo é que, na noite do rebuliço por causa do rapaz, foi que ela ficou pior.
— Mas o pai tinha partido e ela sabia que iam ficar reduzidos a nada...
— Pode ser, sr. vigário; mas eu lhe digo aqui como quem se confessa: parece até que o rapaz foi ferido por causa dela.
— Não pense nisto, d. Ana; Irena nem por sombra pensa no Feitosa: eu sou o seu confessor.
— O sr. vigário me absolve de um mau juízo?
— Diga.
— Eu não ponho as mãos no fogo; tenho pensado muito neste ponto: Irena foi encontrada fora de si, caída entre os Canteiros.
— Deveras, d. Ana?! - acudiu o vigário prontamente. -Diga-me: então foi ela quem esteve?... quem foi achada entre os canteiros?
— Já sabia? - perguntou a boa senhora.
— Não, soube agora... Estou tão comovido com tudo isso que nem sei o que digo. Foi achada entre os canteiros, dizia a senhora; mas não devia estar só, estava com Eulália... certamente.
D. Ana agitou de novo o indicador em sentido negativo.
— Eulália estava na sala, porque o mano já se sentia adoentado.
— Mas é então uma grande desgraça! - exclamou Paula comprimindo a fronte com uma das mãos. - Oh! uma fatalidade, santo Deus!
— Veja o sr. vigário, ninguém poderia desconfiar. Daí para cá tem a infeliz estado sempre como morta...
Paula ergueu o busto, parecendo ter tomado uma súbita resolução.
— Percebo agora por que Feitosa insiste em que foi o velho Rogério quem o mandou matar, disse serenamente.
— Jesus do céu! O pobre não sabe de nada; eu vou jurar que nem lhe passou pela cabeça. Diga a todos, sr. vigário, diga a todos; salve o infeliz de mais este desgosto.
— É impossível, d. Ana. Dói-me tanto como à senhora, mas para convencer Feitosa era preciso encontrar o verdadeiro criminoso, e este como se poderá descobrir?
— Esta confissão já está sendo longa - ecoou do quarto a voz simpática de Queiroz -, guardem o resto para a quaresma que vem.
— Está ralado de dores e ainda brinca, sr. vigário; é mesmo um santo! - disse prazenteiramente d. Ana. - Não lhe diga nada a respeito de Monte: ele ficaria pior.
— Fique descansada, d. Ana.
Paula entrou no quarto do professor, ainda transfigurado pela confusão que lhe causava o que acabava de ouvir, e sobretudo impressionado por aquela exclamação comprometedora de Eulália, que o fizera fraquear e trair-se.
— Ela viu - pensava ele. - Odeia-me sem dúvida e dentro em pouco toda a gente saberá que fui em quem, sem uma queixa, sem a menor ofensa de Feitosa, tentei tirar-lhe a vida. Não haverá um coração por mais piedoso que me perdoe, e o meu nome cobrir-se-á para sempre de vergonha. Oh! como sou maldito!
O tumultuar do pensamento estresia-se-lhe no semblante, no imenso fuzilar dos olhos, no mordicar incessante dos lábios, no freqüente confrangir dos supercílios.
— Você esteve no quarto das meninas, não? Viu aquele espetáculo? - perguntou o professor.
— Cortou-me o coração - respondeu Paula brevemente.
— É a desgraçadinha ainda não sabe a sorte que espera o seu velho pai. Talvez não resista a tantos golpes, e a minha Eulália ficará inconsolável se ela morrer. É horrível, incalculável a desgraça do meu infeliz amigo.
— É - disse peremptoriamente o vigário - é um mal sem remédio; tudo se conspira contra ele. Irena e Feitosa amavam-se, e Rogério, você bem sabe, não podia tolerar esse amor. Será mais uma prova - acrescentou mais baixo, como se falasse apenas para a consciência.
— Acima da fatalidade está Deus, e eu não sei o que me diz que há uma testemunha do crime.
— Se existisse já teria denunciado o criminoso! - exclamou o vigário - Estas coisas não se calam, dizem-se logo.
— Quer saber? - disse precipitadamente o professor eu desconfio que será possível descobrir algum indício.
— Com quem? - perguntou Paula profundamente comovido.
— Jura-me segredo?
— Não precisa pedir.
Eulália parece saber de alguma coisa.
— Eulália! - repetiu Paula com uma acentuação dolorosa. - Sim... elas são amigas... que é impossível que ela não saiba tudo.
Queiroz relatou então quanto, durante os três longos dias, tinha surpreendido a filha: - a inquietação, os contínuos sobressaltos, as súbitas perplexidades, as incessantes lágrimas, o zelo exagerado por Irena. Na manhã seguinte ao crime, encontrou-as abraçadas, trocando-se mútuos protestos de eterna amizade; mas pouco depois, não podia afirmar, pareceu-lhe ter ouvido a Eulália dar-se como desleal, e prometer resgatar-se vingando a amiga.
— Tive ímpetos de interrogá-la mas hesitei; não tinha nenhuma prova...
— E fez bem - interrompeu-o o vigário -, nada se pode concluir das suas palavras. É que ela sabia das relações dos dois noivos e inculpava-se de não ter prevenido o desenlace fatal, revelando o segredo.
— Não é só isto; eu também sou amigo, sinto profundamente a desgraça de Monte, mas não é com a violência de Eulália. Quando lhe disse que o velho era apontado como criminoso, Eulália como que teve uma explosão de remorso.
— As mulheres são mais esquisitas nas amizades, apaixonam-se.
— É exato, mas também sacrificariam milhões de amigas ao seu amor.
— Mas era preciso que elas fossem rivais - objetou Paula com um sorriso indescritível.
— E se o caso se desse, meu bom amigo? Se a nossa desgraça fosse tamanha!...
Um calafrio violento abalou na cadeira o corpo todo do vigário, que, boquiaberto, arfando, ficou a olhar de olhos esbugalhados para o professor.
— É em que tenho estado a pensar - continuou Queiroz -, talvez Eulália suspeite de alguém...
— Sim... sim... - concordou o vigário -, e será possível arrancar-lhe a confissão desse nome.
— Mas quem há de poder tanto?!
— Eu! com o auxilio de Deus - acudiu Paula.
E levantou os olhos para o céu.
— Oh! como eu lhe agradeceria! - exclamou Queiroz apertando ambas as mãos do vigário. - Era um desencargo para minha consciência, e a salvação de Monte, contra o qual eu também, eu seu amigo, confesso, tive profundas suspeitas.
— Acalme-se - disse o vigário inteiramente reportado à maior perversidade -, eu saberei de tudo.
Eulália hesitou por largo espaço, antes de dar começo à empresa que lhe fora cometida por seu pai.
A entrevista inesperada, o protesto fervoroso do vigário absorveram-na inteiramente na fascinação invencível, que sobre si exercia aquele homem, ora arremessado como um louco, ora submisso como uma criança. Sentia-se avassalada ao seu império, e deixava-se ir pelo declive desse vitorioso sentimento com a passividade de um magnetizado, sem reagir, bendizendo a própria fraqueza. Em vão a consciência protestava contra o segredo fatal, que a envergonhava como uma gravidez criminosa: todo o passado alevantava-se radiante e delia em luz as trevas do remorso. Era uma fatalidade; a sua vida devia levar, pelo impulso da educação, um curso prescrito como o do sol nos diversos signos do zodíaco.
Todos os seus escrúpulos de amiga sincera conjuravam-se contra a missão de que fora encarregada; mas ao mesmo tempo recordava-se das últimas palavras de seu pai: talvez da partida rápida de Irena dependesse a sua união com Feitosa. Ajoelhou-se, pois, junto à rede da amiga, e imprimindo-lhe beijos na mão muito branca, acordou-a sem sobressalto.
— Você afugentou-me um sonho tão bom, que eu dera tudo para o continuar sempre - disse-lhe Irena no fraco tom de convalescente.
— Quem sabe se ele não se realizará ainda, e estando você acordada?
— Fora preciso um milagre.
— A coragem pode fazê-lo.
— Qual, foi apenas um sonho.
Ficaram ambas a olhar-se como se estivessem mutuamente a medir nos semblantes a grandeza dos sofrimentos.
Pela janela do quarto entrava a claridade melancólica do crepúsculo, frouxa como a esperança daqueles dois corações, e de mistura com ela vinham os ecos de vozes alegres, das risadas francas de Chiquinha e das outras duas irmãs de Eulália, que repetiam as palavras da caçula e folgavam com elas.
— Como são felizes! não é, Eulália? Quem nos dera o mesmo tempo!
— Você pode ser ainda mais feliz do que elas, se quiser; está nas suas mãos.
Irena sorriu com a tristeza do desenganado.
Eulália abaixou os olhos como se se arrependesse de ter afrontado a sua amiga, que, notando-lhe o embaraço, murmurou:
— Nem você mesma acredita na esperança que deseja dar-me!
— Não, não é isto; eu é que sou uma tonta, não sei como dizer: meu pai espera que vocês hão de casar-se..
— Ele já sabe?
— Sabe tudo, mas não lhe quer mal por isso.
— Que vergonha, meu Deus! - soluçou Irena.
— Eu sei que vou fazê-la chorar muito, mas é preciso dizer tudo.
E com a precipitação do temor desfiou as suas esperanças, de envolta com a situação do velho Rogério Monte.
Irena ouviu a exposição pungente, e só no fim perguntou com uma calma heróica:
— E Augusto acredita nessa calúnia?
— Se ele sabe que é odiado por seu pai, como não acreditar?
— Pois bem, eu partirei.
E levantando-se a meio, pálida como um cadáver, acrescentou:
— Vê? eu já não sinto mais nada. Sei que seu pai há de alegrar-se muito; vá dizer-lhe que eu obedeci ao seu conselho.
A altivez da raça sobrepujara a fraqueza da mulher, e o fogo do orgulho, fuzilando nos grandes olhos azuis de Irena extinguiu-lhe inteiramente as lágrimas.
Eulália parecia fulminada; deixou-se cair sobre os quadris, e escondeu o rosto no colo da amiga. Julgava-se doida, baldão de um pesadelo cruel, que dava a tudo em torno de si a aparência da vida real, para melhor torturá-la.
— Você parte ? - perguntou amedrontada, fitando os olhos rasos de lágrimas nos de Irena.
— Juro! partirei com meu pai.
— E o seu amor, a sua esperança, e Augusto, e tudo quanto tem sofrido?
— Deixo ficar, para não feri-los pelas costas; eu sou da raça dos cobardes.
— Mas é a morte, minha filha, porque não tardará muito que você se arrependa.
— Nunca! - exclamou Irena resolutamente.
Mas as lágrimas apareceram-lhe de novo, de novo os soluços começaram a sufocá-la, e a jovem, deixando-se arrebatar na efusão tempestuosa do seu sofrimento, disse com amargura:
— Ele tem razão para supor-nos cobardes. Eu esqueci-me de tudo por seu amor; não pensei nos brios de minha família quando jurei ser sua; afrontei a minha própria honra indo ouvi-lo à noite enquanto o meu pobre pai dormia confiado no meu recato. Augusto pode insultar, tem razão: eu atraiçoava a velhice de meu pai, a quem feria pelas costas, com a minha loucura. Este procedimento - pensou ele talvez - devia ser ensinado pelo velho Monte. Augusto é quem tem razão.
— Ai! como eu sou indigna de si - suspirou Eulália, abraçando a amiga -, não devia ser eu quem a estivesse convencendo de que deve partir!
Irena, porém, acudiu logo:
— Diga a seu pai que obedeci ao seu conselho; partirei.
Eulália levantou-se automaticamente e saiu trôpega como um tonto, mas, em vez de ir ter com o professor, tomou a direção da horta.
Chiquinha e suas irmãs continuavam a brincar animando a melancolia do crepúsculo com o estrídulo das suas gritas alegres. Paula e d. Ana conversavam a distância: a boa senhora sentada na borda de um canteiro, o vigário com as mãos entrançadas sobre as costas, dando curtos passeios de um para o outro lado e parando de quando em quando em face de d. Ana.
Falavam dos acontecimentos, que eram então a conversa obrigada.
— Eu lhe disse um dia, não sei se se recorda: falta-se com a religião até junto do andor da Virgem. Há de lembrar-se que Eulália ficou então muito comovida e chegou a chorar. Não se lembra?
— Se me lembro, sr. vigário Mas estava longe de pensar que era com ela que Vossa Mercê falava.
— Já o negócio estava adiantado, e o grande caso é que o tal Augusto enganava as duas, entretendo-as com os seus olhares.
— As duas?
— Sim, porque hoje está mais que provado que ele era o noivo das duas, mas preferia a Irena, pelo faro do dinheiro.
— Olhe que sempre se vêem coisas, sr. vigário!
— Agora não quererá uma nem outra: o dinheiro de Rogério bateu as asas, e Eulália, depois de saber do que se passou, não o quererá também.
— Eu não acreditaria se não fosse o sr. vigário quem me contasse.
— E quer saber de mais uma coisa, d. Ana? Para mim o crime se não foi praticado por ordem de Rogério, com certeza é de algum pretendente ao amor de Eulália.
— Eu cada vez fico mais abismada!
— O Feitosa vinha sempre aqui, e entrava... naturalmente para conversar.
— Mas eu nunca o vi, sr. vigário: neste ponto parece que não há muita verdade.
— Ah! não vinha às claras, mas de noite. Não sei quem foi que me disse que há ali na cerca um dos paus completamente abalado. Foi pessoa que esteve aqui na noite do ferimento e que descobriu o fato, indo encostar-se na cerca. Mas pelo nome não perca...
— Forte desaforo! e com caras de santas.
— Talvez o pretendente visse o Feitosa entrar e o esperasse...
Eulália tinha entrado na horta, e seguia para o lado da cerca. Pensava que o assomo de dignidade de Irena contra Feitosa extinguir-se-ia, como tantos outros que por várias vezes ela tivera contra Paula. Vinha pois, observar pela janela do quarto os movimentos da amiga.
— Olhe para onde ela vai - disse Paula apontando para Eulália.
— E até onde pode chegar o desavergonhamento - resmungou d. Ana. - Se ela fosse minha filha...
— Perdão! eu estou lhe falando como seu amigo, daqui não passa uma palavra para ninguém.
— Mas, sr. vigário, isto que o senhor sabe devia ser dito para que se procurasse o criminoso.
O vigário assumiu um tom solene.
— Deus, que o esconde, d. Ana, é porque tem lá suas razões...
— Mas não se deve deixar sofrer um inocente..
— Quem sabe lá se é! Tudo quanto eu disse não passa de meras suposições... Olhe, anda de um lado para outro -acrescentou, apontando de novo para Eulália; - faz-me dó.
Pois a mim faz-me ferver o sangue, sr. vigário, só com lembrar-me que os pobres pais padecem tanto.
— Devemos perdoar as fraquezas do nosso próximo. Vá ter com o seu irmão, d. Ana; eu vou conversar com Eulália; tenho o que dizer àquela alma atribulada.
— Então até logo, sr. vigário.
D. Ana deu-se pressa a entrar em casa.
Paula exalou um suspiro de satisfação.
— Até que enfim! - murmurou ele.
E dirigiu-se para onde estava Eulália.
O brinquedo das crianças tinha cessado, e só se ouviam mal distintos os ecos das suas conversas em voz alta. Irena mergulhara-se de novo na sua rede e ninguém podia observar o que se passava na horta.
— Ainda está com muita raiva de mim? - segredou o vigário aproximando-se de Eulália, sem que ela o pressentisse.
Trêmula de indignação, a moça voltou-se de face para ele e atirou-lhe em cheio o brado da sua consciência:
— Deixe-me; o senhor é um assassino; mate-me também!
Paula não mostrou o menor abalo, mas como Eulália quisesse retirar-se, travou-lhe do braço e prorrompeu em tom amargo:
— Eu sei que é seu desejo perder-me. Quinze anos em que eu enchi-a de carícias, os longos anos em que tenho sentido corroerem-me os dentes agudos de uma paixão indomável, e durante os quais vim dia a dia mostrar-lhe o coração ensangüentado, não lhe valeram uma palavra de piedade. Desiludido, desesperado, fui descendo aos poucos aos meus próprios olhos, abismando-me cada vez mais na tristeza e na soledade da minha vida, e de queda em queda passei do ciúme à desesperança, da desesperança ao crime. No entanto da mulher, por quem me aviltei, por quem me perdi, não mereço senão isto: o desprezo, e talvez, ao sair daqui, a denúncia que levar-me-á à prisão e à ignomínia.
Eulália sentiu-se comovida até as lágrimas pelo tom pesaroso em que lhe falara o vigário.
— Deixe-me ir embora - insistiu ela brandamente -, basta o que eu já tenho feito sofrer a Irena; deixe-me ir.
— Mas eu tenho maior direito à compaixão, Eulália, e ninguém se condói do que eu padeço. Que importa que Irena seja sua amiga, se não respeitou o seu amor?...
— Que amor?
— O seu amor por Feitosa...
— É falso! - afirmou Eulália soluçando. - Eu não amo Augusto, nunca o amei!
— Oh! - exclamou o vigário radiante de alegria - diga-me outra vez, mil vezes que o não ama!
— Não o amo, já disse; se o amasse, teria entregado a prova que condena o criminoso.
— E qual é essa prova?
— O canivete-punhal ainda tinto do sangue de Feitosa.
— Mas o que ainda não fez, poderá fazê-lo em um instante, não é assim? - acudiu Paula visivelmente perturbado. - Pois bem, esqueça tudo, tudo, amor, sofrimentos, sacrifícios, e vá dizer a todos: eis ali o criminoso! prendam-no, infamem-no, matem-no! — E ele não consente que uma pobre moça padeça, que o seu velho pai seja apontado como um assassino cobarde?
— Em menos palavras pode dizer tudo: “Este homem ama-me muito; é um grande crime; infamem-no portanto”. Diga; eu prefiro isso, porque então poderei trocar a paixão insensata que sinto pelo mais horrível desprezo. Vá!
Eulália deu alguns passos, mas parou de súbito, e erguendo os olhos lacrimosos para o céu:
— Não - exclamou alucinada -, pode ficar descansado: não direi nunca o seu nome.
— É inteiramente minha - murmurou Paula extasiado -, ama-me como um cão.
E seguiu Eulália que voltava para casa.
Essa cena deu ao vigário a certeza do domínio absoluto que exercia sobre o espírito de Eulália, mas não bastou para de todo asserenar-lhe o ânimo. Voltou à assiduidade de outrora na casa de Queiroz e, atento ao menor movimento da moça, renovou a miúdo os combates violentos, em que enervava cada vez mais aquela gasta energia.
Duas noites passou-as ele, até horas mortas, velando à cabeceira do professor, cuja moléstia agravava-se dia a dia, levando o susto e a consternação à família inteira.
— Maldito reumatismo - repetia d. Ana -, há de vexar muito o mano; como veio forte!
— Há de durar muito tempo, d. Ana: é dos que não têm mais cura...
— O meu medo todo é que o mano fique entrevado. O que será de nós, santo Deus ?! Nem é bom pensar nisso.
Em verdade, a moléstia progredira com rapidez, porque a superexcitação nervosa de Queiroz parecia concorrer poderosamente para apressar-lhe a marcha. O dédalo de cogitações em que se desgarravam os pensamentos e as comoções repetidas que o abalavam, os semblantes de Irena e de Eulália, tudo concorria para o mal-estar moral do professor. Na manhã seguinte à tarde da entrevista na horta, ouvindo a asseveração definitiva de Paula de que tinham sido injustos para com Eulália, a quase certeza da culpabilidade de Monte exasperou-o, e prostrou-o num acesso violento de dores que o obrigavam a penar.
Todavia, era de notar que a fisionomia de Paula em nada se coadunava com a sua exagerada solicitude junto ao amigo. Brincava muito com a caçula, conservava o ar desassombrado de quem não tem cuidados, e de vez em quando levava o seu bom humor até ir consolar a desventurada Irena, cujo esforço em domar o coração a enfraquecia a ponto de quase dominá-la.
Foi nestas disposições que o vigário foi abrir a porta da sala das aulas, na undécima noite depois da partida de Rogério Monte.
— Oh! é você? - exclamou ele estremecendo, ao dar cara a cara com Rogério - venha de lá este abraço.
Monte abraçou-o sem transporte, e limitou-se às frases de cortesia.
— Ó Queiroz - continuou o vigário -, cá está o nosso velho amigo são e rijo.
A família inteira rodeou logo o recém-chegado; mas, em vez de sorrisos, havia no rosto de todos a mais acentuada tristeza.
— O preguiçoso do Queiroz não sai do quarto? - perguntou Rogério.
E forcejando para ser jovial, acrescentou:
— Quem traz as pernas em sopa é este seu criado e não pode ir lá agradar a sua preguiça.
— Está com um achaque muito forte de reumatismo -disse a boa d. Ana; - nem se pode levantar à vontade.
Monte entrou no quarto de Queiroz, seguido pelo vigário.
— É a hora fatal, minha amiga - soluçou Eulália retirando-se abraçada com Irena. - Deus nos dê forças.
— Não chore assim que me desanima! O pranto não dá remédio. Paciência!...
— Eu não posso tê-la; morro! apunhalam-me o coração.
No quarto puseram-se os três a conversar. Monte referiu que os seus credores tinham sido inexoráveis; não quiseram estar por nenhuma espera. Nesse mesmo dia ia dar ordem para que os seus escravos fossem para o Aracati à disposição dos credores: pobres escravos, a quem ele tinha vergonha de dizer a sorte que os esperava. Mas não trazia ressentimento: o estado da província era tal que ninguém podia ter confiança no dia de amanhã. Todo o Aracati estava inundado de desgraças; as febres grassavam intensas; os retirantes chegavam ás centenas, piorando cada vez mais o estado sanitário da cidade. A população adventícia era já, com certeza, superior a 30 mil pessoas, que tinham fome, que se exasperavam e morriam como cães.
— E você está deliberado a sair da paróquia?
— Que remédio! - suspirou Monte. - E quero ver se parto dentro em dois dias.
— Muito depressa! - ponderou o vigário.
— É que ainda tenho de voltar ao Aracati; o preço dos escravos baixou muito, e eu quero ver se eles dão revés às minhas dívidas.
— Eu já não insisto - disse Queiroz: - honra é honra.
— Eu entendo assim - respondeu Rogério.
— Est modus in rebus - ponderou o vigário. - Às vezes tem-se muita honra à esquerda e negam que haja na direita.
E os olhos de Paula cravaram-se no velho criador.
Queiroz revolveu-se na rede, malgrado seu.
— É o que eu não quero que digam de mim - respondeu Rogério.
— Faz muito bem: não quer que se diga - acentuou Paula.
— Nem dou ocasião.
O vigário fez um movimento.
— "Cruel" - pensou o professor, - "ainda quer aumentar aflição ao aflito!"
E interveio logo em voz alta:
— Ninguém diz isto, felizmente. Monte, vá descansar; deve estar moído da viagem. Entre.
— Não - respondeu Rogério - eu vou para nossa casa.
— Então espere - acudiu o professor -, eu tenho muito que dizer-lhe.
— E eu deixo-os em liberdade - disse Paula, levantando-se e conservando o seu olhar hostil.
O pároco saiu e foi reunir-se às senhoras na sala de jantar, enquanto no quarto os dois amigos conversavam a meia voz.
O coração bondoso de Queiroz quis poupar o golpe profundo que a nova dos boatos causara ao velho amigo. Depreendia-se isto das palavras de Monte, quando pouco depois referiu na sala de jantar a conversação que tivera com o professor, que se limitou a queixar-se da severidade dos paroquianos ao comentarem a negativa de Rogério para a comissão de socorros.
Paula julgou dever adotar uma resolução decisiva.
— Já soube do que aconteceu ao Feitosa? - perguntou ele. - A notícia deve agradar-lhe.
— Não há notícia que me agrade a respeito de Feitosa: é como se não existissem... Como estás pálida, minha filha! - acrescentou Rogério voltando-se para Irena.
Nesse momento a voz do professor chamou no quarto por Eulália.
Nos lábios de Paula debuxou-se um sorriso de contentamento.
— Pois o Feitosa está a decidir - insistiu ele -, creio que não escapa.
Irena não pôde esconder a comoção tremenda que a avassalou, enchendo de espanto o mísero recém-chegado.
Mas o que têm você, minha filha? Parece que está com frio.
— Ah! ela sabe das circunstâncias do crime, o espesso véu de mistério que o cobre - continuou o vigário. - Um pobre rapaz que não tem inimigos, a não ser você... e que é apunhalado sem mais nem menos...
— Mas se você sabe que ela impressiona-se, para que vem falar-me nisso? Eu em nada me interesso por Feitosa, nada tenho com ele...
— É o que lhe parece.
— Como o que lhe parece? ~ o que é.
— Pois não é o que se diz, e em nome da sua honra você deve justificar-se, ou fugir.
— Ora, Paula - disse Rogério, franzindo as sobrancelhas você nunca deixará de ser esquisito no seu modo de pensar?
— É o que lhe digo.
— Então atacam minha honra?
— Apelo para todos.
Rogério olhou assombrado para os circunstantes, e leu em cada semblante, em cada atitude, a confirmação das ignominiosas palavras que ouvira. Irena prorrompeu em soluços, e o vigário continuou:
— Eu não o quero ofender, mas é preciso que você parta, por amor daquela pobre menina. Não se pode abafar a voz do povo.
— São muitos golpes repetidos, meu Deus! Eu já não posso resistir! - exclamou Rogério em tom repassado de amargura.
— Eu sei também calcular o seu sacrifício - murmurou o vigário - mas a amizade de Queiroz podia perdê-lo pelo escrúpulo de não angustiá-lo. Cumpri o meu dever de amigo, por amor de sua filha. Se tirassem-na dos seus braços para pôr entre ambos a prisão e o aviltamento, eu sei que nenhum de vocês resistiria, e isto é o que viria a acontecer, porque você está arruinado e Augusto Feitosa é um homem estimado e rico.
— Não, eu lutarei primeiro! - bradou o velho Monte elevando a cabeça com altivez; quero e hei de confundir os caluniadores.
— Será esmagado.
— Não importa, nada receio; eu tenho por mim a verdade é a justiça divina.
— Enquanto você tratar de justificar-se, Irena morrerá.
— Sim... sim... você é que tem razão - gemeu o infeliz. - O que posso eu hoje, mais do que salvar a vida da minha pobre filha! Partirei pois com ela.
E apertando entre as mãos a cabeça encanecida, prorrompeu em soluços.
D. Ana, que, a enxugar lágrimas renitentes, viera colocar-se ao lado de Irena, chamou a atenção do vigário para outro ponto da sala de jantar.
Paula volveu a cabeça num relance e olhou sobressaltado para Eulália. Era a estátua do remorso hesitando em confessar um crime. Apoiando-se por uma das mãos à mesa de jantar, trêmula e boquiaberta, fitava com um olhar felino o miserável, cujos dentes bateram num tiritar violento, enquanto as mãos sumiram-se-lhe no cabelo espesso e negro.
Os olhos, porém, baixaram-se-lhe, e envolvendo com rápido olhar o grupo formado por d. Ana e a filha de Rogério o vigário exclamou:
— Doidos que somos todos nós! Vejam como torturamos estas duas pobres crianças! E preciso fazê-las repousar.
O egoísmo de pai impeliu Rogério para a filha, a quem tomou nos braços, falando-lhe com uma acentuação profunda de desespero.
De repente exclamou:
— Ela está sem sentidos! ajudem-me a socorrê-la!
— Isto é uma infâmia! - exclamou por fim Eulália, fitando o vigário com o seu olhar assustador.
Paula pareceu por um momento fulminado, ao passo que o generoso Monte entendeu prudente atenuar o que julgava uma inconveniência da amiga de sua filha.
— Perdoe-a - disse ele -, perdoe-a, meu amigo; elas estimam-se tanto... que não admira que uma sinta igualmente a dor da outra.
— Não - continuou Eulália -, ele não tem que perdoar, porque tem muita culpa, porque é um malvado...
— Pobre criança! - interrompeu o vigário trêmulo, mas com a voz repassada de meiguice e de tristeza. - Veja como retribui a quem a estima tanto!... como será capaz de sacrificar tudo... por causa de sua amiga!
A boa d. Ana desfazia-se também em desculpas ao vigário.
— Perdoe-a, perdoe-a - exclamava aflita e lacrimosa.
Depois, correndo para junto de Eulália:
— Acalme-se, minha filha; veja que está faltando com o respeito ao sr. vigário.
Paula tinha-se aproximado de sua vítima e, envolvendo-a sempre com o seu olhar ardente, murmurou humilde e angustiosamente:
— Eis como se pagam tantos anos de um amor imenso... como o de um pai... Pode insultar à vontade, Eulália não lhe hei de querer mal por isso; pode dizer o que quiser.
D. Ana e Rogério, comovidos por tanta mansuetude e pela sobreexcitação de Eulália, suplicavam calorosamente ao vigário que esquecesse a ofensa recebida.
— O que hei de eu fazer? Via-a crescer amando-a... como filha... Eu sou como um segundo pai... - disse Paula em tom triste, e aparentemente sossegado.
As lágrimas marejavam-lhe nos olhos, fitos nos de Eulália.
E acrescentou em seguida:
— Demais, ela diz a verdade: o que sou eu senão um coração cruel... um malvado... um...
— Não, não - atalhou a moça vivamente, com o rosto banhado em lágrimas. - Perdoe-me!... O senhor bem sabe que eu já não sei o que digo!
— E deixando-se cair sobre uma cadeira afogou-se em entrecortados soluços.
Paula tomou-a nos braços - apertou-a fortemente contra o seio, beijou-a na testa com efusão, e suspirou:
— Oh! muito temos sofrido...
— É verdade - murmurou d. Ana; esta casa parece estar excomungada.
— É porque dentro dela está um desgraçado - ponderou tristemente o velho Monte.
Tinham-se passado alguns dias depois da partida precipitada de Rogério, e o vigário não interrompera a assiduidade na casa de Queiroz.
Uma profunda modificação havia-se operado em todas as pessoas da família, e a própria vida da paróquia tinha-se tornado mais triste e monótona. Só na venda de Antão Ramos havia, à tarde, algumas conversações alegres entre os fregueses, que vinham aguardentar-se e cantar o desafio. Todavia o inspetor não tomava, como outrora, parte nessas palestras; andava arredio do balcão e já não dava ensanchas a grandes familiaridades.
— Todo o meu tempo é pouco para socorrer àqueles desgraçados - dizia ele. No principio tudo é flores... O vigário lá anda às voltas com o Queiroz, que está a decidir, e o Feitosa, magro e quase inválido, nada pode fazer. O Engenho inteiro ficou sobre as minhas costas.
E o bom do inspetor queixava-se amargamente: era um povo duro de sofrer-se, mole e remisso, amigo de se deixar imundo e de habitar na imundícia. Todos o sabiam na paróquia: um dia o vigário foi obrigado a ir pessoalmente acompanhar os retirantes para conseguir que eles se limpassem e vestissem a roupa nova, que escondiam como se tivessem mais amor pelos andrajos. Demais não se contentavam com o que se lhes dava: pois os paroquianos não viam, quase todos os dias, grupos de mulheres que vinham à venda lastimar-se e pedir disparates? Enfim, era uma vida muito amarga, a de comissário, e o inspetor, só por amor dos seus semelhantes e temor da religião, ainda se conservava em tão espinhoso cargo.
— Mas para que Vossa Mercê faz este sacrifício, sr. inspetor? Deixe a comissão que há de haver quem o substitua - ponderavam-lhe.
— Homem, não me fica bem como autoridade.
— Apele para o seu gênero de negócio.
— Isto não embaraça.
— Nem faz conta - diziam-lhe amistosamente -, nesta freguesia Vossa Mercê faz e batiza.
— É, comecem as más línguas a contar, e eu lhes direi quem é que deixa a paróquia. Para besta já basta.
No dia 12 de junho um novo assunto serviu de pasto à conversação dos cantadores de desafio e a todo o povoado: a doença incurável de Queiroz.
De feito, a moléstia do professor tinha-se dia por dia agravado mortalmente, lançando a consternação no ânimo inconsolável da família. As dores, que a princípio apenas lhe tolhiam o movimento das pernas, aumentaram gradativamente e subiram-lhe invadindo os antebraços, a região lombar e a nuca. A canseira que o molestava tornou-se dificuldade quase sufocante de respiração, e o rosto inchou-se-lhe de modo a torná-lo deforme. Nos últimos dias um fenômeno mais incômodo do que todos os outros veio arredar toda a esperança de cura para o doente.
— Sinto no estômago um aperto como se estivesse sendo amarrado por um cinturão - queixava-se ele -, tirem-me daqui esta dor que me mata.
Eulália, que não abandonava a cabeceira paterna, ouvia-o chorando, e beijava-lhe as mãos, como se quisesse sugar para o seu corpo aquelas dores fatais. Muito descorada, com os cabelos em desordem, as pálpebras inchadas e roxas, com grandes distrações, quase como as de um idiota, dócil até a passividade, a desventurada passava a maior parte do tempo contemplando aflita o pai moribundo. Então ficava ainda mais triste, como se por um milagre houvera sentido as passadas da morte avizinhando-se da rede em que o professor jazia, arfando o cansaço de que só devia descansar no túmulo.
Pelas duas horas da tarde, Queiroz fez reunir em torno de si a desolada família, em cujos rostos, macerados pelas continuas vigílias, estava estampada a verdade do sofrimento e a certeza de que em breve devia separar-se, para sempre, do único amparo que tinha sobre a terra.
O moribundo chamou então o vigário, que passeava lentamente pela sala, conforme era seu hábito nos longos quartos que fazia todos os dias ao amigo.
— Paula - murmurou ele por entre a ânsia penosíssima -, eu sinto-me morrer e deixo na miséria as minhas pobres filhas e a minha boa irmã. Você sabe que eu nada tenho...
— Tem um amigo, que não lhe quer ouvir idéias tristes; distraia-se desse teimoso pensamento de morte.
— Não me distraio, não. Talvez dentro em poucos minutos eu já não possa falar: sinto a língua trôpega, quase paralisada, e eu seria muito desgraçado se não pudesse dirigir a você um pedido.
— Pois faça-o, que eu cumprirei: seja qual for.
— Não abandone a minha desgraçada família. Jure-me que não a abandonará.
— Juro, meu amigo; mas nem precisava jurar; é o meu dever!
Uma solenidade veneranda revestiu o grupo transido pela mais horrorosa das dores, a despedida do moribundo; e cerca de uma hora depois a família ajoelhada recebia no fervor das suas preces, no desolamento do coração, o último suspiro de Queiroz.
Paula levantou-se solenemente aportou nos braços e beijou a fronte a cada uma das filhas do honrado homem.
— Podem contar com um pai - afirmou gravemente; - eu saberei ser amigo, minhas filhas.
Foi então parar em frente de Eulália que, atirada sobre uma cadeira, com a cabeça oculta entre os braços cruzados, soluçava amargurada o seu tristonho desamparo.
No olhar de Paula sentia-se alguma coisa que não era digna de uma câmara mortuária. Dir-se-ia que lhe voltara algum dos sonhos das suas noites de ciúme. O sorriso mau, que era a arma temperada da sua hipocrisia apareceu-lhe de novo em toda a sua plenitude, como se todas as baixezas da lubricidade nele se dilatassem.
Percebia-se que aquela alma fria e insensível deleitava-se com o som tristonho dos crebros soluços da família, que nem ousava levantar a cabeça para não dar de face com a tremenda realidade do seu futuro. Nos lábios do vigário, esse sorriso, aparentemente bondoso, denunciava o lampejar de um crime.
— Tenha paciência - murmurou ele procurando consolar a moça; - não ficou de todo só, creia.
E curvando-se, beijou-lhe uma das tranças.
Os soluços da infeliz prorromperam com mais força.
— Está bom - disse Paula um tanto contrariado -, vou mandar cá o Marciano para ajudar a vestir o cadáver.
Poucos momentos depois chegaram o velho sacristão, o inspetor e outros vizinhos que vinham satisfazer o pedido do vigário, e o cadáver foi colocado na sala das aulas, sobre a mesa que servia para a escrita dos meninos, em uma das pontas da qual Marciano colocou um crucifixo, flanqueado por uma das banquetas da modesta igreja paroquial.
— Pobre gente! - disse o inspetor saindo da casa do morto; - faz cortar o coração.
— É muito triste a posição da família, é, sr. Antão Ramos; mas há outras que ainda ficam em pior estado - respondeu o velho sacristão.
— Coitadas! o pai não lhes deixou nada.
— Mas elas têm o sr. vigário.
— Ora diga-me você esta, Marciano! Pois lá a proteção de um homem é coisa com que se conte? Olhe que dar cansa.
— Conforme: o sr. vigário era muito amigo do professor, e além disso as filhas são bonitas...
— Isto não vem ao caso.
— Eu cá me entendo; aqui vem muito ao caso.
— Salta fora, velho sem brio! exclamou Antão Ramos indignado; começa já a difamação e ainda o pobre Queiroz está sobre a terra!
— Pode praguejar e descompor, sr. Antão Ramos; eu que o digo é porque alguma coisa sei.
— Infelizmente eu nem posso pedir a Deus que faça com que a sua família passe pelo mesmo - resmungou Antão Ramos; - já lhe aconteceu em vida o que tinha de acontecer. Malvado!
— Nós havemos de ver quem acertou no ponto.
— Você talvez julgue pelos exemplos de casa: olhe!
E apontou para o vigário que vinha saindo da casa do sacristão.
Marciano não respondeu e nem mostrou-se molestado com a ofensa pungente que lhe foi vibrada e quando o vigário passou por junto de si, descobriu-se todo, com uma humildade de lacaio.
— Lá está tudo pronto, sr. vigário; não ordena mais nada?
— Arranje alguns mochos no corpo da igreja, para se depositar o cadáver durante a encomendação.
— Veja como ele trata o cadáver do amigo, seu linguarudo, e continue a se fazer besta - ponderou o inspetor quando o vigário se retirou.
— Eu não quero brigar com Vossa Mercê; pode dizer o que quiser - respondeu brandamente Marciano.
Paula não demorou a voltar para casa do morto, e aí empregou-se em espalhar consolações e esperanças de um futuro menos sombrio, do que o agourava a dor da enorme perda experimentada pela família.
Era já bem tarde da noite, e os prantos e as lamentações continuavam vivos, sentidos como na hora do passamento do professor. Sobre os bancos reunidos e colocados por todo o perímetro da sala, d. Ana e Eulália choravam inconsolavelmente, enquanto Chiquinha e as outras filhas do morto soluçavam, cabeceando sonolentas, vencidas pelo cansaço das muitas noites que tinham passado a velar.
— Oh! minha senhora - observou Paula, dirigindo-se a d. Ana - é preciso fazer dormir estas pobres meninas; elas já nem se podem suster, coitadinhas.
— Nós podemos ficar aqui mesmo, sr. vigário; não temos mais sono - respondeu Chiquinha receosamente.
— Ouça, d. Ana - segredou o vigário -, pode bem ser que elas não queiram deitar-se, porque tenham medo...
— É isto mesmo, sr. vigário; eu percebo; mas é melhor, porque ao menos elas ficam vendo o pai, que tanto as estimou.
— Pois eu, no seu caso, ia acomodá-las porque deve fazer-lhes mal passar tantas noites em claro.
— Tem razão - respondeu a boa senhora.
E conduziu as meninas para o interior da casa.
Paula ficou finalmente só com Eulália, que continuava a soluçar, sentada em face do cadáver de seu pai. A hora, a solenidade do lugar, a alucinação do sofrimento davam à moça um desalinho que impunha respeito, mas provocava a adoração.
O vigário veio postar-se-lhe defronte, mudo e respeitoso, e assim quedou por largo tempo, até que, voltando-se descuidadamente para o cadáver, estremeceu e pôs-se a caminhar ao longo da sala. Quando deixava de olhar para o crucifixo e para o morto, fitava Eulália, que, sentada e encostada a cabeça na parede, chorava como que desacordada. Por fim parou junto à mesa, e descobriu o rosto de Queiroz. Um sorriso inqualificável revestiu a fisionomia perturbada de Paula, que logo encaminhou-se para junto de Eulália.
— Por que não vai dormir também? - murmurou sentando-se ao seu lado; - eu ficarei velando o corpo.
— Não tenho sono; eu sentiria mais se tivesse de sair daqui.
— Mas então busque espairecer um pouquinho; não se mortifique tanto....
— Não está na minha vontade.
— Não posso consentir que esteja assim a chorar... a molestar os olhos... - disse Paula tomando as mãos de Eulália e apertando-as nas suas ternamente... - Esses olhos que são meus ... que serão meus... para sempre!
— Deixe-me, deixe-me por piedade - murmurou a desventurada tentando em vão desenvencilhar-se.
O vigário, porém, parecia presa de veemente delírio e, envolvendo a moça nos seus braços, exclamou:
— Não; eu quero que me escutes hoje, agora, em face de um cadáver e diante de Deus, o grito que há longos anos repito e que sinto sufocar-me o peito: eu te amo!... te amo!... amo-te muito!...
E o silêncio prolongava o som do estribilho apaixonado!...
Diante do arrebatamento de Paula, o morto, com os braços cruzados sobre o seio, tinha o ar de quem se horroriza, e o Cristo, com a cabeça descaída, parecia chorar por tão monstruosa infâmia!...
Eulália, desorientada, sem energia, sem vontade, entontecida pelas vigílias e pelo choro, opunha fraca resistência à sedução vitoriosa.
A tristeza tornou-se ainda mais sombria naquela câmara mortuária.
Só se ouvia o eco do ressonar cavo e roufenho da família entorpecida pelo cansaço, de vez em quando o estalejar do pavio das velas de carnaúba ardendo sob a pirâmide amarelada da chama tranqüila, e as passadas de Paula, passeando de um para outro lado.
Eulália tinha ido abraçar-se com os pés do cadáver de Queiroz, e ali jazia, ora derramando lágrimas silenciosas ora prorrompendo num choro violento, soluçado como o da histeria.
O vigário procurava consolá-la; fazia promessas de ventura; pedia-lhe que confiasse em seu amor. Mas a infeliz, escondendo o rosto afogueado, exclamava redobrando o choro:
— Meu pai! meu santo pai! por que não morri eu contigo? Afinal os galos da vizinhança começaram a cantar amiudadas vezes, batendo as asas poderosamente como se quisessem com o seu ruído espantar a noite e acordar de súbito a manhã.
Paula foi de novo instar com a moça para não se entregar com tanta veemência ao desespero; mas não conseguia desligá-la dos pés do morto.
— Mau começo - resmungou ele com azedume. - Vamos ter uma lua-de-mel tresandando a cadáver.
Depois, abriu cautelosamente uma das janelas, aquela em que por muitas vezes vira Eulália nos dias em que julgava impossível possuí-la e sentia atenazarem-no o despeito e o ciúme.
A aurora assomava esplêndida como uma chuva de brilhantes sobre um tapete solferino. A luz enfraquecida da lua punha o véu da virgindade eterna da natureza sobre a face da terra e do céu e no horizonte a luz e o rubor do amanhecer lembravam o pudor e a hesitação das noivas aldeãs.
Paula ficou extasiado diante do espetáculo grandioso da manhã, e disse voltando-se para dentro:
— Venha ver como o céu está bonito, Eulália, venha!
A infeliz apenas respondeu com uma explosão de soluços ao convite que lhe insultava ainda mais barbaramente o sofrimento.
— Eu não quero zangar-me consigo - disse então o vigário aproximando-se da vítima -, por isso vou-me embora.
— Oh! como o senhor é cruel! - exclamou Eulália com amargura.
— Devia ter visto antes - resmungou ele amuado e impertinente -, não estou para ver loucuras.
E foi tomar o chapéu para retirar-se.
A morte de Queiroz não desviou Paula de seus hábitos. Nessa mesma manhã disse com muita unção a missa de Santo Antônio e depois acompanhou até o cemitério o cadáver do amigo com o mais solene recolhimento.
Isto produziu um ótimo efeito na paróquia. Decididamente haviam-se todos enganado; o sr. vigário era um homem exemplar, amigo do seu amigo, desvelado pelos infelizes.
Quando o viam de manhã passar para a igreja e à tarde para o Engenho, diziam:
— O hábito não faz o monge; quem o vê tão seco está longe de saber que jóia é o seu coração.
Passaram assim mais de quatro meses de triunfos para o chamado pai dos pobres, que, apesar de todas as atenções públicas, nunca mostrava a fisionomia desassombrada, e até, pelo contrário, parecia agora mais carrancudo do que nunca.
Por uma das manhãs de outubro, o vigário estava debruçado à janela da sacristia, quando ia passando Augusto Feitosa.
— Muito bom dia - disse o vigário; - como vai o seu negócio?
— Na mesma, infelizmente; o malvado já não está no Aracati.
— Há de ser isto que o anda ralando; está tão desfeito!
— Há de ser isto mesmo - respondeu Augusto contendo um suspiro. - Eu daria um conto de réis a quem descobrisse onde pára aquele miserável.
— Eu, nas suas condições, já o tenho dito muitas vezes, entregava-o à justiça de Deus. Está pobre como Jó, e isto o deve ter castigado bastante. Perdoava-o pela filha...
— Eu penso às vezes nisto; mas enquanto ele existir, diz-mo a consciência, a filha será sempre infeliz. Separá-los seria uma obra de caridade.
— São modos de entender.
Marciano, que andava a espanar a sacristia, parou para ouvir a conversa e repetiu, deixando cair o pano:
— Um conto de réis! Sempre era alguma coisa para um desgraçado.
— Não, sr. vigário, eu não posso perdoar aquele monstro - continuou Feitosa -, castigo a sua covardia como ele merece... Até logo, vou para a venda do Ramos; estou na minha semana de comissão.
E afastou-se.
— É um doido - disse o vigário deixando a janela e vindo sentar-se na sua cadeira de espaldar. - Ouviu o que ele disse, Marciano?
— Alguma coisa, sr. vigário, e se não tivesse as pernas já tão cansadas...
— Ia ganhar o conto de réis. Mas teria de perder o emprego aqui, porque a freguesia não havia de ficar sem sacristão.
— O emprego para nada serve, quase; lá em casa é que se pode ver quanto valem os chorados vinténs, que me dão.
— Sempre é mais do que nada, Marciano.
— Eu não queria falar nisso, porque enfim o que tem de ser tem muita força - continuou, animando-se, o velho sacristão.
— Ah! então você tem alguma coisa a falar?
— O sr. vigário bem sabe que, no dia em que eu falar, tenho muito a dizer.
— Você não se quer convencer do seu papel, homem! - replicou severamente o vigário; - há de se arrepender.
— Paciência; eu não hei de sofrer sozinho.
— Ah! você quer ameaçar-me? Tem graça! Ouça pela última vez: você anda-me sempre a dizer coisinhas, e eu não estou mais para aturá-lo.
— Não importa, não, sr. vigário: a minha filha mais velha lá está que ninguém a conhece mais. A outra... anda com a cabeça virada; é todo o dia uma barulhada em casa.
— É a educação que você lhes dá. Cale-se que está fazendo-me nojo.
— Não foi assim, quando o sr. vigário abusou da minha pobreza.
Paula teve um movimento brusco de indignação, pôs-se de pé, e fitando desdenhosamente o sacristão:
— Você até enxovalha a Igreja... Se eu não tivesse pena das suas filhas, hoje mesmo o despedia. Miserável!...
Marciano calou-se e continuou no seu serviço, até que de casa o mandaram chamar para almoçar. O desprezo do vigário pungia-o profundamente, porque a consciência o recebia como justo, e o velho sacristão não podia resistir ao remorso que sentia de ter aberto demais as portas de casa à necessidade de ganhar o pão. Força era tomar alguma deliberação, que o salvasse da situação desesperada que se antolhava, e o velho tomou-a.
— Viram lá em casa passar o sr. vigário?
— A mana - respondeu o pequeno que tinha vindo chamar o sacristão.
— E ele não falou?
— A mana disse que ele nem olhou.
— Vai: eu me demoro ainda um instantinho.
Quando o pequeno retirou-se, Marciano fechou as janelas e a porta da sacristia; dirigiu-se para o corpo da igreja, ajoelhou-se diante do altar da Senhora da Piedade e, depois de uma curta oração, fechou a porta principal. Quando saía, viu na praça Augusto Feitosa, que vinha da casa do inspetor. O velho sacristão apressou-se em ir ao seu encontro e, descobrindo-se, apertou-lhe a mão.
— Sabe que eu vou deixar a freguesia, sr. Feitosa?
— Eu também não fico por aqui muito tempo; é o que devem fazer todos.
— No Ceará há de se viver melhor.
— Certamente, muito melhor; há maiores recursos.
— Eu levo uma esperança mais: é a palavra de Vossa Mercê sobre quem descobrir onde está Rogério Monte.
— Pode contar com ela - respondeu Feitosa, principalmente... se Irena ainda viver.
Separaram-se, e o velho Marciano caminhou para o seu casebre, a cuja porta esperava-o a formosa Mundica.
— O que foi que lhe aconteceu? - perguntou a moça, vendo as feições demudadas do pai. - Está doente?
Marciano não respondeu, entrou e foi sentar-se à mesa, a olhar para o prato que tinha diante de si. As filhas sentaram-se taciturnas em torno da mesa, e a velha mulher de Marciano dirigiu-lhe então a palavra.
— O que tem você? Já custa à gente a levar o bocado e ainda por cima tristezas!
— Quer saber de uma coisa? - respondeu por fim o sacristão. - Eu não posso mais aturar o vigário.
— Todos têm gênio, meu pai - ponderou timidamente Mundica: - o sr. vigário há de voltar de novo às boas.
— A conversa não é com você - replicou rudemente o velho -, meta-se com a sua vida, e não queira sujar-me ainda mais. Tivesse você vergonha, que não falaria mais nesse homem.
— Nós comemos o que ele nos dá...
— Pois não comeremos mais: fique-se você com ele, nós vamo-nos embora para o Ceará.
As últimas palavras de Marciano encheram de estupor os circunstantes. O cearense prefere a penúria a abandonar o torrão natal. Só quando a fome bate-lhe inexoravelmente à porta, quando a cova escancara-se-lhe aos pés de modo que o menor passo no solo do seu berço despenhá-lo-ia para sempre nessa pavorosa garganta, cheia de mistérios e de assombros, o desgraçado despede-se das suas charnecas, da sombra das suas carnaubeiras e vai pedir um abrigo nas terras do exílio.
— Como fazer essa viagem, Marciano? - perguntou a velha mulher. - Era o mesmo que nos condenar a morrer a fome.
— Antes isso; não quero mais comer daquele homem. O dinheiro, que ele manda para... a sua afilhada, não passará mais pelas minhas mãos. Receba-o quem quiser.
— Faça o que quiser: eu não vou - resmungou Mundica, esfregando desdenhosamente as mios.
— Você, eu sei que fica, ainda que seja como alugada de Eulália para receber-lhe o filho nas mãos.
— Talvez - respondeu a filha, mordendo fortemente os lábios. - Havemos de ver.
O velho sacristão levantou-se e deu algumas passadas para sair, porém Mundica saiu ao seu encontro, e com os olhos rasos de lágrimas, abraçou-o suplicante.
— Não fique mal comigo - disse humildemente -, eu vou também; não quero mais ficar aqui, para ser desprezada por amor daquela perdida.
— Faça o que entender, filha; eu não tenho direito para fazer coisa alguma contra si, fui fraco; se quiser seguir-nos, venha; se não, fique.
— Eu irei também, não quero mais ficar.
Marciano, seguido por Mundica, chegara até a porta do casebre e aí parados trocavam palavras que revelavam a mútua torpeza, quando pela frente da cerca passou, andrajoso, descabelado, resmungando a sua perpétua queixa, o mísero Joaquim Maluco.
— Olhe o que fazem os padres - disse o sacristão. - É o futuro que o vigário me preparava.
— Eu hei de vingar-nos, meu pai; deixe ficar por minha conta.
O velho sacristão tomou para a casa do vigário, vagarosamente, a deter-se de quando em quando, como quem hesita.
A casa da família de Queiroz ficava em caminho, muda, sem as cantilenas da meninada do povoado, que havia emigrado para sempre da sala das aulas. Os bancos enfileirados, como outrora, a grande mesa da escrita, onde o sol da manhã depunha uma pasta de luz, tinham, no silêncio que lhes envolvia o conjunto, a majestade das ruínas.
Marciano parou na soleira da porta, entrecerrada e, sacudindo a cabeça, enviou ao interior a saudação do uso:
— Deus esteja nesta casa.
— Entre, sr. Marciano - respondeu da saia de jantar a voz de d. Ana.
— Com licença.
Descobriu-se e entrou até a sala de jantar, que nada perdera da ordem dos bons tempos, exceto a alegria; as duas meninas liam junto à mesa, a caçula brincava, d. Ana e Chiquinha costuravam. Havia, porém, uma banquinha vazia ao lado das costureiras, e dela como que se irradiava maior tristeza sobre os cinco entes vestidos rigorosamente de luto. A falta de Eulália naquela comunhão do trabalho abria um vazio impreenchível com a alegria perdida.
— Como? - perguntou Marciano, depois de cumprimentar a todos. - A d. Eulália ainda na mesma?
— Coitada! - respondeu d. Ana -, desde que perdeu o pai tem estado sempre doente.
— E não se pode atinar com a moléstia?
— É moléstia que não tem cura: está assim a modo de apatetada.
— Eu já tive a minha Mundica assim, vai para quatro anos.
— E agora veio-lhe uma salivação muito grande: onde ela está faz-se um açude; além disso estão a inchar-lhe muito os pés.
Eulália apareceu à porta do seu quarto. Era apenas uma sombra da própria formosura; o rosto moreno e carnudo tornara-se magro e ictérico; a altivez virginal do colo transformara-se no mole arredondado das formas profanadas; a mobilidade graciosa dos gestos mudara-se nos movimentos relaxados dos apáticos. De todo o passado de sua beleza restava apenas a bondade do olhar, que lembrava o florescimento da vida de outrora com tristeza igual à da vegetação brava sobre ruínas majestosas.
— Veja-a - continuou d. Ana -, aquela é a nossa Eulália.
A boa da senhora enxugou com a ponta dos dedos as lágrimas, que lhe marejaram com a espontaneidade do sentimento, enquanto Eulália caminhava para junto da mesa e assentava-se em frente a Marciano.
— Ora valha-me Deus - exclamou o sacristão, depois de ter cumprimentado Eulália -, como está desfeita!
— Eu tenho esperança de que isto não há de durar muito - murmurou Eulália. - O sr. vigário diz-nos sempre que a moléstia não é coisa de cuidado.
— Eu penso do mesmo modo.
— Diga-o por favor à minha tia - sorriu tristemente; - a ela já se lhe afigura que estou morta.
— Qual morta! - exclamou o sacristão, sorrindo e sacudindo vagarosamente a cabeça. - A senhora tem vida para dois. Olhe, estamos em outubro, e o nosso bom velho Queiroz morreu em junho, na véspera de Santo Antônio. Eu lhes digo - e pôs-se a contar pelos dedos - temos julho, agosto, setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro e março; nove meses. Em março está com certeza boa ou, muito tardar, em abril.
D. Ana deixou cair a costura - pregou maquinalmente a agulha na travesseirinha e, depois de fitar o sacristão, ficou a encarar com Eulália, que descerrou impassível o seu sorriso de hipocondria.
— Bom doutor - disse a infeliz -, diz até o mês certo da cura; o senhor há de dar-me remédios.
— Ah! - exclamou o sacristão - não é preciso ser grande doutor para conhecer algumas doenças. Quando eu era mais moço, via a minha velha de dois em dois anos padecer da mesma coisa; mas no fim dos nove meses estava sempre boa.
Marciano prolongou uma risada roufenha, ao passo que d. Ana, levando as mãos ao rosto, abaixou a cabeça até encostá-la na travesseirinha.
— O que tem, minha tia? - perguntou Eulália surpreendida.
E dirigindo-se a Chiquinha acrescentou:
— Veja o que é que tem nossa tia?
— Eulália - soluçou d. Ana -, eu e seu pai fomos sempre honrados. Basta de fingimento.
— Mas o que fiz eu, santo Deus? - interrogou perplexa.
— Em que lhe ofendi eu, minha tia? Diga-me o que fiz, sr. Marciano; tenha dó de mim!
— Eu?! - respondeu tranqüilamente o velho. - Não posso dizer nada; isto é lá entre as senhoras... D. Ana - acrescentou ele depois de uma breve pausa, durante a qual acercara-se da boa velha -, eu não vim aqui para vexá-la; perdoe-me.
No meio da perplexidade das moças e das crianças, retirou-se o sacristão com ar satisfeito e, ao passar o limiar da sala das aulas, resmungou:
— São umas pobres de Deus; mas não importa, sofram também, porque eu preciso desforrar-me daquele patifão.
Seguiu até o fim da praça e entrou na casa de Paula. A submissão da sua voz não denunciava nem longinquamente a extensão das suas intenções hostis.
O vigário recebeu-o com o semblante repassado de bonomia e, batendo-lhe amigavelmente no ombro, disse-lhe com um sorriso piedoso:
— Então voltou às boas, hein? Está a fazer-se criança depois de velho.
Um lampejo de esperança fuzilou no olhar do sacristão.
— É que Vossa Mercê já não aparece, e a gente estava acostumada a vê-lo sempre por lá. Não imagina como tem passado a Mundica estes dois meses.
— Mas eu não desapareci de todo, nem alterei nada do que fazia.
— Sim, senhor; mas a rapariga vê sempre Vossa Mercê na casa da d. Ana.
— É que tenho de cuidar daquela gente como se fosse pai.
— Depois já rosnam por aí que a moléstia da moça...
— Desembuche, ande, homem! O que é que dizem?!...
— ... há de acabar lá para março.
Marciano, que havia abaixado os olhos hipocritamente, olhou de soslaio para o rosto perturbado de Paula, que, buscando debalde dissipar a sua comoção, tartamudeou:
— E por que em março?
— É quando pouco mais ou menos fazem os nove meses.
— Mas é uma canalhada difamar assim uma família! -gritou o vigário aprumando-se colérico. - Desta maneira nem a Virgem Maria passaria por honesta neste maldito lugar!
— É, fala-se muito, sr. vigário: mas neste caso basta a gente ter olhos e ouvidos.
— O que diz?
— Eu acabo de ouvir a sra. d. Ana dizer que a rapariga está a cuspir muito e traz os pés muito inchados...
— Oh! que estúpida que é aquela mulher.
— Veja agora Vossa Mercê: a Mundica sabe dessas coisas; Vossa Mercê não aparece lá, passa os dias inteiros na casa de d. Ana... por força a minha pobre filha há de sentir-se.
— Mas o que hei de eu fazer? abandonar a família do meu amigo? desprezá-la à miséria?
— É verdade que o peso de duas casas...
— Ouça, Marciano; você é pai e deve saber quanto dói a desonra de uma filha, a difamação de uma pobre moça. Diga a todos que é falso, que é uma calúnia, que esse povoado é um ninho de miseráveis.
— Perdoe-me, sr. vigário, eu não posso dizer ao contrário do que sinto.
— Quer tirar a desforra de hoje pela manhã, hein, meu brejeiro? - disse o vigário, batendo no ombro de Marciano e tentando mostrar-se alegre e perspicaz. - Pois está desforrado... tem mais dez mil-réis de ordenado.
— Muito obrigado a Vossa Mercê, mas eu com isso não posso dar à minha filha a alegria que ela perdeu.
— Estou hoje muito seu amigo, Marciano; faço-lhe mais outra vontade: irei todos os dias à sua casa; serve assim?
Marciano meneou humildemente a cabeça e resmungou:
— Por mim estava tudo concluído, mas a pobre Mundica é mulher, e quer que não se fale mais do sr. vigário com a filha do professor. Ora Vossa Mercê não há de estar pelo trato de não ir mais a casa de d. Ana...
— Não, miserável, não estou! - bradou Paula com arrebatamento. - Suma-se, e diga àquela desavergonhada que não quero mais vê-la.
— Às ordens do sr. vigário - responde o sacristão; - mas eu também não quero o aumento de ordenado: para viver triste chega o que tenho.
Marciano afastou-se e, ao sair, à soleira da porta da sala, inclinou-se diante de Paula, submissamente.
Este ficou tomado de medo, e quis chamar a si o velho sacristão.
— Então você quer por força ficar meu inimigo, Marciano? - disse ele. - Já não se pode mais caçoar consigo, hein ... Entre para cá, diga-me que diabo de estralada foi essa que meteram na cabeça de Mundica.
Marciano conservou se no limiar, com os olhos baixos, e Paula, contendo a irascibilidade natural, aproximou-se e puxou-o brandamente para dentro.
— Você há de continuar, por força, meu amigo. Você é o único que pode lavar a honra da pobre Eulália, e não há de contribuir para perdê-la.
— Tomo a Deus por testemunha, murmurou o sacristão.
— Faz muito bem - ponderou o vigário sacudindo-o carinhosamente pelos ombros -, você ainda não fez penitência por ter dado demais com a língua nos dentes a respeito do Monte.
Marciano estremeceu violentamente e tentou libertar-se das mãos do vigário.
— Veja continuou este - a consciência como o acusa. Ah! ninguém pode fugir a este juiz!
— Eu disse apenas o que o sr. vigário me disse.
— Mas o grande caso é que o homem foi obrigado a fugir daqui.
— Pois bem, eu farei a vontade ao sr. vigário: vou contar ao sr. Augusto Feitosa o que se passou. Eu vou já.
Paula segurou violentamente nos ombros do velho Marciano e, sacudindo-o com brutalidade, encarou-o longamente, obrigando-o a encolher-se todo trêmulo. Demudaram-se-lhe as feições; os olhos injetados de sangue saltaram-lhe à flor das pálpebras. Dir-se-ia que ele tinha visto derruir-se em globo todos os seus cálculos. A justificação de Monte seria a desgraça, porque teria como conseqüência a intimidade de Eulália e de Irena, e tal intimidade poria em relevo a perfídia do seu procedimento. Facílimo seria então a Irena reunir confidências que necessariamente tiveram, e descobrir por elas, sem que Eulália o insinuasse, o verdadeiro autor do crime contra Feitosa. Agitado por semelhante pensamento, Paula sentiu ímpeto de esmagar o sacristão, esse velho decrépito, a quem julgava seu escravo, e que de repente insurgia-se ameaçador e poderoso.
— O que tem você com Rogério? - bradou convulso. - Fez-lhe algum benefício? Estima-o porventura?
— Não, mas eu ofendi-o e quero reparar a minha falta. Mas se eu digo que foi ele, que só ele podia pensar em assassinar Feitosa! qual é a sua falta?
— O sr. vigário diz também que Eulália não está pejada.
— Mas se eu não sei se é verdade ou não, filho!
— Não, sr. vigário, a pobre moça teve uma falta - respondeu o sacristão, com acentuação sincera - mas eu a conheço muito: não a teve senão com Vossa Mercê.
— Pois seja, seja assim! Você também é pai, e diga-me: se lhe dissessem que abandonasse o seu filho, você o que faria?
— Eu?! puno os direitos de minha filha.
— Mas se eu lhe dissesse que a abandonasse?
— Não o faria; ela é minha filha diante de Deus; não posso negá-la.
— Então o filho de Eulália não tem direito ao mesmo amparo?!
— Não sei, sr. vigário, eu só devo zelar os meus.
— Mas, que direitos, diga, que direitos tem Raimunda sobre mim? - bradou o vigário, possesso de raiva. - Era uma mulher perdida!
— É verdade - resmungou Marciano -, ela não tem direitos... nem os quer.
Ficaram ambos calados por algum tempo, até que o sacristão pronunciou pela segunda vez:
— Às ordens do sr. vigário!
Paula, como se fosse tomado de um acesso de loucura, pôs-se a rir, e apontando para o velho Marciano, que o olhou assombrado:
— Caiu! - exclamou ele. - Pensou que eu falava sério - ... Besta que você é! Não vê que ninguém pode esquecer Mundica por uma pobre mosca morta? ... Ah! ah! Ah!... Sinto-me alegre; fiz uma experiência e agora vejo que sou amado. Diga à Mundica que eu não torno mais a casa de Eulália.
— Sério, sr. vigário? - perguntou, boquiaberto, o sacristão.
— Aperte esta mão, meu velho; reconheço agora que você é um grande amigo.
E apertaram-se estreitamente as mãos.
Essa cordialidade entusiástica de Paula cessou, porém, com a separação do grande amigo. Desde que ficou só, rompeu em exclamações contra si próprio, acusando-se da confiança demasiada que tivera em Marciano: esta alma de lodo devia infeccionar-lhe a existência, que se desdobrava luminosa como os meios-dias de verão.
Afundou-se num mar de pensamentos que se encontravam, choeavam-se como ondas encapeladas, e desfaziam-se como espuma. A realidade é que Marciano conhecia-lhe a vida inteira e aguerria-se com a própria torpeza para combatê-lo de maneira vantajosa.
— Ah! mas eu estrangulo esse velho tonto! - bradou num acesso de cólera. - Não há de ser um miserável quem me venha perder para sempre.
A imagem de Eulália surgia-lhe entre as explosões da cólera com a inflexibilidade da sua ternura angélica, súplice, lamentosa, pedindo-lhe que se abonançasse por ela e por seu filho. Se ele se fizesse odiar, se desse motivo a que se lhe alienasse a estima da paróquia, o que seria deles? Era preciso acalmar-se, e condescender para salvá-los.
— Miserável! - rugia de quando em quando o rancor sombrio do vigário. - E é pai, e pode sê-lo diante de Deus!
— Sr. vigário, mandam chamar da casa da d. Ana - disse o pequeno assomando repentinamente à porta.
Paula, estremecendo e levando automaticamente a mão à cabeça, respondeu como se estivesse alucinado:
— Vá dizer que eu sei os meus deveres; que não tenho medo de fantasmas.
O pequeno, assustado, como se houvesse cometido algum erro, obrigado aos puxões de orelha dolorosíssimos do seu amo, transmitiu o recado, mas acrescentando:
— Ele está doente; tem os olhos como postas de sangue e tremeu como se tivesse frio.
— Ouça - gritou de dentro o vigário -, diga que não posso ir lá hoje; ficará para amanhã de noite, sem falta. Que dêem o recado a d. Eulália.
O som das suas palavras como que o acordou da súbita demência, e, sentando-se junto à mesa do centro da sala, pôs-se a brincar com os dedos sobre os papéis aí esparsos. Os olhos abaixaram-se-lhe distraidamente e um sorriso deslizou-se-lhe manso como os da esperança. Em frente estavam abertas as contas de Antão Ramos, pelo fornecimento aos retirantes.
Paula inclinou-se e pôs-se a rubricá-las com a precipitação de um poeta, dando forma a um pensamento que lhe passou de relance.
— É mais um amigo que tenho, e ele vale sozinho por 20 Marcianos! Tudo há de ser arranjado com tempo.
O bem-estar do cálculo não durou nem dois minutos; o pequeno pediu licença para d. Eulália, que apareceu com ele na entrada da sala.
— O que tens tu, Eulália? - perguntou o vigário querendo dissimular o espanto de tão intempestiva visita.
— Venho saber o que é que eu tenho que tanto faço chorar minha tia.
Paula olhou em torno de si, e fechando as janelas e a porta, abraçou febrilmente a cintura de Eulália.
— Vamos para o meu quarto - disse-lhe com voz trêmula -, é preciso que ninguém nos veja e nos ouça.
A janela do quarto foi cautelosamente entrecerrada, e o vigário sentou-se na rede, colocando sobre os seus joelhos a sua dócil vítima.
— Então a titia não sabe que estás doente? - perguntou conchegando à sua a face da amante.
— Sabe, e era muito desvelada comigo; mas de repente tornou-se minha inimiga e nem quer que as minhas irmãs me falem.
— Como tens padecido, filha! Eu não pensei que de um amor tão profundo nascessem tamanhos desgostos.
— É um amor condenado, e é justo que eu sofra por ele. Se soubesse como eu ainda agora, não sei por que, tive vexame do olhar de Marciano!...
— Ah! ele esteve com vocês? - perguntou sobressaltado o vigário.
— Esteve, e foi por dizer que a minha doença duraria ainda alguns meses que a minha tia entristeceu-se a ponto de me tratar assim.
— Malvado! estende a sua vingança a quem nunca o ofendeu - disse Paula levantando-se de um salto.
— Mas o senhor também tem medo das palavras de Marciano?
— Se tenho, filha! Tu não sabes a extensão do nosso infortúnio; é agora que ele se faz maior. Dentro do tempo fatal...
— O que é que vai acontecer? O senhor não nos deixará nunca, não é verdade? Diga, porque eu nada temo consigo.
O vigário envolvia com um olhar de compaixão o rosto da jovem, molhado pelas lágrimas. Toda a hediondez do caráter frio e repelente do sedutor parecia ter-se dissolvido e evaporado na doçura daquele profundo olhar. O semblante comovido dizia que não era somente a paixão bruta, carnal, estimulada pela torpe lubricidade caprina, que o impelira através do povoado, o que o prendia a Eulália. Era alguma coisa, que vinha do lado bom da sua alma, gasta aliás pela hipocrisia, algemada pela insensatez de um juramento, que não podia, que não devia ser obedecido. Embora nodoado pelo crime, empoeirado e enlameado pelas intrigas, marcado pelo estigma do sacrilégio, era o amor com toda a sua força purificadora, com toda a sua pujança de virgindade perpétua, o que nesse momento ele sentia. Causava espanto vê-lo surgir de um seio tão ignominioso, e todavia espanujava-se luxuriante e vivaz: os lírios não perdem a alvura do colorido e a suavidade do perfume por arrebentarem da sepultura de um colérico.
— Amas-me então, Eulália?
Uma explosão de soluços respondeu à pergunta namorada e o vigário prosseguiu:
— Eu sei que a tua sinceridade é igual ao teu sofrimento, por isso mesmo espero que Deus minorará a nossa desgraça.
— Mas... - perguntou impaciente a moça - diga-me o que vai acontecer.
— Dize-me tu primeiro: não julgarias que seria uma vergonha assassina saberem todos que tu eras minha amante... a amante de um padre?
— Mas o senhor bem sabia disso e...
— Não te envergonharias um dia, quando tu fosses mãe?...
— Não, não quero ouvi-lo falar assim; causa-me tanto medo...
— Quando dissessem - prosseguiu Paula animando-se progressivamente - "Aquela moça perdeu-se com um padre!"
— Piedade! não é o senhor quem me deve torturar tanto.
— Quando todos os maldizentes repetissem: "Aquela criança, que ali vai tão alegre, tão desdobrada na sua inocência, não pode dizer alto o nome de seu pai!"
— Ah! o senhor é impossível que me ame, porque então não me falaria assim.
— Amo-te! - exclamou com efusão o vigário. - Amo-te hoje mais que nunca!... Mas quero compartir o teu sofrimento, amargurar-me na mesma angústia, porque o dia em que todos saberão do teu erro e do meu crime, está próximo, Eulália, muito próximo!
— Vou então ser mãe? - soluçou com terror a desventurada. - Quanta desgraça, santo Deus!
Esta explosão de desespero, porém, durou apenas um minuto. O rosto da moça asserenou-se logo, e foi já com a voz tranqüila que acrescentou:
— Vou ser mãe, não é assim?... Não importa, será o que Deus quiser.
A sublime resignação de Eulália não ecoou no coração de Paula. Muitas vezes nas suas criminosas entrevistas com a moça, quando lhe ouvia as queixas da sua doença, tinha tido ímpetos de, entre carícias e consolações, desvendar-lhe a causa do seu padecimento. Mas falecia-lhe o ânimo, e acovardado forcejava para amordaçar a consciência que lhe repetia baixinho: "já não podes esconder a tua infâmia, ela é mãe". Só este pensamento acabrunhava-o e fazia-o delirar; como que via aparecer entre si e Eulália a figura pálida de Irena, a lastimar-se e a condenar a crueldade da amiga, que oferecera em holocausto a um sentimento indigno a pureza de seu amor por Feitosa. Era para ele um martírio só o pensar que poderia dar-se tal revelação. Quando, pela vizinhança da madrugada, pulava a janela, que se abria do quarto de Eulália sobre a horta, parecia-lhe ver enfileirados junto à cerca os vultos de Irena, de Rogério e Augusto. Eles o perseguiam de contínuo, já apertando-o entre as tenazes ardentes do pesadelo, já surgindo sobre a cruz da hóstia, na hora em que tentava encarnar o pensamento nas frases místicas da missa. Mas neste momento os seus receios tornavam-se mais cruéis e temerosos. Seguiam-no cochichando, com pequenas risadas escarninhas, frias como a impassibilidade do sobrenatural; e de espaço a espaço pendendo-se-lhes ao ouvido, perguntavam-lhe que faria agora do filho e onde esconderia o aviltamento de Eulália. E parecia-lhe ver Feitosa mostrar-lhe a sua chaga estilando sangue; Rogério - os cabelos brancos manchados; Irena - o coração cansado de palpitar saudades e de tragar humilhações.
Foi este sevo temor o que o vigário sentiu em face da resignação de Eulália e, parando diante dela, perguntou-lhe a tremer:
— E tens coragem para dizer - "eu sou mãe"?
— Oh! Deus há de dar-me - murmurou a desventurada.
— Mas o teu amor perder-me-á! - exclamou com amargura o vigário. - Toda a gente apontar-me-á como teu amante, e recordando-se de que teu pai confiou-te à minha guarda, odiar-me-á como a um ente abjeto.
— É a fatalidade da nossa má sina.
— Não, Eulália, escuta: é preciso que ninguém o saiba; a punição que d. Ana te inflige será a que todos te infligirão.
— Mas o que hei de eu fazer?
Paula chegou-se para mais perto da moça, e trêmulo até o tiritar, pronunciou com uma entoação desesperada:
— O que hás de fazer?... Deitar fora... matar essa criança...
— Nunca! nunca! - respondeu Eulália ofegante. - Não cometerei mais este crime. Eu saberei defender meu filho contra todos.
— Não poderás, Eulália; lutarás em vão, porque para as mulheres como tu, não há perdão - murmurou temerosamente o vigário. - Cede... pelo amor que tinhas ao teu pai, cede...
— Não, nunca!
— Mas vê que me apontas a todo o povoado...
— Partirei então; irei para bem longe onde não o possa... envergonhar.
— Doida, não vês que a tua ausência não basta para salvar a minha honra?
— E importou-se o senhor com a minha? - exclamou a moça arrebatadamente. - Não quero; não quero ser assassina do meu próprio filho. Deixe-me passar.
Paula recuou diante desse assomo de dignidade e ficou perplexo a ver a jovem afastar-se apressada e altiva. Mas de um salto, como se houvera ensandecido, levantou-se, e, segurando-lhe violentamente o braço, voltou-a de face para si, com uma brutal reviravolta:
— Eu já te disse - bradou ele colérico - que esta criança há de morrer.
— Mate-a - respondeu Eulália resolutamente - mas eu o denunciarei se não me matar também.
— Não chegarás a fazê-lo, desgraçada! - bradou o vigário com um tom gutural.
E cerrando o punho ameaçou descarregá-lo sobre o ventre da vítima.
— Mate-o! - gritou a infeliz fazendo com os braços um escudo para o ventre. - Mate-o! mas se não matar-me também, saberei defender meu filho com a mesma arma com que o pai assassinou!
O monstro recuou espavorido, e sem força para vencer o nobre arrojo da desgraçada moça, caiu por sua vez de joelhos e exclamou debulhado em lágrimas:
— Perdoa-me, Eulália! Eu sou antes de tudo, um desgraçado! O teu amor perdeu-me!
Eulália não chegou a ouvir as últimas palavras do vigário. Levantando-se logo que se viu fora da monstruosa ameaça, correu até a casa, como se sentisse após si as pisadas do seu sedutor, e foi ansiando muito, quase asfixiada de cansaço, trêmula pelo temor de ser alcançada, que arrancou o moirão da cerca, por onde havia saído sem que ninguém da casa desse pela sua falta.
— "Meu Deus, como se pode ser tão cruel?! - pensava a infeliz. - "E como eu pude amar esse monstro como o amava?!
Embora uma vez entrada na horta se julgasse defendida, caminhou até o fundo, para debaixo de umas árvores, que amareleciam já a copa ampla e frondosa.
— Ainda que venha, não poderá descobrir-me sem que eu primeiro o veja.
E recostou-se prostrada pela fadiga.
De súbito, porém, sobressaltou-se e levando as mãos ao ventre, levantou os olhos embaciados pelas torturas indizíveis que a afligiam. Uma suspeita ecoou-lhe sobre os lábios.
— Se eu o machuquei... Talvez o pobre inocente já comece a padecer por mim.
Este pensamento de solicitude pelo filho ainda embrionário bastou para superexcitá-la. Olhou em torno de si como se tudo que via lhe afigurasse espectros, prorrompendo em gritos ameaçadores, gestos brutos e hostis.
Entretanto a canícula escaldando com o beijo de fogo a vegetação meio morta, dando ao ar a temperatura da vizinhança de uma forja, sepultava a horta e os arredores na quietação das calmarias no oceano. Só de longe em longe ouvia-se o esvoaçar medroso dos galos-de-campina que vinham esconder-se na sombra, e arrufando com o bico os encontros escarlates das asas, a penugem pedresada do peito, palpitavam sedentas queixas contra o ardor da soalheira.
Eulália, agitada e trêmula, abandonou o refúgio escolhido, atravessou a horta, a sala de jantar isolada, entrou no quarto em que dormia, e, fechando-se por dentro, correu até junto da caixa, onde escondera o canivete-punhal, que era hoje a sua única defesa. Tirou-o do seu esconderijo ignorado e veio colocar-se junto à janela, olhando com a fixidez do avaro. Nas guardas e nas lâminas havia manchas de sangue e de ferrugem, vestindo-lhe a nudez assustadora, e sobre uma plaqueta de metal, de que se ornava o cabo, as iniciais de Paula guardavam ainda na depressão das letras o sangue do crime.
— Ainda está aqui - disse por fim Eulália -, ele não mo poderá roubar.
Dirigiu-se à porta e, pondo a mão na chave, ia dar a volta para abri-la, quando estatelou como fulminada.
— Com sua licença, d. Ana - ressoou poderosamente a voz de Paula.
— Pois não, sr. vigário, entre; nós vamos já - disse a boa senhora.
Eulália sentiu que os passos do vigário ecoavam para o seu lado, e encostou-se a parede, de modo a não ser vista.
— Então, estão dormindo? - disse Paula batendo à porta do quarto. - Acorde, d. Eulália, são horas de acordar.
— "Como é perverso"! - pensou Eulália. - "Ninguém será capaz de desconfiar dele, e entretanto tem coragem para matar o filho".
D.Ana, saindo do seu quarto, caminhou ao encontro de Paula, e intencionalmente vibrou com força a voz comovida:
— Vossa Mercê é sempre a proteção de Deus sobre esta casa; tenho um grande conselho a pedir-lhe.
— Com muito gosto - respondeu Paula -, tudo quanto quiser de mim.
— "Pobre tia"! - pensou Eulália - "Vai contar-lhe a própria vergonha".
O coração de Eulália adivinhou o que se ia passar entre os dois, mas estava longe de poder fazer o mesmo acerca do que diria Paula, inspirado pelo horror de aparecer aos olhos do povoado na plenitude da sua hediondez.
D. Ana, depois de referir os pormenores da moléstia da sobrinha e as suspeitas de Marciano que eram também suas, perguntou ao vigário, que se fingia assombrado:
— O que hei de eu fazer? O senhor é o nosso único arrimo, o nosso único amigo.
— Eu estimo aquela infeliz como um pai - respondeu ele severamente -, não tomemos as coisas no ar, vamos observar. Diga-me a senhora...
E inclinou-se até ficar com os lábios junto ao ouvido de d. Ana, a quem segredou.
— Não lhe posso responder - murmurou a boa senhora abaixando os olhos - mas é fácil de saber-se.
— Pois esperemos até lá. Por ora nem uma palavra, inteiro silêncio.
— Só se fará o que Vossa Mercê mandar, sr. vigário; se eu fosse mãe, já saberia tudo.
— Sela muito prudente. Mas... é admirável que ninguém suspeitasse aqui...
— Se ela não falava senão com o sr. vigário, não saía...
— Há de se deslindar a meada, deixe por minha conta; é preciso que não transpire esta vergonha, e que ninguém suspeite. A senhora aconselhe-a, mostre-se alegre, convide-a quando for à missa. Eu vou falar ao Marciano.
— Farei tudo, sr. vigário - soluçou d. Ana - porque me lembro do meu honrado irmão. Bendita a hora de sua morte para que não tivesse de morrer de vergonha.
— Coisas do mundo, d. Ana! Tudo há de ser arranjado pelo melhor. Até logo - disse erguendo a voz apertando a mão de d. Ana -, bom apetite.
E saiu, calmo e desassombrado, pensando com a sua hipocrisia:
— Ainda não está tudo perdido!
Na ausência do vigário alguém foi procurá-lo e deixou com o pequeno seu criado um ofício com a marca Serviço Público.
— Então Sua Mercê não está? Eu podia ir levar a carta na casa... Mas não estou para ver poucas-vergonhas.
O pequeno, sem entender o sentido das palavras que ouvira, respondeu ingenuamente:
— Ele deve estar ali na casa do defunto professor. D. Eulália esteve aqui, chorou muito e saiu correndo.
— É isto mesmo; o patife do seu amo é bom... Eu já estive com o Marciano; sei a história.
O pequeno muito admirado foi relatar tudo à cozinheira, velha muito discreta, mas amiga de saber por miúdo a vida alheia.
— Foi o comboieiro quem me disse, e estava muito zangado.
— Olhem só! uma coisa tão velha; já dos tempos do professor as raparigas diziam que andava coisa entre as moças. Da feita da procissão, aquele recado, não sabe?
— Fui eu que o recebi.
— E na noite da estralada com o Feitosa a que horas ele entrou?
— Nós já estávamos dormindo.
— O barulho foi perto, espantou... Mas, boca fechada e deixe lá o mundo. Ciumadas!... você não entende disso; lave os pratos para o homem jantar.
O pequeno José obedeceu, mas de chofre, parando, perguntou à velha Antônia:
— E não se lembra que foi no outro dia da história com o tal Feitosa que nós vimos a camisa e a volta com sangue, e a água da bacia, hein?
— Cala a boca, rapaz! você não esteja a lembrar coisas! Arrenego.
José calou-se e continuou o seu trabalho, mas, ao pôr a mesa, ainda repetiu com a ingenuidade dos seus 13 anos:
— Se o Feitosa soubesse disto, hein, tia Antônia?
— Do que há de saber, cabra malvado?
— Da bacia, da camisa...
— Estupor dê nesta língua, cabra!
— Tínhamos o conto de réis, logo a rodar!
Antônia, que estava a temperar uma panela e levava a colher à boca para provar, parou de soprar o caldo fumegante e estremeceu, tornando-se carrancuda.
— Oh! rapaz, você não espalhe isto, olhe que o sr. vigário desanca-o.
— Eu não disse por mal, tia Antônia.
Mas o semblante da cozinheira não se desanuviou: dir-se-ia que um pensamento pertinaz a trabalhava profundamente.
— Ai! minha pobre gente! - suspirou, retirando do fogo a panela muito carregada de tempero. - Pobrezinhos! o que será deles por esses sertões da Maria Pereira!
Marciano, ao sair da casa do vigário, hesitou sobre a direção que devia tomar, mas resolveu-se por fim a seguir para a outra face da praça, porque lá havia sombra.
Andava devagar e com a cabeça pendida; ia pensando na resolução que devia tomar definitivamente sobre o seu negócio.
A idéia de ir ao Ceará em procura de Monte fascinava-o, mas ao mesmo tempo acudia-lhe como objeção a dificuldade de viajar agora pelos sertões, carregando todo o indispensável para a vida, e demais disso exposto à crueldade dos Viriatos. Acrescia ainda a má vontade da família, que não lhe perdoaria qualquer desgraça que por fatalidade sobreviesse.
Além disso o vigário tinha mudado o modo de tratá-lo, e conservá-lo-ia para não ver assoalhado o seu segredo. Não havia, pois, remédio senão esquecer o sonho dourado da captura de Rogério, e ficar adstrito ao tinir da cambada de chaves e à corda dos dois sinos da paróquia.
— Com mais dez mil-réis sempre se vai atamancando -pensou o sacristão; - mais tarde farei o resto.
Continuou a caminhar, e já se preparava para ir a casa jantar com a disposição de quem almoçara mal, quando uma pergunta assustadora formulou-se-lhe no espírito, e desdobrou-se numa série de suspeitas.
— E se o vigário me enganasse para tomar tempo?
Nada mais natural: era um homem que não se importava que lhe atassalhassem a reputação, desprezava as murmurações e ria-se com escárnio daqueles que o julgavam servir, informando-o de tais maledicências. Desde que ele pudesse apagar os vestígios do seu crime para com a filha do amigo, não temeria mais que o acusassem; a sua frieza bastaria para deixar duvidosos os mais convencidos.
— Não, eu não lhe deixarei a melhor - pensou o sacristão; - hei de apanhá-lo mesmo lapeando o copázio.
Tinha chegado junto à capelinha e parou sob o telheiro, que servia de campanário, olhando para o chão, distraído a seguir o curso do pensamento que lhe aconselhava toda a prevenção contra o vigário. Mas um som vivo de chocalhar e um estrupido intenso de animais chamaram-lhe a atenção e moveram-lhe a curiosidade.
Deu volta apressadamente à igrejinha e foi colocar-se do lado oposto.
— Como é isso, o comboio já de volta? Anda tudo agora abaixo e acima... Ah! vem quase vazio, não foi muito longe.
Quando a tropa desfilou pela sua frente, os camaradas limitaram-se a cumprimentá-lo e pedir novas do povoado, mas o comboieiro parou.
— Sabe de uma novidade, velho Marciano?
— Não se pode mais vencer com animais até o Aracati, não é?
— Qual! é o diabo, mas sempre se chega; haja vista eu. ~ coisa mais fina: o imperador não manda mais gêneros para os retirantes de cá dos sertões.
— Deveras?!
— Quem quiser há de ir lá para o Ceará; mesmo no Aracati ele já faz cara feia, tem-se descoberto muita muamba, sabe, não é? - muita tratantada. As folhas gritam todos os dias, segundo ouvi falar.
— Então isto vai ser o diabo.
— O que quer você? Pensa que o Antão Ramos faz o que faz à toa?
— Isto sei eu.
— Coitados dos pobres!
— Vai ser uma calamidade.
— A gente do professor está melhor?
— Qual, ainda agora venho de lá; a Eulália está com barriga, coitada.
— Inchação, hein? - É andaço geral.
— É uma inchação que há de acabar no fim de nove meses. Histórias lá com o vigário.
— Que me diz? Pois o velhaco divertiu-se também com ela?
— Segredo de amigo: é uma verdade.
— Qual segredo, nem meio segredo para aquele traste. Aquilo era a pobre rapariga ter alguém que descascasse a faca no diabo.
— Mas o que quer? Ela é sozinha...
— Pobre gente... Faz-me um favor, Marciano? Eu trago aqui uma carta para a casa do professor. Quem escreve pensa que o infeliz ainda é vivo. Você diga lá que foi um retirante do Aracati quem ma entregou.
— Talvez seja do Monte - disse Marciano, olhando muito para o comboieiro.
— Talvez, mas eu não o vi. Até logo; vou entregar as cargas do Antão e um ofício ao tal sr. vigário. Até logo.
— Por entanto! - respondeu o sacristão metendo a carta no bolso - eu entrego logo mais a carta.
Só, e longe dos olhares do comboieiro o sacristão tomou de novo entre as mãos a carta misteriosa e fez menção de abri-la, mas hesitou; e, coçando a cabeça, resmungou:
— Diabo! eu devo ler esta carta, mas tenho medo. Se aquele honrado homem soubesse? - acrescentou assinalando o comboieiro; - se o destemido Estevão desconfiasse apenas, matava-me! Não, o melhor é não arriscar; demais posso desanimar da minha empresa; esperarei pois.
Tornou a meter a carta na algibeira e caminhou apressadamente para casa precipitado, inconsciente como quem acaba de achar um tesouro e descrê da sua própria felicidade. Mundica esperava-o impaciente e assustada, costurando à sombra das árvores da entrada, e, ao vê-lo apressado correu-lhe ao encontro com a sofreguidão da curiosidade.
— Decidiram alguma coisa, meu pai?
— O vigário prometeu abandonar Eulália.
— Não basta prometer; é preciso que ele o faça logo, e eu duvido...
— Vejamos primeiro, filha, pode ser.
— Não acredito; eu só ficaria contente se visse aquela delambida fora da paróquia.
— Com o tempo há de acontecer isto mesmo.
— O sr. vigário prometeu também?
Marciano abaixou os olhos e tartamudeou querendo mentir, mas depois respondeu com firmeza:
— Não, mas arranja-se: confie você em mim, tenho meios para obrigá-lo a fazer o que eu quiser.
Mundica não respondeu, mas inundou o rosto do pai com o seu olhar meio irritação, meio ternura, e pensou consigo:
— Eu hei de fazê-la sair, ou então nem eu nem ela.
Paula assomou na extremidade da cerca e, olhando para dentro, exclamou afinando a voz no tom de boa camaradagem:
— O bom filho à casa torna.
— Espere, que eu vou repicar os sinos - disse Marciano, dirigindo-se para a cancelinha fazendo-a girar sobre o pé. - A casa está sempre ás ordens.
Mundica não teve forças para dar um passo. Amolentada pela satisfação de ver o amante, parecia a estátua da hesitação à espera de um afago lascivo. Causava-lhe uma sensação suave de bem-estar a oscilação do passo do vigário, que afigurava-se-lhe uma aparição que magnetizava-a, e tinha desejos de servi-lo como escrava, e hospedá-lo como a hebréia lendária, lavando-lhe os pés em óleo perfumoso, dizendo-lhe palavras ternas, que significassem confiança e cordialidade.
O vigário pegou-lhe na mão abandonada, colocou-a entre as palmas da sua e fitando-a com um sorriso:
— És mesmo uma santa, Mundica! Não tens uma palavra áspera para mim, que a mereço e muito.
Entraram na saia e sentaram-se todos silenciosos, até que Paula reatou a conversa.
— Há alguma novidade, Marciano?
— A chegada do comboieiro do Aracati; ele trouxe carta para Vossa Mercê.
— Veio o carregamento?
— Diz Estevão que não vem mais nenhum, porque deixaram de dar socorro aos pobres do sertão; quem quiser há de ir para o Ceará.
— Oh! isto é grave - Mande-me buscar a carta; já deve estar em casa.
— Vou eu mesmo.
Paula e Mundica ficaram sós: ele contemplando a moça com o seu olhar desdenhoso, ela cabisbaixa a sacudir as pernas trançadas, que se desenhavam no vestido sem goma.
— Vamos ficar bons amigo, como outrora, não é? -perguntou o vigário.
— Eu nunca fui sua inimiga.
— Sabia bem disto, mas quis experimentar-te.
— Deveras ? - sorriu Mundica. - Pois agora vou eu também fazer outra experiência.
— Qual?
— Peço-lhe que faça com que Eulália deixe a paróquia; só assim...
— Mas você bem vê que isto é um impossível...
— Não vejo impossível nenhum, desde que o senhor queira.
— É uma infeliz rapariga, vocês andam caluniando-a; eu nada tenho com ela.
— Vai ser mãe de um filho seu, é o que o é, e o senhor esqueceu-me por ela.
Paula conseguiu sufocar a comoção que o assenhoreava, e com uma risada de fingida bonomia:
— Quem te meteu isto na cabeça, Mundica? Olha que é tão verdade como eu não estar agora aqui.
— Eu não sei se é verdade, ou não - respondeu resolutamente Mundica. - Se ela ficar, hei de espalhar por toda a parte que é assim, e só assim.
— E eu - respondeu o vigário contrariado - hei de reduzir vocês a não ter o que comer; percebeu?
— É o mesmo - disse Mundica friamente.
Calaram-se e ficaram a olhar indiferentes para as árvores; Mundica muito calma, Paula carrancudo, com os olhos brilhantes como os de um tigre que se vai assanhando.
— Vocês pensam que eu sou agora o brinquedo da paróquia, não?
— Eu não penso nada.
— Pois eu hei de ensiná-los... hei de convencê-los de que se enganaram, foram injustos comigo.
Depois de corrigir a frase desabrida, Paula ajuntou o afago fingido à sua hipocrisia e caminhou para Mundica, que o esperou com a mesma impassibilidade, deixando-se abraçar e beijar sem resistência.
— Por que não hás de ser sempre boa assim? Para que ouves teu pai? Não te zangues; eu prometo-te que dentro em três dias Eulália nos deixará em paz. E inocente, mas... é preciso não parecer culpada.
— Jura-me?
— Juro.
— E se não o fizer?
— Faze tu o que entenderes.. . Salvo se ficar provado que não há verdade no que diz teu pai.
Mundica perdeu um pouco da frieza com que malgrado seu tratava o amante, e pôs-se a desfiar as queixas que tinha de tão prolongada ausência, que ela não sabia como não a tinha matado.
— As mulheres são muito mais sinceras do que os homens; o senhor nem pode imaginar o que nós sofremos - concluiu Mundica.
— Talvez; mas eu posso mais ou menos avaliar. Juro-te, porém, que não sofrerás outra vez por mim. Eulália há de aparecer de novo aos teus olhos tão pura como antigamente descansa.
— Cá está o ofício, sr. vigário - disse Marciano, aparecendo à porta.
E voltando-se para a filha, a sorrir:
— Mulheres! Veja como já está com uma carinha de Páscoa.
Paula pôs-se a ler o ofício e por fim exclamou:
— E exato, estão suspensas as remessas para o sertão. Que inferno vai ficar isto! Ninguém poderá mais ficar aqui. Eu não serei o último a sair.
— Parte, então? - perguntou Mundica, sobressaltada.
— De certo modo; não hei de morrer à fome.
— Ah! - exclamaram a um tempo Marciano e Mundica.
E olharam-se enquanto o vigário, abstrato, pôs-se a reler o ofício.
— O pior é que eu não sei como acomodar os retirantes -disse Paula; - nós já não temos nada para dar-lhes. Antão Ramos cobra mundos e fundos, mas no fim de contas os retirantes estão à ração magra.
— Então o sr. Ramos meteu o dente na esmola? - perguntou Marciano com intenção.
— Não digo isso; falo das contas, que são grandes.
— Ah! isto é outro contar... eu pensei que...
— Você pensa sempre assim. Estás ouvindo bem, Mundica?
— Engano de ouvido, sr. vigário.
— Ora esta - ponderou Paula. - Então não há mais socorro? Vou já entender-me com Antão Ramos.
Tomou o chapéu sorrindo, e abraçou Mundica despedindo-se.
— Estamos bons amigos, não? Queira Deus que isto continue. O Marciano já tem o seu auxílio, e está contente; porque diz ele que sem comida não há amor.
— É verdade - concordou o sacristão.
Mas logo que o vigário afastou-se disse voltando-se para a filha:
— O que te disse o monstro?
— Que Eulália partiria, se não se provasse a sua inocência.
— E você?
— Eu disse que sim!
— Ainda não o conhece, e já devia conhecê-lo. Ela partirá, porém com ele, e você ficará com uma bonita cara. Não o ouviu dizer que não seria o derradeiro a sair daqui?
Os olhos de Mundica fuzilaram o clarão temeroso do ciúme e as lágrimas deslizaram-lhe pelo mortal palor das faces.
— Não pense nisto, meu pai; eles hão de pagar-me primeiro.
À noite já toda a paróquia estava alvorotada.
O clamor das mulheres retirantes enchia as ruas e ia condensar-se diante da casa do vigário, que, muito irritado já, mandara fechar as portas da casa, para não vê-la de contínuo invadida pela multidão.
— Nada! não é possível ficar mais aqui - pensava Paula; - de um lado estes malditos; do outro, Eulália e aqueles malvados.
Já tarde, porém, silenciando o povoado, Paula saiu calmo e vagaroso, costeou a praça e entrou na horta do defunto professor, depois de ter arrancado e reposto o mourão. Parou então defronte e empurrou a janela do quarto de Eulália. Estava trancada.
— Eulália! Eulália! - chamou com voz sumida - abre, sou eu.
Aplicou o ouvido, chamou de novo com maior insistência, mas o silêncio manteve-se imperturbável, e ninguém apareceu.
— O que terá ela feito? - pensou aterrorado. - Não a devia ter perdido de vista; sou em verdade muito mau para consigo!
E repetiu com voz trêmula:
— Eulália! Eulália!
Mas ainda desta vez chamou em vão.
Desanimado, inclinou a fronte sobre o peitoril a conter os soluços que irrompiam-lhe numa rebelião do remorso contra a hipocrisia educada.
Uma sombra passou pela frente da horta, rente com a cerca, e, depois de olhar para o interior, hesitou e voltou sobre os seus próprios passos.
Quando Paula, depois desse violento abalo, entrou cautelosamente em casa, na sala de jantar havia ainda luz e quem reparasse para o umbral veria colado a ele a cabeça da velha Antônia, que tinha estado à espreita.
Paula, porém, entrara prevenindo apenas o ruído das suas passadas e não reparou em tamanha e tão insólita curiosidade da cozinheira.
No outro dia pela manhã Antônia teve uma demora desusada ao ir às compras; mas o vigário não deu por isso, e só à tarde veio a surpreender-se com a atitude da velha quando lhe participou que se despedia da sua casa.
— Mas o que vai você fazer saindo daqui? O que é que há de ser de si?
— Vou cuidar da minha vida e da dos meus parentes -respondeu secamente a cozinheira.
— Há de ganhar muito; não lhe dou um mês que não se arrependa.
— Eu? - Nunca - disse a velha com um tom severo; - nem estaria mais hoje aqui se tivesse pensado bem.
— Oh! - sorriu o vigário - então tem grandes queixas de mim? Não malandreja bastante, hein? Há ainda coisa melhor: não fazer nada.
A velha porém encolheu os ombros, cortejou o vigário e saiu resmungando:
— Antes não fazer nada do que lavar roupas sujas de sangue.
Paula, que não pudera ouvir o que disse a cozinheira, distinguiu todavia a palavra sangue, e tanto bastou para ficar desassossegado. Mas apesar dos tratos que deu à imaginação não conseguiu chegar a conclusão alguma. Por isso, passeando pela sala, repetia freqüentemente:
— O que quererá dizer aquela velha tonta?
Acreditando que o vigário entendera as suas palavras e conhecendo-lhe a fundo o gênio desigual, os arrebatamentos súbitos, os acessos de irascibilidade desse temperamento ardente que se escondia numa calma hipócrita, como um vulcão sob um geleiro, Antônia andava com a presteza do medroso, e, em poucos minutos, entrou pela casa de Marciano.
— Venho pedir-lhe uma pousada, por hoje - disse ela ao sacristão. - Deixei a casa do sr. vigário.
A casa está aí para todos, tia Antônia, ainda que eu não saiba por que motivo saiu você da casa de seu amo.
— Ah! é uma história muito comprida.
A curiosidade de Marciano e sua família sobreexcitou-se com esta comprometedora declaração, e todos por sua vez porfiavam em acabrunhar com perguntas a simplória da velha; mas Antônia não satisfez às interrogações curiosas senão quanto a Eulália.
— Olhe que dói dentro dalma - ponderou - ver uma menina criada, para bem dizer, nos braços da gente, cair em semelhante desgraça.
— Mas que culpa tem o sr. vigário de que isso se desse? - perguntou Mundica. - Ele apenas faz ali o papel de pai.
— É o que ele diz, mas entra tarde da noite pela cerca para falar com a filha do defunto professor.
— Pela cerca? - interrogou Marciano admirado.
— Vi-o eu entrar, e qualquer pode fazer o mesmo, indo espiar.
— Eis aí por que ele se prestou logo ao que nós lhe exigimos - pensou Mundica. - Podia continuar a amar Eulália, sem que eu nunca o percebesse.
— Eu queria um favor de Vossas Mercês - continuou a velha; - era não dizer que eu vim para aqui. Desde que o sr. vigário entrou-me certa noite em casa, eu tenho medo daquele homem.
— Certa noite - pensou o sacristão -, que noite será esta?
E como não pudesse atinar com a resposta, disse:
— Desconfiança, tia Antônia; o vigário no fundo é um bom homem.
— Não digo menos disso, sr. Marciano, mas são coisas que a gente tem.
Marciano retirou-se dentre os conversadores, e, como tinha por hábito e dever, dirigiu-se para a igreja à espera do vigário, que para lá ia sempre à tarde encomendar em massa os defuntos da véspera.
Abertas as portas, o velho debruçou-se numa das janelas da sacristia, e pôs-se a pensar nas trevas que ele dera tatear, para dar segurança à sua vida, agora exclusivamente à mercê da boa vontade de Paula.
Os bandos de retirantes cirandavam lamentosos, pedindo piedade para as crianças e para as mulheres esfaimadas. Havia nas suas fisionomias o abatimento da desesperança, e esse não sei quê que transuda no semblante o temor do desconhecido.
— Eis a minha sorte - pensou Marciano; - ao menor aceno do vigário, não terei mais um grão de farinha.
Mas, repentinamente, cavaram-se-lhe na fronte rugas fundas, como se elas fossem os vincos deixados por uma resolução inabalável, e o velho, ouvindo os passos do vigário, veio colocar-se ao pé da mesa com os braços cruzados e os olhos cravados no chão.
— O que temos de novo, sr. Marciano? - perguntou Paula, afetando bom humor. - Temos novas queixas?
— Não lhe pareça a Vossa Mercê.
— Então o que há de novo?
— Nada, sr. vigário, nada: coisas da vida. Vossa Mercê não vai encomendar?
— Vou. Dê-me a sobrepeliz.
Paula vestiu-se a olhar e a sorrir para o sacristão, que se conservava carrancudo e seco. Seguiu até a capela-mor, e aí, aspergindo o soalho tosco, desempenhou a sua função de pároco, rezando pela memória dos retirantes mortos.
Quando voltaram à sacristia, Marciano apressou-se em reatar a conversação da maneira mais singular. Dir-se-ia um gato farto a brincar com a vítima, antes de estrafegá-la.
— Vossa Mercê está sempre disposto a partir?
— Conforme; se continuar a penúria, não tenho outro remédio. O Antão Ramos já declarou-me que, se o governo ficar firme na sua resolução, ele também parte.
— E os pobres ficam a morrer para ali, como bichos do campo ?!
— É a lei do mundo. Eu não hei de morrer só pelo gosto de morrer. Lá diz o rifão: livra-te dos ares, que eu te livrarei dos males.
— Também Vossa Mercê vai ficando com a casa vazia: já está sem cozinheira, e breve talvez fique sem o José
— Isto é o menos; o que não falta é quem sirva.
— É verdade, mas os criados sempre levam consigo alguns segredos.
Havia na entoação das últimas palavras do sacristão tanta intenção de impressionar o seu ouvinte que Paula não teve força para dominar a comoção que o assoberbou.
Tornou-se-lhe de repente compreensível no espírito a causa pela qual Antônia desligara-se do seu serviço; lembrou-se da camisa e da volta que atirara a um canto da casa na noite do atentado, e teve assim a significação da palavra sangue, que ouvira a velha pronunciar.
Mais para não cambalear do que por ter vontade de demorar-se, o vigário sentou-se e, fitos os olhos em Marciano, disse a meia voz:
— Às vezes também esses ingratos espalham calúnias.
— Ah! - exclamou Marciano, que percebeu a perturbação de Paula - a velha Antônia não está neste caso.
— Nem eu digo isto - respondeu o vigário, continuando a fitar o sacristão, porém mais sossegado; - entretanto, se ela o fizesse não era para admirar.
— A Mundica é que ficou de novo triste com a sua sorte; o sr. vigário disse que partia...
— Mas não disse que a abandonava.
— E abandonará a família do seu amigo e o seu filho?
— Não falemos mais desses infelizes; você nada tem com eles.
— Mas o sr. vigário não está no mesmo caso.
O orgulho de Paula, ainda ferido dos recentes golpes que lhe desfecharam o sacristão e a filha, conteve-se todavia para não se expor aos ataques desapiedados de Marciano.
— Não avive dores fundas, meu amigo - murmurou com uma submissão comovida; - eu posso esquecer Eulália, mas não quero ouvir falar com desrespeito da sua desgraça.
— Eu não sou o culpado - replicou friamente o interlocutor; - Vossa Mercê é quem devia ter pensado assim naquela certa noite, como dizia ainda agora a tia Antônia.
Paula estremeceu violentamente e pôs-se de pé como um autômato que sofresse um impulso repentino.
— Então aquela bruxa disse alguma coisa?
— É; esteve a falar de uma certa noite...
— E o que disse ela? - perguntou o vigário com os olhos esbugalhados, a fitar o sacristão.
— É o meu segredo...
— Veja, Marciano; eu tenho medo que difamem aquela infeliz rapariga, e temo que a velha Antônia dê à língua. Veja você: isto me mataria de vergonha. Você é meu amigo, peça à Antônia, diga-lhe que se cale, eu não duvido fazer o que ela quiser.
— Não é para esse lado - ponderou friamente o sacristão; - a coisa há de ser outra.
— Não, não pode ser outra - objetou o vigário perturbando-se cada vez mais -, nada mais podia ela dizer.
— Meta a mão na sua consciência, sr. vigário, e diga, diante de Deus, se está falando a verdade.
— Não, já lho disse! - bradou o vigário. - Se aquela velha tonta se atreveu a dizer mais, eu não hei de errar o golpe: arranco-lhe a língua.
— Ela nada disse que eu ouvisse; acalme-se Vossa Mercê; deixe-se de ver fantasmas - disse Marciano, sorrindo.
E batendo no ombro de Paula, acrescentou:
— A minha Mundica não lhe deu tamanhos desgostos, e o senhor é bem ingrato para com ela.
Paula não comungou da brusca jovialidade do sacristão, apesar do requinte que este punha em torná-la comunicativa.
— Parece que estamos todos doidos - ponderou ele; levamos o tempo a assustar-nos e a ofender-nos em vão.
— Por minha parte, já não tenho receios; o sr. vigário é que não pode ouvir falar na casa do professor; como que Vossa Mercê tem medo daquela .....
Uma vozeria estrepitosa levantou-se lá fora. Paula aproveitou-se da curiosidade do sacristão e correu à janela.
Estagnada em face da casa de Antão Ramos, uma onda de retirantes, grande e nojosa como um antigo monturo, levantava a grita assustadora, e, como o inspetor houvesse fechado as portas, começava lá a ameaçá-las com o arrombamento.
— Vá repicar o sino em sinal de prece - disse Paula - e acenda as velas dos altares. Eu vou acomodá-los.
Seguiram ambos ao seu destino, e dentro em pouco o vigário, colocando-se perfilado diante da casa de Antão Ramos, fazia recuar submissa a multidão desvairada pela fome.
Os sinos convidavam à prece e à resignação, falavam de paz e de piedade no meio do alvoroço, e eles, mais o que a voz do vigário, arrastaram para o templo e suas circunvizinhanças, os retirantes e os moradores do povoado.
Paula subiu então ao púlpito e com uma austeridade angélica pôs-se a doutrinar os fiéis aconselhando-lhes coragem no padecimento e no transitório da vida, - porque dele surge, como a flor do cacto das vergônteas espinhosas, a paz d'além túmulo.
— E vão dizer lá que ele é quem é - resmungou a velha Antônia, que estava com a família de Marciano encostada à porta da capela-mor aberta sobre o corredor da sacristia.
— É verdade - concordou o sacristão -, é um santo...
— Credo! até os sermões dele hão de fazer mal à gente; sempre é homem que se manchou em sangue alheio.
— Qual, tia Antônia! isto agora é raiva dele; você como saiu do serviço do vigário...
— Pode sim - murmurou a cozinheira - mas ele não nega à minha vista que entrou numa certa noite em casa, com a camisa, a volta, e as mãos cheias de sangue.
— E há muito tempo, ou é coisa nova?
— Vossa Mercê há de saber mais tarde; quem é o dono da coisa há de puxar pelos seus direitos.
— Está bom, venha isto quanto antes.
Calaram-se, porém Marciano vivamente impressionado continuou a examinar com olhares vesgos de sofreguidão o semblante calmo da velha. Dir-se-ia, ao vê-lo agora, que ele fazia um retrospecto de todos os acontecimentos extraordinários que se haviam atropelado na paz quase patriarcal da paróquia. Uma idéia vinha-lhe de continuo e era que as palavras de Antônia tinham muita relação com o temor do vigário quando o ouvia dizer que iria revelar a Augusto Feitosa a origem do beato contra Rogério Monte. Mas a suspeita do sacristão de pronto se desvanecia, porque uma série de perguntas vinham demonstrar-lhe a improcedência. Por que razão Paula havia de agredir o rapaz? Eram tão amigos. Feitosa nunca demonstrou ao menos gostar de Eulália; porque havia ele de tentar assassiná-lo?
A lembrança da carta passou-lhe pela memória aclarando-lhe as sombras da dúvida como o relâmpago o céu tempestuoso, e Marciano deixando cautelosamente a família, veio para a sacristia, que estava alumiada por uma vela colocada junto ao crucifixo.
Levado pelo primeiro impulso da viva curiosidade que o avassalava, o sacristão leu as primeiras linhas da primeira lauda e apressou-se em ver a assinatura. A decepção que o apoderou levantou-lhe os olhos para a imagem de Cristo, que parecia um indiscreto devassando com o olhar descaído as linhas escritas. O signatário da carta não era, como esperava Marciano, o velho Rogério Monte, mas um homem desconhecido no povoado, provavelmente algum amigo do defunto professor e que nunca tinha vindo à paróquia: Antônio de Louredo.
— Perco mais uma esperança - murmurou o sacristão.
Rasgou em cruz, amarrotando a folha de papel, e atirou-a pela janela, acrescentando:
— Cometi uma ação má sem necessidade.
Arrependendo-se de súbito, debruçou-se na janela e olhou para a praça; ainda viu um vulto levantar-se e começar logo a caminhar apressado; mas os pedaços de papel não estavam sobre o areal.
— Boa noite - exclamou Marciano.
— Boa noite - respondeu o vulto. - Como vai, sr. Marciano?
— Ah! é Vossa Mercê, sr. Augusto Feitosa?
E deixando a janela correu até a porta lateral, onde foi apertar a mão do moço, sem entretanto ter coragem de perguntar-lhe se tinha ou não visto os pedaços de papel.
— Está incomodado? Parece sobressaltado - perguntou o moço.
— Seu velho já, sr. Feitosa, e as cenas como as de hoje à tardinha me fazem muito mal.
— Mas os infelizes já estão mais acomodados, não é verdade?
— Parece; estão ouvindo o sermão.
— Não tenha medo, tudo se há de arranjar pelo melhor.
Despediram-se. Augusto Feitosa entrou para o templo, enquanto Marciano saía e procurava atentamente sob a janela e nas suas vizinhanças os pedaços de papel. Malograda a sua pesquisa, voltou para a sacristia a fim de ajudar o vigário a desrevestir-se. Depois, retirada a multidão, tornou à sua esperança de achar a carta e, de vela em punho, procurou por largo tempo, até que, desiludido, murmurou a coçar a cabeça:
— Não acho, e entretanto pode bem ser que nesta carta eu encontrasse alguma coisa que me auxiliasse.
Já a praça estava deserta e nem na venda de Antão Ramos havia luz; as ameaças da tarde o intimidaram a ponto de ter dito que não ficava mais na paróquia. Marciano caminhou até a cancelinha da sua casa, e ia impeli-la quando hesitou e continuou a andar na direção da casa do vigário, junto da qual, parando pôs-se à escuta, e depois a espiar pela fresta de uma das janelas.
De chofre correu até o meio da praça e deitou-se de bruços, espichado como um morto.
A porta abriu-se cuidadosamente e um vulto negro apareceu no umbral, olhou para todos os lados e saiu.
Marciano quedou por largo tempo, conservando apenas a cabeça um pouco levantada para poder seguir o vulto com o olhar; e só quando ele desapareceu de todo e a praça encheu-se homogeneamente da claridade do luar, ergueu-se o velho sacristão, que sempre pelo meio da praça palmilhou a distância que o separava da casa.
— Sabe? - disse indo ter com Mundica; - vi-o entrar agora mesmo na casa da Eulália.
— Não há de entrar outra vez, eu lhe juro - respondeu Mundica enxugando as lágrimas que lhe rolaram de improviso; - ou eu ou ela.
Era domingo, e desde muito cedo o velho Marciano badalejava, no campanário tosco da paróquia, os avisos para a missa conventual.
Não obstante, os repetidos repiques não despertavam no povoado a alegria que causa a voz dos sinos, ouvida fora das grandes cidades. As casas conservavam-se na quietação e silêncio dos outros dias, como se elas temessem o sussurro, que causam as pressas devotas do mulherio da roça.
Só quando as três badaladas do estilo anunciaram a próxima entrada da missa, os paroquianos, sem esmero no trajo, dirigiram-se para a igrejinha, quase silenciosos.
O vigário saiu também e foi parar à porta da casa de d. Ana; que só esperava pelas sobrinhas para ir cumprir com a devoção.
— Não há mais perigo de barulho, sr. vigário? Esses coitados de famintos já se resignaram?
— Mais baixo, d. Ana, porque eu não quero que Eulália saiba que eu estou aqui. Não me tem querido aparecer... Eu as espero lá; e quanto aos retirantes não há novidade.
Seguiu dando passadas largas para distanciar-se, mas quando, já bastante afastado da casa, viu a família sair, foi demorando o passo e afinal detendo-se entre os devotos espalhados junto à igreja, até que a família aproximou-se.
— Então a Eulália não veio?
— Não - respondeu d. Ana -, chamou-se por ela, mas não quis vir.
— Melhor; vamos para aqui, d. Ana; no corpo da igreja as senhoras não acham lugar; vamos para a capela-mor.
A família de Marciano já se achava assentada, quando entraram d. Ana e suas sobrinhas, que foram ajoelhar-se junto das suas antigas conhecidas.
Mundica, requintando a afabilidade, conversou alegremente com d. Ana, antes e durante a missa, chegando por fim a interessar na conversa as conhecidas que estavam junto. Mas, terminada a missa, no meio do silêncio com que se esperava a prédica do vigário, a voz de Mundica principiou com uma entoação esquisita a impressionar a desventurada senhora.
— Eulália está bem doente, não é verdade? Dizem que está sempre a cuspir. Será fraqueza de estômago ?
— Deve ser - murmurou d. Ana, concertando o seu xale preto; - mas não é coisa de cuidado.
— O sr. vigário é que está cada vez mais forte e mais sadio; vende saúde, não lhe parece ?
— Ele foi sempre assim, não muda nunca.
— É, há gente assim. A Eulália é que dizem ter feito muita diferença; até pode-se julgar que ela está com barriga d'água: está com ela tamanha! E verdade?
— Não é tanto...
— Vocês estão ouvindo - disse Mundica chamando a atenção das conhecidas -, é verdade que a Eulália está com a barriga muito grande?
— Que modos, Mundica! - murmurou d. Ana. - Isto é reparado.
— Quem sabe, d. Ana, se não é graça o que eu ouvi dizer de Eulália com o sr. vigário?
D.Ana, com as faces sangrando de vergonha, calou-se e, pretextando que estava doente, mandou que as sobrinhas se levantassem.
— Estou com arrepios de frio, não posso ficar para o sermão.
— Adeus, d. Ana - respondeu a filha do sacristão -, Deus permita que a sua doença não seja igual à de Eulália; deixe essas macacoas para as moças. A Chiquinha já pode...
— Você parece...
D.Ana, puxando pelo vestido de Chiquinha, impediu que esta prosseguisse, mas não conseguiu evitar a resposta de Mundica.
— Quem parece é sua irmã que está pejada do sr. Vigário e anda a fazer-se sonsa. Não veio à missa para não mostrar a barriga. Vão, podem ir; não se tapa o céu estendendo um lenço.
Os cochichos e as risotas das conhecidas de Mundica zumbiram como um enxame e repetiram as palavras da despeitada amante do vigário, enquanto d. Ana e Chiquinha retiravam-se trêmulas e sem poder conter as lágrimas, que se lhes desfiavam abundantemente.
— Não sabia que ela tinha este jeito - diziam umas.
— Ora, é sempre assim - respondiam outras -, as santas são as piores.
Pelo meio dessa erupção da má vontade do mulherio, desde muito percebida por Eulália, que a buscou evitar, quando suplicou um dos lugares do andor na procissão de março, atravessavam as duas infelizes mulheres, precedidas pelas meninas, e só no corredor acharam a quem se dirigir. Marciano, parado à porta lateral, agitava brandamente a sua cambada de chaves, a conversar com a velha Antônia.
— É como lhe digo, sai aí uma água suja dos diabos: o moço está como doido, e jura que foi o vigário quem o quis matar.
— E como sabe você disto?
— Se eu venho de lá! se eu conversei com ele! Como não hei de saber? Lá está a velha mãe agarrada com ele.
— Ah! Ele apanhou-me a carta! - exclamou desesperado o sacristão; - roubou-me um conto de réis, que era a minha salvação.
Antônia, sem compreender as exclamações de Marciano, ria-se com a franqueza da mulher do povo, quando foi bruscamente interrompida pela voz de Chiquinha.
— Ainda bem que lhe encontramos, sr. Marciano - soluçou a mocinha; - vá ouvir o que está dizendo de nós a sua Mundica, a quem nós nunca ofendemos.
— Eu sei lá disso - respondeu o sacristão colérico; - ela que o fez é porque tem suas razões.
— Não senhor - interveio a velha Antônia; - Mundica não tem razão; Vossa Mercê há de repreendê-la já. D. Ana e suas sobrinhas nunca trataram mal a ninguém no povoado.
— Deixe-me com um milhão de diabos! - bradou Marciano -, eu já estou em termos de perder a cabeça, deixe-me!
O que Mundica diz está bem dito, eu não tenho nada com a sua gente, d. Ana; vá para o vigário que é o amante da Eulália e talvez desta....
Dentre a mó de curiosos que se adensara em torno dos interlocutores, um braço estendeu-se e espalmou em cheio uma bofetada no rosto do sacristão:
— Toma a resposta, alcoviteiro, toma! - gritou Antão Ramos.
Uma confusão extraordinária espalhou-se em todo o grupo, dividido em partidários do inspetor e do sacristão, que fora cambaleando estender-se a comprido no areal.
— Por causa de uma mulher perdida insulta-se desta sorte um pobre velho; isto só a pau! - gritaram alguns.
— É ciumada daquela comborca - gritaram outros; - como o vigário protege a família do amigo, ela e este velho sem-vergonha tratam de difamar a pobre d. Eulália. Fora com esta canalha! Fora!
E os curiosos, os indignados e os apaziguadores corriam em bando enchendo o corredor e aumentando a gritaria.
— Fora o vigário! - bradaram furiosos os partidários de Marciano.
E correram precipitadamente para a sacristia, onde entraram tumultuariamente.
— Vejam! o miserável fugiu! É que Marciano e Mundica são os que falam a verdade! Vejam! - gritaram os mais indignados.
— Fora! Morra o vigário! - gritaram uníssonos os paroquianos. - Fora o sedutor!
Dezenas de vozes começaram então a clamar, querendo dirigir o movimento; mas ao passo que uns aconselhavam ir imediatamente à casa de Paula, outros julgavam mais acertado que fossem bater os capoeirões vizinhos. Dir-se-ia que todos estavam representando uma farsa com o fim de deixar o vigário evadir-se, porque a mais inconciliável confusão estabeleceu-se entre os indignados. Só depois de largo tempo a onda começou a espraiar-se por todos os recônditos da igrejinha à procura do fugitivo, e só mais tarde ainda lembraram-se de tomar o expediente de penetrar na casa de Paula. Os foras e morras ecoaram por longo espaço, mas ninguém pôde descobrir o perseguido, que parecia ter desaparecido do povoado por um milagre.
Paula entretanto ouvia a gritaria dos paroquianos e temia pela sorte que o aguardava, caso pudessem descobrir o seu esconderijo, aliás bem patente a todos os olhares. Quando romperam as primeiras assuadas e maldições, ouvindo soar por entre elas o nome de Eulália, compreendeu logo que o seu crime não mais se envolvia no misterioso véu em que por tanto tempo o furtara à indignação pública.
O seu primeiro desejo foi fugir para bem longe do povoado, mas refletiu em que o alcançariam na fuga e o desacatariam sem piedade. Trepou então ligeiro para cima do velho armário da sacristia e lá se escondeu na funda cuba formada pela guarnição. Daí acompanhou com temor a minuciosa busca que deram em toda a igreja, e ouviu os gritos convocando para a invasão da sua casa. Depois o templo silenciou e só passada cerca de uma hora ouviu de novo falas que se avizinhavam.
— Veja você, Estevão, como aquele mau homem desgraçou este povoado - dizia Marciano; - todas as pessoas mais importantes foram feridas por ele. O Monte e a filha lá se foram.
— Nem é bom mais falar nisso, faz arrepiar os cabelos da gente.
— Você viu em que estado se achava d. Ana, a lastimar a fuga da Eulália?
— A alma do professor persiga o malvado; uma pobre moça que era uma santa! Mil raios o partam.
— Aquela senhora fica doida com certeza e a Chiquinha e as outras meninas arrebentam de tanto chorar. Até a caçula, coitadinha, não cessa de chamar pela irmã - a sua mamãe.
— Só na força. Eu tinha coragem de amarrar aquele demônio, afora a coroa e as mãos bentas.
— Deixe estar que ele não perde, não. O Feitosa já sabe quem foi que lhe deu o golpe. A velha Antônia pô-lo ao corrente. Bom rapaz aquele; jurou ir procurar o Monte, pedir perdão e casar com a filha.
Mas por causa da saída do Monte daqui do povoado é que se deu a desgraça na casa do defunto professor, e ele não se lembrou da pobre d. Ana.
— Como não, Estevão? A família vai ser protegida por Augusto e soube-se que Eulália tinha fugido justamente porque a mãe de Feitosa mandou-a buscar para a sua companhia.
— Deus os ajude.
— Só eu - resmungou o sacristão - perdi tudo e até a maldita carta, que foi parar às mãos de Augusto.
— Hein?
— Vai ser um inferno agora: o vigário era o diabo, mas enfim sempre servia para conter os retirantes. De hoje em diante isto fica uma praga, até que se ponha para fora essa cambada.
— Isto é o menos, faz-se; primeiro nós, depois vós.
— Mas, enquanto não se lhes tira o vezo, temos o que fazer.
Os dois interlocutores continuaram a conversar sobre os acontecimentos, voltando a comentar a fuga de Eulália, cuja sorte, muito mais que a tentativa de assassinato, afetava o caráter do vigário aos olhos dos paroquianos. Feitosa era rico e forte, e demais disso a sua família, que não havia escrupulizado em derramar sangue naquelas mesmas paragens, não gozava de grande simpatia entre os habitantes. Cumpria ainda juntar que o moço tivera desde a noite a carta que o fizera acreditar na inocência de Monte, e além disso ouvira de manhã a velha Antônia; portanto tinha tido bastante tempo para vingar-se. É verdade que havia cedido às rogativas de sua mãe, que o não queria ver assassino, mas também era verdade que ele tinha meios de tomar uma desforra tremenda contra Paula.
O sofrimento de Eulália era, pois, o ponto fulminante da odiosidade geral contra o vigário, que, no seu esconderijo, ouvia, transido de dor, a narrativa da imensa desgraça.
— Bom, vamo-nos embora, eu já prometi a Nossa Senhora da Piedade uma vela para que se descubra o malvado.
— Só um milagre - respondeu Estevão; - ele meteu-se em lugar seguro.
— Julgam-me fora daqui - pensou o vigário; - posso ficar em paz.
Marciano e Estevão saíram trancando as portas e janelas da igrejinha e já se despediam quando se detiveram ouvindo gritos lacerantes vindos da banda da estrada, que, passando pelo cemitério, conduzia ao Engenho.
— Oh! que dia de maldição - exclamaram ambos e Marciano acrescentou: - quem sabe se não é alguma barulhada de retirantes? Eles ontem já ensaiaram e é possível que hoje continuem.
— Esperemos; todos estão e devem estar prevenidos.
Voltaram-se para o lado de onde vinham os gritos e esperaram. Um homem assomou gritando e correndo pelo meio da estrada e dirigiu-se para os dois interlocutores.
— Ah! é o Joaquim Maluco - exclamou o sacristão -, temos história, anda furioso ultimamente; entremos.
Marciano abriu a porta lateral que dava para o corredor da sacristia da igrejinha, mas não teve tempo de furtar-se com o seu companheiro às mãos do doido.
— Venham, venham - suplicou ele arfando de cansaço -, lá está ela, acordei-a.
— Sim, nós vamos já - respondeu Estevão - mas deixe-nos ir primeiro a casa; venha conosco.
— Eu?! Não, ela está lá, o vigário mandou enterrá-la dizendo que estava morta, ah! o vigário, e ela lá está viva.
O meu filho não quis acordar, e ela chora. Lá está beijando a terra.
A impaciência com que o pedido era feito, longe de impressionar, serviu apenas para fazer rir os dois interlocutores e alguns curiosos que vieram ouvir o maluco.
— Já sabemos que ela está lá, Joaquim, já sabemos disso, ela nem pode deixar de estar lá, entende?
— Sim, sim e o meu filho também, mas não acordou.
— É porque está com mais sono.
Riram-se todos, enquanto o aflito Joaquim Maluco, afastando-se com o seu esgarado olhar de doido, murmurava:
— Pensam que é verdade o que disse o vigário, e a minha filha lá está acordada, com fome, mordendo a terra.
O desgraçado vagou de porta em porta repetindo as suas tristes palavras, que misturavam o desvario a uma visão dolorosa, mas ninguém lhe deu crédito e menos ainda o quis acompanhar até o cemitério, que era o lugar para onde ele apontava, dizendo ter encontrado a filha.
Quando, porém, as palavras chegaram ao conhecimento da família do finado professor, uma esperança assomou ao espírito de d. Ana.
— Talvez ele tenha visto Eulália - exclamou a boa senhora e, saindo sem mais refletir, foi pedir ao inspetor que a acompanhasse até o cemitério.
A suspeita da boa senhora era a expressão exata da verdade. Com efeito, quando ainda não se haviam desdobrado as cenas tumultuárias, que para logo se atropelaram no templo, Eulália tomara uma resolução digna dos tempos alegres da sua vida: - resolveu fugir.
A ameaça de Paula nunca mais deixara de ecoar nos seus ouvidos. Como que o filho embrionário, apavorado pela idéia da morte, repetia-a de contínuo para fortalecer a coragem materna, e Eulália, estremecendo ao menor ruído, apertava logo na mão a arma com que o vigário desfizera a felicidade da sua amiga, e que hoje servia de defesa ao seu abandono.
Fechara-se no seu quarto para fugir à vergonha que lhe causavam os olhares da tia e das irmãs inocentes, e nem os chamados da caçula, que a tratava por mãe, faziam-na sair do seu retiro.
— Não, não morrerás meu filho - murmurava ela de quando em quando a desfazer-se em lágrimas; - eu denunciarei aquele malvado antes que ele te ponha a mão.
Na noite em que o sacristão viu a entrada de Paula na horta, Eulália sentiu, como na anterior, a voz plangente do vigário a chamar por si, enquanto tentava com repetidos empurrões abrir-lhe a janela do quarto.
Temendo pelo filho, abriu a porta para que a pudessem socorrer e esperou forte e resolvida a cravar-lhe o punhal se ele, porventura, ousasse querer levar ao fim a sua brutal ameaça.
Com a madrugada, fugiu-lhe, porém, o temor, porque a pressão importuna, de espaço a espaço aplicado à janela, cessou inteiramente e os ecos frouxos de um soluçar abafado extinguiram-se também.
A tristeza da sua posição ocupou por inteiro o vácuo deixado pelo temor que a havia torturado durante toda a noite, e Eulália teve horror de si mesma, pensando que ainda se conservava na casa honrada dos seus. Sentia-se agora com força e empregá-la-ia contra o vigário, caso ele de alguma sorte viesse renovar as ameaças contra o filho.
O contentamento que lhe vinha de imaginar-se mãe absorveu por instantes o negror do seu padecimento numa visão cor-de-rosa e consoladora, que a fazia antegozar o sabor dos beijos, que lhe daria, dos afagos enlevadores que lhe prodigalizaria. Mas o ressonar das suas irmãs veio perturbá-la no seu silêncio feliz, e o remorso de havê-las ela nodoado com a sua paixão criminosa alevantou-se hirto, inexorável diante de si.
Pareceu-lhe então ver o honrado professor, com os cabelos sujos e as mãos fechadas, apertando punhados de terras do sepulcro, deformado pela demasia, o seu corpo meão caminhar para si no meio da tremenda solidão do repouso do ler. A boca escancarada pela convulsão da asfixia tornava ainda mais assombrosa a aparição, cujo mutismo afigurou-se à mísera Eulália a intimação formal de abandonar imediatamente o lugar, onde vivera inocente e feliz.
Impelida pelo seu próprio pesadelo, a desventurada tateou a escuridão até a sala de jantar e foi parar junto da rede em que, a um canto, dormia a caçula - resfolegando com desafogo o sono da meninice, cujo pequenino coração não tem espaço para dar entrada às grandes dores. Curvando-se por sobre a rede, Eulália beijou longamente a irmãzinha adormecida, a quem, até bem pouco, havia sacrificado todos os gozos da mocidade, e, como se neste beijo houvera sugado mais energia para a sua resolução, resmungou por entre soluços refreados:
— Adeus, não hás de ter vergonha de olhar para mim, mais tarde!
A manhã veio encontrá-la da mesma sorte deliberada, e os repiques do sino lembrando-lhe o contraste entre a sua sorte e a de Paula consolidaram definitivamente a sua decisão.
— Enquanto eu me sinto morrer de vergonha, ele de fronte
alevantada recebe as bênçãos de todos - pensou Eulália. - Eu sofro e não tenho ânimo de aparecer nem a mim mesma; ele, com a mão manchada de sangue de um suposto rival, e da ameaça contra o próprio filho, segura tranqüilamente a hóstia consagrada e encara altivo o povo.
As lágrimas correram-lhe então em inundação e a mísera foi atirar-se de joelhos, com a cabeça sobre a caixa onde escondera a prova do crime de Paula. Desta violenta prostração só acordou ouvindo a voz de Chiquinha convidá-la para ir à missa.
— Não, não posso, minha irmã, rezem você e as outras por mim, adeus! – soluçou a infeliz.
Logo que o silêncio, que era o seu fiel companheiro no quarto, sempre fechado, restabeleceu-se na sua inteireza dolorosa, Eulália despiu a roupa de luto e amarrando estreitamente à cintura o canivete-punhal, vestiu-se com um dos seus vestidos de chita, sumiu a cabeça sobre uma toalha, pregada à moda das retirantes, e murmurou:
— Ninguém agora me conhecerá e eu não envergonharei mais o nome dos meus.
Atravessou resolutamente a casa solitária e a praça por onde os paroquianos, extasiados na sua fé, caminhavam para a missa e internou-se pela estrada, pela qual havia poucos meses passara feliz para ir ver o espetáculo do Feiticeiro.
Em frente ao cemitério, porém, vieram-lhe saudades profundas de seu pai, a piedade filial chamou-a a despedir-se ainda uma vez daquelas cinzas adoradas, e Eulália entrou resolutamente e foi ajoelhar-se e beijar a terra onde elas se escondiam.
Foi nessa atitude que o doido, que estava em uma das extremidades do campo-santo a despertar a filha há longos anos morta, viu-a e, confundindo-a com a larva que lhe alimentava a loucura, suplicou-lhe, beijou-a e finalmente correu ao povoado para encontrar alguém que a viesse buscar.
D. Ana correu a este apelo da loucura do lastimável pai, ouvindo os gritos do próprio coração que sentia por Eulália quase o amor de mãe, e foi ofegando de esperança que penetrou no cemitério.
A desilusão matou a última esperança da boa senhora que sufocando-se com a própria angustia só teve forças para exclamar:
— Oh! meu santo irmão, perdoai-a.
Eulália tinha desaparecido.
Alta já ia a noite no povoado, quando o vigário entendeu que podia abandonar o seu esconderijo. De um salto, veio bater com estrépito no assoalho da sacristia e, tateando a escuridão, foi abrir uma das janelas, pela qual entrou uma nesga de luar.
Espiou cautelosamente a praça deserta e, apoderando-se do crucifixo maltratado, pulou sobre o areal e apertou o passo na direção do Engenho.
Não demorou muito a chegar aí e, com a autoridade que exercia despoticamente sobre os ânimos crédulos dos retirantes, pôs logo em movimento todos os desgraçados.
Sentado junto de um brasido, que para logo foi convertido em uma fogueira, podia-se agora ver, envolto no clarão avermelhado das labaredas, o semblante do vigário.
O dia fora para sua alma um século de sofrimento, que de um lado se avigorava com o desejo de vingança e do outro se aprofundava e afiava o gume na saudade e no temor pela sorte de Eulália. O vestígio do padecer, pouco sensível nas suas faces morenas, estava entretanto claro nos olhos amortecidos, e principalmente na rouquidão da voz.
— Vocês souberam do que se passou hoje na hora da missa? - disse Paula a um grupo de retirantes que, de chapéu na mão, o escutava. Uma série de calúnias foi inventada contra mim, e insultaram-me como a um assassino e sedutor.
— É exato; nós não fizemos nada porque de nada sabíamos: não tínhamos certeza se era verdade ou mentira.
— É uma falsidade, juro-o à face de Deus - exclamou o vigário, olhando para o crucifixo; - eu serei vingado pelo castigo do céu sobre todos os que me insultaram e sobre aqueles que não correrem em minha defesa. A justiça de Deus não é como a justiça dos homens.
Os retirantes baixaram os olhos, e Paula, depois de ter conchegado aos lábios, num beijo longo, os pés do Cristo, prosseguiu:
— Eu era a defesa dos desgraçados; muitas vezes aqueles malvados tentaram vir aqui desalojá-los e expeli-los, para que não os contaminassem com as enfermidades e não lhes extinguissem o alimento. Eu, com a força deste madeiro - e suspendeu o crucifixo -, os detinha, como por detrás dele furtei-me ao olhar da cegueira dos seus pecados. Hoje, porém, vocês já não têm defensor, e aqueles homens sem coração tramam a expulsão dos irmãos infelizes do povoado.
— Nós não esperaremos que eles venham, sr. vigário; sairemos primeiro, amanhã mesmo.
— Sim, devem fazê-lo, mas o que vai ser de vocês pelas estradas sem um grão de farinha para comer?
— O que quiser a misericórdia de Nosso Senhor.
— Ela não poderá evitar que as mulheres e os filhinhos morram à fome, porque a época é de castigo e desafronta divina.
— Paciência; Deus se compadecerá das nossas almas.
— Entretanto vocês deixam após o povoado rico, feliz no seu egoísmo; a casa de Antão Ramos atulhada de gêneros, que ele roubou ao governo, dando assim causa a que não viesse mais a esmola do Estado; os Feitosas, abastados, orgulhosos, calcando aos pés todos e tudo; esses paroquianos orgulhosos com as casas providas.
— Não podemos tirar-lhes isto; Deus é mais piedoso para com eles.
— Quem lhes disse? Eu sou o seu sacerdote e, em nome do Deus que aqui tenho nas minhas mãos, juro que esses bens não podem mais pertencer aos incrédulos e aos impenitentes. Devem servir para matar a fome aos desgraçados. Vamos ao povoado reclamar dos inimigos da religião, dos que insultam os ministros de Deus o sustento dos infelizes.
Paula levantou o crucifixo e deu um passo à frente; mas os retirantes ficaram imóveis, hesitando.
Vendo em perigo a realização da sua vingança, o vigário desviou o caminho pelo qual queria conseguir arrastar o Engenho após si: dirigiu-se às mulheres, em nome da penúria dos filhos. Dentro em pouco havia soluços e lágrimas em todas as faces, em todas as vozes, e as mais queixosas murmuravam:
— Que bem lhes importa a eles que nós morramos de fome? Já nem têm religião para ouvir o sr. vigário e os choros dos filhos.
O efeito que Paula ambicionava para as suas palavras produziu-se finalmente, e a grande massa de andrajosos gritou por uma única voz:
— Ao povoado!
— Vamos, meus filhos - exclamou Paula -, não é o roubo que eu aconselho, é a conservação da vossa existência. Ao povoado: será mesmo nos domínios de Deus que encontrareis armas para a defesa; a cerca do cemitério fica em caminho, os seus mourões servirão para arrombar as portas.
A multidão abalou-se colina acima com o açodamento de quem deixa a família chorando à fome. Desfazer a cerca da habitação dos mortos foi obra de momento, e, à luz clara do luar, caminhou o povaréu na direção do povoado.
Paula seguiu como eles, depois de ter incitado ainda mais os instrumentos da sua vingança; uma circunstância, porém, o fez parar.
Desde que principiou o trabalho sacrílego do descercar do cemitério, uma voz rouca alevantou um protesto pungente.
— Deixem estar a cerca, deixem. O barulho acorda-a e ela dormiu outra vez.
Era o pobre Joaquim Maluco quem assim falava. Impressionado pelo encontro que tivera de manhã com a mísera Eulália, o seu coração de alucinado trouxe-o de novo ao cemitério, no intuito de conduzir consigo a filha idolatrada. Postara-se de joelhos sobre a cova, que lhe roubava o objeto dos seus carinhos, e aí, apesar da soalheira, passara o dia a chorar e suplicar. À noite estendera-se como um cão fiel sobre o leito funerário da morta, e ai permanecera imóvel até que foi despertado pelo barulho da multidão.
Vendo que esta não atendia nem às suas rogativas, nem aos seus protestos, o doido correu para junto do cruzeiro negro e pôs-se a suplicar o auxílio do céu. Respondeu-lhe o silêncio do madeiro.
Joaquim Maluco trepou então, como tinha por costume, até o cruzamento dos dois braços da cruz enorme, e, escarranchando-se lá, prorrompeu em gritos de socorro.
— Aquele endemoninhado é capaz de acordar o povoado - ponderou o vigário - e então não se diria que era a vingança divina, mas uma vingança minha esta revolta para obter o necessário à conservação de tantas vidas. Sigam vocês, não poupem ninguém, eu os seguirei depois.
A onda invasora dos famintos obedeceu de pronto e continuou a sua marcha.
— Ouçam; gritem ao primeiro encontro: viva os Viriatos.
Passo a passo o vigário seguiu o sórdido transbordamento da penúria sobre o povoado, e só deixou-os quando já haviam entrado na praça.
A voz estentórea do maluco, avolumada pelo silêncio, gritava debalde alarma aos paroquianos que dormiam; nenhuma porta se abriu, nenhum sinal de prevenção percebeu-se. O sono parecia cooperar com o vigário na obra de vingança.
A massa compacta de invasores subdividiu-se, e um grupo foi estacionar às portas de Antão Ramos, enquanto o outro dirigia-se à casa de Feitosa. A senha dada pelo vigário foi passada aos companheiros pelos que ficaram na praça, para que ambos os grupos acometessem ao mesmo tempo.
Não durou muito que estrugissem repetidos, prolongados, pavorosos os vivas aos Viriatos e, de par com eles, o bater dos mourões nas portas e janelas das casas. O espanto e a confusão propagaram-se para logo em todas as habitações, e cada um, temendo pela própria sorte, limitava-se a fortificar-se para não ser acometido.
Paula decidiu-se então a tomar também a sua parte no assalto. Atirou com o crucifixo e caminhou.
Dentro da casa de Antão Ramos o saque inflamava os retirantes até a loucura. Ouvia-se o estourar das garrafas, de mistura com a vozeria e os vivas inconscientes aos Viriatos. De repente a detonação de um tiro prolongou-se e um clamor uníssono da multidão aumentou. A onda entornou-se pelo interior e lá soaram gritos pedindo socorro, lamentações e ais de crianças que se esganiçavam em choros de susto e de horror.
— Não matem as crianças - gritou Paula entrando precipitadamente, e querendo em vão conter os seus instrumentos -, piedade para com elas: não são culpadas.
— Qual piedade nem meia piedade; eles não a tiveram para com os nossos filhos. Descasca a faca nessa cambada.
O vigário, empurrado de um para outro lado pelos retirantes, desatendido, espantado pela extensão inesperada que ia ter a sua desafronta, deixou a venda e correu pela praça, seguido de uma porção dos seus sequazes.
— Não esqueça o malvado velho, o pai dos malvados, aquela peste do sacristão - gritou um dos que corriam -, não é verdade, sr. vigário?
— Sim, ele é o principal. Entrem, é ali; ele é o responsável de tudo o que acontece.
Seguiu correndo, depois de ter apontado o casebre de Marciano à fúria brutal, e foi meter o ombro à janela da casa em que morava.
— José! José! - gritou sôfrego -, arreia o meu cavalo, depressa; vamos partir já. O povoado vai arder inteiro.
Não foi respondido. O silêncio fê-lo compreender que o pequeno tinha desertado do seu lugar e, sem perder um minuto, o vigário foi arrear o animal que bufava no cercado próximo.
— Se me vêm, estou perdido - pensava ele -, que inferno! estou a tremer como uma criança. Pronto, finalmente.
Correu ao seu quarto de dormir e, tateando, abriu uma portinha oculta que fechava um cofre cavado na parede, e no qual guardava o produto das suas economias, espoliadas em nome do céu aos paroquianos. Com a mesma celeridade com que viera ao quarto, voltou para encavalgar e partir, mas deteve-se ao montar, proferindo uma blasfêmia:
— Persegue-me, Deus cruel, persegue-me; os meus crimes são teus, é a tua religião quem os comete com o meu braço.
Uma descarga acabava de detonar na praça e a gritaria dobrou entre os assaltantes.
— Vivam os Viriatos.
— Morram os ladrões.
— Bem; estão travados; lutam: eu posso fugir. - Tomou o cavalo pelas rédeas e encaminhou-se para sair na praça.
— O luar, o luar - resmungou trêmulo -, serei alvo de perseguição.
Despiu estouvadamente as suas vestes talares e, atando-as, montou resolutamente e soltou a galope o animal justamente na direção da luta, mas pelo lado oposto da praça.
Nem um tiro veio sequer intimidá-lo com um erro de alvo; passou incólume e desceu a colina, por onde ainda há pouco havia subido para levar o luto e a desolação ao povoado.
O animal tragava o solo com a carreira à briga solta, rápido, bufando como se fosse um cúmplice dos crimes do senhor.
— Upa, upa! - repetia incessantemente o vigário, estimulando ainda mais o corredor.
O galope dobrando de celeridade soou em breve diante do cemitério, e Paula, satisfeito com a distância que já permeava entre si e o povoado, insistia no incitamento ao animal, que de chofre recuou, encabritou-se sobre as patas traseiras e, revirando-se, lancheou cuspindo fora o cavaleiro; mas para logo recobrou o equilíbrio na disparada vertiginosa.
— Cá está, oh! eu jurei apanhar o malvado, cá está - gritou o doido que dera lugar ao incidente, por haver corrido repentinamente para tomar o passo ao animal.
Proferindo tais palavras, Joaquim estava já acocorado sobre o vigário e prendia-o nos seus braços fortalecidos pela tremenda força da loucura.
— Deixa-me, desgraçado; eu mato-te, se não me largas
bradou Paula debatendo-se para levantar-se.
— Quer matar, quer, hein? E o meu filho? Não vê que dorme ali? Eu acordo-o. Há de vir comigo, não vai não, que eu não quero.
Calaram-se ofegando e revolvendo-se no pó a lutar com uma violência indescritível. Pareciam duas serpentes enleadas, dando-se furiosas crebros golpes envenenados. De repente, ambos dobraram de esforço e ao mesmo tempo, gritaram:
— Socorro, que me matam!
A vozeria da multidão já era ouvida distintamente, e a detonação dos tiros acenava-se mais e mais no silêncio do declive.
— Estou perdido! - exclamou o vigário -, deixa-me desgraçado.
— Não; há de vir comigo; - ofegou o doido, que, no acesso de cólera, mordia o seu contendor.
Paula finalmente conseguiu fazer com que rolassem pela ladeira, e assim desligaram-se, para logo, de pé, um impelido pela loucura, outro pelo pavor, se travassem corpo a corpo. Desta vez, porém, era o vigário que acometia e, ao passo que o doído queria segurá-lo pela garganta, ele, aplicando-lhe o queixo sobre a omoplata, e estreitando-lhe a cintura nos braços robustos, vergava-o e, fazendo-o cair por terra, com o joelho apertava-lhe o estômago e com uma das mãos o esganava.
— Morre endemoninhado, morre! Perde-me, mas desce comigo ao inferno.
O doido já não podia responder-lhe senão por uns sons estrangulados de asfixia iminente, mas os gritos, a vozeria, as maldições, o estampido dos tiros ouviam-se já a pequena distância.
— Salva-me, salva-me, Senhor meu Deus - resmungou o vigário, e, sacudindo de si o corpo inerte do doído, cujos braços o seguravam como duas tenazes, correu e enterrou-se no matagal vizinho.
O estrépito da luta entre os paroquianos e os invasores continuou ainda por muito tempo e só ao romper da manhã cessou de todo. Então os vencedores puderam ver os estragos da invasão e ao mesmo tempo os despojos da desforra.
A praça estava semeada de mortos e de moribundos; a venda de Antão Ramos convertida em um monte de ruínas dava entrada para um lago de sangue em que se debatiam as crianças mal feridas e jazia morto o inspetor. Feitosa com um grande golpe na face andava como doido a procurar por sua velha mãe, cujo destino ignorava. O velho Marciano jazia estendido na sala do seu casebre, abandonado pela família. Em toda a parte enfim, havia alguém que lastimava, por que aonde não chegara a mão dos assassinos chegara o temor da morte.
— E, por cima de tudo isto, ainda teremos a fome - diziam alguns paroquianos.
— A morte hoje mesmo, se não abandonar este maldito lugar - respondiam os ouvintes. - Os que ficaram virão vingar-se.
A idéia da fuga espalhou-se imediatamente e à noite não se via no povoado senão alguns velhos trôpegos, que ainda assim se arrastavam na direção das duas estradas.
O Engenho não tinha mais uma única rede suspensa, e na estrada, em frente ao cemitério, o cadáver de Joaquim Maluco abria os braços ao luar.
Só um homem robusto era visto no meio desta rumaria ensangüentada. Saiu do matagal junto ao campo-santo, despiu na praça a roupa de couro de um dos muitos mortos ali caídos e, depois de ter entrado na casa de Paula, tomou pela estrada de noroeste.
Em outubro de 1877 a improbidade ostentava-se já na província com o desavergonhamento dos cães vadios e havia comissários do governo que podiam zombar da calamidade, que torturava a população, porque tinham-se locupletado bastante para atravessá-la.
Foi a certeza de tais abusos o que levou o presidente a escassear as remessas de gênero e provimentos de dinheiro para o interior, visto como a impossibilidade da fiscalização fazia com que eles quase nada aproveitassem aos desgraçados.
A conseqüência da medida foi incomensuravelmente desastrada. A fome deu alarma nas cidades, vilas e povoados, como nos mais humildes casais esparsos pelos tabuleiros e pelas charnecas do sertão, e o povo, rápido e ruidoso como a enxurrada, afluiu às estradas em demanda do litoral e da sede do governo.
Nessa corrente geral entraram os destroços da paróquia de B. V.
A retirada efetuou-se por um semicírculo em cuja curva tinha por extremidades as cidades de Fortaleza e de Aracati. Poucos, porém, foram aqueles que se dirigiram para a segunda cidade da província, porque as relações estreitas, mantidas entre ela e a paróquia, apontavam-na como um lugar onde os retirantes pouco melhoravam de sorte. Fortaleza foi o alvo geral.
Cerca de duas léguas de B. V. uma vendola espiava sobre a ondulação da estrada, que, conduzindo a vários pontos povoados comunicava a pequena paróquia com a cidade de Quixeramobim, a vila de Quixadá, a cidade de Baturité e, finalmente, com a capital.
A vendola, embora muito conhecida, havia uns dois meses chamava a atenção dos transeuntes, que se dirigiam ao velho vendeiro gabando-lhe o fornecimento.
— Você foi quem aproveitou com a seca, velho Inácio; lavou a cara do negócio.
— Qual? Atamanquei isto; como sempre há maior feira, deu-me na vontade.
De fato, a vendola parecia ter tomado para modelo as melhores da cidade, e o seu fornecimento bastava para satisfazer todas as necessidades mais urgentes dos viajantes. O movimento aí era também digno de nota; havia tardes em que mais de 20 cavaleiros desencilhavam os seus animais sob a meia água da frente e desciam as cargas para pousar.
Uma circunstância, que passou despercebida para todos, foi a coincidência dos assaltos freqüentes dos Viriatos, por extensão de oito léguas, com a prosperidade do velho Inácio.
Esses bandidos, que vestidos de pele e ferozes como os touros barbatões, levavam o espanto e a miséria onde quer que farejavam algum dinheiro ou provisão de gêneros; que atacavam os comboios e assassinavam os seus condutores, poupavam entretanto a vendola, apesar da temeridade do velho Inácio, que escolheu justamente uma fase anormal para dar mostras de abastança.
— Você tem algum patuá que o defenda, homem? Olhe que o tempo não está para fazer arreganhos de riqueza.
— Tenho a graça de Deus, que é quem defende os pobres.
— A desgraça não escolhe pobres nem ricos quando quer ferir: tome cuidado, velho Inácio.
O vendeiro encolhia os ombros desassombradamente e respondia quase sempre:
— Vocês sonharam aí com os Viriatos e andam a dar com a língua nos dentes sem saber o que dizem. Por aqui não os há, descansem, porque se os houvesse havia muita gente que não seria mais orgulhosa.
— E os roubos?
— Com as estradas sempre atulhadas de gente, como pôr-se a culpa neste ou naquele?
No domingo tão fatal ao povoado, como era costume encheu-se a vendola; mais de 30 cavaleiros, chegados em grupos, apearam-se e puseram-se a beber enquanto velho Inácio dava ordens para que se apressasse o almoço.
Três cavaleiros singulares chegaram por último quando já sob a meia água os pratos de louça branca estavam estendidos em frente aos fregueses de Inácio.
— Vivam o Onça e o Diabrete!
— Viva o Desempeno! - bradaram todos indo ao encontro dos recém-chegados.
— Boa súcia - respondeu o Onça -, hoje não se faz nada, o dia é para a folia.
— Veja respondeu um dos do grupo desembainhando a faca que trazia sob a véstia -, esta ainda não riu hoje, está tão séria como ontem.
— Nem estas - acrescentaram os outros puxando igualmente das suas facas; - olhe, elas não se riem.
— Cá a minha - ponderou um rapazola de olhar expressivo -, ainda nem lavou a cara; está com a ramela de ontem.
Mostrou então a faca ainda tinta de sangue, e, chegando-a às narinas, acrescentou:
— Isto cheira a bom dinheiro; só a prata velha; quem me dera apanhá-la!
— Bom, velho Inácio, nós também temos barriga; apronte-nos lá para um canto algum bocado.
O Onça e os outros dois recém-chegados apearam-se por sua vez e, atravessando a vendola, isolaram-se da massa dos gárrulos companheiros.
— Lá vão para o conchavo - começaram cá fora a murmurar.
— Eles são os que põem e dispõem das nossas vidas e sem nos dar satisfação.
— Ordem de cima.
— Ordem do diabo; nós não somos animais para não ser ouvidos, nem cheirados.
— Mas já nos veio mal por eles? Não tem tino?
— Ora qual; andam por aqui e nem ao menos a gente sabe com quem fala; é ir para ali e para acolá, mais nada.
— É sempre com aquelas máscaras.
— Isto é o que me aborrece.
Os três recém-chegados, uma vez fora das vistas do velho Inácio e dos seus hóspedes, desafivelaram as máscaras, que tanto incômodo causavam aos que os seguiam. Estas máscaras eram uns bonés de couro curtido, que escondiam-lhes as cabeças até os supercílios e dos quais caía uma asa que só deixavam-lhes a descoberto os olhos, o nariz e a boca.
Esses três homens, desconhecidos para todos os outros, eram Virgulino, o Feiticeiro e seu filho, o primeiro conhecido por Desempeno, os dois chamados o Onça e o Diabrete.
— Então quando chegará o dia da paróquia? - perguntou Virgolino. - Daqui lá é um pulo.
— Não se apresse; deixe aquela gente não contar mais com a missa; por ora não há que fiar, pode estar à espera. Você sabe que o padre é fino.
— Isto há de ficar ainda no rol dos esquecidos.
— Não se afervente; por vir tarde não perderá, cobraremos velhos e novos.
— Pode-se entrar com os almoço?
— Já lá vai, é um instantinho, velho Inácio.
Os três colocaram de novo os bonés e o pequeno abriu a porta.
— Então para onde se atiram hoje? - perguntou o velho Inácio.
— Hoje é só alguma coisinha aí pela estrada, não há nada de maior, é dia de descanso.
— Eu no seu caso hoje não fazia nada; os rapazes lá fora estão-se alegrando muito...
— Pois diga-lhes que bebam à vontade e que depois sumam-se até de noite. Você estenda redes para nós.
O velho Inácio não fez a menor reflexão à ordem recebida, e os cavaleiros só demoraram o tempo indispensável para terminar o almoço.
O Onça e o Desempeno reataram a conversação, por entre as garfadas de quem traz bom apetite.
— Você não tem ninguém no povoado e por isso não lhe bate o coração; aposto que não se daria o mesmo, se deixasse mulher e filhos, parentes e amigos?
— Tudo isto nada vale, quando o homem não tem nada para dar-lhes. Eu vivi do veneno das cobras e hoje vivo do sangue dos homens, que é mais venenoso do que o dente das cascavéis. Por que vivo assim? Porque sou malvado, toda a gente, diz; mas ninguém sabe que eu sou pai e que errei de casa em casa sofrendo quanto o diabo enjeita para um dia ver a mulher morrer à míngua, sem ter ninguém que a viesse cuidar na hora do parto.
— Está bom, não falemos em tristezas: você avexa-se com elas demais e eu quase desacoroçôo da vida.
— Fique certo, Virgulino, de que eu não fui convidá-los para virem comigo, só para fazê-los bandidos dos Viriatos. Bandidos são todos os homens em certa hora da vida. Eu fui chamá-los para dar-lhes com que alimentar as suas famílias; tomamos aos que têm e não querem dar aos que morrem à fome. Os juizes e os ricos podem nos condenar; os pobres chamarão ao que fazemos igualar as necessidades.
— Mas há quem enriqueça com o que nós todos ganhamos.
— Há, mas dá-nos com que segurar o dia de amanhã.
— E os perigos por que passamos?
— Perigos há-os em toda a parte. O homem que trabalha pode cortar-se com a enxada e morrer; ser atravessado ou esmagado pela árvore que derrubou; ser mordido pela cobra, enrodilhada na moita, e morrer. O homem, que tem o ofício de roubar, não corre maior perigo do que a morte. Em que é ele diferente dos outros?
— Mas antes morrer pelos primeiros trabalhos; não se morre amaldiçoado.
— E o que importa a bênção ou maldição a quem morre? A terra come igualmente a todos, não rejeita os maus, como nós rejeitamos a comida mal feita.
— Bem, bem, à nossa saúde; eu não quero zangá-lo.
Beberam todos e o Diabrete, que não dera uma única palavra durante o diálogo, levantou-se para sair.
— Vá colocar-se ali perto, veja quem vem e onde estão os outros. Ninguém passe por aqui, sem que saibamos quem é.
O rapazinho afastou-se e os dois chefes de quadrilha foram deitar-se nas redes, que lhes armara o vendeiro num quarto vizinho.
— Desarreie os cavalos, ouviu? E peie-os aí por perto.
A venda silenciou e os dois chefes puseram-se a dormir descansados. A ousadia do viver aventuroso e celerado dos Viriatos mostrava-se em toda a sua plenitude nos modos, palavras e finalmente no descuido temerário do Onça. Percebia-se em toda a sua latitude a paixão com que os bandidos dos Cariris praticavam os crimes monstruosos, que apavoravam a memória da província. Dir-se-ia que esses facínoras eram feitos de lascas da cordilheira, tão duros e bárbaros eram nas suas correias, cujo rastro era a cinza do incêndio, ou o sangue do morticínio, quando algum ousado pretendia opor-se ao bom êxito dos seus assaltos. É que os sequazes, recrutados no mais horroroso da miséria, não tinham os corações virgens para as grandes dores, e pelo contrário, familiarizados com elas, pouco se impressionavam de vê-las reproduzidas em outros.
Com as mãos molhadas de sangue, ainda sentindo a voz das vítimas ecoar as últimas súplicas, dormiam sossegadamente como quem acaba de praticar uma boa ação. Embalava-os a maternidade bruta e lerda da ignorância.
— Então vai isto a emendar pés com cabeça? - gritou à porta do quarto o vendeiro. - Olhem que o sol já está cochilando.
— Eh! - bocejou o Onça espreguiçando-se. - Deixa-o ir; a noite é mais nossa amiga.
— Mas é preciso que a rapaziada não venha achá-los dormindo. Põe-se para aí a grazinar.
— Tem razão; há muita linguazinha que deve ser cortada - ponderou o Onça, - olhando fito para o vendeiro. - Não concorda, Inácio?
— Eu sei lá - respondeu o velho perturbado. - O que você manda é o que se faz.
— Acabam-se os falatórios.
— Ora, eles rosnam só, mas obedecem; deixa-os ao menos desafogar.
— Desafogam demais... Uma coisa, velho Inácio: não passou ninguém por aí?
— Nem viva alma.
— Os diabos têm faro.
— Mas se passasse era o mesmo, aqui não se pode fazer nada.
— Isto é o que se há de ver.
— Se houver alguma coisa descobre-se logo que esta venda não é minha. Já se murmura por vê-la assim.
— Eu sei o que faço - respondeu secamente o Onça, e levantando-se seguiu até a porta da vendola, onde quedou a olhar para as árvores semimortas.
Pouco depois da sua chegada aí, o Diabrete surgiu no terreiro e veio apressado parar em frente e falar-lhe.
— Meu pai, aí vem uma mulher.
— Sozinha?
— Sim, senhor.
— É alguma retirante...
— Pode ser, mas vem muito asseada. A toalha é muito alva.
— Melhor para ela, deixa-a passar em paz. Espreite para ver se não vem mais gente e venha para casa.
— Eu já vi que ela vem sozinha.
— Veja melhor, e se a mulher pedir alguma coisa, mande-a aqui ter comigo.
Cerca de meia hora depois, uma mulher com um vestido de cor muito viva, uma toalha alvíssima pendente da cabeça, andando vagarosamente, parava na estrada defronte da vendola e hesitava sobre se devia ou não chegar.
O Onça deu um assobio entre dentes, que servia de sinal a Virgulino, e ambos foram disfarçadamente ao encontro da transeunte.
Desde que relancearam os olhos sobre ela, os dois facínoras olharam-se surpreendidos, como se tivessem conhecido a mulher, cujo rosto se escondia quase todo sob a toalha. Virgulino, que sofreu com maior intensidade a impressão produzida pela fisionomia tristonha da transeunte, dirigiu-lhe a medo uma pergunta:
— Boa tarde. É mesmo deste lugar?
— Boa tarde - respondeu ela com uma voz muito fraca - sou sim, senhor, dali de B. V.
— E para onde vai?
— Para este mundo de Deus, até que encontre uma casa para trabalhar.
— Hoje, moça - interveio o Onça -, é difícil.
A transeunte estremeceu, como se no tom da voz do Onça houvesse alguma ameaça contra si, e só respondeu tristemente.
— Paciência!
— E onde vai dormir hoje?
— Debaixo das árvores - murmurou a infeliz. - Aí há sempre lugar para os pobres.
— Inácio - gritou Virgulino -, lá entre a sua gente há lugar para uma pessoa?
— Até para cinco.
— Então, moça, vá dormir lá na casa daquele homem. Sempre é mais abrigado.
A recém-chegada olhou surpreendida para os dois bandidos, cujas feições era impossível descobrir, ocultas como estavam sob as máscara de couro, e murmurou:
— Queiram perdoar-me; porém eu não posso ficar aqui, devo ir pousar mais longe; B. V. está ainda muito perto.
— Dentro desta casa é o mesmo que estar muito longe; ninguém, a não ser seu pai ou sua mãe, virá tirá-la daqui. Fique; veja que não poderá andar muito, é quase noite, e as estradas agora não são seguras.
— Infelizmente já não tenho pai, nem mãe - disse a recém-chegada; - e nada tenho a perder, não quero ficar.
— Fique - suplicou Virgulino; - lembra-se de uma noite, na paróquia, quando uma família de retirantes era posta para lado da igreja pelo vigário, porque um dos homens tinha uma cruz na testa... Lembra-se?
— Sim. Então ainda meu pai era vivo.
— Lembra-se que foi o velho Rogério Monte quem agasalhou os desgraçados?
— Também já não mora no povoado...
— Ao sair da igreja, quando todos resmungavam porque o velho era bom para com os infelizes, lembra-se das pessoas que abraçaram o velho, achando que ele fazia bem?
— Sim, lembro-me, e até de que os homens depois fugiram e abandonaram a sua família, o que tanto dó nos causou.
— Mas esqueceu-se de que os desgraçados não rejeitaram a casa de Rogério Monte, nem as esmolas que davam à família deles aquelas duas moças, que eram chamadas os anjos de Deus, Eulália e Irena. Fique na casa de um amigo, de um parente daquela pobre gente, D. Eulália!
A entoação do pedido era tão humilde e acariciadora que Eulália sentiu invadir-lhe uma confiança extrema pelos mascarados, que até então inspiravam-lhe medo. Olhou-os, enxugando as pálpebras arroxeadas, e murmurou com uma inflexão tristíssima:
— Eu sou muito desgraçada...
— Nós o compreendemos, d. Eulália - respondeu Virgulino; - não tenha medo, está entre infelizes. Venha conosco.
Seguiram os três para a puxada coberta de palha, que ficava para os fundos da vendola, e onde a família de Inácio recatava-se quanto era possível dos hóspedes estranhos, que freqüentemente vinham bater, alta noite, à porta, e incomodavam o velho para lhes dar pouco.
A bondade e expansão do acolhimento mantiveram a confiança de Eulália, que durante toda a noite só teve uma ocasião de sobressaltar-se com algumas frases que ouvira à voz roufenha do Onça. É que o chefe do grupo dos Viriatos, ao qual cabia a exploração das circunvizinhanças de B. V., conhecia bem os seus subalternos, e queria evitar que o mais leve desacato fosse ofender a mísera hospedada. Tomou então a precaução de postar de sentinela à porta o Diabrete, a quem incumbiu de guardar a entrada e repelir a quem ousasse tentá-la, depois de avisado.
"Quem serão estes homens mascarados?" pensou Eulália; mas, apesar do cuidado que a perturbava, e do leve temor que começava a sentir, adormeceu prostrada pela fadiga da jornada e da violência que fizera ao coração, abandonando a paróquia.
Durante a noite, por diversas vezes, o Onça e o Desempeno vieram cautelosamente escutar à porta da puxada, e, finalmente, certos de que Eulália dormia, foram acomodar-se.
— Bem - disse Virgulino deitando-se -, eles estão bêbados como uma cabra; não se levantam.
— E que o façam e vão para lá que o Diabrete não é de graças.
— Mas que diabo levaria esta moça a dar este passo?
— Coisas da vida; alguma criançada. Em tempo de fome tudo é possível; meu pai contava histórias muito tristes das outras secas.
O sono fez ponto final à conversação dos dois chefes, e a vendola mergulhou-se em profundo silêncio, até que a madrugada veio, com os seus assopros furtivos e a sua claridade iriante, descerrar as pálpebras dos sequazes dos Viriatos.
Virgulino, impaciente por saber notícias do povoado, andava como uma pêndula de uma para outra extremidade da puxada, enquanto o Onça distribuía os seus soldados para diversos pontos.
Eulália apareceu, enfim, à porta, com a sua toalha à cabeça, e despedindo-se da família de Inácio:
— Muito obrigada - murmurou ela ao ver os dois mascarados; - Deus lhes há de pagar tanta bondade.
— Já então? - perguntou o Onça. - É muito cedo, não pode partir.
— Devo - respondeu Eulália -, é preciso que eu parta; se bem pareça que não sentiram a minha partida - acrescentou baixinho.
Onça, depois de dar-lhe algumas provisões, deixou-a partir e limitou-se a apontá-la à família, proferindo uma frase poucas vezes usada por ele.
— Faz-me pena; é muito desgraçada.
Virgulino, porém, acompanhou a forasteira, visivelmente perturbado, e, quando já não podiam ser ouvidos pela família de Inácio e pelo Onça, lançou delicadamente a mão ao braço de Eulália e disse-lhe com voz submissa.
— Saiba que eu não a deixo ir assim; a senhora e sua amiga salvaram a vida dos meus parentes, eu hei de salvar a sua.
— Mas eu não tenho nada - respondeu Eulália forcejando para sorrir; - estou boa.
— Não tente disfarçar - continuou Virgulino -, é a morte o que a senhora deseja, para ocultar o seu erro, mas a senhora não pode matar o seu filho.
— Nem quero! - exclamou a infeliz - Quero salvá-lo, porque tenho sofrido muito.
— E como quer ir por essas estradas por onde nunca andou, sem recursos, sem um guia, sem ter ao menos uma rede onde durma? Escute, d. Eulália, volte para o povoado, eu vou acompanhá-la para junto dos seus; a senhora não sabe o que é viver fora da família, eu dou hoje tudo para viver com os meus filhos.
— Não posso voltar - soluçou Eulália; - os meus seriam os primeiros a desprezar-me; deixe-me ir, eu conto com a misericórdia de Deus.
A resolução que acentuou estas palavras era tão firme que Virgulino não ousou resistir. Puxou precipitadamente o guarda-peito e arrancou do cinturão uma bolsinha de couro, que obrigou Eulália a segurar.
— Daqui ao primeiro pouso são oito léguas - disse ele -, e lá já não terá ninguém por si. O desgraçado da noite da igreja pede-lhe que aceite esta bolsa, por amor de seus filhos. Esconda-a consigo.
Eulália afastou-se soluçando, e Virgulino, que a acompanhara com o olhar, murmurou por fim:
— Não morrerá, porque nós a seguiremos.
O Onça, que tinha seguido com o olhar o jogo da rápida cena da despedida, meneou a cabeça desconsoladamente e disse para o vendeiro:
— Lá está o Desempeno na sua choradeira da família. Decididamente, para a nossa vida, não há como homens desapegados de tudo.
— Eu não sei o que me bacureja que esse cabra ainda faz alguma.
— Não tenho receio - sorriu o Onça pegando no cabo da faca; - antes que ele meta a cara eu o limpo.
Eulália tinha-se afastado e Virgulino de pé, como que atraído pela retirante, olhava para o lado da estrada por onde ela seguia.
— Vou acordá-lo - disse o Onça, e, caminhando para o seu companheiro de assalto, foi bater-lhe no ombro, a resmungar. - Não sei o que parece isto! Você está aí como uma rapariga que vê partir o noivo.
— É que a pobre moça causou-me dó; lembra-se dela no povoado? Era a companheira da filha de Rogério Monte e tinha muita piedade por meus filhos.
— Está bem, já pagamos em parte a dívida; agora cuidemos da vida.
— Hoje? E para onde iremos se tudo isto espremido não dá uma gota de sumo?
— Isto é aqui; mas, se ganharmos algumas léguas a coisa muda de figura. Além disso você precisa distrair-se.
Virgulino abaixou os olhos e só depois de uma longa pausa durante a qual o Onça passeava de um para outro lado, respondeu a sorrir.
— Olhe que às vezes tenho medo de mim mesmo; aborreço a vida e dá-me vontade de fugir.
— Nós conhecemos o Ceará palmo a palmo e os nossos cavalos correm bem...
— Já o sabia - respondeu contrariado; - felizmente nunca hão de correr contra mim. Estou pronto para o que você quiser e até posso indicar um lugar, onde podemos fazer muito.
— Qual?
— As vizinhanças de Quixeramobim.
— É um queijo daqui lá...
— Mas é bom; vemos por ali os que navegam por essas estradas, e na volta apuramos algum resto de gado.
— Vou pensar - respondeu o Onça -, em todo o caso, amanhã sem falta temos serviço.
Virgulino não teve coragem para objetar, ainda que o seu fim, indicando a cidade de Quixeramobim, fosse acender no Onça o desejo de partir imediatamente, o que daria ensanchas de socorrer Eulália. Sabia que as suas reflexões podiam produzir até a anulação da boa vontade do chefe, que, se descobrisse o verdadeiro objetivo do conselho, não o receberia, só para que, mesmo indiretamente, nenhuma mulher tivesse relação com a sorte da quadrilha.
— Pois então falaremos logo; eu vou dar um giro e, se você consente, levo comigo o Diabrete.
"É algum pedido", pensou o Onça, e chamou pelo filho. "Sempre é bom ver o que estão fazendo por aí esses pacholas."
O Diabrete não se fez esperar, e ao lado de Virgulino pôs-se a caminho pela estrada, que se dirigia para o norte da província.
Durante algum tempo caminharam silenciosos, sugando nos toscos e negros cachimbos imensas baforadas. A vegetação depauperada, imóvel no meio da claridade da manhã, lembrava uma linha de sentinelas sonolentas, que os estivesse espreitando.
A estrada alva de areia e de seixos, subindo uma colina, parecia uma baioneta enristada cravando-se no coração do arvoredo amarelento.
— Como este lugar é triste - observou o Diabrete -, parece um cemitério, tão descampado para aquela banda, tão sem água, tão sem gente! Eu, se pudesse, partia hoje mesmo daqui.
— Também eu, mas só amanhã é que o seu pai há de decidir.
— E que não passe de amanhã, senão faz-se aí um falatório e vai tudo em poeira.
Virgulino sorriu da bravata do rapazola e, batendo-lhe amigavelmente no chapéu, exclamou:
— Voute! poltrão; você não tem nem a coragem de repetir estas palavras ao Onça.
— Mas juro em como não dormimos mais amanhã aqui. Aposto o que quiser, se duvida. Eu quero sair daqui, porque este lugar é mais feio que um olhar de cascavel, e eu quando quero, quero.
— Aposto - disse Virgulino que buscava pelo interesse estimular o filho do chefe; - se você o fizer tomar para os lados de Quixeramobim, tem uma faca de prata.
— Está feito - respondeu Diabrete, estendendo a mão a Virgulino; - apronte o bolso.
— Salvei-a - murmurou Virgulino; assim pudesse salvar também os meus filhos, não seria mais infeliz.
— Arrependeu-se? - perguntou o rapazinho, reparando tão silêncio do companheiro. - Ainda é tempo de desfazer.
— Nem pensava nisto; é outra coisa que está a fazer arderem-me os miolos.
Continuaram a caminhar silenciosamente, com a ligeireza própria dos cearenses. Mais de uma hora decorreu-se depois que saíram da vendola, e no entanto o Diabrete não sabia para onde iam e nem ousava perguntar, porque os soldados dos Viriatos iam para onde os mandavam os chefes, ou acompanhavam-nos sem saber, nem inquirir em que sítio deviam jogar com a vida no perigo dos noturnos assaltos.
— Vamos numa boa marcha - ponderou o pequeno; - neste andar, em menos de quatro dias, estávamos em Quixeramobim.
— O que me admira é não encontrar ninguém. Os marrecos foram para longe; talvez lhes cheirasse a dinheiro algum adormecido por aqui, e eles não lhe perderão a pista.
Continuaram a caminhar apressadamente, porém cerca de meia hora depois Virgulino ponderava a si mesmo:
“Não pode ser; Eulália não pode ter caminhado tanto, deve ter ficado por ai. Talvez se escondesse de vergonhada, quando sentiu os nossos passos”.
— Sabe o que mais? - disse alto. - Vamos almoçar, visto que não encontramos nenhum deles. Virão mais tarde.
— Isto é presa por força.
— Ou malandrice. Talvez se metessem pela capoeira e se pusessem a dormir.
— É bem possível.
— Vá você lá por aquela beirada, que eu vou por esta. Veja se descobre algum rasto.
Puseram-se a marginar a estrada, olhando fixamente para as folhas secas que atapetavam o chão, rendilhado da sombra do arvoredo.
— Creio que perdemos o nosso tempo - ponderou Virgulino -, não entra gente aqui há mais de um mês.
— Sempre é bom ver e assobiar para avisar alguém que esteja perto.
Os assobios cabalísticos da quadrilha ecoaram em vão por muitas vezes, e de espaço a espaço.
— Não estão, eu logo o vi! E Eulália - resmungou Virgulino - também desapareceu.
— Bem dizia eu que era bom procurar - exclamou o Diabrete, depois de dar umas centenas de passadas e acenando com a mão, acrescentou quando Virgulino aproximou-se:
— Por aqui arrastaram alguém.
Virgulino, com a impaciência do cão ao descobrir a pista, esgueirou-se por entre as árvores, seguido pelo rapazola, que não deixou de notar tamanha sofreguidão do companheiro, mas limitou-se por muito tempo a acompanhá-lo, sorrindo.
Internaram-se durante mais de dez minutos e, entretanto, nenhum barulho veio dar-lhes esperança de que não seria muito longa a caminhada. Só eles, roçando nos galhos dos arbustos, perturbavam a inação e o profundo silêncio da natureza, que se abrasava, muda e imóvel, nos raios ardentes do sol. O assobio cabalístico sibilou em vão por três vezes anunciando a vizinhança de um chefe. O eco desdobrou-o por toda a circunvizinhança, mas ninguém respondeu.
— Foram meter-se em casa de Judas - ponderou o Diabrete -, ou então já acabaram com a festa e nós nada mais temos para ver. Já não tenho mais vontade de ir adiante.
— Pois eu seguirei o rasto até descobrir onde eles estão, ande embora até de noite. Se quiser pode voltar, Diabrete, e seria até melhor, porque o Onça não nos esperará para o almoço.
— E se o nosso amigo precisar de algum auxílio?
— Não hei de precisar, não - respondeu Virgulino, sorrindo tristemente à observação pedantesca do companheiro; arranjar-me-ei como puder.
— A presa não há de ser grande e não vale a pena esta fadiga.
— É por ela ser pequena que eu devo procurá-la para defendê-la. Vá, Diabrete, eu já não preciso de si; diga lá ao Onça onde estou.
— Então com licença; esta caminhada tem-me feito apetite; até logo.
Virgulino seguiu com maior afã o rasto que se tornava de vez em quando mais vivo, porque se mostrava sobre os claros de solo deixado pela folhagem caída. Via então distintamente que alguém tinha sido arrastado por aí, e esse alguém, pensava o bandido, não podia ser senão Eulália.
Havia caminhado mais de meia hora, quando pareceu-lhe ouvir gemidos, e, apressando mais o passo, verificou, dentro em pouco tempo, que não se enganara. Ainda que exalados por uma voz fraca, os gemidos se tornavam mais e mais distintos. O assobio do chefe de novo sibilou, mas não foi respondido, e o chamado por Eulália, proferido em voz muito alta, não obteve também como resposta mais do que os gemidos, que se tornavam mais distintos.
A poucos passos mostrava-se o quadro que Virgulino, pela alteração do semblante, mostrava temer presenciar. Eulália estava caída sobre uma poça de sangue, na inconsciência da dor, sem cuidado pela compostura.
— Miseráveis! Não respeitam nem as mulheres; mataram-na! - bradou Virgulino, que, ajoelhando-se junto à desmaiada, repetiu por vezes o seu nome, para ver se a chamava ao uso dos sentidos.
Debalde insistiu. Eulália, com os dentes cerrados, as pálpebras entrefechadas deixando ver nos olhos o brilho amortecido do desmaio, não o pedia ver nem ouvir. Paralisava-a e insensibilizava-a o quebrantamento causado pela perda do filho, de quem recebera a coragem para voltar costas ao crime, e defender-se heroicamente com a sua própria desonra. Tinha abortado.
Com o respeito de um irmão carinhoso, o bandido consertou as roupas da sua protegida, tornou-as mais folgadas, e procurou em seguida descobrir a bolsa de couro, que ele mesmo havia dado à forasteira.
— Bem; ao menos terá vingança, d. Eulália - murmurou Virgulino; - eu saberei desmascarar o infame que a insultou.
Levantou nos braços fortes o corpo de Eulália, cuja cabeça foi ajeitada sobre o ombro robusto do bandido, que fez-se de volta para a estrada, a transportar com o desvelo da gratidão a mulher, que também teve por ele piedade em uma hora aflitiva.
Só depois de mais de uma hora de caminhada, coberto de suor, ofegando de cansaço, chegou à estrada larga com a sua carga tão cuidadosamente zelada. Um sussurro de vozes veio dentro em pouco tomar-lhe o passo e de novo o voluntário protetor da mísera retirante foi esconder-se no capoeirão.
— Bem bonita vendinha, porém má catadura de toda aquela gente, não lhes pareceu?
— É verdade, não há ali uma cara que seja conhecida.
— Para serem também retirantes, estão muito asseados.
— São talvez gente de marinheiros, de filhos de fora, que vêm fazer comércio no sertão.
— Deixa-os lá; a grande verdade é que foram eles quem nos deram alguma coisa para matar a fome.
Um grupo de mulheres, carregando grandes trouxas sujas na cabeça, e os filhos menores no braço, passava pela estrada e conversava, como se depreendia das suas frases, a respeito das pessoas que tinham visto na vendola.
Virgulino, que se havia sentado, não só para se esconder melhor, como também para descansar, despiu a véstia e, sobre ela deitando Eulália, tentou levantar-se para ir ver quem eram os conversadores, cujas frases só lhe chegavam em sussurro. Mas os gemidos da infeliz não tinham cessado, e o bandido, receando que os ouvissem, deteve-se, conchegando de encontro ao peito aqueles lábios descorados.
— Deus os ajude, seja quem for; não podem ser malvados, porque respeitam os pobres.
— Deus a ouça, minha mãe.
A estrada voltou ao silêncio e ao abandono, e Virgulino, retomando nos braços o corpo da enferma, recomeçou a caminhada na direção da vendola.
O assobio da quadrilha ecoou por três vezes na solidão do caminho, e Virgulino apressou-se em respondê-lo, bendizendo o Onça, que mandava alguém ao seu encontro.
A alegria tornou-se ainda maior, quando viu a pouca distância o próprio chefe acompanhado pelo Diabrete e mais dois companheiros. Ainda de longe, com a voz entrecortada pelo cansaço, exclamou Virgulino:
— Venham ajudar-me, soam bem chegados; eu havia de custar muito a dar conta da mão.
— Então que diabo de novidade é esta? - perguntou o Onça.
— A nossa visita de ontem, que foi atacada por um diabo.
— Ajude ali, depressa, canalha - gritou o Onça para os seus subalternos -, não vêem vocês um superior a trabalhar?
— Está fora de si.
— Havemos de saber quem é o engraçado desta festa.
— Eu espero - respondeu Virgulino; - você bem sabe que não é dos nossos usos atacar mulheres que não têm defesa.
Um dos sequazes do Onça tomou dos braços de Virgulino o corpo de Eulália, e os dois chefes, encaminhando-se para a vendola, reataram a conversação.
— Não viu ninguém aí pelo caminho?
— Senti vozes, mas, como não queria que me vissem, escondi-me.
— Fez bem, se havia de ficar com o coração cortado.
— Ah! São muitos desgraçados, então?
— Sim, uma porção de mulheres que perderam os maridos ainda ontem, numa briga que houve em B. V.
— Perguntou-lhes você por minha família?
— Por todos... - respondeu tristemente o Onça.
— E o que disseram elas?
O Onça estacou, como se fora de chofre tomado de um insulto paralítico e, franzindo os sobrolhos, encarou com Virgulino repreensivamente. Depois, sorrindo, encolhendo os ombros e respirando alto, silabou demoradamente:
— Você dá um belo exemplo aos seus inferiores! Que tem você com os retirantes da paróquia? Os Viriatos não têm família, enquanto os liga o juramento ao seu chefe.
— Sim, tem toda a razão; estejam nossos pais, mães, filhos e mulheres morrendo à fome, não devemos nem lembrar-nos deles! Tem razão, juramos.
Calaram-se ambos, e silenciosos prosseguiram até a vendola; Inácio, que aí estava à porta, levou a mão cova aos olhos, e com a sua voz bajulatória exclamou:
— Olé, isto é presa de nova espécie, por aqui nunca tínhamos visto igual. E eu também guardo-lhes cá uma surpresa.
— Venha ela, e mande-me tratar desta infeliz; é a nossa hóspede de ontem.
— O almoço está à espera, Desempeno - disse o vendeiro; - não valia a pena demorar tanto para tão pouco.
O Onça acompanhou Eulália até a puxada, e lá ficou a recomendar todo o desvelo pela infeliz à família admirada de ver tais assomos de filantropia em corações de homens tão brutais. Mas ninguém ousava perguntar aos homens, que só conheciam pela voz o segredo deste procedimento novo.
Os bandidos, que estavam a descansar sentados sob a meia-água, estranharam também o ato dos dois chefes, e reparando na tristeza do semblante de Virgulino:
— É boa! - resmungou o rapazola que na véspera gabava a sua faca. - Vêm ainda a tempo essas virtudes, ganham o reino do céu.
A conversa e os comentários aumentaram entre ele quando ficaram em liberdade, por se terem retirado também Virgulino e o Diabrete, e o velho Inácio, que lá dentro exagerava a perfeição do almoço.
— Esta carne assada está sem o que se lhe diga, e o arroz cheira que faz água na boca. Entre neles com vontade, que logo desemburra. O Onça esteve engasgado comigo, mas, logo que meteu o dente no naco, mudou como da água para o vinho, desembuchou todas as queixas. - Vá, Desempeno, tome um gole por cima e verá. Vá, eu deixo-o à vontade.
Virgulino, porém, não compartiu a prazenteria comunicativa do velho vendeiro e sentou-se, taciturno, a desamarrar a máscara que o desfigurava aos olhos mais perspicazes.
— O velho foi desabrido com você, feriu-o muito, mas eu não estou pela história.
— Ele tem razão - respondeu Virgulino - eu jurei. Ainda muito meu amigo é ele, socorrendo d. Eulália. Lembra-se você dela no tempo em que estivemos no povoado?
— Se me lembro ! Ela e a outra de cabelos louros, boas moças!
— Que falta vão elas fazer à pobreza?!
— Não - respondeu o Diabrete; - em B. V. já não há gente. Fugiu todo o povo; tem passado muito e o resto vem por aí roncando que parece uma ventania.
— Oh! Que desgraça, Santo Deus! Que desgraça a minha! Hei de ver partirem os meus, sem que lhes possa dizer uma única palavra!
O Diabrete abaixou os olhos e murmurou com entoação sentida:
— E não poderá mesmo, porque eles não passarão mais.
— Morreram então?
— Não - acudiu o rapazinho -, mas já vão longe a esta hora. Aquelas vozes, que você sentiu, eram deles. Eu quando vi os seus pequenos, quando vi a sua mulher tão magra e tão abatida, tive vontade de dizer-lhes: olhem, eu sou o filho do Feiticeiro, o meu pai e o Virgulino estão aqui; entrem, nós agora temos dinheiro, não precisamos de ração: comam, bebam. Mas o olhar do velho fez-me calar e recuar, porque a sua mulher como que reconheceu a voz do meu pai. Não pude ter senão a alegria de encher bem de bolachas as mãos dos pequenos, de carregar de farinha e de carne as moças e sua mulher, e lá dei um pouquinho de vinho à velhinha, a vovó, que mal pode já com as alpargatas, mas que ainda assim estira o andar para ganhar tempo.
Virgulino pôs-se a soluçar convulsivamente, enquanto as lágrimas lhe escorriam em fio, e o pequeno continuou:
— Lá morrer de fome, não morrem não, eu o juro, porque ainda por cima o velho passou para mão da velhinha algumas notas; mas ser tristeza, é; eu ainda me lembro quando morreu minha mãe; o velho mesmo arrancava os cabelos aos maços.
— E hoje não consente que eu veja os meus. Hei de dar ao diabo esta vida; matem-me se quiserem, mas eu não fico mais nesta maldita sorte.
— Espere, eu vou ver se arranjamos a ida para Quixeramobim; assim está tudo feito.
— Como você é bom, Diabrete! Não parece filho do Onça.
— Psiu, ele aí vem, coma para agradá-lo.
Virgulino dera apenas algumas garfadas com a displicência de quem está profundamente magoado, quando assomou à porta o Onça, chamado por Inácio.
— Lá está acomodada a menina; a velha disse que não há de ser nada, que a põe boa em menos de 15 dias.
Inácio parou à porta a um sinal do Onça que o detinha enquanto Virgulino se mascarava.
— Então qual é a surpresa? - perguntou ele. Você também já sai à estrada?
— Olá! Entre para falar com o chefe - gritou Inácio voltando para fora.
— De onde vem ele?
— Do Icó.
O portador, que era um homem robusto, acaboclado e de modos rudes, aproximou-se e entregou ao Onça uma pequena bolsa de couro, pronunciando três palavras, que era a senha da quadrilha.
— Vivo, luto e venço.
— Vá em paz - respondeu o chefe e fez sinal a Inácio e ao recém-chegado para que se retirassem.
Abriu então vagarosamente a bolsa e tirou de dentro dela uma pequena placa de folha-de-flandres, pintada de amarelo de um lado, e mostrou-a a Virgulino e ao Diabrete.
— Partir já - exclamou Virgulino, olhando fito para o Onça.
— Mas não diz para onde, é só um aviso - ponderou o Diabrete.
Onça voltou na palma da mão o outro lado da senha pintada de vermelho:
— Para onde está o chefe - murmurou ele e acrescentou em voz alta: - Inácio, diga ao portador que faça-se depressa na volta, e aos outros que se preparem a fim de seguir para o Icó.
— Eu não posso obedecer - disse Virgulino levantando - esta ordem é cruel para o pai que sabe que os seus filhos andam ao desamparo por estas estradas fora.
O Onça, afastando rapidamente a vestia, levou as mãos à tinta e dai as retirou armadas por um par de revólveres, fazendo alvo para o desventurado pai.
— Você sabe que eu sou seu amigo, Virgulino, mas sabe também que eu sou seu chefe e que os Viriatos não se retiram deixando soldados seus. Escolha: ou morre ao primeiro movimento ou obedece. Vamos, responda e lembre-se de que faço-lhe saltar os miolos, e mais a todos os seus parentes, que não se acham longe daqui.
— Obedeço - respondeu o mísero pai; - meus filhos não têm culpa da minha loucura.
— Saia então.
O chefe foi obedecido, e quando ficou só, murmurou entre dentes:
— Antes o veneno das cobras, ele não me ofendia o coração.
Horas depois o Onça e Virgulino entravam na puxada e recomendavam de novo a enferma à família de Inácio.
— Façam esta obra de caridade - disse Virgulino; - ela há de saber ser agradecida.
— Ouça, Inácio; tratem-na bem porque eu pago, posso pôr e dispor e tenho com que - ponderou o Onça. - A sua mulher já me disse que não havia perigo, conservem-me, pois, aqui a moça até que voltemos. Até a vista.
Quando iam montando a cavalo, Virgulino, dirigindo-se ao primeiro chefe, lembrou-lhe a meia voz uma de suas promessas, por uma pergunta:
— Os malvados que maltrataram a d. Eulália ficam impunes?
— Não; mas não posso já, já, saber; o Diabrete virá no meio do farrancho para ouvir as conversas.
— Há um meio: eu dei a d. Eulália a minha bolsa, e não a encontrei em seu poder, quando achei em tão desgraçado estado a pobre moça.
— É um meio de descobrir: descanse que o exemplo há de escarmentar os outros. Eu o prometo.
A cavalgada destilou por detrás da vendola por uma picada, que através do capoeirão comunicava a estrada de B. V. com outra, que se ia entroncar com a que se dirigia para o ponto que a numerosa cavalgada tinha por alvo.
— Estamos livres por algum tempo - murmurou Inácio; - é pelo menos um mês de descanso, se não lhes levar o diabo.
— Eu bem vos aconselhei quando quisestes fazer este negócio, agora é sofrer.
— Tem razão, mulher, tem razão, mas, o que quer? A ambição é sempre assim. Hei de acompanhar a procissão até o fim, não posso mais remediar.
Pouco durou a conversação do velho com a esposa, porque um grupo de retirantes de B. V. veio interrompê-lo para comprar provisões. Após, chegarem outros e outros, e Inácio não pode mais abandonar o balcão durante o dia. À tardinha, uma família chamou a atenção do velho vendeiro. Era uma senhora idosa, que vinha precedida por duas meninas, a mais velha das quais teria 11 anos, e uma mocinha de 14 a 15 anos, que carregava, deitada sobre o ombro, uma menina de quatro anos.
Todas elas traziam trouxas à cabeça, mas, ao contrário da maioria dos retirantes, não vinham imundas e repelentes.
— É uma venda, minha tia - disse a mocinha para a velha senhora; - talvez o dono queira comprar algum do nosso ouro e assim tenhamos com que obter alguma coisa.
— Talvez - respondeu a velha senhora; - eu vou lá. Encaminhando-se para Inácio, a idosa retirante apresentou-lhe umas argolas de orelha e uns pares de brincos de criança, pedindo-lhe que os comprasse.
— Não é o meu ramo de negócio - disse o vendeiro -, e mesmo agora não é tempo para negociar com estes objetos, a não ser por pouco mais de nada.
— Chega para matar a fome a quatro infelizes; aquelas que ali estão? Se chega, meu senhor, é uma grande esmola que me faz.
Inácio tomou os objetos e, pondo-os na palma da mão, sopesou-os e examinou-os miudamente, perguntando por fim.
— São de ouro mesmo?
— Devem ser, meu senhor - respondeu a senhora, em cujo semblante lia-se o temor de uma repulsa; - comprou-os pessoa entendida, que não se deixaria lograr.
— Isto é que ninguém pode saber, os marinheiros mascates passam por esses sertões muito ouro falso. Só quem é do ofício pode conhecer.
Voltou a seu exame atento aos objetos, enquanto a senhora o olhava de soslaio com uma súplica dolorosa no marejamento de lágrimas, que já se lhe nivelavam com o bordo das pálpebras.
— Não parecem maus, não, é verdade - continuou Inácio
—, mas eu não entendo disso. Pelo sim, pelo não - acrescentou olhando penetrantemente para a velha, que o encarou a estremecer - pelo sim, pelo não... veja se lhe agrada o preço.
Foi direto a uma barrica que estava encostada a uma armação, e por duas vezes voltou com as mãos cheias de bolachas, as quais pôs-se a contar.
— Uma, duas, três... dez... vinte, e uma, e duas, e quatro, e mais estas duas de quebra para aquela pequenita. Serve-lhe assim?
— Muito obrigada - murmurou a velha senhora, que pela primeira vez experimentava o amargor da miséria e o rigor da fome. - Deus há de levar-lhe em conta dos seus pecados.
Inácio, que esperava que a sua freguesa regateasse, exigindo melhor e maior preço para a sua mercadoria, ficou boquiaberto a olhar para a mulher, que mostrava tamanho desapego, e, em vez de revoltar-se contra a sua usura, bendizia-o, invocando o nome de Deus a favor dos seus pecados. O seu espantou aumentou, quando, depois de haver recolhido as bolachas, a boa senhora tentou sair.
— Não - disse Inácio -, eu não quero ficar com os seus objetos, e foi por isso que lhe propus o negócio.
— Ai! meu senhor - soluçou a infeliz, debulhando-se em lágrimas - tenha piedade de umas pobres de Deus. Eu não lhe peço por mim que estou velha e não me importo de ser chamada quando o nosso Redentor for servido, mas por aquelas meninas que ali vê, filhas de um homem que nunca negou um bocado aos que precisavam.
— Não é possível fazer obras de caridade nesta época -disse Inácio; mas, envergonhando-se logo da sua crueldade, perguntou: - Quem era esse homem que nunca negou um bocado, e que deixou a família sair com tamanhas necessidades?
— Era o professor de R. V. Não o acuse pela nossa miséria; ele já não existe.
Inácio, como todos os vizinhos da paróquia, conhecia o nome de Francisco de Queiroz, e, ouvindo pronunciá-lo, estremeceu, como o pungisse um remorso.
— E a senhora é gente dele?
— Sua irmã - respondeu d. Ana - e aquelas são suas filhas.
— Mulher - gritou Inácio, indo até a porta do fundo da vendola - vem cá fora, para fazer um negócio.
— Graças, meu Deus - disse d. Ana, com olhar que alevantou para o teto.
Os dois consortes segredaram ao fundo, e Inácio, dirigindo-se em seguida a d. Ana, disse-lhe:
— O negócio fica fechado assim. As bolachas, um quilo carne, dois litros de farinha, e, como Vossa Mercê não encontra casa nesta redondeza, senão daqui a oito léguas, a não ser B. V., tem pousada por esta noite, ali naquela sala.
E apontou para os aposentos em que tinham estado os dois chefes.
D. Ana nem teve voz para agradecer ao vendeiro, tamanha foi a sua alegria, e, da porta, chamou com um aceno de mão as suas sobrinhas.
A família de Inácio veio colocar-se no fundo da venda a olhar muito comovida para o mísero grupo, que, pelos modos, feições e palavras, provava não pertencer à vasa de ociosidade e de descuido pela vida; vasa que aproveitava os fundos sulcos da seca para entornar-se como praga fatal por sobre toda a província.
— Não repara que aquela mocinha é muito parecida com a que está lá dentro? - perguntou uma das filhas de Inácio.
— É verdade; quem sabe se elas não são parentes? Era perguntar.
A suspeita, cochichada entre as raparigas, passou à esposa ao próprio vendeiro, fazendo com que à hospitalidade espontânea se associasse logo uma idéia de lucro.
— Vossa Mercê não tem mais nenhum parente? Mais nem sobrinha ou filha, dona? - perguntou Inácio.
— Tive mais uma sobrinha, porém esta morreu, há já algum tempo, vítima das moléstias da paróquia.
— Pois havia de jurar que tinha visto uma irmã daquela mocinha - e assinalou Chiquinha. - Veio hospedar-se aqui.
— E o senhor foi bom para com ela, hospedou-a, não? - perguntou d. Ana arrastada pela comoção.
— Fiz o que me mandaram por essa infeliz, que parecia não ter mais ninguém no mundo.
— E quem mandou socorrê-la? Não disse que ela parecia não ter mais ninguém na Terra?
— Às vezes aparecem como por encanto homens benfazejos, e a pobrezinha encontrou um desses.
— Ah! Então ela não é de todo desgraçada: tem quem a socorra.
— Por ora...
— E o que é feito dela?
— Partiu, só, desamparada, por esse mundo de fome e de crimes.
D. Ana e as sobrinhas não puderam conter as lágrimas, traindo assim claramente o segredo que a boa senhora queria guardar inviolável.
— Vossa Mercê tem pena da pobre moça, e, não obstante, não a viu. O que faria se a visse arrastando-se por essa estrada, mordida pela fome e pelo cansaço...
Desgraçada, desgraçada - murmurou d. Ana.
— ... atacada pelos bandidos, desrespeitada por eles, perdendo pelo terror...
— Basta, meu senhor, basta Nós nada temos com essa moça, mas vamos também desamparadas, e quem sabe o que nos acontecerá? Faz-nos muito medo semelhante história.
O vendeiro, apesar das negativas de d. Ana, certificara-se de que a protegida do Onça e de Virgulino era sua parenta ou pelo menos sua conhecida íntima. Não dirigiu mais a palavra a d. Ana, mas, com uma piscadela de olhos, chamou a atenção da esposa e das moças para as recém-chegadas.
— Entrem para cá e acomodem-se - disse a esposa. - É casa de pobres, mas dada de bom coração.
A fadiga alquebrava a família Queiroz, e ela não esperou que o bondadoso convite se repetisse. A noite não as encontraria ao desabrigo, e recolheu dos lábios da tia carinhosa e das irmãs de Eulália bênçãos para Inácio e para os seus.
Talvez neste momento, a esposa do abençoado vendeiro fizesse jus ao quinhão que lhe cabia nas preces da família. Durante o dia tinha cercado de solicitude a rede em que jazia a enferma, que só muito tarde voltara confusamente a si, envolvida no olhar da zelosa enfermeira.
— Teve um mau sonho, não é verdade? Esteve muito insofrida, mas não admira, porque a fraqueza produz sempre isto. Olhe; é preciso tomar alguma coisa.
Eulália, abrindo muito os olhos enevoados pelo torpor, fitou atentamente a sua hospedeira, e depois observou tudo quanto via em torno com as minúcias da incredulidade. Depois do exame, sorriu e apertou a mão que havia apenas abandonado à mulher do vendeiro e murmurou:
— Pois eu era capaz de jurar que era verdade. Há pesadelos bem cruéis.
— Eu já os tenho tido horríveis.
Eulália continuou a relancear os olhos por toda a saia, como se julgasse que o pesadelo começava agora. Percorria de alto a baixo as paredes apenas embaçadas, de uma das quais pendia uma espingarda entre apetrechos de caça, e de outra um quadro tosco, esfumaçado, emoldurando um registro da Senhora da Conceição, espancando em derredor como um foco intenso de luz, nuvens sobre as quais esvoaçavam e pairavam anjinhos da compleição de crianças fortes e sãs, sorrindo com a alegria delas.
— Eu era capaz de jurar que se tinha dado realmente.
— É que foi muito mau o sonho, não foi?
— Foi... imagine a senhora - respondeu ela sorrindo, e, exprimindo-se demoradamente com uma voz muito fraca, começou então a contar a cena que a prostrara.
Tinha se despedido de manhã e recebera provisões e uma bolsa que lhe deram os seus protetores, os dois mascarados. Aventurou-se à estrada deserta, que retorcia-se pela extensão dos capoeirões como um ornato de grega sobre as ramagens de um corpinho de chita. Ia pensativa e triste evocando da solidão todas as recordações da sua ridente vida de outrora, esbatidas à vontade naquela tela indefinida. Oito léguas, pensava, devia caminhar para encontrar uma pousada; a noite viria surpreendê-la antes, sacudindo os guizos das cascavéis, aguçando-lhes nos dentes venenosos o apetite de morte, e, entretanto ela teria de afrontá-la sozinha. Se aparecesse alguém, que tivesse igual destino, que fosse também para a capital, refletia, caminhara mais depressa, com a agilidade da coragem!
Foi sob o influxo desse pensamento que viu ao longe um homem vestido de couro, deitado à sombra e à beira do caminho. Aproximou-se dele e perguntou-lhe, ainda que ele fingisse dormir, qual a direção que devia tomar. O homem respondeu-lhe com uma acentuação brutal que passasse quieta o seu caminho, e ela, estremecendo de susto, seguiu.
Um pouco adiante, porém, deu de face com o semblante medonho desse indivíduo, aliás ainda muito moço, e a sua voz fez envermelhecerem-lhe as faces, como se ele a houvesse esbofeteado. O silêncio foi a resposta ao insulto e o estímulo ao crime. Ah! É orgulhosa, exclamou o facínora e, de um salto, despojou-a da bolsa e das provisões.
O terror avassalou-a e faltaram-lhe os sentidos para testemunhar toda a infâmia da agressão. Lembrava-se apenas de que tinha aberto os olhos uma vez, e que não viu mais ninguém junto a si. Apenas as árvores do capoeirão cercavam-na silenciosas, deixando de quando em quando cair sobre si alguma folha, que lhe causava a sensação suave do contato de mão amiga. De novo, perdeu os sentidos, e só agora os recobrava.
— Já vê que não passou de um pesadelo quanto contou; nessas estradas não há ladrões, nem assassinos.
— Graças, meu Deus - suspirou Eulália, e, voltando-se para a mulher de Inácio, acrescentou: - uma boa notícia para quem tem de caminhar desprotegida.
Tentou então levantar-se, mas, com um requinte de solicitude, a velha enfermeira deteve-a, murmurando:
— Os seus protetores não consentem que a senhora retire-se de entre nós.
— Não é possível, eu devo seguir hoje mesmo.
— Eles não querem; ordenaram que não a deixássemos sair.
— Eu os convencerei de que devo seguir o meu caminho.
— Já não estão aí, partiram para o Icó.
— Mas então deixem-me ir; eu agradeço de todo o coração tanta bondade, mas preciso seguir.
— Pode fazê-lo - respondeu a velha, em cuja mente passou uma inspiração triunfadora -, mas a fadiga matará o seu filho. Repare bem e trema pela sorte dele.
Eulália apertou ainda mais a mão da sua interlocutora e, olhando-a de face, prorrompeu em soluços. O amor de mãe vencera-lhe o temor de envergonhar-se diante dos seus, que porventura lhe viessem ao encalço.
Fácil foi à enfermeira convencer a doente de que era necessário ficar alguns dias em repouso, para salvar o ente querido, que a encorajara na fuga aventurosa. A própria desgraça, que já lhe havia sobrevindo, servia de argumento poderoso, e Eulália resignou-se a obedecer, porque as dores que se lhe despertaram com o acordar, assim a aconselhavam.
O velho Inácio, tomando conhecimento da submissão da doente, volveu de novo a reflexão para a família Queiroz.
— E as parentas? - perguntou ele. - Deixamo-las ir? A esposa não soube responder. Era preciso ver que não tinham recebido ordem do Onça nem do Desempeno para acolhê-las. É verdade que a natureza da proteção que dispensavam a Eulália mostrava relações íntimas, porém quem sabia se as mesmas razões os levariam a socorrer a família inteira? O melhor era deixar o resto por conta da d. Ana: oferecer-lhe a casa e, se ela insistisse em seguir viagem, fazer-lhe a vontade.
— É o meu entender - respondeu a velha -, o mais é tomar trabalhos sem a gente saber se pode ou não com eles.
Alta noite, o sono dos moradores e dos hóspedes da venda foi interrompido por um latido impertinente de um cão, que de quando em quando arranhava a porta do fundo da saleta, em que estava agasalhada a família do vendeiro.
— O negócio amanhã começa com a madrugada - disse Inácio à sua mulher; - temos gente lá na varanda.
— Vão ser uma canseira estes dias, até que se esgote toda a gente do povoado.
— Estava quase indo abrir para ver quem é.
— Já se pode imaginar: alguns pobres que querem comprar bolacha; os remediados e os ricos não deixam de bater, e também não viajam em horas mortas.
— Tem razão; o cachorro há de cansar, e eles que esperem até de manhã.
Logo com os primeiros rubores do dia, Inácio levantou-se e veio abrir a porta da vendola; porém, ao contrário do que esperava, achou a varanda deserta.
— Bom; já se puseram a andar, é que não tinham essas urgências ou não sabem o caminho, e neste caso hão de voltar.
A família Queiroz, apesar do cansaço da jornada, começou a aprontar-se, desde que ouviu barulho na vendola. Chiquinha, que era quem se incumbira especialmente da caçula, para livrar d. Ana de tão penoso trabalho, tratou de acordá-la, e endireitá-la para a caminhada do dia. A criança, porém, acordando estremunhada, pôs-se a choramingar e a negar-se aos cuidados da irmã.
Eulália, que ouviu o choro, levantou-se precipitadamente e chamou pela esposa do vendeiro.
— Desculpe-me, minha boa senhora, mas eu lhe ficaria devendo um grande favor se me dissesse quem dormiu hoje aí.
— Umas pobres mulheres, que trazem uma criancinha muito galante.
A fisionomia de Eulália perturbou-se ainda mais com a resposta, e a infeliz toda trêmula, querendo levantar-se para sair apesar das recomendações terminantes da sua enfermeira, perguntou sofregamente:
— E ninguém as acompanha?
— Ah! Pensava que elas vinham sós, e como está nesta circunstância, teve dó delas? Felizmente acompanham-se de alguém; descanse, não esteja a sobressaltar-se que lhe pode fazer mal.
As lágrimas romperam em chuva nos olhos de Eulália, que soluçava ofegando, como se neste momento houvesse recebido algum golpe violento.
— Por que chora assim? - perguntou a velha enfermeira, para quem não era desconhecida a causa do sofrimento da moça. - Não tem razão para isso. Falta-lhe alguma coisa aqui?
— Não - respondeu Eulália. - Choro por uma tolice muito simples, por uma tolice; a voz da criança que está chorando parece muito com a de uma outra de quem fui muito amiga na paróquia.
A velha enfermeira, impressionada, com a piedade de mãe, que era, entendeu ser ocasião oportuna de sondar o coração de Eulália, para dar-lhe o consolo que a sua voz tentaria em vão verter naquela alma.
— Diga com sinceridade, minha amiga; não tem nenhum parente que a possa amparar?
— Não - respondeu Eulália -, nem um só!
— E amigos?
— Também não, porque iria envergonhá-los.
— E se eles a quisessem ver e amparar?
— Eu negar-me-ia, porque hoje morreria de vergonha ao encará-los e preciso de viver para o meu filho.
— Quer então continuar só e sem ninguém?
Eulália meneou a cabeça afirmativamente e a interlocutora continuou:
— Olhe, minha amiga; não sabe ainda o que é a vida, o que vai de desgraças por este mundo fora. Tenho ouvido coisas que fazem arrepiar os cabelos; dizem que as próprias mães já não se importam com os filhos, tamanha é a miséria que todos sofrem. Se os seus parentes, se os seus amigos a quisessem consigo, eu, no seu caso, aceitaria.
— Não, minha senhora, não; eu apenas iria aumentar-lhes as necessidades. Prefiro morrer a causar-lhes mais tormentos; para mortificar-me e entristecê-los, já fiz bastante: deixei-lhes a lembrança de minha vergonha.
— E então por que queria tanto saber quem era a criança que chorava?
— Porque pedir-lhe-ia que ma deixasse ver, talvez pela última vez, o seu rosto, e assim fortalecer-me no meu tormento. Desde que a família vem acompanhada, eu já sei que não é quem penso; a de quem eu falo, só teria hoje por companheiro a sua honradez.
— Eu imagino quanto tem sofrido, minha boa filha - disse a velha retirando-se e enxugando os olhos.
Na vendola Inácio insistia com d. Ana para que demorasse mais a sua partida.
— Por essa madrugada, é uma pressa desnecessária; esta casa é dada de bom coração e bem vê que não incomoda. Demore-se por hoje, descanse mais as meninas; olhe que daqui ao primeiro lugar povoado são oito léguas, e por essas estradas só se encontram casas desertas. Ao menos deixe passar a força dessa gente que por aí vem; pode algum desalmado atrever-se e as senhoras não têm um homem para defendê-las.
D. Ana, depois de assegurar ao velho Inácio de que entre os retirantes de B. V. não temia encontrar inimigos, agradeceu muito o agasalho e pediu que ele e a sua família não se escandalizassem com a sua partida.
— Precisamos chegar ao Ceará; lá teremos abrigo.
— Bem, minha senhora - disse Inácio, e, beijando a face da caçula, deixou-lhe na mãozinha as jóias que na véspera havia recebido de d. Ana, que não viu a ação generosa do velho; - Deus as acompanhe.
Inácio caminhou para a porta da vendola e, dando volta à chave, acrescentou:
— Fico triste, por irem tão sós..
A porta abriu-se violentamente, e estirou-se aos pés de d. Ana um cão negro e robusto, que a festejava batendo a cauda e rosnando.
— Agora já não estou tão sozinha, posso partir descansada.
O velho Inácio conservou-se de pé na porta, enquanto a família afastava-se, e só quando a viu desaparecer, murmurou:
— Bem, fiz hoje uma boa ação; estou contente comigo.
A estrada e o ambiente, saturados de sol e calor, formavam uma engrenagem de onde os transeuntes saíam esmagados.
Os sombrios e maltrapilhos caminheiros, cheios da heroicidade do instinto da vida, não desanimavam, porém; seguiam sempre com a resignação e o passo tardo dos bois encangados, submissos à voz do carreiro e ao morder do aguilhão.
A família de Virgulino, que fora uma das primeiras vistas na vendola, estava já distanciada cerca de quatro léguas daquela paragem, e resoluta, sobranceira ao cansaço, seguia sempre, ainda que as crianças, amolentadas pela soalheira, causassem-lhe grande medo pelo estado precário da saúde.
— Eles disseram que passadas oito léguas acharemos pousada - diziam as moças recordando as palavras do Onça e dos outros bandidos; - não há de faltar muitas léguas, andemos.
O incitamento produzia um efeito benéfico e as infelizes continuavam cobrando alento do próprio temor que tinham de que a noite as viesse surpreender no meio da solidão. Todavia o esforço não conseguiu senão adiantá-las mais duas léguas, e à tardinha um quadro tristíssimo veio lançar o espanto entre estas desgraçadas.
A estrada muito fulva, formando um ângulo muito agudo em ambas as extremidades, parecia um elo de cadeia enormemente alongado trancando o passo ao transeunte.
Uma nuvem espessa de urubus pairava, parte na extremidade fronteira, parte pousava no solo e nos arbustos do capoeirão.
— O que será aquilo? - perguntou a velhinha que mal se podia arrastar de cansaço. - Parece um agouro.
— Há de ser algum animal morto; não se lembra que quando viemos de Maria Pereira perdemos o nosso cachorro na viagem?
— Com certeza é isto mesmo - concordaram todos -, o pior é a fedentina.
Ao lado do caminho viam-se já grandes montes de cascas secas de croatá, orquídea venenosa, que entretanto serve de alimentação aos famintos.
— Não reparam - ponderou a mulher de Virgulino - como por aqui a fome já chegou tão forte aos viajantes? Vejam quanto croatá chupado.
— É mais uma porção de gente que vai ter inchação; quanta desgraça por esse mundo de Deus!
A voz da velhinha tomou uma acentuação profundamente e acrescentou:
— Vocês, minhas filhas, terão de ver tudo isso, eu felizmente já tenho os pés na cova e creio que nem chego ao Ceará.
As consolações para dissuadir a velhinha afluíram a todos lábios; não obstante, a impressão não deixou de ser dolorosa, e uma das moças perguntou:
— Chegaremos hoje ao pouso?
— Eu já não tenho pernas - disse a velhinha - e, além disso, aí vem a noite; por meu parecer ficaríamos mesmo à beira da estrada debaixo de qualquer pé de pau.
— Não, não é preciso, não pode faltar muito - advertiu a esposa do Virgulino -, havemos de chegar.
O mau cheiro começou a se fazer sentir incomodativamente, e ao mesmo tempo as crianças, obrigadas a andar para que as mulheres pudessem descansar, choramingavam.
— Que lugar tão triste - exclamaram todos -, faz medo. Cerca de uns duzentos passos as exalações fétidas tresandavam, e, para mais incomodar os transeuntes, os urubus, espantados pela presença desses inesperados hóspedes, levantavam ruidosamente o vôo.
A família apertou o passo para mais depressa furtar-se das pútridas emanações, mas não deixou de olhar para o lado onde os urubus assinalavam o foco.
Uma cruz toscamente feita destacava-se no meio de um claro formado pelo capoeirão, e junto a ela, meio coberto pela folhagem, o cadáver de um homem mostrava parte dos intestinos, sob a véstia entreaberta.
A comoção e o temor, produzidos pelo horrendo quadro, emudeceu o grupo, que se limitou a tomar nos braços as crianças para acelerar ainda mais a marcha já fadigosamente forçada.
— Viu? - perguntavam-se em voz baixa. - É horrendo; vamos ver se chegamos ao pouso....
Dobraram o passo, mas a velhinha, que não podia resistir a tamanho esforço, deu sinais de invencível cansaço e começou a retardar e a distanciar-se.
— Já é noite - observou por fim -, e nós não podemos chegar a nenhum pouso hoje; fiquemos por aqui mesmo.
— Mais um bocado - respondia o grupo; - estamos de certo muito perto, temos andado tanto...
— Paremos; se houvesse algum pouso perto os urubus não estariam comendo um corpo humano.
A objeção da velhinha era irrespondível e as afoitas companheiras tiveram de ceder diante deste golpe decisivo da realidade.
— Não havemos de dormir no meio da estrada; caminhemos até a primeira árvore.
A marcha fadigosa continuou com tanta celeridade quanta era possível obter depois de tão penosa jornada. As árvores, porém, pareciam ter desaparecido todas da face do solo. Só o capoeirão, mordido pelas soalheiras, amarelo, silencioso, quase despido de folhagem, estendia-se para ambos os lados, repassando o coração da mísera família da mesma tristeza da sua solidão e esterilidade.
— Até a primeira árvore - repetiam de quando em quando.
A claridade crepuscular diminuía mais e mais, e a noite descia com a desesperança sobre a estrada e sobre os corações.
O terror, invadindo os espíritos crédulos, povoava os arredores de espectros e rumores sobrenaturais, e a família conchegava-se cada vez mais, como se assim quisesse fortalecer-se contra o desânimo.
— Não posso mais comigo - arquejou a velhinha -, morro; sigam vocês com as crianças, eu as acompanharei de longe.
Pelo silêncio da família julgar-se-ia que ela havia acedido, mas o retardamento do passo demonstrou que naqueles corações não havia ainda guarida para semelhante egoísmo.
A noite, porém, indiferente a tamanho sofrimento, avassalava rapidamente os últimos clarões do dia, e, de mistura com ela, a sombra do mato marginal aumentava o temor das caminheiras. O crepúsculo mortiço, como um olhar de idiota, assemelhava-se, porém, a um abraço longo de pai em hora de despedida, tão pouca era a vontade que tinha de furtar-se da contemplação das míseras mulheres.
— Vejam, vejam, lá; uma árvore, lá está ela, é talvez um cajueiro, vejam.
— Mais um bocadinho de coragem, minha mãe; está ali uma árvore - disse a mulher de Virgulino dirigindo-se à velhinha; - amanhã não caminharemos senão muito tarde.
A velhinha limitou-se a menear afirmativamente a cabeça e as moças, encorajadas pelo abrigo, apressaram a marcha.
De fato uma vetusta maçaranduba abria, não longe, a copa vastíssima que parecia um docel auriverde esquecido no meio da vegetação moribunda. A ramagem pendida, meneando-se morosamente ao sopro da tarde, que se fazia comparar ao resfolegar arquejante da natureza descansando da fadiga canicular, acenava às caminheiras com a bondade insinuante da hospitalidade espontânea.
— Não repara, mamãe? Podemos até pendurar as redes nos galhos.
— Achamos uma boa casa; descansaremos à vontade.
Estas ponderações da súbita coragem, que lhes assomou ao ânimo, aumentaram a alegria geral por uma circunstância que não teria valor em outra qualquer ocasião, mas que no presente era de uma importância máxima. O vagido fraco de uma criança ecoava, derramando no espírito da etenuada família o contentamento expansivo do encontro de companheiros no meio da solidão.
— Não somos os primeiros a chegar - ponderou sorrindo a mulher de Virgulino -, já há donos deste lado da casa.
— Tomemos conta do outro e façamo-nos amigos dos nossos vizinhos.
Foi extasiada nos transportes de tão justa alegria que a mísera gente hospedou-se debaixo da velha árvore, a sentir-se feliz como viajantes fidalgos que pudessem apear-se às portas de um palácio. As próprias crianças pareceram reanimar-se e perderam o ar tristonho, a acentuação profunda de enfado que lhes embaciava o semblante. As moças começaram logo a atar as longas cordas das suas redes nos braços da corpulenta maçaranduba, que sussurrava como a voz dos vassalos de um hospedeiro, que conversassem acerca dos hóspedes recém-chegados.
Só depois de algum tempo, a atenção da esposa do bandido, que era a mais forte das companheiras e que se estava ocupando de aprontar a refeição, voltou-se para o choro da criança. Tinha necessidade de lume e lembrou-se de remover a dificuldade de obtê-lo indo pedi-lo aos próximos vizinhos.
— Quem vem comigo até aquela casa? - perguntou a sorrir; - precisamos de fogo e não temos.
— Prontas, nós ambas, e para fazer calar a criança levaremos bolachas para dar-lhe.
As três caminharam na direção do choro da criança e só pararam na distância de uns 20 passos, reparando que era uma outra criança quem acalentava a chorosa.
— Como chegou aqui esta pobre gente! - ponderou Maria, a esposa do bandido. - Dormem a gosto, enquanto o filho esgoela-se de modo que já está rouco.
— Estão com um sono de ferro, ou cansados a mais não ser - respondeu uma das irmãs; - vejam que fome não traziam esses desgraçados.
— O pior é que eu não vejo fogo e parece que perdemos o tempo vindo cá.
— Eu falava sempre - observou a irmã; - acordava-os por amor da criança.
Deram mais alguns passos e foram parar junto do grupo formado por uma mulher ainda moça e pelas duas crianças. A mulher, deitada de lado, muita espichada, com os braços estendidos de modo a formar um ângulo obtuso com o resto do corpo, tinha os dedos enterrados no chão arenoso e deixava a descoberto, sobre os frangalhos de uma camisa enegrecida, os seios muxibentos. Sentada muito conchegada a ela, a mais velha das crianças, que devia ter cerca de cinco anos, muito magra e coberta apenas pelos farrapos de uma camisola, tentava ajeitar a que chorava, que não teria mais de seis meses, aos seios maternos.
— Que sono - observou ainda uma vez Maria; e, levantando a voz, timbrou vigorosamente um pedido de licença.
— Ela não quer ouvir - respondeu a criança; - eu estou chamando-a desde de tarde para dar a maminha ao maninho e ela não se importa.
— É que está doente, filhinha; espere que eu a acordo já.
Maria inclinou-se por sobre a desconhecida e pôs-se a sacudi-la pelos quadris, chamando-a com acentuação cada vez mais forte. O trabalho foi inútil, a mulher não se moveu, imobilidade que surpreendeu desde logo as recém-chegadas.
— Eu não disse que ela não se importa? - ponderou a criança. - O maninho já está rouco e mamãe não quer ouvir, pensando que é manha dele.
Maria tomou nos braços a criancinha e pôs-se a aleitá-la, ao passo que as suas irmãs davam à outra as bolachas, que Pêra este fim haviam trazido, segredando-se:
— Está bem mal esta infeliz mulher e talvez seja fome.
— Você já está aqui há muito tempo, filhinha? - perguntou Maria à menina que devorava as bolachas com a sofreguidão própria dos famintos.
— Desde ontem, depois que deixamos lá atrás morto o papai.
— Então o seu papai morreu? E onde morreu ele?
— No meio do campo, aí mesmo na estrada e lá ficou.
A lembrança do cadáver, que servia de pasto aos corvos, avivou-se, toda esbatida no horror do quadro visto pelas moças, que limitaram-se a trocar olhares compadecidos.
— Mamãe - continuou a criancinha - esteve junto de papai dois dias, mas ontem de tarde nos trouxe para aqui. Hoje de manhãzinha deu-me o resto de croatá, e, depois de dar de mamar ao maninho, andou a comer folhas e a chupar umas raízes. Depois ela me disse que estava ficando tonta e que havia de ser sono, queria dormir e me deitou junto de si. Quando eu acordei, porque o maninho chorava, ela já estava assim.
Uma das moças abaixou-se e tentou afastar os braços da mulher, mas a frialdade, que sentiu ao seu contato, fê-la levantar-se de um salto, como se a tivesse impelido uma força oculta.
— Não está dormindo, não, Maria, ela está morta - gritou toda trêmula.
A mulher do bandido não se mostrou perturbada como suas irmãs, que logo se afastaram; tomou pela mão a orfãzinha, que rompera em soluços ouvindo o grito fatal, e voltou a reunir-se à sua família.
O egoísmo do instinto de conservação, brutal, feroz, mas sem imputabilidade, recebeu-a aí com o mais pronunciado desagrado.
— Nós já somos tantos, Maria - resmungou a velhinha -, e você bem vê que é impossível tratar agora de filhos alheios.
— Eu tenho dois peitos - respondeu a boa mulher - e o meu leite chegará para ambos. Quanto a estazinha ela não come tanto que eu não lhe possa dar um bocado do que tocar aos meus filhos.
— É verdade - disse uma das irmãs -, mas você não poderia carregar as três, e nós já não podemos com as nossas, quanto mais com as cargas alheias.
— Bem, eu ficarei - respondeu resolutamente a esposa do bandido; - há de passar alguém que se condoa desses infelizes.
A resposta de Maria impôs silêncio pela sua nobreza, e nenhuma das parentas da heróica mulher ousou objetar-lhe, mas também, como se desde aquele momento a houvessem segregado da família, nenhuma dirigiu-lhe a palavra durante a refeição e nem tampouco ao deitarem-se, irritadas por verem desde então começados o sacrifício grandioso. Maria, depois de aleitar a filha e a pupila, deitou-as com a outra menina na sua rede, e, muito satisfeita, deitou-se embaixo sobre andrajos que estendeu no solo.
O luar momo e indiferente, como se representasse a absoluta impassibilidade da natureza, inundava o capoeirão e, coando-se por entre a ramagem da maçaranduba, revestia de um crivo de luz e sombra o corpo de Maria e o cadáver da mãe desventurada. Pairava um escárnio pungente nesse brilho igualitário, que não distinguia entre a morte e a heroicidade, entre a imobilidade do cadáver e ataxia do mártir.
Na tristeza ingênua ao local sentia-se alguma coisa que tinha a atitude de um terra-nova negro, acocorado na sombra, lambendo o focinho com a larga língua vermelha num acesso de gula, a rosnar muito atento para alguém que comesse. Era o instinto de conservação da família, que, malgrado o ressonar de todos, velava solícito espreitando os órfãos que dormiam na satisfação do quilo de uma longa fome agora extinta.
Horas depois da quietação geral, quando as fadigas das jornadas deliam-se já num sono profundo, a velhinha, a que mais cansada se mostrara, revolveu-se na rede e sentando-se, fitou demoradamente o lado em que repousava a esposa do bandido. Mas a superstição, a ouriçada habitante da treva e a solidão, ergueu-se-lhe talvez diante, e a velhinha voltando-se bruscamente para a banda em que jazia o cadáver, mergulhou-se rápida e perturbada no leito.
Não obstante, minutos depois, reagindo contra si mesma, levantou-se e, descendo cautelosamente, foi, esgroviada e trôpega, com um lençol imundo ao pescoço, parar junto da boa mulher, a quem chamou repetidas vezes para certificar-se de que estava completamente adormecida. Maria não respondeu e nem ao menos rompeu por instantes a uniformidade do resfolegar.
"Bem, dorme profundamente - pensou a velha e caminhou para a rede em que dormiam as crianças.
Abriu-a, fitou os três rostos serenos, mas hesitou e ficou a tiritar de modo a ter necessidade de agachar-se para não dar em terra. Reanimou-se, porém, com um assomo subitâneo de coragem, e, erguendo-se, tirou jeitosamente uma das crianças e caminhou até o meio da estrada, onde o luar resplendia em toda a inteireza do seu brilho.
O olhar hostil, minucioso como um microscópio, cravou-se então no semblante da criança que, não sentindo-se magoada, prestava-se ao necessário exame. Depois desta precaução, a velha sentou-se cavando um colo em que deitou a criança, pôs-se a dobrar muitas vezes o lençol até que converteu-o num espesso quadrado, pouco maior do que o rosto do menino.
A lua, alumiando com a sua claridade elétrica este grupo, deixava ver-lhe as feições, ambas maceradas, uma, porém, calma como a inocência, a outra perturbada como o crime.
O lençol foi então aplicado e ajeitado delicadamente sobre o rosto da criança, mas para logo a velha, segurando-o com uma das mãos pelas extremidades, apertou-o vigorosamente e, com mão posta sobre a boca, de encontro às narinas da vitima indefesa, sufocou-lhe os fracos vagidos.
Quando os movimentos desordenados da asfixia cessaram, a velha, deitando sobre a estrada o lençol, sacudiu por vezes a vitima e depois, segurando-a pela cinta, ergueu-a até a altura dos olhos. A cabeça, os braços e as pernas da infeliz criança penderam no relaxamento da morte.
Um longo suspiro foi assoprado pela velha assassina que, levantando-se, dirigiu-se de novo à rede, mas agora com tanta presteza que parecia haver remoçado com a alucinação do crime.
O cadáver foi posto ao lado da filha de Maria, e a outra órfã veio tomar no colo da velha o lugar deixado pelo irmão.
A estrada foi de novo teatro de uma cena igual à que acabava de desdobrar com o máximo requinte da perversidade, e outro cadáver veio colocar-se ao lado da inocentinha, que era a causa inconsciente do duplo assassinato.
Desembaraçando-se da miseranda carga, a velha perdeu de chofre a força que a animava, e não pode ganhar a rede senão arrastando-se. Aí, porém, esperava-a o remorso, hirto, inexorável, fatal, e ela sem poder deitar-se, sem poder desfazer em lágrimas o peso grande que lhe esmagava o coração, conservou-se sentada durante toda a noite, a encarar, com a atenção de um tigre esfaimado, o sarcófago das vítimas, onde, entretanto, o ambiente continuava a pôr nos pulmões da filha de Maria ruídos de vida.
A madrugada, na sua suntuosidade de luz eletrizada pelos calores estivais, veio encontrá-la na mesma atitude, que traía já a insônia do idiotismo.
— O que tem vosmecê, minha mãe? - perguntou a moça que na véspera se mostrara mais infensa à ação bondosa de Maria.
— Nada - respondeu a velha -, estou ouvindo se respiram, por aquelas bocas, que devem acabar o sustento dos meus netos.
— Deus há de nos dar meios de poder arranjar tudo melhor; descanse, vosmecê precisa de dormir.
— A noite foi muito comprida...
— Muito, mas a caminhada foi igual; veja se dorme, é preciso, minha mãe.
A velha não respondeu, mas estremecendo como se tivesse acordado de um espasmo nervoso e se encontrasse em lugar desconhecido, pôs-se a reparar em torno de si.
— Veja como passou mal a noite; não tenha mais susto; estamos todos vivos. Vamos, descanse.
E a moça, aproximando-se dela, constrangeu-a carinhosamente a deitar-se. De junto da rede olhava com acentuada contração de má vontade para a irmã, a quem foi acordar logo que a velha aquietou-se.
— Maria - disse ela - você vai matar nossa mãe.
— Eu?! - exclamou Maria, erguendo-se estremunhada.
— Que lhe fiz eu?
— Meteu-lhe medo tomando essas duas crianças. Nós já fizemos o que podíamos; demos-lhes do que tínhamos. Podemos ainda repartir com elas o que temos para as nossas crianças. E depois?... Eles que sigam a sua sorte. Não somos os únicos que passamos por estas estradas; outros que possam carregá-los hão de socorrê-los.
— Não - respondeu resolutamente -, não os deixarei; sigam vocês adiante; levem vocês os outros seus sobrinhos, porque o pequeno fica bem acomodado na minha cintura. O outro, que já não tem mãe, e que morreria se eu o deixasse, irá nos meus braços; a pequena caminhará. Eu chegarei também, louvado seja Deus.
— Não fale em Deus, mãe sem coração; Ele a castigará pela morte de meu infeliz sobrinho. Antes a morte levasse aqueles dois demoninhos, como levou-lhes a mãe! Mas eu tenho fé em que eles não durarão muito, e então você não terá nem filho nem protegidos. Deus há de ouvir-me, pelo sofrimento de nossa pobre mãe.
O coração materno de Maria estremeceu de pânico supersticioso, ouvindo a ameaça, a praga horrorosa da irmã; mas a boa mulher, vencendo o egoísmo que sentiu despertar-se-lhe inclemente e cego, respondeu resolutamente:
— Seja, mas ao menos não se dirá que eu, sendo mãe, neguei um pouco do meu leite e da comida de meus filhos a crianças que sem isto morreriam de fome.
Caminhou para a rede e, pondo-lhe a mão sobre os punhos, acrescentou:
— Eles morrerão comigo, e a morte não deve doer muito quando a gente morre por motivo tão santo.
E com a delicadeza peculiar às mães extremosas, Maria abriu a rede e, tomando nos braços envolto em andrajos o cadáver do pupilo, veio, sorrindo, apresentá-lo à irmã.
— Veja se era possível deixar esse coitado ao desamparo; já parece um defuntinho - disse, e, suspendendo-o para aproximá-lo aos seus lábios, ajuntou: - mas o meu leite ainda está forte e ele ficará tão forte como o meu próprio filho.
O beijo hospitaleiro, com que Maria queria afagar o mísero órfão, fê-la, porém, extinguir o sorriso que tinha nos lábios e reparar para o rosto da criança. Não proferiu uma única palavra, apesar da certeza dolorosa de que tinha nas mãos um cadáver, e, com grande satisfação da irmã amuada, cujo semblante alegrou-se notando-lhe a perturbação, correu até a rede e por um dos braços tentou levantar a menina. O corpo inanimado da infeliz, erguido violentamente, caiu inerte logo que Maria o abandonou, e a boa mulher bradou com uma entoação indescritivelmente sentida:
— Ai! As pragas destas bruxas mataram as coitadinhas; ambas, ambas estão mortas!
A espectadora desta cena, bufando um escárnio, resmungou:
— É capaz de ficar doida esta desgraçada; não se incomodaria se visse o filho morto, contanto que se salvassem os dois feiosos.
Maria, porém, com igual precipitação largou no solo o cadáver do pequenito e tomou nos braços o filho, beijando-o sofregamente e sacudindo-o, como se na sua imaginação já se lhe afigurasse vê-lo morto. A criança abriu os olhos sonolentos, começou a chorar, mas, reconhecendo-a e sentindo nos lábios o contato acariciador do seio materno, calou-se.
— Ria, ria, malvada - gritou ela para a irmã; - este vocês não matarão com as suas pragas sem que eu as mate também.
As outras irmãs e pessoas da família acordaram precipitadamente e a velhinha perguntou a tartamudear:
— Vivem ainda estes dois demoninhos, não é?
— Morreram - gritou a filha -, mataram-nos.
Fizeram bem - respondeu tranqüilamente a velha; eles matariam os meus netos.
Maria, aleitado o filho, conduziu chorando os cadáveres dos dois pequenos até junto do da pobre mãe e veio pedir à: irmãs que a coadjuvassem para prestar um último serviço aos desventurados.
Engenharam uma cruz com uns galhos secos da árvore e depois foram buscar, no interior do capoeirão, braçadas de espinhos com que cobriram os restos da esposa e dos filhos para que não tivessem a mesma sorte do corpo do esposo. Ao menos os urubus gulosos de podridão não profanariam aqueles despojos humanos.
O sol nascente veio servir de brandão a esta solenidade tristíssima, e subindo cada vez mais, ainda rubro como um ferro em brasa, projetou um raio sobre o algodão encardido em que reatara o sono o filho da boa Maria, como se nele coroasse a virtude materna.
A família começou então a preparar-se para a partida, entrouxando as roupas andrajosas nas redes sórdidas, e guardando cautelosamente as migalhas que restaram da refeição matinal.
— Graças a Deus - murmuraram as moças -, vamos ao menos como chegamos.
— Vocês têm o coração de pedra - soluçou a esposa de Virgulino; - estamos comendo a esmola que nos deram e vocês ficam contentes por não terem que reparti-la com os que tinham igual necessidade. Daqui ao Ceará é longe e Deus permita que não tenhamos de saber outra vez o que é a fome.
— Rogue bem pragas, você as sofrerá também.
Deram finalmente os primeiros passos da grande jornada, que as devia conduzir ao povoado, que lhes fora indicado na vendola e onde deviam encontrar alguns recursos.
A velhinha, que vinha por último no grupo, vendo os netos caminharem a rir, parou, como que para fazer também demorar dentro em si a agradável impressão que lhe causava o quadro e resmungou:
— Fossem dez, fossem vinte, fossem mil, eu os mataria todos!
Um estremeção violento abalou-lhe o corpo e ela seguiu apressada até incorporar-se ao grupo.
Quem passasse ao pé dos três cadáveres veria sob os espinhos a mãe com os dedos cravados no solo, muito esticada como se quisesse arrastar-se para ir empolgar a assassina.
Os bandidos, estacionados na vendola, foram uma providência para as desoladas famílias que deles se aproximaram.
Graças a eles a família Queiroz não experimentou, durante o seu trajeto até o pouso, os rigores da fome. Também dos lábios de d. Ana e das sobrinhas elevavam-se continuamente aos céus bênçãos aos desconhecidos, sempre que as míseras mulheres viam à beira da estrada cadáveres apodrecendo ao sol e servindo de pasto aos bandos de corvos.
No pouso, porém, as circunstâncias da desditosa família agravaram-se e a miséria, com todo o seu cortejo de horrores, confundiu-a com o resto da onda de retirantes transbordada da paróquia de B. V.
A princípio, o povoado em que se havia agora aglomerado a imunda enxurrada da desgraça, pareceu um oásis abençoado no meio do deserto. A comissão de socorros públicos tinha pelos desvalidos solicitude fraternal, e estes bendiziam o destino por lhes haver feito deparar com esse refúgio aos seus sofrimentos tremendos. Mas, pelo começo de novembro, o deserto veio suprimir este único abrigo e expulsar daí os miseráveis retirantes, vibrando contra eles os mais pavorosos flagelos.
Primeiro atirou sobre o lugar uma enfermidade semelhante à cólera e que trazia fatalmente a morte dentro em três dias, em seguida estancando as poucas fontes de que se abastecia a localidade.
À tarde, em torno das cacimbas, travavam-se lutas ardentes de que freqüentemente resultavam ferimentos e mortes. É que aqueles que conseguiam encher uma pequena vasilha tinham por esta ração o cuidado de um avaro pelo seu ouro.
O egoísmo da conservação mantinha a mais estreita espionagem para que houvesse igualdade na divisão, e não obtivesse tamina senão uma pessoa de cada família.
Durante as horas da maior aglomeração, entre todas as mulheres uma sobressaía a todas nas reclamações que de contínuo fazia. Não se contentava com se prover da sua ração, aí ficava de pé a denunciar e a exigir que se verificasse se este ou aquele não pertencia à família de um outro, que já havia obtido a sua porção de água.
— Vá com Deus, Mundica - diziam os circunstantes cansados de questões provocadas pela moça; - você gosta muito de tirar rusgas.
Mas a filha do sacristão Marciano continuava imperturbável até que todos se retiravam, levando a questionar todo o tempo da tamina.
A indisposição contra a Mundica era geral, mas ninguém ousava acentuá-la, porque murmurava-se que um dos membros da comissão de socorros tinha zelo demasiado pela moça e por todos os seus.
D. Ana sempre que voltava da fonte repetia às suas sobrinhas:
— Eu, se pudesse tirar água em outra parte, não iria mais à fonte. Aquela Mundica anda sempre a buscar ocasião de tomar vingança contra nós. E um precipício.
A penúria aumentava dia a dia, e crescia com ela o temor da honrada senhora que, para não dar pretexto à inspeção importuna de Mundica, deixava-se por último no tomar da sua ração de água.
— Há gente que fica sempre para o fim e, em vez de uma, tira duas, três vasilhas - disse Mundica, vendo d. Ana à espera.
— Pois faça você o mesmo - disseram alguns dos circunstantes -, é fácil.
— Vamos esperar mais longe; hoje ela quer pegar conosco por força - segredou d. Ana à Chiquinha -, e eu não quero trocar palavras com tal mulher.
A tia e a sobrinha quiseram afastar-se, mas a caçula, que chorava com sede, pôs-se a soluçar pensando que não teriam ração naquela tarde. Em vão tentaram consolá-la e conduzi-la, a criança não atendeu.
— Tire um pouquinho da minha água, d. Ana - disse uma das conhecidas da paróquia: - depois Vossa Mercê pagar-me-á.
D. Ana aceitou o oferecimento e a caçula pôs-se a beber.
— Vejam aquele conluio - gritou Mundica; - vem a velha, a sobrinha, cada uma leva a sua ração e, ainda por cima, outros tiram água para dar-lhes. Desta maneira não é admiração que fique tanta gente sem ter nem um gole para uma criança de peito.
— Está enganada - respondeu a mulher que obsequiara d. Ana; eu emprestei um nadinha da minha ração.
A vingativa rapariga tirou, da resposta decisiva que recebeu, argumento para confirmar o que afirmara, e discorreu chamando em seu auxilio testemunhas de todos aqueles que ela sabia respeitarem-na, pela circunstância de ser a amante de um dos comissários.
— Não é verdade que eu já tenho falado. Romualdo? -perguntou a um dos guardas da fonte, e voltando-se para outro: - não tenho eu notado sempre, Silvestre?
Os guardas que viam na menor hesitação o ódio de Mundica a perseguição e, finalmente, a perda dos lugares, que lhes garantiam os víveres para as famílias, responderam prontamente:
— Ser verdade, é, mas a gente fechava os olhos, porque, fim de contas, uma panela de água de mais ou de menos era o que secava a fonte. Demais era sempre por último.
— Qual a mesma coisa! - exclamou a filha do sacristão.
— Isto é um furto aos outros, e aqui não deve haver proteção para ladras. Eu lá as conheço desde B. V.
— Olhe que o melhor é você calar-se, Mundica - ponderou a mulher; - se houve alguém conhecido em B. V. foi você.
— E o que tem você com isto? A história não é consigo, seu caminho para não arrepender-se.
— Eu vou mesmo, não tenho filha moça e se tivesse, não era para fazer o mesmo que você faz.
— Diabos me levem, se você amanhã não amargar o que está para aí a ladrar, e depois aquelas comborças que a salvem...
O silêncio da família Queiroz irritou a agressora, que obrigar as agredidas a falar, continuou:
— Eu sei que há de haver quem repare em me ouvir dizer isto daquelas santas, mas é que não as conhecem. Aquela velha, que ali vêem tão beata no rosto, entregou a sobrinha mais velha ao vigário e depois veio para praça gritar.
— Pode dizer o que lhe vier à boca - soluçou d. Ana, e chamou as sobrinhas para se retirarem.
— Vejam se ela tem coragem para negar, vai-se embora; ao menos neste ponto mostra vergonha.
— Em B. V. todos conheciam, como mulher do vigário, você e não a sobrinha de d. Ana; todos sabiam que foi o velho Marciano quem entregou a filha, e não a irmã do professor. Camborça é você - gritou a mulher que fora involuntariamente causa do falatório de Mundica.
Todos os excessos, a que pode chegar uma língua desenvolta, foram proferidos pela filha do sacristão, certa do seu poder e da sua influência sobre a massa que a ouvia. A penúria geral fortalecia-a com o temor comum, de que uma detenção pela favorita do comissário condenasse famílias inteiras à morte pela fome.
Só a mulher que cedera a água às suas antigas amigas da paróquia ousou fazer frente à poderosa Mundica.
— Fale para ai, mulher à-toa - exclamou por fim; - você tem passado de dono em dono como um pangaré micuento; fale até que vá cair nalgum monturo.
Mundica, atirando fora a toalha e a vasilha que tinha sobre a cabeça, arremessou-se de encontro à mulher, não que recuou diante da agressão, mas antes respondeu-a desfechando-lhe um murro no ombro.
— Perdida por um, perdida por mil - bradou ela, e, contrastando com a cobardia da multidão perplexa em face de tanto atrevimento, atracou-se com a insolente provocadora.
Dentro em pouco a Mundica, que cravara os dentes no braço da destemida mulher, jazia por terra e era vigorosamente esbofeteada.
— Deixem, deixem que ela me faça sinais, eu mostrarei o que há de acontecer - gritou a agressora agora acovardada.
Como se só neste momento houvessem reparado na cena, os dois guardas que riam, como quase todos, das atitudes e gestos das duas lutadoras, puxando pelos seus rebenques - arma com que faziam a policia dos retirantes - arrancaram à força de golpes a mulher heróica de sobre a amante do comissário.
— Não é ela, eu não tenho nada com ela - bradou a vingativa filha do sacristão: - as criminosas estão ali.
Assinalou então as míseras d. Ana e suas sobrinhas, que se haviam detido em vão, para acomodar sua defensora.
— Fora com aquelas comborças! - gritou Mundica. - Fora com aquelas víboras!
— Fora, comborças! - repetiu a multidão, que via no partido das desgraçadas a fome e o desamparo. - Fora, com D. Ana e Chiquinha, aturdidas pela injúria que lhes era vibrada pelo clamor uníssono de mais de duzentas pessoas, não tiveram forças para retirarem-se, e limitaram-se a abraçar-se e a confundir as suas lágrimas e soluços.
— Olhem aquelas descaradas; ainda querem ficar! Não vêem? Querem ficar! Fora, comborças!
Os dois guardas caminharam até junto das duas infelizes, e, cegos pela subserviência, impelidos pelo temor da perda do emprego, repassados do egoísmo da conservação, levantaram os chicotes e, desfechando os golpes sobre as costas das duas indefesas, exclamaram:
— Vamos! Arreda para fora, cambada; aqui não há vigário como o de lá; todos são tão bons como tão bons.
Magoadas pelos golpes brutais, d, Ana e Chiquinha separaram-se e correram, deixando entregue aos vaivêns da multidão a mísera caçula, que soluçava e tentava acompanhá-las na carreira precipitada.
A grita, perseguindo insistentemente as fugitivas, as impeliu até a porta da sua mesquinha morada, onde um afago as esperou espontâneo e expansivo. Partiu ele do Amigo, o cão leal que preferiu à comezaina de alimárias mortas e ao tripúdio na podridão acompanhar os seus donos e comungar com eles a penúria e a vergonha.
Era ele o braço forte da casa. Ainda que as fomes repetidas o houvessem emagrecido, conservava-se corajoso e incansável, retribuindo com requintes de generosidade as pequenas ingratidões da família. Às vezes, quando a ração era menor, d. Ana e suas sobrinhas não se apiedavam do olhar ávido do Amigo, que assentado sobre as patas traseiras, agitando as orelhas, lambendo com a língua muita vermelha o focinho negro, suplicava-lhes um bocado. O Amigo, porém, não as esquecia nunca. Sempre que ia à feira e que podia afrontar as cóleras dos vendedores de carne, que desancavam os cães a cacetadas e pedradas, abocanhava algum pedaço e, em vez de devorá-lo, trazia-o para casa com a inteireza de um criado fiel.
Ao verem o único amparo que lhes restava, as duas fugitivas pararam de súbito e olharam-se arquejando, como se a dignidade de ambas aconselhasse-lhes uma vingança. Mas o cão fitou-as, rodeou-as, e depois de farejá-las, correu para o lado da fonte.
A multidão ria a bom rir, assobiando e chasqueando das pobres mulheres, que representavam a honestidade fugindo acossada pelo impudor.
— É como se lhes tira o fogo.
— Não há nada melhor para acalmá-las.
— Está bom, com esta lição elas nunca mais se hão de encrespar; perdem a proa.
— Não vê - exclamou Mundica -, isto é o começo; eu as conheço desde pequenas e sei das suas maretas.
O Amigo internou-se na mó latindo furiosamente, como se ele só quisesse dar combate a todos que o cercavam. Os olhos vermelhos, o ar de resolução, a ousadia do corajoso companheiro da família Queiroz assombraram, e um grito repetido por todos estrugiu propiciamente.
— Está danado! Ê um cão danado!
Dentro em pouco a aglomeração dissolveu-se pelo pânico e o Amigo corria ao encontro do grito fraco da mísera caçula.
D. Ana e Chiquinha, que muito mais que a afronta das vergalhadas sentiam a perda da infeliz companheirinha, ao verem-na de volta à casa, proferiram ambas a deliberação única a tomar:
— Vamos deste maldito lugar!
E d. Ana acrescentou:
— Antes que a vingança daquela fera se estenda até esta coitadinha.
Na manhã seguinte as desgraçadas filhas e irmã do honrado Queiroz deixavam o pouso insultadas e indefesas.
A cena da fonte foi a conversação de todo o dia, e a fama do poder de Mundica circulou não só pelo abarracamento dos retirantes, mas até pelos interiores mais recatados das casas do lugar, despertando viva curiosidade.
O próprio vigário, que era um qüinquagenário, sentiu desejo de conhecer essa formosura que assim se impusera ao ânimo do seu amigo comissário, um homem viúvo e que merecia a geral consideração.
“Deve ser uma flor” - ponderou o pachorrento vigário Belmiro d'A... -, hei de ir vê-la para ver se a trago ao seio da igreja.
À tarde conseguiu encontrar-se com o comissário e foi com ele até o abarracamento, a conversar indiferentemente sobre a seca. Chegados, porém, o vigário, cuja reserva a respeito da conversação obrigada do dia lisonjeava muito o comissário, acometeu-o de frente.
— Onde é que está a favorita?
O tom de que se serviu, porém, era tão doce, tão atencioso e sacerdotal, que o surpreso comissário apenas pode desculpar-se com uma negativa banal.
— Ora, todos têm a sua fraqueza - disse o vigário; - afinal de contas você comete a penas um pecado venial.
O comissário, cedendo à amabilidade do pároco, conduziu-o até o cubículo em que residiam Mundica e a sua família.
— Cá está o sr. vigário, Mundica - disse o amante enfatuado pelos gabos que ouvira à beleza da preferida; - vem repreendê-la, como eu já o fiz hoje, pela sua briga de ontem.
Entraram os dois, e Mundica, com a afetada docilidade a que se afizera para domar os ímpetos do vigário Paula, veio cumprimentá-los.
— Contam sempre demais, sr. vigário; deve-se sempre partir ao meio o que se ouve.
— Mas ainda assim...
— É porque Vossa Mercê não sabe; são queixas velhas.
Toda a família da amante do comissário veio fazer sala a tão ilustre visita, e a velha mãe, vaidosa por gozar um momento da sua vida de outrora, ouvindo em casa a voz de um padre, mostrou um por um todos os filhos.
— Esta já está mocinha, já mulher também.
— E bem mostra que é irmã da Mundica - acrescentou o comissário, sorrindo-se para o vigário.
— É uma família de formosuras - ponderou judiciosamente o qüinquagenário, que passou a sua boceta à velha mãe.
A visita foi pouco demorada e os dois hóspedes retiraram-se sem que a repreensão, que dera-lhe pretexto, fosse formalmente feita. De volta para o povoado o pároco, buscando rodeios evangélicos, desfiando frases sentimentais, chegou finalmente ao que parecia ser o alvo das repetidas considerações que fazia sobre a família.
— E, diga-me cá, a pequena, a Amelinha também já terá a desgraça de ser como a irmã?
O comissário, fingindo não compreender a razão da pergunta, respondeu distraidamente:
— Homem, para lhe dizer a verdade, não sei; o que me parece é que ela não o é, porque não pôde; porém, mais dia menos dia...
— É; em tempos de calamidade é muito difícil que a pobreza possa conservar-se pura. Lá diz o rifão: "Quando a necessidade bate pela porta da frente a virtude sai pela dos fundos”.
— Se efetuar-se o que se diz do novo presidente, eu não lhe dou uma semana. Aquela gente não conta muito com estas coisas. De brio eram a d. Ana e a tal Chiquinha, e essas morrerão à fome antes que cedam a honra.
— Para estas épocas não servem...
— Está claro, por melhor que seja o coração, não gosta de ver orgulhosos na miséria. Eu não sei o que vai ser delas. É verdade que, de uma hora para outra, muda-se tudo, e a Chiquinha não deixa de ser bonita. Boa noite.
— Boa noite, eu já sei que tem ainda muito que fazer no abarracamento.
Riram-se ambos e separaram-se.
O vigário, que estava próximo à casa, dirigiu-se para ela pachorrentamente pensando consigo que era bem bom ser como o comissário, um viúvo rico e respeitado. Quanto a si era pároco, devia manter-se pelo menos cauto, sem sequer lançar um olhar indiscreto, e quando muito saboreando no silêncio algum pomo caído da árvore da vida.
Abeirava a entrada da sua habitação, absorto neste cogitar, quando um homem todo vestido de couro com um lenço de Alcobaça atado ao rosto, tomou-lhe o passo e cumprimentou-o pelo nome.
— Boa noite - respondeu o vigário com a secura do mau humor de quem já está cansado de dar pousada a desconhecidos.
— Vossa Reverendíssima pode dar pousada a um colega?
— Esta casa recebe sempre como irmão os membros do meu santo ministério..
Contrastando com a cordialidade das palavras, o olhar do pároco fitou penetrantemente o desconhecido, a quem fez entrar guardando alguma distância. Dentro, via-se nas feições de Belmiro d’A... um ar de incredulidade e o passar célere de um pensamento assustador.
"É talvez um ladrão, ou algum impostor que invoca o nome da minha classe para desfrutar-me.”
O desconhecido, porém, ainda que percebesse o embaraço do seu hospedeiro, conservou a imperturbabilidade de quem fala a verdade.
— Vossa Reverendíssima não pode acreditar que eu seja seu colega, e é de feito incrível que um sacerdote da nossa santa religião veja-se reduzido à miséria de andar descalço. Leia, porém, estes papéis e convença-se.
Passou um maço de papéis ao vigário, que, negando-se polidamente o suficiente para prolongar uma insistência, pôs-se a ler.
— É então o vigário Paula, de quem tenho ouvido falar? Ali de B. V., não? Disseram-me, com efeito, que havia abandonado a paróquia.
— Que remédio; a calúnia pode tudo neste mundo e eu fui uma das suas vítimas.
Desfiou longamente, adulterando-os, os fatos que agitaram tão desastradamente a paróquia de B. V., e tanta foi a perícia com que o fez que Belmiro d'A... comoveu-se até as lágrimas.
— É um povo endemoninhado - comentou o qüinquagenário; - merece bem a calamidade que o tortura.
— Em dobro - murmurou Paula - e eu, onde quer que os veja, hei de fazer-lhes a guerra que a nossa santa igreja aconselha. Árvore que não dá bons frutos corta-se pela raiz.
— E eu que me condoía tanto da sorte dos que estão por aqui pousados.
— Ah! Eles estacionaram aqui? - perguntou Paula perturbado. - Pois bem - acrescentou , espere pelas conseqüências, não lhe dou muito tempo que não haja barulho.
— Eles já deram o pano de amostra; ontem duas das mulheres já obrigaram os guardas do abarracamento a acabar com uma briga e por meio dos rebenques.
— E os chefes das famílias consentiram?
— São de famílias sem chefes, uma d. Ana e uma... Mundica, gente à-toa.
Os nomes das duas mulheres, tão conhecidos de Paula, fizeram-no estremecer e o pároco, reparando na comoção do colega, perguntou-lhe:
— Conhece-as?
— Ah! Bem sabe que nós os vigários conhecemos todos os fregueses.
— Pois foi com elas o fato.
Paula abaixou a cabeça e pôs-se a olhar consternadamente para o solo, enquanto Belmiro d’A... narrava outros acontecimentos da sua paróquia. Quando houve uma pausa, perguntou o hóspede:
— E a d. Ana foi também castigada com rebenque?
— Ela e a filha foram as escovadas, porque foram as que provocaram o conflito.
— É impossível - exclamou Paula; - se as conhecessem não lhes fariam esta injustiça, são incapazes.
— Pode ser - respondeu Belmiro d'A... - mas o caso é que elas chucharam e bem caladinhas.
— Pois eu hei de vingá-las.;
— Seria em vão tentar; a Mundica é a amante do comissário e já vê que é ela quem tem sempre razão.
— Deve ser assim - murmurou Paula, mordido pelo despeito -, as mulheres como estas são as que encontram defensores. D. Ana e sua sobrinha são honestas. Sabe o colega dizer-me onde elas estão?
— Partiram, segundo ouvi do comissário; sabiam que nada mais teriam no abarracamento.
— Víbora, eu te castigarei - resmungou Paula pensando em Mundica.
Certo de que tratava com um colega, o pároco Belmiro esmerou-se na hospitalidade e em breve anunciou a Paula que não tardaria a ceia.
— Quem sabe se não queria tomar primeiro um banho? -. perguntou.
— Sem incômodo.
Temos tido uma falta de água enorme; a fonte não dá para que cada retirante possa ter uma panela de água por dia. Mas isto não quer dizer que eu não tenha até para dar de beber e lavar o meu cavalo.
— Em compensação cuida das almas desses desgraçados - ponderou Paula no seu tom irônico; - falta-lhes água, mas lhes falta a palavra de Deus.
— Já está posta a água, e lá no quarto encontrará roupa branca e chinelos. Sempre hão de agradar-lhe mais do que esta véstia de couro e trazer os pés descalços.
Isto é um acolhimento de Marta a Jesus.
— Se quiser barbear-se, tem lá estojo.
— Quanto a isto agradeço-lhe, fiz voto de conservar-me assim até que fale ao bispo.
— Sempre faz mais efeito.
Riram-se e Paula entrou para o quarto de onde voltou pouco depois vestido com a roupa do colega, rindo-se com a satisfação de quem se sente bem.
— A mortalha é menor que o defunto - disse Belmiro - mas ainda assim não deixa de servir.
— Muito a gosto.
— Vamos à ceia.
A mesa do pároco estava resplandente confrontada com a penúria geral, e Paula acentuou bem a impressão de que recebera com tanta magnificência.
— É uma hospedagem real.
— É unicamente a boa vontade de um pobre colega. Sirva-se dessa galinha ensopada, não deve estar gorda, mas também só temos por aqui o milho do governo.
— Pois é o suficiente para engordar bem a criação.
— Qual, os retirantes são uns miseráveis esfaimados que comem quanto milho vem. Aos meus cavalos só posso dar ração duas vezes ao dia.
— Desta maneira o pobre animal talvez não resista à seca...
— Não pode ser mais; temos de dar a essa gente todas duas rações por semana, e é preciso que vá um pouco de milho para o mugunzá. Há de ver como esses demônios estão nutridos, ao passo que os meus pobres animais emagrecem.
"Este é que faz bem", pensou Paula; "eu não tratei de arranjar-me, trabalhei para o bispo."
— Aquele assado, padre, não deve estar mau, porém beba deste vinhozinho que é assim, assim.
— Porto, hein? Tem disto por cá?
— É do que vem para a dieta dos doentes, e eu fiquei com as sobras. Também eles nunca tiveram tais dietas, não lhes faz nenhuma falta. Prove.
— Não o bebia, há mais de ano; lá por B. V. já não aparecia nada semelhante. Boa pinga - disse Paula, escorropichando o cálice.
— Se não houvesse estes achegos, colega, não havia quem aturasse a canalha que tem descido do sertão. É para fazer cabelos brancos. Sujos na vida, hediondos na morte; vivem na imundícia como as varejas, e morrem como gado pesteado. Eu não tenho outra vida senão ungi-los e encomendá-los. São uma praga.
— E não há esperança de que se ponha uma barreira a este dilúvio de gente?
— Nós temos alguma esperança; com a falta de água é quase certo que eles emigrem.
— O melhor é apontar-lhes a capital, que vão para lá.
— Aqui eles não ficam nem mais uma semana; a fonte não dá água para tanto tempo e o povoado não há de morrer à sede por amor de uma canalha.
— Quanto aos de B. V., juro sobre os santos Evangelhos, não valem uma pitada de farinha.
— Nem a Mundica? - sorriu o qüinquagenário. - Por esta eu era capaz de dar um saco.
— Eu também não me negaria, para matar algum tempo.
— Você está mais que autorizado a dizer, eu já sei que foi o feliz...
— Infelizmente não; já era país descoberto.
— Mas você tratou-a então como país conquistado.
— Lá isto não contesto, mas era o meu direito.
— E a irmãzinha? O que me diz? Tem um arzinho, um não sei quê...
— Pode-se aproveitar para espairecer depois de uma confissão.
Continuaram a mastigar, a beber e a alegrar-se conversando sobre as moças do abarracamento, mas o vigário Paula conservava-se impressionado, apesar da licença das palavras do colega. Com a sua habilidade natural foi conduzindo de novo a conversação à briga de Mundica e d. Ana, e afinal ao ponto em que desejava tocar.
O colega confessou alguma vez a família de d. Ana?
— Não; ela mostrava-se muito esquiva para a igreja, e eu só vim a saber o nome da velha ontem depois da briga.
— Então não conhece ninguém da família?
— Não; sei apenas que ela compõe-se da velha, de uma mocinha dos seus 15 anos, duas meninas já crescidas e uma pequena.
— E quem lhe disse é pessoa que as conhecesse bem?
— Foi o comissário, que sabe o número das pessoas de todas as famílias, porque tem de distribuir as rações.
— Afiança-me então que não havia mais ninguém?
— Afianço pela informação do comissário, mas você que é da paróquia e que conhece a pequenota mais velha...
— Infeliz - murmurou Paula - Talvez esteja morta.
— O que é que me diz da mocinha?
— Que é uma virtuosa menina, e que hei de fazer-lhes o bem que puder.
— Então é deitar-se a correr pela estrada fora; porque no andar que levam, com as costas a arder, devem estar longe.
Paula reconcentrou-se. A frieza do colega irritava-o, porque vinha contrastar-lhe a espontaneidade da compaixão, para com aquelas a quem havia condenado a tão profundos sofrimentos. Em vão o Rev. Belmiro prodigalizava ditos com pretensões à graça, Paula apenas sorria e respondia ao que era obrigado. — Ite, missa est - exclamou por fim Belmito, levantando-se.
— Deo gratias, - respondeu Paula e acompanhou o colega, que o conduziu à porta do quarto.
— Durma em paz, amanhã mostrar-lhe-ei a gente da terra. Há de gostar de ver, depois da ausência, a formosa Mundica.
— Agradeço-lhe o favor, mas não posso aparecer a todos, antes de haver falado com o sr. bispo. Não quero dar azo a que a calúnia de novo se levante.
— Faz muito bem, mas eu cá não lhes dava a menor importância. O que pode valer uma queixa de retirantes?
As últimas palavras do vigário Belmiro ficaram ressoando como um suave consolo nos ouvidos de Paula.
A crueldade de Mundica, porém, a barbaridade da sua vingança, que se estendia de Eulália a toda a família Queiroz, o valimento de que ela gozava junto do comissário, que era rico e respeitado, assomaram na memória do foragido como tremenda ameaça. Demais a consciência não cessava de acusá-lo pelo desbarato da paróquia, e noites inteiras passava-as ele a debater-se contra larvas que vinham afear-lhe a insônia. ,O espectro de Antão Ramos, principalmente, não o deixava descansar, perseguia-o de contínuo, pedindo-lhe conta do destino da sua família, para quem o malsinado vendeiro acumulava em ouro os remoques e humilhações, que lhe custavam a usura. Horas e horas, com a impassibilidade de uma pêndula, a sua consciência levava a perguntar-lhe pela mulher de Antão Ramos e pelos filhos, e a imaginação, tremendo juiz que não dorme, que não se suborna, desdobrava-lhe quadros medonhos como resposta.
A visita que por ele tinha sido feita à vendola, quando Antão Ramos desanimara no meio da empresa do incêndio do engenho; aquele quadro de felicidade doméstica - a mãe e o filho são e robusto, o pai a convalescer entre carícias - transfigurava-se numa cena horrorosa. A mulher deixava-se cair encostada a um arbusto desfolhado, à beira da estrada afogada em sol, deitava nos lábios da criança o seio nu, mas este estava árido como um rochedo, e o quadro era agora triste, porque era a esterilidade amamentando um esqueleto. Para maior horror, Paula via ainda por detrás de si o espectro inexorável de Antão Ramos, que o segurava com o aperto do remorso e o violentava a contemplar a consciência da sua obra.
— Hei de vingar-me! - exclamava o desgraçado acordos medonhos pesadelos. - Nela e nos seus.
A vingança, porém, espaçava-se. É certo que Marciano já não existia; que entre os destroços da carnificina Paula o vira, mas não era só ele o autor da sua perdição. Dias e dias tinha-os passado espreitando as estradas para encontrar Mundica, e vira perdidas as suas emboscadas, em que por vezes correu o perigo de ser reconhecido... Hoje a encontrava, forte e poderosa, e perguntava-se assombrado o que devia fazer para saciar a sua vingança, cujo desejo era tamanho como o de Mundica para com Eulália.
Uma chegada inesperada deu-se na mesma noite a oito léguas de distância da localidade em que Paula cogitava nos meios de prejudicar a sua ex-amante.
O velho Inácio, ouvindo um assobio, correu à porta com a precipitação do subalterno que vai receber o chefe.
— Homem, esta chegada de sopetão causa-me susto e alegria: novidade no povo ou caça gorda?
— Uma trapalhada - respondeu Virgulino, apeando precipitadamente; - antes de tudo notícias da d. Eulália.
— Sempre triste, quase à morte, a arrastar-se pela casa, a chorar sem consolar-se.
— Já soube então da desgraça?
— Logo que melhorou, não foi possível enganá-la e, como parece que só vivia para o filho, sofreu um golpe, que por pouco não a levou para a cova.
Virgulino tratou de espairecer a impressão que lhe causaram as palavras do velho, e, mudando bruscamente de tom, pediu com uma prazenteria afetada que lhe dessem de jantar.
— Venha isto depressa: comi de manhã e só agora paro; venha comida para meia dúzia.
— Bravos - exclamou o velho - já vejo que não nos traz más novas; o apetite é o companheiro da alegria.
— Olhe, não precisa dizer quem está, por hoje, amanhã tenho tempo para falar com a dona. Sempre é ocasião - resmungou - para dar más notícias.
Inácio não demorou em vir ter com o seu chefe, na saleta, que era destinada aos superiores da quadrilha, e, para merecer-lhe uma palavra amiga, deu-se logo pressa em comunicar-lhe que a família de Eulália tinha sido acolhida por ele da melhor maneira.
— Conheceu lá em B. V. a família da dona, não é verdade?
— A d. Ana e quatro sobrinhas.
— Estão de luto.
— Não estavam, quando lá estive.
— Pois estão agora; conheci pelos rostos; têm todos os mesmos traços, e conhecendo-as não tive mãos a medir; dei-lhes o que pude. Fiz bem ou mal?
— Muito bem, velho Inácio; eu dou por elas até a vida.
— Eu logo percebi.
Virgulino pôs-se a jantar sem responder á tagarelice do velho, que se estendeu em gabos ao próprio procedimento.
— Elas não me disseram nada - acrescentou ele -, nem cá a dona confessa que tem parentes, mas eu disse comigo:
são negócios de família e todos têm lá as suas razões. Eu é que não posso fechar os olhos e fingir que não vejo o que é claro como água, e por isso fiz o que me deu na cachola. A senhora velha veio oferecer-me uns ouros e deixava-os comigo por um dez réis de mel de furo. Percebi que grande necessidade havia para que uma mulher sabida não desse apreço a ouro e não tive mais auto de pergunta, dei o que pude: comida, pousada, matalotagem.
— Pena é que não possamos, dentro em pouco, continuar a fazer o mesmo - murmurou Virgulino, que empurrara os pratos para o lado; - isto está para findar.
— Como para findar? - perguntou Inácio, que veio acocorar-se em face do chefe.
— É uma história muito comprida; mande vir primeiro café.
O vendeiro saiu ansiando de curiosidade e voltou depois de uma breve demora.
As palavras de Virgulino feriam-no fundo.
Estava velho, e havia longos anos vegetava tranqüilamente na sua vendola. As velhas prateleiras, os caixões vazios, as garrafas e botijas vazias, que apenas serviam para o cenário do pequeno teatro em que estreitamente ganhava para subsistir, tudo que ali estava, a velha balança de conchas de folhas-de-flandres, os copos esverdeados, o balcão tosco e encardido, queimado pelos tições de fogo, os bancos desconjuntados em que os ociosos vinham deitar-se para passar a sesta; tudo fazia parte de si, do ambiente indispensável para que respirasse bem a sua velhice.
Um dia o Onça entrou-lhe pela casa com o atrevimento dos bandidos, e riu-se desaforadamente da sua pobreza.
— Tem família, velho? – perguntou-lhe o Onça.
Como lhe respondesse afirmativamente, o celerado sacudiu os ombros e apontou-o a um dos companheiros com uma exclamação compassiva.
— Era ver que tinha família. Morre para aí, mais dia menos dia, e afinal os filhos ficam a dormir sob os pés de pau e a comer raízes.
— Sua alma, sua palma - respondeu o outro.
Mais tarde, Inácio, que se assustara com os modos do Onça, e que se pusera à espreita, ouviu dizer:
— Este lugar é magnífico; se o velho quisesse fazer negócio, eu dava-lhe até dois ou três contos de réis.
A ambição fê-lo esquecer todo o seu passado de tranqüilidade e de honradez, e desde aquele momento resolveu aceitar a proposta que lhe fizesse o Onça, fosse embora a perpetração de um assassinato.
O chefe de um dos grupos dos Viriatos não era homem de recuar diante de nenhuma empresa; o dente das cascavéis tinha-o ensinado a arrostar a morte e aquela alma obcecada não conhecia nem mesmo o temor do túmulo. Dirigiu-se sobranceiramente ao velho Inácio, por uma frase concisa como o golpe de um estilete, a qual o velho nunca mais esqueceu.
— Vou lhe propor um negócio, é segredo entre nós; se você der à língua, morre.
Propôs-lhe que lhe cedesse a vendola, mas continuasse a figurar como dono. Os Viriatos vinham fazer excursões por ali e precisavam de um lugar e de uma pessoa contra a qual não recaísse suspeita. Não podiam achar outro em melhores condições, nem ponto mais seguro. Inácio, conhecido por todos como um velho trabalhador, econômico e sério, garantiria com a sua continuação na vendola a paz e a vida da quadrilha.
— Quer aceitar? Tem dois contos de réis! - e como o velho hesitasse - Mais um, e não paga o que comer. Serve?
No mesmo dia o velho irrefletido recebia das mãos do Onça o preço de toda a sua vida de probidade, e assentava praça nas fileiras da reserva do exército dos Viriatos.
A nova de que ia dissolver-se a quadrilha causava-lhe portanto dupla dor. De um lado, o despertar da vida criminosa que desde então começou a levar, sem outra contrariedade que não fossem alguns assomos de mau humor do Onça, que eram rápidos e afinal rendiam gorjetas. De outro lado a possibilidade de que o segredo, guardado por ele tão discretamente viesse a divulgar-se, e assim os seus cabelos brancos aparecessem publicamente manchados pela poeira de correrias de ladrões, de quem ele era o couto.
— Cá está o café, Desempeno, cá está, tome-o e fale-me pelas 11 mil virgens.
— Está quente, meu velho - sorriu Virgulino chupando um gole; - isto não é por ora sangria desatada.
— Se quer preparar-me para o golpe - resmungou o velho - eu estou pronto para o que der e vier.
— Qual! Não é nada para desanimar. Nós somos muito felizes, não caímos assim. Escute.
O velho Inácio colocou-se em frente do bandido, e posse a ouvir sem pestanejar.
— Lembra-se de que nos mandaram chamar a toda pressa? - perguntou Virgulino. - Era para dar um assalto em regra nas beiradas do Crato. Foi bonito! Velho Inácio, coisa limpa! Era chegar, amordaçar e apanhar o que havia, e tudo ligeiro como a correnteza de um rio cheio. Começou a brincadeira ali pelas oito horas da noite e, ao romper do dia, tínhamo-nos aviado por mais de uma légua em redor. Estávamos todos alegres e era caso para a maior alegria...
— Dia de muito, véspera de pouco.
— O Pedro, aquele endemoninhado, cuja língua o Onça tantas vezes quis cortar, veio transtornar tudo.
— Aquele pernóstico! Aqui é que ele nunca me entrou - disse Inácio, levando a mão ao peito; - não sei o que me palpitava cá.
A conversação demorou-se por algum tempo sobre as qualidades de Pedro. Era um rapazola, muito blasonador e espinhado. Gastava a maior parte do dia em contar proezas, e aí mesmo na vendola, Inácio tinha-lhe ouvido dizer que a sua faca ainda cheirava ao sangue derramado no assalto da véspera. Poucos eram os companheiros que o estimavam e muitos relevavam que, de há muito, era plano dele dividir a quadrilha e proclamar-se chefe de um grupo. Temerário até a loucura, tinha na sua curta vida de bandido ações bastantes para captar a boa vontade dos companheiros pela valentia, e por isso mesmo estes, receosos de cegarem-se por esta eminente qualidade do rapazola afastavam-se dele alegando os seus defeitos.
Pedro percebia a animadversão geral; mas não desanimava e sobretudo, para conservar-se inabalável na sua empresa de coroar-se chefe, odiava de morte não só os cabeças de turmas, mas também o chefe supremo da quadrilha.
— Pois o Pedro - continuou Virgulino - incumbiu-se de tornar um dia triste o da nossa maior felicidade. Havia muito tempo - acrescentou ele - denunciavam-no sempre como pouco fiel. Diziam muitos companheiros que ele guardava sempre para si metade do que podia obter nos assaltos.
— Infame! - exclamou o velho. - Como se todos não corressem igual risco.
— O Onça - prosseguiu o chefe -, quis muitas vezes castigá-lo; mas eu detinha-o sempre e fazia com que não se criassem ódios entre nós. Enfim, no Crato, a coisa foi feita sem jeito, e um dos companheiros viu-o esconder um faqueiro de prata, que só ele dava para um homem ficar contente consigo. O Onça não esteve mais para deter-se, e o castigo não se fez esperar.
— Sem desfazer nos outros, aquele Onça é que é sempre um pedaço de homem.
— Para dar um exemplo aos outros, o nosso chefe deu-lhe sentença de morte se ele não declarasse onde havia escondido o que já havia roubado aos companheiros. A certeza de que morreria fê-lo confessar, e a primeira coisa que soubemos foi que a minha bolsa estava com ele, e, portanto, que foi quem atacou d. Eulália.
— Veja que valentão que dá assaltos a uma mulher que vai sozinha por uma estrada!
— O Onça não lhe pôde perdoar isto, e, mandando amarrá-lo, fez o que nunca se tinha feito entre os Viriatos: surrá-lo.
— Isto é que é saber governar. Aconteça o que acontecer, a surra já ninguém lha tira e ele precisava bem dela.
— No dia seguinte, meu velho, você talvez não dissesse o mesmo lá no Crato. Pedro conseguiu o que talvez fosse
impossível conseguir em toda a sua vida: dividiu o povo dos Víriatos. Mais de 60 companheiros fugiram com ele e deixaram espalhadas pela estrada cruzes para dizer-nos que nos faziam guerra de morte.
— Se o medo é este, Desempeno, eu não o terei nunca. Pinga de urubu não mata rês gorda.
— Aquilo é falso como Judas, e de emboscada pode fazer-nos todo mal possível.
— Faz a alguns, não faz a todos.
— E se em vez de nos combater a punhal, ele for à justiça?
O velho Inácio ficou estatelado a olhar para Virgulino. A justiça era a sociedade inteira, e justamente diante desta não queria o velho Inácio aparecer tal como era. Fizera-se criminoso para garantir a felicidade dos seus, tinha filhas e o futuro delas foi o conselheiro mau, que o levou à transação ignóbil com o Onça. Ouvir falar em justiça, era para ele a evocação de todo o seu passado iluminado na sua pobreza pela honestidade, tranqüilizado na sua parcimônia vizinha da penúria pela consciência de que ninguém o amaldiçoava.
— É verdade que Pedro tem uma ambição imensa, e talvez ela o convença de que o melhor caminho não é ir à justiça - respondeu Virgulino.
— Acertou, ele não cai nesta.
— Mas - acrescentou Virgulino - ele pode muito bem pensar que, denunciando-nos, fica-lhe mais campo para as suas façanhas.
— É também certo murmurou Inácio. - A verdade é que o diabo do cabra dá-nos água pela barba.
— Há de custar, mas para isso é preciso andar depressa. Esta venda, por exemplo, deve desaparecer daqui.
— Eu nada posso dizer.
Estas palavras foram proferidas com tamanha tristeza que o bandido não pôde furtar-se à fraqueza de comover-se.
— Isto não quer dizer que você não a possa reabrir mais tarde, se nós conseguirmos dar caça ao Pedro. Nestes três dias, o mais tardar, tenho notícias.
O velho Inácio baixou os olhos submissamente. Quando, seduzido pelo preço que lhe oferecera o Onça, vendeu a sua propriedade, a alucinação momentânea não lhe deu tempo de meditar e por isso mesmo nada sentiu. Demais soube logo que não teria de sair dali e, por isso, não teve ocasião de avaliar a estima que tinha à vendola e ao torrão em que ela estava situada. Agora que recebia ordem de abandoná-la, embora com a esperança de que a ausência seria temporária, todos os seus sentimentos sublevavam-se, Parecia-lhe que a vendola e as árvores e tudo da localidade estava assentado e arraigado no próprio coração, e que as palavras de Virgulino eram golpes cruéis desfechados para arrancá-los.
— Mil raios partam aquele traidor! - bradou o velho.
— Eu não sei o que vai ser esta novidade para a minha velha.
— Eu também não tenho coragem de dizer a d Eulália que ela deve partir.
— Ela será a primeira a pedir.
— Mas eu terei de consentir, e depois que perdi a esperança de reunir-me aos meus, essa moça tomou-lhes o lugar.
A conversação, arrastando-se de tristeza em tristeza, continuou por algum tempo, mas acabou bruscamente por uma observação de Virgulino.
Seja o que for, enquanto eu tiver mãos hei de fazer valer a minha faca e o meu revólver. Depois, ninguém me conhece e eu saberei fugir.
— Eu sou infelizmente conhecido de todos - resmungou o velho Inácio e fitou atentamente o seu chefe.
Separados, Virgulino alquebrado pela fadiga fechou-se por dentro, tirou a máscara com que se disfarçava e adormeceu prontamente, como se nenhum sentimento o oprimisse. Inácio, porém, retirara-se vagarosamente, parando, levantando os olhos para o teto, como quem vai cogitando de coisas' tristes. Não se recolheu logo, ficou a passear pelo terreiro, e por duas vezes veio até a porta da saleta, diante da qual estacava e ficava a mirar-se com o olhar de quem duvida da sua própria ação.
— É preciso que, a sofrer, soframos todos, não haja desconhecidos entre nós.
Virgulino dormia já profundamente, quando o velho Inácio foi acomodar-se repetindo a sua frase igualitária, que por si só era um crime gravíssimo diante dos estatutos da quadrilha.
Na manhã seguinte, ao encontrarem-se, o velho Inácio tinha o semblante de tal maneira demudado que o chefe não pôde furtar-se a perguntar-lhe a causa.
— A justiça ainda vem longe, velho, não vale a pena adiantar sustos e pesares.
— Você fala assim, Desempeno, porque ninguém lhe poderá dizer fora daqui: você é dos Viriatos. Esta máscara...
— É verdade; mas não a deixarei antes de ver que tudo está perdido; ao passo que você pode hoje mesmo abandonar-nos.
Inácio não teve coragem de levar mais longe a sua queixa temerária, porque o tom de Virgulino, ordinariamente despretensioso, adquirira a altivez própria de um rude superior.
— Como está a d. Eulália? - perguntou o bandido. – Já se levantou?
— Ainda não sabe que você está conosco.
— Melhor, diga-lhe você primeiro que os meus negócios vão mal, que eu estou aqui muito desanimado. Eu afasto-me; não tenho coragem para ser o primeiro a dar-lhe causa para dizer que parte.
Internou-se pelo capoeirão, que perto da casa amarelecia e desfolhava-se ao rigor persistente do verão. Caminhou a esmo, sem destino, como se fugisse para não mais voltar; mas, afinal, sentindo-se fatigado, reparou para as árvores em roda, e, sentando-se a olhar e a desmanchar o cigarro, disse distraidamente:
— Estou perto da Encruzilhada, bem longe da vendola. De feito, a alguma distância de Virgulino, duas picadas se cortavam e, aí bifurcando-se uma e a outra dividindo-se em três, formavam uma espécie de leque espalmado por entre a vegetação, em face do qual o viajante pouco prático difícil poderia atinar com a direção.
— Aqui é preciso uma sentinela - murmurou Virgulino batendo na cinza do cigarro; - se não andarmos alertas, estamos perdidos.
Sucederam-se os minutos, os quartos, as horas e, não obstante, o bandido persistiu, ora sentado, ora deitado, já fuzilando fogo no isqueiro, já cortando com a ponta da faca os arbustos em roda. Dir-se-ia que ele tinha sido acometido de um ataque de idiotismo, ao vê-lo assim esperar sem causa e por tanto tempo em um lugar, onde não podia contar que passasse uma só presa, porque as picadas só eram conhecidas dos mateiros e dos bandidos.
Cerca de cinco horas depois da parada de Virgulino, uma pessoa apareceu no extremo visível do caminho, e o bandido, que tinha os olhos voltados para este lado, sorriu e murmurou:
— Dizia-mo o coração, miserável! Enganou-me! Vai pagar a tua ousadia!
Rápido e sem ruído como o rastejar de uma cobra, Virgulino levantou-se e foi postar-se em um dos ramais da encruzilhada, acocorado como um tigre, e com a faca desembainhada.
O caminheiro, andando com a ligeireza cearense, em breve ganhou a grande distância que o separava do ponto em que Virgulino se emboscava, e, chegando em face da encruzilhada, parou a olhar para as árvores. Esta demora, que dizia claramente que o apressado caminheiro aplicava instruções que recebera acerca do caminho, alegrou muito ao emboscado, que sorria, enquanto o caminheiro, tirando o isqueiro, fuzilava fogo.
De um salto, Virgulino, que havia embainhado a faca veio cair sobre o desconhecido, desfechando-lhe sobre a omoplata um murro formidável, que o fez vacilar e para logo cair ao choque do corpo do agressor.
— Onde ia você? - perguntou, apontando ao peito do agredido o revólver engatilhado: - Fale ou morre!
Houve uma hesitação da parte do caminheiro, e Virgulino continuou:
— Não procure ocultar que pertence aos rebeldes do Pedro; só eles poderiam ensinar-lhe este caminho, que vai dar justamente numa entrada falsa da venda: responda ou eu faço-lhe fogo! Fingiu que ia apertar o gatilho, e acrescentou:
— Morre por sua conta; eu bem lhe dei meios de salvar-se.
— Não descarregue, que eu lhe direi tudo; entrei apenas há três dias para o serviço de Pedro e não quero morrer já.
— Fale então.
A voz trêmula do emissário revelou, a titubear, o plano grandioso de Pedro. Entraria ao lusco-fusco pela cerca e ir-se-ia esconder na vendola, e à noite assassinaria Virgulino e em seguida o velho Inácio, que seria acordado e chamado pelo assobio da quadrilha dos Viriatos.
— E depois? - perguntou Virgulino.
— Eu obrigaria a família do velho a dar-me o que tivesse e deitaria fogo à casa.
— Infame traidor! Enganou-se por esta vez - exclamou o chefe e perguntou: - onde está esse infame?
— Não posso dizer - respondeu o caminheiro; - você, que é chefe, sabe que eu prefiro morrer a denunciar meu chefe.
— Mas o seu chefe sou eu, e você não faz mais do que me dizer onde pára um rebelde.
— Não, o meu chefe é Pedro; mate-me se quiser, mas não ouvirá de mim nem uma palavra que o condene.
— Morra, pois que assim o quer.
A detonação ecoou longe, mas a bala não ofendeu o agredido, porque Virgulino propositalmente desviara a pontaria.
— Vamos, responda, não me obrigue a mandá-lo para a casa do diabo; salve-se enquanto é tempo.
— Não - insistiu o agredido; - não denuncio o meu chefe.
Virgulino olhou fixamente para o bandido e exclamou:
— Você é um homem de coragem, não deve morrer!
O caminheiro, que se conservou estoicamente severo ante as ameaças, encolheu desdenhosamente os ombros, vendo que o chefe detinha-se em face da sua coragem.
— Veja em que fica? - disse ele. - Abrevie isto.
Virgulino, que continuava confuso pela ousadia deste homem - principalmente porque, desarmando-o, reconheceu que ele vinha atacar a uma casa de bandidos e trazia por única arma a sua faca -, não se irritou com a provocação e ao contrário ponderou-lhe amigavelmente:
— É pena que você desperdice tanta coragem com tão ruim chefe. Perde o seu tempo: não demorará muito que Pedro morra ás nossas mãos.
— Tanto pior para mim e para ele, morreremos ambos. Cada palavra do desconhecido fazia-o subir mais no conceito de Virgulino, que rola em tamanha calma a sua própria energia. Não seria ele quem o matasse; não queria corresponder à coragem com uma ação covarde. Resolveu, pois, conservá-lo preso até que notícias dos seus companheiros de quadrilha dissessem-lhe se devia ser piedoso ou cruel com os soldados de Pedro.
— Vamos para a venda – disse-lhe; - lá hei de dar-lhe a resposta.
O desconhecido não resistiu á ordem e levantou-se a resmungar:
— É indiferente para mim morrer lá ou aqui. Vamos.
Durante a caminhada, Virgulino, que não desengatilhara a arma e não se distraíra um só momento para não perder o menor movimento do seu prisioneiro, ia entretanto pensando no golpe que devia sofrer quando chegasse à vendola. Eulália o viria receber talvez, e desde logo ficaria resolvida a sua partida. Esta idéia triste quase o decidiu a desfechar o tiro sobre o desconhecido, visto que assim podia demorar-se mais. Não era uma infâmia, pensava ele, viera para assassiná-lo à traição. Mas a altivez de caudilho dos Viriatos demoveu-o logo, fazendo-o lembrar-se de que nunca assim procedera.
Chegaram finalmente à cerca e o assobio do chefe chamou o vendeiro, que apareceu sem demora.
— Traga-me uma corda - disse Virgulino; - temos aqui um freguês.
Inácio, satisfazendo o mandado do chefe, voltou pronto, e os dois amarraram sem resistência os braços do desconhecido, cruzados sobre as costas.
— É um soldado de Pedro; bem me parecia que ele não tardaria a nos mandar visitar.
O velho Inácio custou a conter a impressão dolorosa que lhe causara a noticia.
A presença do emissário era uma prova de que Pedro tinha as vistas postas sobre a vendola, e por conseqüência que ele, o velho senhor e amigo da mesquinha propriedade, teria de perdê-la em breve.
— Eu não o poupava - ponderou o velho; - quem ao inimigo poupa nas mãos lhe morre. Cabia-lhe bem um tiro nas costelas.
— Tudo há de ser feito pelo melhor, não tem dúvida; este já não perde o trabalho. Por ora vamos dar-lhe o que comer.
O prisioneiro foi conduzido para a saleta do chefe, que, amarrou-lhe também os pés, e, satisfeito por não ter visto Eulália, e assim poder adiar por mais um dia a sua partida, saiu de novo recomendando o desconhecido aos cuidados do Inácio.
Eulália, porém, ouvira não só o assobio, mas a voz de Virgulino, e veio procurá-lo à saleta, onde apenas encontrou o desconhecido.
A presença deste homem, que, amarrado e cabisbaixo, olhou-a com uma súplica, fê-la estremecer e recuar.
— Não tenha medo de mim que não lhe posso fazer nada, moça - murmurou o desconhecido. - Quem é o forte aqui é o amigo do seu pai.
A curiosidade e a piedade, que lhe despertou o bandido, fizeram com que Eulália parasse e perguntasse por Virgulino, seu protetor.
— Saiu, foi talvez fazer emboscada a alguém que venha descuidado. é o ofício dele e o meu.
As palavras do bandido agravaram as suspeitas que, desde o primeiro encontro com o chefe, tinham atravessado o espírito de Eulália. A máscara que escondia o rosto de Virgulino, o seu modo de trajar comparado com a sua prodigalidade fizeram com que ela pensasse que havia alguma coisa misteriosa do seu protetor. Mas estas suspeitas desvaneceram-se espontaneidade do acolhimento que dele por duas vezes recebera, e sem que a mais leve sombra de interesse tivesse vundo diminuir o merecimento de tais atos. Agora, porém, as suspeitas irrompiam quase com a pujança da certeza.
Ficou a olhar perplexa para o desconhecido, a perguntar-lhe com os olhos o que não ousava pela voz.
— Sim, está na estrada com certeza. Lá é que é o lugar dos ladrões. Faça-se você também de criança, não sabe, hein? Pois admira; ele que se apresente em qualquer parte para ver se o conhecem logo ou não.
Corrida de temor e de vergonha por se achar em casa de ladrões, Eulália saiu precipitadamente, deliberada a partir no mesmo instante. O velho Inácio, porém, muito risonho embargou-lhe o passo, e Eulália, que, amedrontada pelas palavras do bandido, perdera toda a confiança nos seus hospedeiros, dissimulou a indignação.
— Passear com este sol é perigoso, Eulália. Não me disse que está com vontade de seguir viagem para o Ceará? Olhe que para navegar por essas estradas é preciso ter pernas.
— Andava em procura do meu protetor, ouvi-o falar ainda agora.
— Esteve aqui, mas saiu logo; não tarda por ai nem um minuto.
— Parece que ele anda a se esconder pela beira da estrada...
— É que não tem coragem de ouvir de Vossa Mercê a notícia de que quer nos deixar. Como sabe os perigos que se corre em andar hoje por esses caminhos, tem pena.
— Ele então sabe que há muitos perigos?... Como sabe?
— Pois se ele navega por elas dia e noite com o seu negócio...
Eulália, deixando-se calculadamente prender pela conversa, ficou e foi para a palhoça esperar melhor ocasião para retirar-se despercebidamente. A hora do jantar ofereceu-lhe o momento que ela já começava a considerar impossível. Negando-se a ir para a mesa, saiu furtivamente e enveredou pela estrada que se dirigia para o norte da província.
A sua caminhada, porém, não foi longa; o velho Inácio, terminado o jantar, veio procurá-la com a costumada solicitude, que era a de um fâmulo fiel e dedicado. Chamou-a, procurou-a na vizinhança da casa e, desanimando de encontrá-la, assobiou dando sinal a Virgulino.
— A d. Eulália anda por ai a procurá-lo. Disse-me que você talvez estivesse escondido à beira da estrada, e é provável que seguisse por ela.
Virgulino caminhou quase a correr, espiolhando com o seu olhar de bandido as margens do caminho, mas toda a sua perspicácia foi inútil; não encontrou o menor vestígio da passagem de Eulália.
— É que já voltou - pensou ele, e, dando de mão à pesquisa, retrocedeu para a vendola.
Vinha apressadamente, mas calmo porque lhe aprazia toda demora do encontro com a sua protegida. Todavia estava magoado; era agora seu dever procurar Eulália, falar-lhe para a piedade não fosse por ela julgada desprezo.
Um incidente desviou-lhe por alguns momentos a atenção. Inácio tentara, como Virgulino, arrancar do desconhecido a denúncia de Pedro, e insistiu com ele com a impertinência do pânico. Parecia-lhe fora de dúvida que a vida do traidor importava a perda da quadrilha dos Viriatos, e por isso era também coisa decidida para si que era dever seu e de seus companheiros tratar de obter o segredo, que guardava o refúgio do chefe rebelde.
— Está uma bonita sorte - ponderou ele ao prisioneiro; - parece mais um escravo do que um homem livre.
— A traição pode tudo: talvez que se o seu chefe, velho sem-vergonha, em vez de se esconder como a cobra enroscada no caminho, tivesse comigo uma briga cara a cara, não fosse eu quem aqui estivesse.
— É verdade; grande covardia a do Desempeno; heróis são vocês que sempre oferecem luta cara a cara. Você vinha aqui justamente para fazer isto.
A ironia doeu ao prisioneiro mais do que se o houvessem desfeiteado. Um rápido pestanejar e o tom da sua voz o exprimiram.
— Mas nós somos o menor número, os fracos; podemos servir-nos de todos os meios.
— E por que é então que você se envergonha? – perguntou Inácio; - se é coisa líquida, como lhe custa a fazer?
O desconhecido não respondeu; ao contrário, perdendo a altivez colérica com que olhava para o velho, cravou no chão os olhos, como se o peso do vexame fosse para si irresistível.
— Vamos - continuou Inácio; - você não é para fazer parte da quadrilha de Pedro, porque é um homem de brio. Para aquele miserável, só os cães como ele. Os cães que tenham coragem para atacar mulheres, para as afrontar na sua honra, para insultar os fracos e indefesos. Não assim você que tem vergonha de qualquer ato de covardia, mesmo quando é para com o chefe de seus inimigos. Vamos, amigo, faça a vontade ao Desempeno, venha para nós, que não abandonamos os nossos na hora do perigo. Ele, porém, como teve cara para trair amigos, terá para vendê-los.
Quando Inácio acabou a sua estirada de entusiasmo, que se aumentava tomando o silêncio do prisioneiro por aquiescência, este replicou-lhe por um laconismo pungente:
— Todo o medroso tem a língua comprida; fale até se esbofar.
— Eu quero a sua felicidade.
— Pois eu quero o sangue de vocês todos, e, se não bebê-lo eu, beberá alguém por mim.
O velho vendeiro mediu até o fundo do coração do desconhecido o ódio intenso que lhe deviam os Viriatos. A sua última frase traduziu-o pela entoação rancorosa, e completou-o por um sorriso escarninho.
— Então você prefere a morte, não é?
— O que quiserem, menos chamá-los meus companheiros.
— Porém, que mal lhe fizemos nós? Poupar-lhe a vida.
— Os Viriatos andam à noite, como as corujas agoureiras, como as onças; assustam e matam sem ver a quem o fazem. Nenhum deles por isso mesmo conhece as suas vítimas, nem é por elas conhecido, e no entanto ficam da passagem dos bandidos rastros de sangue e de cinzas, resultado dos assassinatos e dos incêndios.
— Ah! - exclamou Inácio. - Você tem-nos ódio velho; está bem, falando é que os homens se entendem.
O vendeiro voltou as costas ao seu interlocutor, e foi sentar-se na venda a meditar. Sabia bem que a generosidade de Desempeno era inquebrantável e que ele não voltaria atrás a concessão que tinha feito ao desconhecido; enquanto o retivesse prisioneiro, fosse qual fosse o crime praticado, não o mataria.
Inácio não pensava do mesmo modo; entendia que se tratava de uma questão grave a cuja solução não podia ser outra senão o extermínio de uma das quadrilhas: ou os Viriatos ou Pedro.
— Com os diabos - pensava ele; - o cabra teve como primeira idéia mandar-nos desta para a melhor; hoje mesmo à noite devíamos ficar todos espichados, e nós é que havemos de poupar a vida àquele mesmo que veio para roubar a nossa! Não entendo e não consinto.
Olhava para a larga faca que tinha sobre o balcão, muito polida, luzindo como um olhar guloso, mas não ousava pegar dela para vibrá-la contra o desconhecido, porque sabia que a sua pagaria a vida traiçoeiramente roubada.
— E há de viver - resmungou juntando as mãos -, e talvez venha a matar-nos. Um assalto liberta-o, e nós seremos vítimas. Não, não há de viver.
Saiu e, chegando à palhoça, ordenou que lhe dessem o jantar para o prisioneiro. Quando lhe entregaram o prato, o velho, muito trêmulo, veio de novo à vendola e de uma das prateleiras tirou uma pequena boceta, que estava cheia de umas bagazinhas rubras. Machucou com o cabo da faca algumas delas e, misturando-as à comida, entrou na saleta e depôs o prato junto ao prisioneiro. Voltou ao negócio, e, tomando a garrafa de vinho e um copo, dirigiu-se amigavelmente ao desconhecido:
— Enquanto não vem o dia da briga, sejamos bons camaradas.
— Pois não; eu tinha mesmo necessidade de comer e tomar trago à saúde de Pedro.
O corajoso emissário virou de um gole o copo que lhe apresentado e pôs-se a comer com o apetite produzido por uma longa jornada.
— Que tal, hein? Ao menos bem temperado nós comemos; de fome é que não se morre - disse Inácio.
— Não é mau, não; podia ser pior.
O velho seguia com o olhar os bocados tirados pelo prisioneiro, e ia-se gradativamente alegrando.
— Enfim! - resmungou ele, ao tirar o prato. - Deste estou livre.
Inácio não se enganava; meia hora depois o desgraçado emissário estorcia-se com uma coragem lacedemônia, sem deixar fugir um ai, e tinha no semblante todos os sinais do envenenamento. O velho, para coonestar o crime, certo de que o desconhecido não podia mais evadir-se, desamarrou-o, e chamou para a saleta toda a família.
Foi neste momento que Virgulino entrou, e Inácio, com o sangue-frio de um velho envenenador, disse-lhe:
— Chegou a tempo, este desgraçado está expirando.
— Como? - perguntou o chefe surpreso, e depois de ver que nenhum ferimento dava causa à morte, acrescentou: - que ele envenenou-se.
— Talvez - murmurou Inácio; - não há de ser outra coisa.
A comoção do chefe, que demonstrava os seus sentimentos generosos, foi presto sufocada pelo egoísmo da própria conservação.
— Foi melhor assim - disse ele depois de uma pausa; -livrou-nos de recorrer a outro qualquer meio. Prestou-nos um grande serviço.
— Se todos os companheiros do Pedro têm igual sorte, não há muito que recear deles.
— Pois eu penso de modo contrário; veja qual o ódio que ele nos tem, que passa logo aos que se lhe associam e os faz preferir a morte a viver por uma graça nossa.
Inácio meneou a cabeça concordando com o chefe e, olhando de través para o moribundo, perguntou:
— O que acha você melhor, Desempeno: deixá-lo aqui, ou pô-lo lá na estrada? Eu não estragava caridade com semelhante bicho.
— Não - intervieram as filhas de Inácio; - é um cristão e não deve ser atirado à estrada como um cachorro.
Virgulino compartiu a piedade das mulheres, mas o moribundo como que se apressou em vir em auxílio do temor do velho em conservá-lo por mais tempo na vendola. Teve uma contração fortíssima, mas logo, esbugalhando os olhos injetados, e arregaçando os lábios sobre os dentes cerrados, inteiriçou-se para não mais mover-se.
— Foi-se - exclamou Inácio; - vejamos se ainda assim querem que ele fique. Dirão todos que ele foi morto por nós.
— Agora, sim; é preciso tirá-lo daqui. Vamos conduzi-lo até a estradinha.
— Saiam vocês - bradou Inácio, vendo o semblante da família; - isto é negócio nosso. Olhe cá, minha velha, uma sede lavada; quero que este pé-rapado goze ao menos de um pouco de limpeza na hora da morte.
Não demoraram a entregar a rede ao vendeiro, que por sua vez apressou-se em arranjar o cadáver dentro dela.
— Pronto, meu chefe, fora com ele - sorriu o velho; - não será ele quem nos faça mal; de um já estamos livres.
Virgulino curvou-se para enfiar a rede no caibro que o velho tinha entre mãos, quando um grito de espanto e uma exclamação dolorosa o fez olhar para a porta.
— O que tem, d. Eulália? - exclamou o bandido saltando para junto da sua protegida prestes a desmaiar. - Não se assuste que isto nada vale. Foi um retirante que veio morrer aqui de cansaço... Sossegue, isto acontece todos os dias.
— Já passou - murmurou Eulália esforçando-se para mostrar calma. - É que eu ando tão fraca e tenho ouvido falar muito em morte que não posso ver um defunto.
— Vá para onde estão as suas amigas - disse o velho com um tom acariciador -, nós voltaremos aqui num pulo.
Eulália obedeceu, e os dois, colocando nos ombros a carga funerária, internaram-se pela estrada lateral, que desembocava detrás da vendola.
Quando voltaram já era tardinha, e vinham ambos sombrios. Eulália, que os esperava ansiosa, porque desejava obter de Virgulino permissão para partir, arreceou-se de falar-lhe. Na sua imaginação a bondade de seu protetor parecia-lhe agora um plano indigno, e, para não dar ocasião a que ele o realizasse, justificando-o com qualquer ato seu, foi que voltou, arrependendo-se da fuga. Ao ver agora o chefe, Eulália pensou consigo que era chegado o dia em que ela devia começar a pagar os favores recebidos.
— Zanga-se pela menor palavra e faz disto pretexto.
Conservou-se, pois, silenciosa, mas, vendo que nem o mascarado nem o velho dirigiam-lhe a palavra, e, ao contrário, pareciam evitá-la, resolveu-se a espreitá-los e escutá-los de longe.
— Não há dúvida que ela deve partir, ou fica sabendo de todos os nossos segredos e você bem sabe o que são mulheres.
— É exato, velho Inácio; ela parece amedrontada e eu aproveito a ocasião para conseguir que ela parta comigo.
— Consigo? E se vierem atacar a casa?
— Tanto faz um como dois; não durma você cá dentro. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. O certo é que eles não podem chegar aqui hoje, e amanhã temos cá o Onça ou o reforço. Eu vou falar à d. Eulália. Fica assentado.
Virgulino encontrou-se perto com a sua protegida, que só se afastara mais depois de ouvir o final da conversa, e alegre com a idéia da partida, ainda que temesse a companhia.
Poucas palavras trocaram para que resolvessem que a viagem devia ser imediatamente.
— Aproveita-se a fresca da tarde e da noite; é sempre melhor do que o sol do meio-dia.
Eulália limitou-se a concordar, embora objetasse que não era preciso o incômodo que o chefe insistia em tomar. Tinha medo, mas disfarçava o temor que lhe causava o companheiro, recordando-se das palavras que lhe ouvira, nas quais parecia haver inteira isenção de qualquer indignidade.
— Vá lá, seu maganão - exclamou Inácio ao ver o chefe montado e Eulália a endireitar-se na garupa; - vai ser uma noite de rosas.
Virgulino não respondeu senão por um olhar repreensivo. Eulália, porém, corando muito, murmurou:
— O sr. Virgulino disse-me que me protegia, porque eu prestei não sei que serviços à sua família, não é verdade?
— É sim senhora, d. Eulália, e estou pronto a servi-la até a morte.
Calaram-se ambos, e Virgulino esporeou o cavalo, o seu valente companheiro de correrias e assaltos, que em marcha certa e uniforme enveredou pela estrada geral.
A noite veio dentro em uma hora envolver o grupo, e Virgulino, que temia que a sua companheira se estivesse fatigando muito, dirigiu-lhe a palavra:
— Não acha bom que descansemos um pouco? Teremos feito uma légua, mas ainda falta mais de meia dúzia para chegar ao pouso.
— Eu não estou cansada - respondeu Eulália estremecendo, por julgar tais palavras um ardil do bandido; - gostaria mais de seguir.
Virgulino, percebendo o temor que involuntariamente inspirava, não objetou e, estimulando o animal, fê-lo prosseguir na marcha cômoda e ritmada.
Eulália, à medida que se adiantava a noite, e convencia-se da pureza das intenções do bandido, admirava-se de tamanha generosidade, e teve ímpetos de abraçá-lo, quando pela madrugada Virgulino, fazendo parar o animal, disse-lhe submissamente:
— Aqui é preciso que nós nos separemos; o pouso fica a meia hora de caminhada, e Vossa Mercê pode chegar lá antes que o sol clareie. Eu não posso ir mais longe.
— Obrigada - murmurou Eulália -, eu sei que se o senhor me deixa é que posso seguir só.
Apearam-se ambos e Eulália, sentando-se, pôs-se a olhar para Virgulino, que se mostrou perturbado.
— Quero pedir-lhe perdão - murmurou ela. - Fui muito ingrata para consigo. Aquele homem, que morreu na casa do Inácio, fez-me julgá-lo assassino - murmurou Eulália, continuou relatando a breve conversação que tinha tido com o comissário de Pedro.
— Não tenho nada a perdoar-lhe, d. Eulália; eu é que devo ser perdoado, pelos sustos que lhe causei. Aquele homem não lhe enganou, eu sou com efeito um ladrão.
O epíteto foi acentuado com o desprezo com que um inimigo de Virgulino o pronunciaria para aviltá-lo, e Eulália, tomando-o por uma ironia proferida para magoá-lo, murmurou:
— Não; eu estou agora convencida de que o senhor não é um ladrão. Um ladrão nunca é assim generoso!
— Sou um ladrão, sim - repetiu Virgulino -, mas não fui eu quem procurou sê-lo... fizeram-me. Lembra-se da noite em que na paróquia de B. V. apareceu uma família à noite, e o sacristão e o vigário e outros deitaram-no fora, porque o chefe tinha na testa a cruz com que se marcam os ladrões? Veja se conhece o homem de quem Vossa Mercê, sua amiga e seus pais tiveram tanto dó?
Virgulino desatou a máscara que o disfarçara por tanto tempo a Eulália, e continuou:
— Eu jurei nessa noite que não era um ladrão, e juro-o ainda agora. Mas Vossa Mercê não sabe o que é trazer em si este sinal cruel. É como que fechar o mundo à gente e obrigar a ser mau. Lembre-se do que se passou naquela noite, pois é o mesmo em toda a parte. Os filhos, a mulher, as irmãs, os parentes do desgraçado choram, morrem à fome, e a maior parte do povo ri-se, atirando-lhes à cara o insulto pungente filho, mulher, irmã, parente de um ladrão. B. V. deu-me abrigo, mas além da paróquia estava todo o Ceará, e eu tinha de caminhar.
— Talvez achasse quem o socorresse como na nossa paróquia.
— Talvez, mas havia anos que eu sofria e só Vossa Mercê e sua amiga e seus velhos pais tiveram pena de mim!
O Feiticeiro chamou-me para ser o que todos diziam que eu era, e eu vim para dar aos meus filhos algum dia o direito de viverem contentes fora daqui.
— Contentes - pensou Eulália -, quem sabe se eles viverão ainda!
— Eu sou muito desgraçado! d. Eulália, e alegro-me por não ser de todo perverso. Adeus; reze a Deus para que desapareça de mim o sinal que me faz tão mau, e diga aos meus filhos. se algum dia os vir, que o seu pai comete crimes, porém nem por isso deixa de ser agradecido a quem teve piedade dele!
O mísero bandido, atirando ao colo de Eulália um pequeno embrulho, montou de novo a cavalo e partiu rapidamente, deixando a moça enredada na confusão que lhe causava aquela natureza contraditória, que aliava à nobreza de um cavalheiro a abjeção de um bandido.
Ficou por muito tempo a olhar para o lado em que desaparecera o cavaleiro, absorta como se estivesse a sonhar acordada e, quando distraiu-se, murmurou
— Que diferença entre o bandido Virgulino e ele!...
Pronunciando esta última palavra, porém, como se ela contivesse em si um mundo de fantasmas, Eulália teve medo de estar só e levantou-se a olhar em torno de si. O embrulho, que Virgulino atirara-lhe ao colo, caiu tinindo o som do bater de moedas de ouro. Olhou-o com desprezo; a sua alma, afinada pela delicadeza moral de que o velho Queiroz dera provas não querendo fazer parte da comissão dos socorros; a sua alma, educada em extremados escrúpulos, rejeitou a esmola que vinha de uma fonte indigna.
— Antes morrer do que me servir de tal dinheiro! - pensou ela, e deu alguns passos.
O cansaço da viagem, porém, dificultando-lhe os movimentos, alquebrando-lhes o organismo, levantou a brutalidade dos instintos sobre a delicadeza dos sentimentos. Vieram-lhe à memória todas as narrações pavorosas que tinha do a respeito dos retirantes, que morriam em grande parte de fome. Deixar a esmola de Virgulino era o mesmo que se suicidar. Não teve coragem para persistir na sua resolução, e, deixando-se a olhar desconfiada, guardou no seio o tesouro que lhe fora dado.
Pôs-se a caminhar apressadamente, enxugando as lágrimas que lhe caíam em fio.
Vinha surgindo o sol, vermelho como uma brasa, no meio da quietação mórbida da natureza.
Grupos e grupos, maltrapilhos e esgroviados desfilavam praguejando contra o destino e contra os homens. Iam e vinham da mesma direção: um pano grande de areia de cor intensamente hidrargirada, no meio do qual havia uma escavação, em que manava um olho de água.
Nos que de lá voltavam reinava o mesmo desgosto que mostravam os que para lá se dirigiam; todos eram acordes nas lamentações e paravam para cruzar doestos e pragas às autoridades do lugar.
— É mesmo para fazer ferver o sangue de um santo: os cavalos do sr. vigário têm mais direito do que nós!
— O comissário manda tirar barris e barris para os seus amigos; os pobres que morram à sede.
— Há de dizer-se que a água é deles; que não brota da terra para todos os cristãos.
— Uma pouca vergonha: família em que há mulher bonita não sente faltas; a água aumenta logo pelos seus bonitos olhos.
— Corja, mil raios os partam!
— E o diabo do comissário é quem atiça o vigário. Ainda este vá, porque precisa dos cavalos para levar o sacramento; mas aquele velho delambido só para agradar os seus amigos; é um desaforo!
— Um cancro lhe roa o bandulho para que saiba se é bom ou não sofrer.
Eulália, entrando no povoado, teve de atravessar esses grupos, e ouvindo-os estremeceu pelo futuro que a esperava.
Envergonhada por se ver só, vestida tão pobremente, com o vestido de chita com que saíra de casa, quase descalça, cumprimentava a todos para ver se a curiosidade hospitaleira da província dirigia-lhe perguntas, e assim tivesse ela ocasião de dirigir outras. Os grupos desatentos, porém, passavam sem reparar em si.
Continuou, pois, a caminhar silenciosa até a igrejinha que ficava no meio do povoado, e cujas portas abertas deram-lhe a esperança de encontrar com quem falasse.
Entrou pela tosca nave coberta de telha vá e foi ajoelhar-se entre umas dezenas de pessoas, que aí estavam. As queixas que ouvira lá fora continuavam dentro do templo.
— É porque os pais de família não querem; senão aquele velho descarado deixaria a comissão. Onde é que se viu uma vadia, como a tal Mundica, ser dona de uma terra e governá-la assim?
— Qual, dona, os homens nada podem fazer; o meu homem, que é entendido em política, diz que ninguém pode com o velho, porque o partido dele está de cima e ele é quem é o chefe aqui.
— Forte peralta é a tal bicha!
— Uma atrevida!
— Veja o que ela fez com aquela pobre família de luto, que dizem ser a de um professor?
— Ameaçou-a com chicote, não é?
— Qual ameaçou?! Mandou metê-lo, e a velha e uma mocinha, se não quiseram ficar lanhadas, tiveram de fugir, deixando até perdida, entre o povaréu, uma criancinha de uns quatro anos.
— Isto há de ter um fim, seja qual for; não pode continuar.
— Do céu venha remédio; se não houver outro recurso, faz-se na vadia o mesmo que ela mandou fazer à família.
— O que diz o vigário a isto?
— É um mole; quer estar bem com todos. Agora então ninguém poderá obter dele nada. Está com hóspede.
— Não há de ser de grande importância, porque o vigário ainda não saiu com ele a passeio.
— Pois as pessoas da casa não dizem o mesmo. Na mesa eles tratam-se por colega, ainda que o hóspede tenha os cabelos da coroa e a barba crescida.
— Então é segredo que eles querem guardar.
— Deve ser, porque o vigário nunca diz o nome do hóspede. É colega para lá, colega para cá.
— Quer que lhe diga uma coisa? Se formos à casa do vigário fazer uma queixa em regra, ele talvez tome providência agora, para não parecer fraco aos olhos do outro.
— Nós conversaremos: a tal Mundica é que não pode continuar aqui.
Eulália bebia com voracidade todas as palavras das duas interlocutoras. O nome de Mundica, o padre que se escondia na casa do vigário impressionavam-na vivamente.
— Quem sabe se não são eles? - pensava Eulália. - Devem ter parado aqui.
Demais uma circunstância a sobressaltava com uma suspeita pavorosa: Mundica tinha mandado açoitar a família de um professor. Não seria esta família a sua?
A infeliz retirante não pôde mais conter-se e dirigiu-se a uma das interlocutoras.
— A senhora não sabe o nome da família?
— Não perguntei, mas é fácil saber no abarracamento.
— E você não é de lá - perguntou a outra interlocutora -, não é retirante?
— Sim, senhora - respondeu Eulália cujas faces quase sangraram de vexame pelo qualificativo; - mas ainda não entrei para o abarracamento.
— É fácil, quando acabar a missa vá ter com o vigário.
A campainha tangida repetidas vezes anunciou o começo da missa e a igreja encheu-se do sussurro das saias das mulheres que se ajoelhavam. O vigário Belmiro apareceu na capela-mor revestido de branco, segurando com uma das mãos o cálice e pousando a outra sobre o véu e a bolsa.
— Vê? É aquele o sr. vigário, muito bela pessoa; vá ter com ele.
Eulália agradeceu a indicação e ajoelhou-se devotamente para suplicar aos céus que lhe afastasse o golpe, que as palavras das duas mulheres lhe anunciavam iminente. As duas interlocutoras calaram-se também por algum tempo, mas para logo começaram a cochichar.
— Lá está o comissário; quem dirá que ele é quem é? Brejeiro!
— Homem que reza muito dá sempre em vadio; eu tenho conhecido uns poucos assim.
— Eu só quero ver como ele se tira desta alhada; não queria estar no pêlo dele.
— Ora, tudo se esquece, e, se ele tiver a repentiva de pôr ao campo a vadia, ninguém lhe fala mais nas chicotadas.
— A verdade é que as mulheres que as levaram, levaram e nem Santo Antônio as tira.
Depois de haver desfiado, pachorrento e demorado, todo o latim da missa, o vigário Belmiro, fazendo profundas reverências, retirou-se para a sacristia, acompanhado pelo comissário.
Eulália levantou-se logo para ir ter com aquele que devia dar-lhe informações que a torturassem ainda mais ou que lhe serenassem o ânimo. À porta da sacristia, porém, o sacristão deteve-a com uma frase imperiosa e grosseira:
— Olá! Não vê que está aqui gente a conversar? Espere, se quiser falar.
A moça não respondeu e esperou.
— Digo-lhe que não é mais possível demorar esta gente - ponderava o comissário; - a água não chegará nem mais para uma semana, vai diminuindo como se a chupasse uma esponja.
— Cava-se noutro lugar; não lhe parece que Deus não há de permitir que esteja tudo seco por esta vizinhança de umas duas léguas?
— Tem-se cavado tudo, homem, nem tão descuidado sou eu, mas a água é uma pilha de sal. O que quer você que lhe faça? Deus não há de permitir; mas lá se vai um ano de seca.
— Experimente sempre, teime, porfie; bem vê que, se for por essas estradas fora, de todo o povaréu que está no povoado não escapam cem pessoas.
— Por minha parte não faço mais nada; demais, dizem que o novo presidente não quer que continuem as comissões no interior; não estou para perder trabalho. De hoje até amanhã teremos notícias do Ceará e o vigário verá se estou mentindo.
Mas, enquanto não chega, vai-se fazendo uma obra de misericórdia.
— Eu não admito mais uma só pessoa no abarracamento.
— Salvo se for mais bonita do que a Mundica, não é verdade?
Riram-se ambos, e, como o vigário já se houvesse desrevestido, dirigiram-se para a porta.
Eulália saiu-lhes ao encontro e formulou o primeiro pedido ao vigário.
— Eu sou retirante - murmurou envergonhada -, e venho pedir a Vossa Mercê que me mande entrar para o abarracamento.
— Filha, isto não é comigo - respondeu o bonachão do Belmiro; - aqui está quem pode mandá-la para lá.
— É só por um ou dois dias - acrescentou Eulália -, eu sigo viagem para o Ceará.
— É a cantiga de todos - sorriu o comissário; - já não caio. Com muito gosto se não fosse ter de cessar com os socorros. De hoje em diante é impossível.
— Eu peço porque não conheço ninguém aqui, e não sei os caminhos para seguir viagem.
— Tanto pior para você, minha filha - observou o comissário. - O que lhe hei de eu fazer? O que não tem remédio...
— Remediado está - disse o vigário, acabando a frase.
— Venha comigo que eu lhe arranjarei onde passar os dois dias. Serve-lhe?
Eulália meneou a cabeça afirmativamente e acompanhou os dois poderosos da localidade. Toda a conversação das duas mulheres afluía-lhe tumultuariamente à memória, impondo-se-lhe como verdade, e Eulália mal podia conter a impaciência que a impelia a perguntar ao pároco o nome do seu hóspede.
— Aqui está a casa onde vai ficar; entre - disse o vigário e gritou da porta: - ó mana, ai vai uma filha de Deus para dormir duas noites.
A mão carnuda de Belmiro foi bater no queixo de Eulália acariciadoramente, e ele acrescentou:
— Agradeça-me, hein? Não seja ingrata.
Embora a liberdade tomada pelo pároco a houvesse magoado, embora o pudor da mísera retirante se houvesse ofendido, Eulália entrou com semblante alegre.
O que lhe importava não era o pensamento oculto do pároco, mas saber se a família do professor tinha alguma relação com a sua.
O dia, porém, passou desaproveitado para a sua missão. Falou-se por diversas vezes no fato, que era o principal assunto de todas as conversas, mas ninguém sabia o nome das mulheres que tinham sido vitimas da violência brutal de Mundica e dos guardas do abarracamento. A noite, mais propícia, preparou para Eulália a certeza que ela devia obter.
Mundica, assenhoreando-se dia a dia do ânimo do comissário, preparava o caminho para estabelecer-se inteiramente ao lado dele. Não passava um dia sem que, a pretexto de esmola, fosse à casa do apaixonado viúvo e lhe exacerbasse a paixão com a prodigalidade de carícias. O último acontecimento, porém, fechou-lhe de dia as portas da casa comissário, que, para acalmar a opinião pública, aparentava ter-se afastado da amante, e de tal forma que ele não visitava mais os cubículos por ela ocupados no abarracamento. Os encontros foram, de comum acordo, mudados para adiantadas horas da noite, em que Mundica saía do abarracamento acompanhada por um dos escravos do comissário.
O vigário Paula, que para furtar-se aos olhos dos seus paroquianos não acedera ao convite do colega para visitar de dia o povoado e que premeditava uma desforra da sua ex-amante, saía também à noite e só voltava muito tarde, fato que o pachorrento Belmiro assim explicava a sorrir:
— Você é um destemido, Paula, pode dizer como César: veni, vidi, vici.
E Paula com o seu ar de hipócrita respondia-lhe satisfeito:
— O que se há de fazer? A sociedade impõe-nos o recato das virgens.
As vizinhanças do abarracamento eram o ponto em que Paula perdia as noites, não feliz como ele fazia crer ao colega, mas emaranhando-se num dédalo de planos, que abortavam todos diante da ignorância em que ele estava da morada de Mundica e do modo de fiscalização que se punha em prática no abarracamento.
O acaso veio em auxílio do projeto do vigário contra Mundica.
Desde a primeira noite, Paula colocara-se em posição de poder estender o olhar por toda a frente do abarracamento e por longo espaço da estrada que o comunicava com o povoado. Por duas noites foi em vão tomar lugar no seu observatório; várias pessoas entraram e saíram, mas nenhuma delas deu-lhe ao menos a esperança de poder ver Mundica. O insucesso das suas pesquisas fazia desanimar e retirar-se arrependido de haver perdido o tempo.
Na terceira noite, porém, antes de ir postar-se no seu ponto de mira, dirigiu ao colega algumas perguntas que mais ou menos o orientavam acerca da morada da sua ex-amante.
Chegado ao abarracamento, ao ver passarem, como nas outras noites, diversas pessoas, pensou em falar com uma delas, mas abandonou logo o projeto: se a maioria dos retirantes não o conhecia, havia muitos a quem não seria possível enganar, embora disfarçasse a voz. O projeto, porém, sugeriu-lhe outro e resolveu:
— Entrarei, como os outros entram; com estas roupas, sou também um retirante.
Penetrou corajosamente na própria área do abarracamento, que era uma linha de casinholas feitas de ramos secos e cobertas de palhas; mas, quando já se adiantara muito da casa de Mundica, refletiu e parou.
Se alguém me visse rondar-lhe a casa? Tem inimigos e muitos, eles podem se aproveitar da circunstância, e depois, quando se souber que eu estive na localidade, sobre mim cairá a condenação.
O impulso do ódio impediu-o de retroceder. Demorou-se quedo por algum tempo e em seguida entrou num vão dos muitos que separavam as casinholas.
— É impossível que eu não veja ao menos o comissário, hoje. Ficarei até que venha a madrugada, se tanto for necessário.
Sentou-se e pôs-se à espera. Lembrava a paciência da cascavel enrodilhada no caminho à espera de presa. Ninguém poderia suspeitar semelhante emboscada; a própria respiração de Paula havia diminuído de intensidade; dir-se-ia que ele fizera parar os pulmões e respirava apenas pela epiderme.
Um sussurro, porém, veio restituí-lo à atividade e à paixão que o agitava na empresa. A princípio a areia estalitou sob passos cautelosos e depois duas vozes abafadas trocaram entre si uma frase, ao passo que dois vultos passavam pelo vão.
— Por ora ninguém e nem quero que saibam, o resto fica por minha conta.
— Se puder conseguir é coisa grossa; eu posso jurar que ele trouxe do Ceará mais de um conto de réis.
Paula não pôde ouvir o resto da frase, mas ouvira quanto bastava - o som da voz de Mundica. Saiu cautelosamente do esconderijo, e, distanciado bastante, acompanhou os dois conversadores.
Os vultos saíram perto do local do abarracamento e tomaram a estrada na direção do povoado, onde pararam quase na extremidade da rua em que Paula se hospedava.
— Eu contava já com isto - murmurou ele; - deve ser a casa do comissário. Perdi o meu tempo.
Parou, e já se decidia a voltar para casa, quando viu que só Mundica entrara; o outro vulto continuara a caminhar. Pensando em reconhecê-lo, Paula ia seguir-lhe ao encalço, mas, ao passar pela casa em que vira a sua ex-amante entrar, empurrou por demais a porta. A porta, porém, cedeu, e ao seu movimento, como se uma barreira se houvera erguido ante si, Paula estacou.
Uma tentação invencível apoderou-se do ânimo temerário e apaixonado do vigário, que maquinalmente entrou para logo parar estupefato da sua própria ousadia. Felizmente a porta abria sobre um corredor que estava às escuras, e, portanto, fácil era ao vigário voltar sobre os seus passos, sem que fosse percebido. Tentou fazê-lo, mas, sentindo passos na rua, e temendo que fosse o companheiro de Mundica, seguiu tateando e a pensar consigo que estava perdido.
O temor de Paula tornou-se logo realidade.
A porta foi discretamente trancada e o amedrontado vigário, que apenas teve tempo para ocultar-se por detrás de uma porta, sentiu que alguém atravessava o corredor.
—Oh! rapaz - disseram de dentro a meia voz -, venha acordar-me às matinas.
A pessoa que passava respondeu com a submissão do escravo e seguiu.
Paula, por uma reação inexplicável do próprio temor, encorajou-se, e, não podendo retirar-se logo, porque o ranger da chave denunciaria a presença de um estranho na casa, caminhou vagarosa e cautelosamente até que, entrando em uma sala, a claridade que escoava por uma porta entreaberta o fez parar.
— Ouça, eu se zanguei-me com elas não foi porque tenha desejo de fazer mal aos outros; é que elas foram a causa da morte de meu pai.
— Mas devia ter feito as coisas de outro modo, assim comprometeu-se e comprometeu-me.
— É porque o senhor quer; com pouco mais de nada eu posso ir por algum tempo morar fora daqui e depois volto.
— Se fosse tão fácil eu não duvidava fazer, mas infelizmente falta-me agora o melhor.
— O que é?
— O dinheiro...
— É o que não falta aqui - disse Mundica, ao mesmo tempo que se espalhou no silêncio da sala o som de uma tampa de lata brandamente percutida.
— Aí não há nada meu, abra e veja.
— E esta latinha?
— Leia o que tem em cima - dinheiro da comissão -, este é sagrado. Sabe o que mais, vamos dormir.
— Você é bem mau, sr. Cassiano; eu ainda lhe faço uma.
— Até ver não é muito, apague a vela.
Ouvindo o nome do comissário, e ao mesmo tempo a afirmação de que na lata havia dinheiro, Paula foi avassalado por uma idéia que nunca lhe ocorrera. Quedou por um tempo, que lhe pareceu uma eternidade, e conservou-se atento como a dominar o estremecimento que lhe causava o horror da idéia que concebera, até que a respiração compassada e tranqüila do comissário e de Mundica assegurou-o de que estavam dormindo.
O ódio deu-lhe então o sangue-frio de que precisava e, penetrando no quarto, abriu imperceptivelmente a lata maior e conseguiu apanhar a menor.
Pouco depois estava fora da casa do comissário, da qual saira pulando uma das janelas da sala de visitas, e a passos largos palmilhou a rua até a casa de Belmiro. Dentro do quarto, acendeu a vela e arrancou com a ponta da faca o fecho da pequena lata.
— Cá está o dinheiro - disse consigo -, amanhã ela será uma ladra.
— Já sei que teve uma boa noite, colega - exclamou a bocejar o vigário Belmiro, que, deitado na sala, acordava sempre que Paula entrava.
— Uma excelente noite, colega, até amanhã.
Paula não se enganava a respeito do escândalo que se daria, logo que o comissário desse por falta do dinheiro dos socorros.
A ação parecia abjeta aos seus próprios olhos. A consciência não o absolvia, acusava-o de haver praticado um furto: ainda que não tivesse a intenção de utilizar-se do dinheiro, não podia também entregá-lo de pronto, porque seria justificar Mundica e engrandecê-la como vítima diante daqueles mesmos que a houvessem condenado. Chamava-se, pois, a si próprio gatuno, mas ao mesmo tempo regozijava-se com a idéia de ver Mundica expulsa da afeição de Cassiano, e entregue à irrisão geral e talvez mesmo à prisão.
Ao almoço, conversando com Belmiro, mostrou-se tão jovial que o pachorrento colega observou-lhe:
— Ora, pois, como o vejo mais alegre, quero dar-lhe um conselho.
— Venha ele, meu padre, hoje ou ontem era sempre bem-vindo.
— Vá lá - sorriu Belmiro agitando o indicador. - Estas fazem mal; é preciso não ir com tanta sede ao pote.
— Não sairei mais; eu ontem já pensei nisto; corro perigos apesar de disfarçado: do que eu preciso é de forças para a viagem que deve ser amanhã ou depois, e a pé.
Belmiro, atribuindo a resolução do seu colega à sua observação, insistiu em demonstrar-lhe que não tinha tido a intenção de magoá-lo, e acabou oferecendo um dos seus cavalos e um pajem ao vigário Paula.
— Então partirei depois de amanhã; quero convencê-lo que não me ofendi consigo; bem vê que estou alegre.
Bem diverso do estado de espírito de Paula era o de Eulália. Hospedada na casa em que Belmiro a recomendara, não tendo senão as consolações banais da hospitalidade indiferente, a mísera retirante sentia o coração sitiado pela quase certeza de que o hóspede do vigário da localidade, a amante do comissário e, sobretudo, as mulheres insultadas por esta eram o vigário Paula, Mundica, d. Ana e as suas irmãs.
Desde o amanhecer quis logo sair para receber em cheio o golpe que já lhe doía; mas, refletindo melhor, pediu à velha senhora que a hospedara para mandar saber do vigário o nome das mulheres que haviam sido chicoteadas. Ainda assim o golpe foi adiado, porque só depois da missa o vigário poderia responder.
Como se houvesse uma intenção providencial de delongar a dor imensa reservada à infeliz, o vigário demorou-se na igreja mais do que tinha por costume e, com grande espanto do sacristão, fechara-se por dentro na sacristia com o comissário.
O sacristão, intrigado por esta prova momentânea de desconfiança que lhe era dada, explicou-a engenhosamente aos fiéis que igualmente se espantavam de que o confidente do pároco fosse excluído do colóquio.
— Isto há de ser negociata com a tal Mundica; eu sinto-lhe o cheiro, porque não há outra razão para tal segredo.
Qual, é impossível; o sr. Cassiano está pelo cabresto - ponderavam todos.
— É justamente aí que a besta empaca. Eu não creio que ele esteja disposto a mandar embora a delambida, isto não; mas que tenha outros fins tapar a boca do mundo.
— De que modo? Ninguém se deixará enganar; enquanto a Mundica estiver aqui, o povo inteiro repetirá que ela é a senhora do comissário.
— Pois ele aceitará o que dizem e pedirá à igreja que lhe dê o direito de andar com ela por toda a parte. Fará da retirante sua mulher.
— Ora esta agora! Havia de ter graça.
— Não era coisa do outro mundo; a paixão cega o homem.
Quando o vigário e o comissário saíram da sacristia, ao passo que este se conservava carrancudo, aquele escondia uma risada sob o semblante de piedade, e, logo que se viu livre do olhar do comissário, despregou a rir como um perdido.
— Então há alguma novidade? - perguntou-lhe o sacristão. - Vossa Mercê ri enquanto o comissário quase chora?!
— Coisas da vida; ele anda em rapaziada e eu conheço-me como velho.
— O passarinho bateu as asas?
— Não, mas levou alguma coisa no bico. Segredo de cova, hein? - observou o vigário esforçando-se por ficar sério.
— Se eu não sei nada, como hei de guardar segredo?
O vigário, abaixando a voz, contou que o comissário, desde a estralada das chicotadas, havia mudado para tardas horas da noite e em sua casa os seus encontros com Mundica, e que hoje dera por falta do dinheiro da comissão de socorros.
— Está danado!
— É uma bucha - ponderou o sacristão. - E o que vai; ele fazer agora?
— Vai ao abarracamento ter com ela e obrigá-la a entregar o dinheiro.
— E se ela não o entregar?
— Ele mesmo não sabe o que fará. Está tremendo de raiva. Eu é que não perco a festa; logo que acabe da missa, lá irei ter.
Esta resolução do vigário fez com que, só pelo meio-dia, Eulália pudesse ter a certeza de que se temia. Como soubesse que o vigário estava no abarracamento, perdeu o receio de ser aí insultada por Mundica e seguiu para lá.
A massa dos retirantes sussurrava surpresa com o acontecimento descomunal que veio tomá-la de assalto. O comissário, seguido pelos guardas do abarracamento, dera busca em todas as casas do abarracamento e afinal mandara também revolver todos os cubículos ocupados por Mundica, que não podia conter as lágrimas.
O comissário, parando diante dela, perguntou-lhe secamente.
— Você não entrega a latinha?
— Não está comigo, já lhe disse; nunca furtei.
— Bem - bradou ele, dirigindo-se aos guardas -, ponham-me para fora a chicote esta ladra.
Em vão Mundica tentou obter com as súplicas a revogação da cruel sentença; os mesmos guardas que havia poucos dias obedeciam-na na afronta a d. Ana e Chiquinha, vibravam contra ela os instrumentos ignominiosos, e a suposta ré era obrigada a fugir entre os apupos da multidão.
— Fora também com o resto da súcia, nem mais um minuto fique aqui no povoado um só parente da ladra.
Os guardas obedeceram e a família de Marciano foi obrigada a sair no mesmo momento.
Eulália, que chegava no instante mais violento da cena, vendo Mundica, teve a dolorosa certeza de que se tratava com efeito de d. Ana e de suas irmãs.
Cambaleando como uma bêbada, pôs-se a andar espiolhando para dentro dos albergues até que lhe perguntaram por quem procurava. Murmurou então o nome de sua família, e obteve uma resposta desdenhosa:
— Ah! Procure-as lá para aquela banda, há uns quatro dias que partiram; talvez a fome a tenha feito demorar e possa encontrá-las pelo menos mortas.
Eulália, impelida pela alucinação que lhe causara a certeza do insulto recebido pela família, tomou automaticamente a estrada apontada, mas o cansaço e a reflexão vieram logo detê-la. De que serviria aventurar-se por desconhecidos caminhos sem alguém que lhe servisse de guia?
A bolsa, que lhe fora dada pelo bandido, lembrou-lhe que podia obter um guia, e Eulália, voltando ao povoado, não regateou o pagamento.
Horas depois, a pé, suando ao ardor do sol, embora já declinado, recomeçou a caminhada.
À medida que se adiantava, dobrava o terror que lhe causava o amargo pressentimento das desgraças a que estava exposta a sua família. O deserto, com o seu corpo pardacento, seco e ardente, havia-se estendido a fio comprido por toda a circunvizinhança. As casas tinham sido abandonadas, e as portas e janelas, desconjuntadas pelas ventanias freqüentes, agravavam ainda mais a tristeza desses mesquinhos monumentos da prosperidade extinta da província. A nudez substituíra a vegetação, e o verão deixara um rastro negro sobre os lugares outrora cultivados, como se fora uma lápide sobreposta aos mortos plantios.
— O que será feito delas? - pensava Eulália. - Que forças há que possam resistir a jornadas longas por esta paragem desabrigada?
— É preciso ir mais devagar - observava de quando em quando o companheiro; - daqui ao Quixadá vão mais de 20 léguas.
Eulália, porém, apressava mais o passo quando o camarada lembrava-lhe a grande distância que a separava do ponto povoado. A sua imaginação media pela distância a extensão da penúria a que estavam reduzidos os seus, e os pés reproduziam-lhe a agitação do espírito.
— Não lhe parece que duas mulheres, tendo de carregar uma menina de quatro anos, e de medir o passo pelo de duas meninas, não podem andar muitas léguas por dia?
— É exato; mas em três dias podiam estar perto de Quixadá, a não haver contratempo.
— Podiam, se não tivessem necessidades; mas estas devem obrigá-las a parar.
— Qual! A fome dá asas à gente; já podem estar em Quixadá.
— Encontrá-las-emos lá então, mas é preciso caminhar.
E dobrava a celeridade do passo, e tinha desejos de deitar fora as provisões para que a necessidade a impelisse com maior presteza.
A noite, porém, veio providencialmente obrigá-la a parar, para que não ficasse logo extenuada.
Três léguas fizemos nós hoje - ponderou o companheiro; - amanhã podemos andar pelo menos mais do dobro, e depois de amanhã dormir perto de Quixadá.
O honrado camarada pôs-se logo a acender fogo para preparar a alimentação; e Eulália, ao ver as labaredas crescerem, enquanto o camarada desarrumando o mocó de viagem punha no chão as provisões, desatou a chorar.
Passava-lhe pela imaginação o quadro medonho a que necessariamente estariam reduzidas sua tia e irmãs, e a fartura em que ela se via pungia-lhe mais do que todas as suas dores.
Rogério Monte, o padre Paula, Augusto Feitosa surgiam todos diante de si e cada um dizia-lhe uma palavra amarga, que a sua consciência comentava em silêncio, afeiando-lhe a sorte de d. Ana, Chiquinha e suas irmãs.
Todavia, por maiores que fossem as torturas que lhe causasse a cogitação, elas não reproduziam nem palidamente a sorte da família.
Depois da inaudita violência, que foi obrigada a sofrer sem reagir, d. Ana apenas teve tempo e recursos para arranjar provisões para um dia. A boa mulher, que fora involuntariamente causa da cena aviltante, prestou-se a vender-lhe as jóias e ir clandestinamente encher de água as borrachas ou vasilhas de couro, que dariam, quando muito poupadas, para que a família se arraçoasse por três dias. Com esta matalotagem seguiu viagem.
No primeiro dia não sofreu senão o cansaço e apenas afligiu-a o horrendo temor da fome. Porém, a esperança, a eterna companheira dos desgraçados, atenuava-lhe a angústia, e ela conseguia espairecer e até rir-se, e falar alegremente às meninas para dar-lhes coragem.
— Agora restam-nos poucas léguas; não tarda muito que não encontremos alguma casa habitada, e dizia-me o defunto mano que esta gente por aqui era muito caridosa.
Tais palavras produziam o resultado esperado por d. Ana: encorajar as meninas, que não cessavam de caminhar. A própria caçula, com o seu descuido infantil, queria, de quando em quando, descer do colo para andar também pelo próprio pé e ir brincando com o Amigo.
No dia seguinte, porém, as provisões, embora poupadas, só podiam chegar para iludir a fome, e não obstante a casa habitada não aparecia. O cansaço e o desânimo tomaram o lugar da coragem, e só a muito custo d. Ana pôde conseguir que só se parasse com a noite.
Com a manhã do terceiro dia, a família viu aparecer de novo em torno de si o deserto, mas agora agravado pela fome. As meninas tinham já os pés disformemente inchados, e a caçula estava prostrada pelas soalheiras e pelo começo da fome, cujos efeitos fatais d. Ana evitava dando, de quando em quando, uma bolacha à pobrezinha.
De todo o grupo, só um dos entes se mostrava corajoso e enérgico: era o Amigo. O nobre cão jejuava desde o pouso; havia emagrecido muito e tinha os olhos vermelhos, de modo que a família começava a recear que ele viesse a danar. Mas ainda assim não tinha perdido o porte altivo; parecia um mártir a caminhar sereno para o suplício. Era o primeiro sempre a sair e agora, como se percebesse que falecia a coragem aos seus companheiros de infortúnio, corria até o meio da estrada, latia e vinha puxar pelo vestido de d. Ana.
A jornada foi, afinal, encetada, mas a fadiga, duplicando a fome, fez com que não se adiantasse muito para o estádio da viagem, a vila de Quixadá.
À noite as meninas deitaram-se e adormeceram extenuadas, e a caçula, que também ficara sem o que comer, queimada pelo sol, ardia em febre. D. Ana e Chiquinha, sentadas uma em face da outra, choravam sem trocar uma única palavra. O Amigo também parecia ter desanimado, e, ao clarão das frouxas labaredas do fogo que as infelizes haviam com muita dificuldade acendido, o nobre cão embebia nelas o olhar.
Durou por muito tempo o silêncio, mas afinal Chiquinha quebrou-o bruscamente perguntando a d. Ana:
— Vosmecê lembra-se do que nos contou aquela mulher a respeito do que ela e a família passaram?
D. Ana meneou afirmativamente a cabeça.
— Começaram comendo raízes do mato...
— É que elas conheciam as ervas de que podiam aproveitar as raízes, porém nós...
— Mas depois - continuou Chiquinha - mataram a besta que trazia as cargas e comeram-na.
— Nós não temos besta - sorriu tristemente d. Ana -, portanto, não podemos fazer o mesmo. Temos de esperar com fome até que encontremos algum croatá.
— Mas nós temos...
— O quê? - perguntou d. Ana interrompendo-a.
— O Amigo - respondeu Chiquinha, que abaixou os olhos.
O cão, ouvindo o seu nome, pulou ao colo de Chiquinha e deitou para fora a língua larga e vermelha, meneando-a com intenção acariciadora.
— Eu não tenho coragem - murmurou d. Ana; - era muita ingratidão!
— É a necessidade! - exclamou Chiquinha enxugando as lágrimas. - Não é verdade, Amigo?
O nobre animal, que, afastado brandamente por Chiquinha, havia-se espichado junto a ela, bateu com a cauda no solo e soltou um latido festivo.
Dir-se-ia que neste movimento o Amigo fazia um oferecimento da sua à vida da família e que lhes suplicava até a honra desse holocausto.
D. Ana e Chiquinha, compreendendo assim a atitude do Amigo, fundiram em lágrimas, que de há muito buscavam um pretexto para correr livremente e com a abundância do tormento que lhes dava causa.
— Não, não! - exclamaram ao mesmo tempo. - Seria um crime.
O Amigo, levantando-se de chofre, caminhou num passo picado em torno das meninas adormecidas, farejando-as como se quisesse confortá-las com o bafo. Voltou a esticar-se de novo aos pés de Chiquinha, a ganir acariciadoramente, e, como as senhoras se conservassem imóveis, tornou ao passeio em volta das adormecidas.
A caçula acordou estremunhada, e, com um choro doloroso, repetiu com uma acentuação comovente:
— Não posso mais, eu morro de fome.
Os esforços de d. Ana e Chiquinha para acalentá-la foram vãos, e dentro em pouco despertavam também, com o semblante lastimoso do faminto, as duas meninas.
O Amigo, como se quisesse repreender as senhoras que o poupavam prolongando assim a angústia das crianças, latiu alto, parando hostilmente em face de Chiquinha.
A moça hesitou ainda, mas afinal, como se fosse tomada de um acesso de loucura, levantou-se, e, tomando um dos tições, chamou com uma castanhola o nobre cão, que a seguiu sem relutar.
Estavam abrigadas numa das muitas casas abandonadas que marginavam a estrada, e Chiquinha, entrando para o compartimento destinado à cozinha, amarrou com as cordas da rede o pescoço do Amigo. O animal, levantando-se nas patas traseiras, estendeu para ela as dianteiras e pousou-lhas sobre o ombro, como se a buscasse abraçar.
O choro da caçula, a sua triste queixa de que ia morrer soaram com mais força. A moça, revestindo-se de uma heroicidade semelhante à alucinação, passou em um dos caibros a corda e puxou-a até que o fiel companheiro dos seus infortúnios começasse a sentir os primeiros efeitos do estrangulamento.
D. Ana, ouvindo o latir engasgado do Amigo, correu até o lugar da execução, mas Chiquinha longe de desanimar comunicou à tia a sua resolução e dentro em pouco o corpo do nobre animal caia em terra, inerte e sem vida.
— Vamos, minha tia, é preciso ter coragem, ou senão veremos todas aquelas crianças mortas.
Horas depois, as duras carnes do Amigo faziam calar a caçula, e, satisfazendo as duas meninas mais velhas, diminuía a dor das duas senhoras.
No dia seguinte, quando Eulália chorava lembrando-se de que à mesma hora talvez a sua família sofresse as indescritíveis torturas da fome, d. Ana e suas sobrinhas dormiam com o peso do cansaço o sono do apetite satisfeito, graças ao corpo do Amigo.
Eulália conciliou também o sono na sua pousada e só pela madrugada voltou à tristeza dos seus pensamentos e à ousadia da sua empresa. Metendo-se a caminho, a sua imaginação via em cada estremecimento, em cada redemoinho de poeira, que se levantava na estrada, o passar da sua família.
Talvez em vez de adiantar a jornada retardava-a, e foi por vezes advertida pelo camarada, que pôde por fim obter que seguissem em linha reta.
O dia findou sem que o menor vestígio deixasse perceber a passagem da família; nem uma só pessoa apareceu de quem pelo menos uma informação vaga servisse de incentivo à esperança.
Ao anoitecer, porém, quando o camarada já exigia de Eulália que ela se recolhesse para não se afadigar muito, um vislumbre de esperança veio indenizar-lhe em parte o sofrimento do dia.
Passavam por diante de um casebre, de frente esburacada, já sem janelas e sem portas. Vinha de lá um berreiro de crianças.
— Ouve? Quem sabe se não são eles?
— É impossível, minha ama; eles devem chegar hoje a Quixadá.
— Mas podiam ter ficado por aqui por causa das crianças.
— Por isso mesmo não ficariam.
— Pois bem, vá saber quem é; devemos pousar dentro em pouco tempo, e sendo boa gente...
— Podemos fazer ponto aqui.
— Ouça, pergunte se é a família de d. Ana Queiroz, ou se a conhecem, mas não diga o meu nome.
O camarada dirigiu-se à casa, enquanto Eulália, sentada a distância, aguardava, deleitando-se com a esperança de haver enfim encontrado com a sua família.
Um quadro de miséria esbateu-se aos olhos do companheiro de Eulália. Da porta da entrada viu no interior da casa uma família inteira, composta de moças e de crianças agrupada em torno de uma velha, que, recostada ao colo de uma das moças, ansiava a respiração dificultosa dos moribundos.
Entrando com a precipitação da compaixão, o camarada foi parar junto do grupo e proferiu a pergunta que a sua ama lhe recomendara.
— Não - respondeu uma das moças; - somos uma família que morre à fome.
— Mundica! - exclamou o camarada, reconhecendo uma das moças. - Como é desgraçada!
— Conhece-me? - soluçou a filha do sacristão. - Pois quando voltar ao povoado diga lá se fui eu quem roubou o comissário.
O homem, em quem palpitava um coração cearense na plenitude da virgindade sertaneja, teve ao ouvir estas palavras uma impressão indefinível. Sabia que a mais brutal das ofensas tinha sido por ordem de Mundica praticada contra a família de Eulália. Talvez a esta mesma hora, pensou ele, estivesse aquela a padecer o mesmo tormento, pois que era quase impossível que, sem dinheiro e sem provisões, alguém atravessasse incólume as estradas da província. Como, pois, socorrer as desgraçadas que ali via às portas da morte? Além disso, embora sua ama viesse prevenida para socorrer os seus, quereria ela abrir mão de alguma coisa para socorrer estranhos e inimigos?
O desespero em que o emaranhavam tais pensamentos fê-lo demorar mais do que o tempo que devia gastar para uma simples pergunta, e Eulália, tomando a demora por um bom agouro, caminhou até junto da casa.
— São elas, não é verdade? - perguntou ao ver o semblante comovido do camarada que saía. - Sofrem muito?
— Sofre-se muito aqui, morre-se mesmo à fome, porém não é a sua família.
— Pois fiquemos entre eles - murmurou Eulália suspirando longamente a sua desilusão; - não pode haver melhor companhia.
O camarada baixou os olhos confuso, e, como Eulália se encaminhasse para entrar no casebre, o leal companheiro veio postar-se-lhe na frente.
— Vossa Mercê não deve entrar, faça pelo amor de Deus uma obra de misericórdia às infelizes que lá estão dentro, mas não entre, porque talvez se arrependa de ter querido praticar tão boa ação.
— Não me disse você que as pessoas que aí estão dentro morrem à fome?
— É verdade, porém Vossa Mercê tem-lhes ódio.
— Eu?
— Sim, e não as perdoará nem na hora da morte.
— É então Mundica? E a família da malvada? - interrogou Eulália arquejando.
O camarada abaixou os olhos; e ambos conservaram-se por algum tempo em silêncio, mas afinal a vítima de Mundica murmurou a soluçar:
— Avie-se para que encontremos outro pouso, e dê à gente que lá está dentro metade do que trazemos.
O camarada, aturdido pela generosidade de Eulália, entrou apressadamente na casa e foi entregar a Mundica o socorro inesperado.
A ex-amante do comissário, entregando-se a expansões de gratidão, e como invocasse os céus em paga da piedade que lhe vinha em auxílio, observou-lhe o camarada:
— Antes de tudo, você deve pedir um perdão; ajoelhar-se aos pés de uma pessoa a quem maltratou muito.
— Nunca ofendi ninguém que não me houvesse ofendido antes, mas ainda assim farei.
— Venha então comigo; esta esmola, que acabo de trazer-lhe, não é dada por mim; quem a dá é d. Eulália.
— Quem? Eulália?! - exclamou indignada. - Pode levar outra vez o que me trouxe. Eu sabia que ela devia estar farta e feliz, enquanto eu vivesse abandonada. Diga-lhe que nunca hei de curvar-me a ela, a comborça.
O camarada no primeiro ímpeto de indignação pensou iludir a ama e deixar Mundica e os seus entregues à penúria. Chegou a dar alguns passos, mas o seu coração cearense deteve-o.
— Diga o que quiser, fera, come e quando tiver mais força calunie, insulte e persiga a quem a salvou. Deus queira porém que o dia de hoje não volte, e sem remédio.
Sem dar tempo à resposta de Mundica, o honrado camarada saiu deixando a orgulhosa faminta irresoluta sobre a decisão a tomar.
Eulália, que se havia afastado, perguntou ao ver chegar o camarada:
— Poderá salvar-se a família?
— Sim - respondeu ele; - Vossa Mercê foi o anjo da guarda que lhes apareceu.
— Elas hão de pedir a Deus por quem lhes dá esmola - ponderou Eulália pensando em Virgulino; - e isto servirá para redimir-lhe os pecados.
— Elas amaldiçoarão o benfeitor - pensou o camarada; - aquelas feras não agradecem.
E o camarada era quem tinha razão. Mundica veio até a porta a fim de verificar se era com efeito Eulália quem vinha em socorro da sua família. Não pôde reconhecê-la pela distância em que já se achava, mas, vendo uma mulher, a rival de Eulália acreditou no camarada.
A generosidade extrema não a comoveu. Só um pensamento a dominou: foi que Eulália vivia feliz, podia atravessar a província e abastada a ponto de dividir com quem sofria; não obstante a miséria, vigilante como uma alfândega, espiar à beira da estrada, pedindo a todos uma contribuição penosíssima de lágrimas e de sofrimentos.
De onde lhe poderiam vir os recursos senão do vigário Paula? Conhecia-a bastante, sabia que ela fraqueara diante da sedução, mas não se rebolcaria facilmente na prostituição. Era por força Paula.
E Mundica amava-o ainda. Se não lhe dera as primícias da sua formosura, compensava-as com uma paixão que irrompia do ardor tumultuoso da mocidade. Traíra-lhe o segredo porque fora por ele ofendida no egoísmo da paixão, e agora com a separação sentia que o amava ainda mais.
Amá-lo-ia Eulália? Não o podia amar tanto quanto ela o amava, e, não obstante, Eulália fora a preferida, podia viver na abastança, enquanto ela acabava de ser ameaçada mortalmente pela fome.
Amélia ocupara-se imediatamente em socorrer a velha e fazer calar as crianças. Mundica, porém, hesitou em servir-se das provisões que lhe foram dadas pelo camarada; e só depois de longo meditar assentou-se junto de sua irmã e pôs-se a partilhar da refeição.
A desgraçada - disse ela sorrindo - veio dar-me forças para a vingança.
Amélia estremeceu ao ouvir sua irmã e murmurou:
— Você tirou o gênio de meu pai, até me faz medo.
— É que ainda está criança, não compreende o que isto é. Eu tenho coragem de matá-la.
Logo que terminou a refeição, Mundica foi ter com sua mãe e pôs-se a encorajá-la.
— É preciso que cheguemos a Quixadá, minha mãe; partiremos amanhã, não é verdade?
— Sim, partiremos amanhã.
— E lá nos encontraremos - resmungou Mundica -, havemos de ver quem vence.
No dia seguinte, pela manhã, as duas rivais saíam das pousadas em que haviam passado a noite.
Durante a jornada, Mundica, que por largas horas conservara-se calada, rompeu de improviso o silêncio.
— Vou pensando no caso do abarracamento.
— É o que você sempre nos arranja; já lá na paróquia você, por ser linguaruda, deu ocasião à barulhada.
— Eulália esteve também parada no abarracamento e, com certeza, esteve lá na noite em que o Cassiano deu por falta do dinheiro.
— E o que tem ela com isto?
— O vigário Paula esteve também lá. Eu aposto em como o vigário, que estava hospedado na casa do padre Belmiro. era ele.
— Pode bem ser - respondeu Amélia distraidamente.
Um longo silêncio seguiu-se à breve troca de frases, e só ao meio-dia, quando pararam para descansar, recomeçaram a conversação.
— Se eu encontrasse com Eulália, na posição em que estive no abarracamento, feliz e respeitada, sabe você o que eu fazia?
— Não - respondeu Amélia - mas devia ser por força uma maldade.
— Havia de procurar todos os meios de comprometê-la, e, se ela mandasse meter o chiqueirador em pessoas da minha família, havia de procurar perdê-la.
— E ela ainda tem mãos para nos dar esmolas.
— Eu, por exemplo, se viesse acompanhada de meu amante, pedia-lhe que se introduzisse de noite na casa do comissário.
— E depois? - perguntou Amélia corando.
— Depois dizia-lhe que ouvisse o que se conversava, e, finalmente, que sabendo que em uma lata estava o dinheiro, ele o roubasse para que a minha inimiga passasse por ladra.
— Mas Eulália era incapaz de proceder assim.
— Mas, como não se deu isto, fui eu quem roubou Cassiano.
— Não foi você, mas também não foi Eulália.
— Veremos; a justiça de Quixadá há de decidir isto.
— Mas o que vai você fazer, minha irmã? - perguntou Amélia estremecendo.
— Fazer com que Eulália diga de onde lhe vem o dinheiro com que dá esmolas. Ao menos ela e o vigário hão de confessar publicamente que são amantes.
A vila de Quixadá sussurrava cheia de espanto e de horror, na hora em que Mundica entrou por ela ao encalço de Eulália.
O povo aglomerava-se em frente à casa da autoridade e comentava calorosamente um fato que parecia estar fora da natureza humana. De quando em quando, toda a multidão agitava-se, investia contra a casa e proferia uníssona uma sentença medonha:
— Morra a assassina!
A prudência e a energia das pessoas, que guardavam a porta, continham a explosão indignada, e a onda popular, que continuava a engrossar, recuava tumultuariamente,
— Deixem estar que há de se fazer justiça, descansem, tenham paciência.
— Qual justiça, nem meia justiça - bradavam os exaltados; - isto é pegar dela e estrafegá-la.
— A autoridade há de cumprir com a sua obrigação; a justiça não será menos severa por ser demorada.
— Vejam a cara daquele demônio; está mesmo com um ar de fera!
— Que entranhas!
— Que monstro!
— Morra a assassina!
E, como todos quisessem colocar-se junto das janelas da casa do subdelegado, surgiam da grande massa protestos e palavras ásperas e desavergonhadas.
Sentado em frente a uma mesa, tendo ao lado um homem já idoso que estava a escrever, o subdelegado, um quarentão reforçado, de modos brandos, mostrava-se impaciente e acenava freqüentemente, recomendando aos homens da porta inteira prudência.
— Pode-se começar o interrogatório - disse o homem que escrevia.
— Olhem para ali; que horror! - gritaram os circunstantes que estavam à janela. - Pobre criança!
— Ela chegou sempre a comê-la?
— Se comeu! Foi ontem que ela praticou o crime e só hoje é que se deu por ele, por um acaso.
Queria fazer como as jibóias, hein? Enquanto tivesse o que comer, não deixaria o lugar.
— E era capaz de fazer o mesmo com o outro filho.
— Ah! eram dois?
— Eram sim; o outro, que ainda é de peito, está lá dentro. Eu o vi, já anda um bocadinho.
A autoridade impôs silêncio aos comentadores, mandando repetir que se ia proceder ao interrogatório da ré e das testemunhas.
As perguntas da lei foram formuladas então pausadamente, e a ré respondeu-as a soluçar.
Chamava-se Maria, e era casada com um Virgulino da Silva, de Inhamuns. Não sabia dizer onde parava o seu marido; acompanhara-a de Inhamuns ao B. V. com destino ao Aracati, mas em caminho, morrendo-lhe o pai, decidiu demorar-se naquela paróquia, de onde desapareceu.
— E não sabe que destino tomou?
— Não; ele saiu com muitos outros, entre os quais um feiticeiro que brincava com cascavéis. Não sei se é vivo ou morto.
— Sabe de que é acusada?
A mísera ré meneou afirmativamente a cabeça, que escondeu entre as mãos, a soluçar compungentemente.
— Que demônio! - ponderavam os circunstantes. – Quer nos enternecer com as lágrimas. Causa asco.
— Responda - exclamou o magistrado -, é preciso que você responda com a sua própria boca.
— Sei, sim senhor - suspirou a desventurada.
As suas palavras, proferidas com grande esforço, pareciam trazer consigo parte do coração. Os próprios exaltados sentiram-se comovidos, e olhando para a mulher, vendo-lhe as faces escaveiradas, os olhos encravados profundamente nas órbitas, vermelhos das lágrimas, os vestidos sórdidos e muito rotos, os próprios exaltados murmuraram:
— O que é verdade é que, para uma mãe fazer o que preciso estar doida.
Outros, porém, acudiram logo:
— É mesmo por maus bofes; doido não diz coisa com coisa, e ela responde que nem uma letrada.
— Diga então qual o crime de que é acusada - ordenou a autoridade dirigindo-se à ré.
— Vossa Mercê bem sabe qual foi; eu não posso repetir...
— É o remorso, malvada! - gritaram os circunstantes.
— É preciso dizer insistiu a autoridade -, eu só posso tomar o que você responder.
— Matei meu filho! - resmungou desventurada.
— E que idade tinha ele?
— Quase cinco anos.
— Foi levada por alguma raiva?
— Não.
— Alguém a obrigou a praticar semelhante ato?
— Não, foi a minha desgraça.
— Mas qual foi esta desgraça? — A fome.
— Não tente iludir a justiça em nenhuma das circunstâncias do crime, porque a sua punição será ainda maior.
— Para mim é um benefício morrer, com tanto que amparem aquele infeliz que lá está dentro.
— Diga como foi levada a praticar esse crime.
Maria pôs-se a expor circunstanciadamente as peripécias da retirada até o encontro com as crianças que choravam junto ao cadáver materno, crianças que ela tentou trazer consigo, porém que morreram ambas na mesma noite.
A autoridade deteve-a neste ponto que pareceu uma circunstância agravante.
— As crianças, que tentou socorrer, morreram então na mesma noite.
— É verdade. Eu as havia deitado na mesma rede com os meus filhos e de manhã encontrei-as mortas.
— Mas acredita que se possa dar naturalmente este fato? Não teria você feito com elas o mesmo que fez com o seu próprio filho?
— Não, meu senhor; eu não as matei. Morreram e eu chorei por elas. Foram essas crianças a causa da minha desgraça.
— E de que morreram as crianças?
— Não posso dizer; eu as havia alimentado.
— Pois se você teve entre o último povoado e esta vila o que comer e o que dar a outrem, como precisou de matar o seu filho por ter fome?
— Eu vou contar a Vossa Mercê o que se passou.
A desgraçada calou-se por algum tempo, e depois da pausa referiu a história desta parte da retirada.
Era natural e simples. No mesmo dia em que deixaram a árvore, e sob ela os cadáveres da mãe e das duas crianças, Maria viu-se abandonada pelos seus que, para agravarem-lhe a temerosa situação, deixaram-lhe ficar não só a criança que ainda vivia, mas também a outra que fora vítima. A marcha, que já era penosíssima com o peso de uma só criança, tornou-se quase impossível, e em breve a fome e o cansaço vieram impossibilitá-la de todo.
Não conhecia a estrada, e, para qualquer lado que se voltasse, via sempre a mesma perspectiva hostil da natureza: a esterilidade abraçada com a solidão.
Por onde e para onde caminhar? Quantas léguas faltariam ainda para que chegasse à vila? Não sabia; a única certeza que tinha era a de trilhar uma estrada, de cujas margens a assolação pregava o desânimo.
A fome e o cansaço acobardaram-na; porque, prosseguir na jornada, quando não se podia abrigar da soalheira e nada tinha para comer, era expor a vida dos filhos. Já não tinha forças para carregar ambos nos braços e nem era possível obter do pequeno mais uma caminhada. Resolveu, pois, esperar que a misericórdia do céu guiasse para o lugar, onde parara, algum caminheiro e que a piedade deste lhe viesse em socorro.
O dia, porém, passou desfazendo-lhe todas as esperanças; nem um só passageiro pisou o chão da estrada e no entanto a morte caminhava para ela e para os filhos com os passos cruéis da fome, que se fazem sentir no corpo humano como a dor de uma queimadura continuada.
Quis aleitar o filho menor e os seios não lhe deram nem uma gota de leite; insistiu com o maior para que comesse as raízes que tinham sido a sua alimentação durante dias, não quis também aceitar.
— E então - perguntou a autoridade comovida - que resolução tomou?
— Durante toda a noite - prosseguiu a ré na sua narração, sem prestar ouvidos à pergunta - o choro das crianças atordoou-me. Quando extremamente fatigadas as pobrezinhas calaram-se, o eco ficara a azoinar-me e a fazer-me delirar. Vossa Mercê não sabe o que é para um coração de mãe ouvir chorar os filhos com fome - exclamou a desventurada.
— Bem - interrompeu-a o juiz - não é disto que se trata; a justiça quer saber como você teve coragem para matar o seu próprio filho.
— Ora como! - comentaram os circunstantes. - Como qualquer mataria a outra qualquer criança, como provavelmente ela matou as duas que encontrou sem mãe nem pai.
— E as comeu também com certeza; veja se aquilo é corpo de quem tem passado tanta fome como ela está dizendo.
— Comeu os pequenos e quando acabou a carniça passou ao próprio filho.
— Tomou gosto e pôs-se na ceva. Dizem que a carne do homem tem um bom paladar.
— Credo! Nem é bom falar nisso.
— Silêncio! - bradou o juiz. - É preciso que a justiça ouça a delinqüente.
A mulher do bandido, como se estivesse completamente alheia ao que se passava, reatou ainda uma vez a sua narração.
Ao amanhecer reparou para o semblante dos filhos. Os traços dos esfaimados estavam neles profundamente gravados. Vieram-lhe então à lembrança a mãe e os dois filhos que havia encontrado em caminho. Ia ter a mesma sorte deles e, não obstante, não a merecia. Os três surgiam como espectros na sua imaginação; via a mulher com os braços hirtos, os dedos cravados no solo e parecia-lhe que o cadáver adquiria uma mobilidade sobrenatural, que lhe dava ao corpo os meneios de serpente, ao mesmo tempo que lhe marcava o rosto com a ira das onças enfurecidas...
— É o remorso que a persegue... - resmungou o juiz. .... Desvairada pelo horror de semelhante quadro, começou a pensar tumultuariamente sobre o destino que lhe restava. Partir ou ficar era irremediavelmente morrer; porém deveriam morrer todos? Tinham os seus dois filhos o direito de exigir-lhe a vida, quando ela ia deixar ainda outros na orfandade?
A consciência respondeu-lhe que não, e a desgraçada preparou-se para abandonar os dois infelizes. Melhor fora havê-lo feito logo, mas o coração prendeu-a, não teve força para arrancar dos seus braços o pequenino; a própria desgraça soldava-o de encontro ao seu seio.
Uma recordação fatal veio-lhe então à memória. Lembrou-se de que para as bandas do Crato uma mulher havia comido o filho. A princípio esta recordação horrorizou-a, mas a pouco e pouco foi avassalando-a, porque tinha por si a fome. A lógica adamantina do crime sugeriu-lhe argumentos poderosos: se ficasse, todos morreriam, se abandonasse os filhos, eles morreriam. Era trocar morte por morte, mas com uma diferença, a de que podia salvar a si e a um dos filhos.
Empolgada por este horroroso pensamento lutou durante horas para fugir-lhe ao guante. Suplicou de joelhos ao céu que fizesse aproximar alguém, porque sozinha já não podia defender-se das sugestões fatais do crime. Em vão foram proferidas as suas súplicas: só um caminheiro aproximou-se, mas este, longe de trazer uma palavra de consolo, um afago de piedade, mudo, indiferente, apenas serviu para agravar-lhe o estado mental. Era o sol que, dardejando uma irradiação ardente, parecia dar-lhe razão ao pensamento mau.
Olhou então para os dois, que, prostrados, já sem forças para chorar, arquejavam um sono agitado que parecia um acesso febril mortal. Uma voz imperiosa que parecia vir da própria natureza, disse-lhe então: salva-te matando, porque a morte é a única solução que te resta.
A razão mergulhou-se-lhe em trevas; não refletiu mais, não sentiu nem a mais leve pressão do sentimento de maternidade. Estava convencida de que era forçoso que um dos seus filhos morresse, mas não quis escolher por si mesma, entregou à sorte a sentença. Dois pedacinhos de pau, o maior simbolizando o mais velho, o menor o caçula, serviram de forma ao veredicto. Fechou os olhos, sacudiu-os nas mãos covas sobrepostas e depois depondo-os no chão tateou até tocar em um deles. Era o maior...
A multidão silenciara ouvindo a descrição da cena pavorosa e estremecia comovida até as lágrimas.
... No seu olhar estampou-se o batalhar de sentimentos opostos que a desvairava e a criança, que se havia assentado acordando sobressaltada, teve tanto medo que se foi abraçar com o irmãozinho. Ela fitou-o com a gula do tigre e, gatinhando como ele, com movimentos largos, mas sem ruído, foi parar a pequena distância. Tornou-o a fitar e como se uma jibóia esfaimada se intumescesse dentro em si, empregando toda a sua elasticidade para dar força e precisão ao bote, encolheu-se e de um salto agarrou pelos cabelos a mísera vitima, levantou-a até a altura dos lábios, cobriu-a pela última vez de beijos, como a jibóia cobre a presa de baba, e perdeu de todo a cabeça. Quando voltou aos sentidos regularmente, estava entre as mãos das pessoas que a amarravam e a conduziram à vila.
Pairava em todos os semblantes uma impressão dolorosíssima. A própria autoridade, que se esforçava por manter urna severidade convencional, mal podia conter as lágrimas, que lhe eram arrancadas pela vibração pungente das palavras da narradora.
Só depois de uma longa pausa, durante a qual a mulher do bandido soluçava comoventemente, voltou-se às formalidades legais. Começou o depoimento das testemunhas.
Eram duas. Passando pela estrada, viram levantar-se de um casebre um pouco retirado uma réstia de fumo. Aproximaram-se para pedir que os deixassem ai preparar o almoço. Veio recebê-los a acusada, cuja fisionomia profundamente aterrada os intimidou.
— É uma doida - pensaram pois que não dava resposta a nenhuma pergunta, e com um olhar extremamente brilhante, esgarado, observava e examinava tudo em torno.
— Bem - disseram -, deixe-nos apenas tirar fogo; nós seguimos viagem.
Quiseram entrar para o interior, mas a acusada pôs-se-lhes diante, impedindo-lhes o passo. Admirados de ver uma cearense negar até uma brasa de fogo aos seus semelhantes, mais se lhes aprofundou a convicção de que tinham diante de si uma pobre louca.
Retiraram-se, mas de pequena distância voltaram para observar a mulher singular. Souberam então a causa que motivava a proibição formal à entrada no interior da casa.
Ardia vivo, no meio do compartimento da casa, o qual devia ter sido a cozinha, um grande brasido sobre o qual chiava um pedaço de carne. De costas para ele, acocorada defronte do cadáver nu de um menino, a mulher, munida de uma pequena faca, descarnava-lhe uma das coxas, cortando com a frieza de um carniceiro as carnes de um boi.
O espanto, a confusão chumbaram os pés das testemunhas ao solo e quedos no lugar de onde observavam, sem voz ao menos para impedir que a operação prosseguisse, puderam ver por longo espaço a vítima, já com o rosto escaveirado porque lhe haviam sido cortadas as bochechas e os lábios, entregue à alucinação ou a perversidade da assassina.
— E como conseguiram prendê-la?
Ao lado sobre uns trapos dormia uma criança, um quase esqueleto que por acaso acordou a chorar. A mulher, correndo precipitadamente para ela, tomou-a nos braços, e, manchando-a com o sangue da vitima, deitou-a no colo, e pôs-lhe nos lábios o seio, cobrindo-a carinhosamente de beijos.
Passou-lhes então pelo pensamento uma idéia medonha. Quem poderia afirmar que essa temível facínora não tinha em vista repetir na mísera criança o crime que já havia perpetrado contra a outra?
O exagero do horror que lhes causou esta previsão transformou-lhes a primeira impressão num acesso violento de coragem, e de um salto, estando sobre a assassina, seguraram-na de modo a tolher-lhe inteiramente os movimentos.
Aterrorada pela prisão, ela não confessou logo que havia assassinado o menino. Disse que ele morrera de fome e que só porque ela também tinha fome e via o seu filho menor prestes a morrer, serviu-se das carnes do morto para comer.
Esta explicação, porém, não foi aceita e elas, testemunhas, reso1vendo deslindar o caso diante da autoridade, amarraram a mulher e transportaram o cadáver do pequeno.
Ouvido o depoimento, a autoridade perguntou à acusada:
— Qual dos dois depoimentos é o verdadeiro: o que nos fizeram as testemunhas ou o que fez aqui?
A desgraçada mãe não respondeu; continuou a soluçar como se não tivesse ouvido.
Longe, porém, de irritar-se com o silêncio da infeliz, a autoridade, lendo na sua atitude humilhada a grande, a indizíve1 dor que a acabrunhava, limitou-se a dizer:
— O cadáver mostrará se houve ou se não houve assassinato; tragam-no para aqui.
A curiosidade popular, que era tamanha como o espanto que lhes causava o caso insólito, amotinou-se ouvindo as palavras da autoridade e, apesar da resistência dos guardas da porta, a onda de povo encheu completamente a sala.
Só com imensa dificuldade dois homens puderam passar do interior da casa para o meio da sala, com uma rede ensangüentada, que depuseram no chão.
— Cerquem esta mulher e ninguém lhe ponha a mão. A justiça há de fazer o seu dever - bradou o subdelegado que veio, acocorando-se em frente da rede, abri-la diante da curiosidade geral.
Ao ver ó corpo da criança barbaramente mutilado, cortadas as bochechas de modo que ficaram a descoberto os parietais, os maxilares, os dentes encravados numas gengivas já roxeadas, uma das coxas quase toda descarnada, a multidão teve um assomo de indignação contra a autora do crime, e tão violento que só o respeito de que gozava a autoridade evitou que ele fosse fatal.
— Morra a fera!
— Façamo-lhe o mesmo que ela fez à criança!
— Deite-se ao fogo esta mãe desnaturada!
— Morra a perversa!
A autoridade, que oscilava à mercê das impressões, mudou também de semblante, e a expressão de piedade tornou-se-lhe em clara demonstração de má vontade à ré.
Depois de examinar o pescoço e o crânio do assassinado, vendo no primeiro os sinais do estrangulamento e no segundo sobre o temporal uma grande mancha roxa, o subdelegado resmungou:
— Não há dúvida, sufocou-o perversamente.
E dirigindo-se à acusada:
— Disse-me que havia agarrado pelos cabelos do seu filho, não é verdade?
A desgraçada meneou a cabeça afirmativamente.
— Depois, conforme se vê pelos sinais, apertou-lhe a garganta com as mãos, não é verdade?
O mesmo gesto foi reproduzido pela mísera mulher.
— Há também um sinal roxo sobre uma das fontes. Você, para apressar a morte do pequeno, bateu-lhe com a cabeça em algum lugar, não é exato? Talvez em um portal?
O gesto horripilante foi ainda uma vez repetido e o povo acompanhou-o com um estrepitoso - morra!
Desta vez a autoridade não teve mais força para conter o movimento de indignação geral e a massa precipitou-se de encontro à assassina. Nenhum dos braços ultrizes, porém, chegou a tocar no seu corpo, porque uma mulher, tendo nos braços o esquelético filho da esposa do bandido Virgulino; ajoelhando-se-lhe em frente, suplicou, debulhada em lágrimas e levantando a criancinha como única arma:
— Não matem esta desgraçada, porque matam com ela uma inocente!
Os guardas, aproveitando-se da parada da multidão no seu ímpeto vingativo, puxaram a assassina para o interior da casa da autoridade, que, se postando na porta, impediu a invasão.
Todo o despeito popular limitou-se então a protestos contra a proteção com que se tratava uma fera, que havia assassinado para comer o próprio filho.
— Se lhe parece, deixe em liberdade o demônio.
— Mande-a enroupar e montar casa; ela merece.
Estas e outras invectivas à autoridade não foram, porém, respondidas e o ajuntamento foi a pouco e pouco se desfazendo.
Quando a multidão rareou, duas mulheres encontraram-se face a face; uma trazia nos braços o filho da assassina, outra segurava pela mão uma criança.
Um olhar de cólera foi trocado entre elas, mas a que trazia nos braços o filho da assassina, como se de súbito se arrependera de haver correspondido à provocação da outra, quis voltar sobre os seus passos.
Eulália, que era a que tentou voltar, foi porém detida pela outra, a vingativa Mundica, que veio postar-se-lhe diante.
— Eu recebi a esmola - murmurou a filha do sacristão o venho dar-lhe os agradecimentos.
Eulália calou-se e buscou desviar-se para seguir.
— Escute - acrescentou Mundica, travando-lhe o braço -, não pense que me mete medo com o seu desprezo. Eu recebi a esmola, mas quero saber de onde você a tirou para dar-ma.
— Deixe-me em paz, Mundica, eu nunca a ofendi; por que há de você querer maltratar-me?
— Não, nunca me ofendeu - sorriu Mundica -, mas a verdade é que eu estou na miséria e que você vive feliz.
— E que culpa tenho disto? Deixe-me sair, queixe-se de quem é a causa da sua desgraça.
— Quer sair, não? Sairá; porém, antes de tudo, há de dizer de onde lhe vem o dinheiro que tem.
— Deram-mo.
— E a pessoa não tem nome?
Eulália calou-se. Nem a sua dignidade permitia-lhe que respondesse a Mundica, nem devia pronunciar o nome de Virgulino, principalmente agora que tão lamentosa desgraça havia caído sobre a sua família.
— Cala, não é assim? Pois eu sei como lhe veio às mãos esse dinheiro...
Julgando que, por qualquer circunstância, Mundica tivesse conhecimento da sua estada na vendola e das suas relações com o bandido, Eulália não pôde esconder uma comoção violenta, que, por sua vez, não passou despercebida a Mundica.
— Pode dizer-me qual dos dois foi o que se incumbiu do roubo?
— Largue-me, pelo amor de Deus - murmurou Eulália forcejando por livrar o punho da mão de Mundica; - você está acostumada às brigas, eu não.
— Mas está acostumada ao roubo... Fale, grite, chore, não me foge; eu quero deslindar o caso diante do subdelegado. Você não passa de uma ladra!
A injúria foi vibrada em voz tão alta que chamou a atenção dos poucos circunstantes que ainda se achavam no lugar, e demais disso assustou de tal forma a mísera injuriada que ela murmurou, humilhando-se:
— Você bem sabe que eu não sou capaz de furtar, Mundica. Eu não mereço que você me faça mal, só por haver tirado do que tinha para repartir consigo.
— Eu também faria o mesmo, se fosse por minha causa que outra pessoa estivesse quase morrendo de fome. Boa caridade, minha ladra.
À medida que a atenção convergia para o grupo, Mundica alterava o tom, de modo que pudesse ser ouvida.
— Homem, aquilo creio que é estralada nova; elas estão a se chamar ladras.
— Não, uma delas é que é a ladra; não a viu quase ajoelhar-se diante da outra?
Diversas pessoas se aproximaram e Mundica, triunfante, continuou:
— Pode pedir até pelas cinzas de meu pai, eu não hei ficar enxovalhada por sua causa. Vamos à presença da autoridade.
E puxou pelo braço da outra, obrigando-a a reentrar na casa do subdelegado.
Ao passo que Mundica gesticulava, levantava estrepitosaente a voz e fazia requebros canalhas, Eulália, traspassada vergonha e de receio, limitava-se a chorar.
— Então o que temos? - perguntou o subdelegado.
— Foi esta mulher que furtou no pouso de... uma carteira do comissário, com mais de um conto de réis.
— Eu?! - interrogou Eulália admirada. - Eu?! – repetiu a sufocar-se em soluços.
Mundica sentiu falecer-lhe a coragem para prosseguir na acusação, tanto mais porque ela parecia-lhe agora de todo o ponto caluniosa. Mas o desejo de vingança, o grito selvagem do ciúme, veio logo fortalecê-la e a odienta rival acrescentou:
— Você mesma, não podia ser outra.
A autoridade, que simpatizava com Eulália por vê-la oferecer-se para tomar o encargo de cuidar do filho da assassina, interveio em favor da infeliz.
— E que prova tem você para fazer uma acusação destas?
— A prova é que esta moça era filha do professor de B. V. que morreu pobre como Jó; que ela saiu da paróquia muito pobre, que a família dela ficou tão pobre que talvez já tenha morrido à fome, e que ela do pouso de... para cá tem dinheiro e tanto que pode dar esmolas.
— Mas isto não é prova, pode ser que lhe dessem dinheiro...
— Mas se, na véspera da saída dela do pouso, sumiu-se uma carteira do comissário?...
— Isto ainda não é prova.
— Mundica acusa-me de ter tirado a carteira, mas eu não estive no abarracamento nem fui à casa do comissário; como, pois, havia de furtar? Ela bem sabe que a minha educação não foi essa.
— Nem a minha. Você tirou o dinheiro para me fazer mal. E de mais corram a nós duas, e veja-se quem é que traz dinheiro.
— É o que se deve fazer - ponderaram os circunstantes; - não há testemunhas nem pró nem contra, o dinheiro é quem fala a verdade.
O subdelegado mandou que ambas mostrassem as algibeiras dos vestidos e Eulália, sem relutar, tirou do bolso a carteira que lhe tinha sido dada por Virgulino.
— Eu tenho dinheiro nesta carteira, mas não é a quantia que sumiu-se ao comissário.
— É que você já deu destino ao que falta.
O dinheiro foi contado, mas com grande satisfação de Eulália reconheceu-se que a quantia não excedia a cem mil-réis.
— Já vêem que não é a quantia de que fala aquela mulher - ponderou o subdelegado.
— Vossa Mercê não sabe quem é esta rapariga - exclamou Mundica; - desde que ela foi amante do vigário de B. V., tem cometido todos os crimes. ~ tão boa que a família não a quis junto a si.
Eulália, que não havia ainda perdido o recato da mulher honesta, não sabia responder às acusações de Mundica, senão admirando-se da perversidade que as gerava, e a sua causa começou a perigar. Os circunstantes aceitavam todos, como prova de que Mundica dizia a verdade, o fato de se encontrar a carteira em poder de Eulália.
Observaram uníssonos:
— O melhor é retê-la até que prove que não é culpada.
O subdelegado lançou um olhar penetrante a Eulália, que tiritava debulhada em lágrimas. Dir-se-ia que esse olhar, como o brilho de uma lâmpada sobrenatural, tentava dissipar toda a sombra em que porventura a acusada se quisesse ocultar, e irradiar no íntimo da consciência dela. — Como obteve este dinheiro? - perguntou ele. - Diga quem lho deu.
Eulália abaixou os olhos e prorrompeu em soluços.
— Isto é o que ela não pode dizer - sorriu Mundica; - foi pilhada com a boca na botija.
— Não furtei - respondeu humildemente Eulália - deram-mo.
— Tem a boca dura como um poldro xucro - ponderaram os circunstantes. - Não confessa; cadeia com ela.
— Esteve ou não no povoado quando sumiu-se o dinheiro? - perguntou a autoridade.
— Estive - murmurou Eulália -, mas não conheci o comissário.
— Não esteve arranchada no abarracamento?
— Não; passei dois dias na casa da irmã do sr. vigário.
— Quando chegou ao povoado já trazia o dinheiro?
— Sim, senhor.
— Mas, não era tão pobre em B. V.? Como pôde conseguir tamanha soma?
“É que o vigário deu-lha” - pensou Mundica; - "hei de perdê-la, desgraçada. Há de pelo menos provar a cadeia."
— Saí de B. V. sem um vintém, mas em caminho encontrei com um homem, a quem havia prestado um pequeno serviço e ele deu-me esta carteira. — E qual foi o serviço que mereceu tamanha recompensa? Eulália calou-se e os circunstantes resmungaram:
— Está bem arranjada a desculpa, mas não pega, neste tempo não há quem faça disto.
— Se não diz quem lhe deu o dinheiro, eu me vejo obrigado a mandá-la deter até que se justifique. Você não tinha eira nem beira em B. V.; não podia também arranjar esta soma em viagem porque não há hoje meios de fazê-lo. Entretanto na sua passagem desapareceu um dinheiro; é sua obrigação dizer a verdade para que a autoridade saiba o que deve fazer.
O nome de Virgulino veio pairar à flor dos lábios da infeliz, porém a vergonha evitou que ele fosse proferido.
— Eu não posso deixar de tomar uma providência muito séria, minha filha, fale; defenda-se.
— Eu falo pela minha ama, sr. juiz - exclamou da porta o camarada, que tinha ficado perplexo ouvindo a acusação feita a Eulália. - Esta mulher - disse apontando Mundica - era amante do comissário de... Há cinco para seis noites, quando ela se retirou da casa do comissário, este deu por falta de um conto de réis, e deu-a como ladra desta quantia.
— Eu não nego que assim fosse - acudiu Mundica- mas o que é verdade é que eu não tive nem com que comprar um pires de farinha, e outra retirante, como eu, tem até para repartir com os outros.
— Com você, que é uma ingrata, que estava a morrer de fome e a quem ela deu metade do que trazia para socorrer à família expulsa de... por sua própria causa, Mundica.
Mundica sentiu-se momentaneamente confundida, mas o sangue-frio voltou-lhe de pronto e inspirou-lhe uma evasiva feliz.
— Eu não falo sem provas. Quando fui acusada pelo comissário, não invoquei o nome de Eulália, o que serve para mostrar que não é por ódio e muito menos por ingratidão que eu falo. Sabia que ela estava no povoado... mas não quis lançar sobre ela a pecha de que eu tanto me horrorizava. Mas hoje, que ela se apresenta com dinheiro, eu estou no meu direito obrigando-a a explicar a origem da sua fortuna.
— Ela não atribuiu a Eulália o crime, quando foi acusada no abarracamento? - perguntou a autoridade ao camarada.
— Não - respondeu este -, mas também é verdade que, logo que o fato tornou-se público, o comissário fez retirar a golpes de chicote Mundica e a sua família.
— Diga-me, onde está a sua família? Quero vê-la para poder fazer o meu juízo - disse a autoridade; - mandá-la-ei chamar.
— Eu não sei onde ela se acha.
— É o que eu já disse: desde que se fez amante do vigário Paula, brigou com a família para andar mais à solta.
— É verdade o que esta mulher está dizendo? - perguntou a autoridade a Eulália.
— É exato que eu me separei dos meus parentes, porém não fui por eles expulsa, nem lhes quero mal por isso.
A autoridade, visivelmente contrariada, porque certa da inocência de Eulália, via-a entretanto comprometida no juízo geral, e murmurou:
— Não tenho remédio senão tirar isto a limpo, e, para fazê-lo, ambas vocês ficarão às minhas ordens.
— Tenha pena de mim por esta pobre criança - soluçou Eulália; - a prisão vai prejudicá-la, e o sr. juiz não há de consentir que por uma calúnia sofra eu e este desgraçadinho.
— Disse que conhecia o vigário Belmiro e tanto que pousou na casa da sua irmã.
— Dois dias.
— Ele informará a seu respeito, qual o seu procedimento, a sua entrada e saída do povoado.
Eulália, comovendo-se inexplicavelmente, soltou um ai aflito ao ouvir as últimas palavras da autoridade e proferiu com um soluço:
— Estou perdida, meu Deus, eu não me despedi da família quando me retirei de lá!
Esta declaração de Eulália foi considerada uma circunstância agravante pelas pessoas presentes, que, por este simples fato, decidiram-se logo a favor de Mundica.
— Não há dúvida - ponderaram; - ela que fugiu alguma razão teve.
— Deixe ficar aí a criança - disse o subdelegado dirigindo-se a Eulália; e, voltando-se para dois dos circunstantes -. vocês façam-me o favor de conduzir estas duas mulheres até a cadeia.
A ordem do subdelegado foi cumprida pelos circunstantes e por Eulália, que entretanto demorou-se em abraçar e beijar o filho da assassina.
— Não sei por que - sorriam os circunstantes -, mas a verdade é que os criminosos têm sempre uma grande predileção pelos outros.
Mundica saiu desembaraçada e a sorrir, ao passo que Eulália mal podia mover-se. A ordem de prisão pesava-lhe sobre o caráter como se fosse um rochedo que lhe houvessem prendido aos pés.
Na porta da casa estava parada a família de Mundica, que se lhe dirigiu com a desenvoltura de uma virago:
— Não tenham medo, eu vou presa, mas não me hei de demorar muito lá. E depois, mais vale um gosto...
— Que gênio soluçou Amelinha. - Não sei de quem é que ela puxou tanta perversidade.
— Até logo - exclamou alegremente Mundica.
O homem que seguia Eulália impeliu-a brandamente para fazê-la caminhar e o subdelegado, que chegara à porta, murmurou com azedume apontando Mundica:
— Se os ânimos não estivessem hoje exaltados, eu havia de ensiná-la.
Acompanhadas pelos circunstantes, Eulália e Mundica puseram-se a caminho; a primeira insultada e a segunda felicitada pelos comentários gerais.
— Quem não deve, não teme.
— O crime é quem a faz andar devagar; não pensou que se viesse a descobrir tão cedo.
Quase à porta da cadeia, que ficava a pouca distância da casa do subdelegado, os olhares de Eulália e de Mundica encontraram-se com o de um cavaleiro, que era desconhecido para todos, mas que entretanto mostrava conhecer algumas pessoas do ajuntamento.
O pajem, que seguia o cavaleiro, veio por ordem dele informar-se do que se passava e perguntar, ao mesmo tempo, onde podiam ser encontrados o pároco e o subdelegado.
— Ambos em casa - responderam; - quanto ao que está vendo é a prisão de uma ladra.
O cavaleiro dispunha-se a galopar para apressar a chegada à casa da autoridade, quando um clamor o deteve:
— Lá vai ele acompanhando a assassina do próprio filho, a fera.
Adiantando-se do grupo, o cavaleiro dirigiu-se a galope até a porta da cadeia, e entregou ao subdelegado uma carta da parte do vigário Belmiro.
— Nem de propósito; o senhor vem de lá da freguesia?
— Parti ontem.
— E estava lá quando foi feito um roubo ao comissário?
— Feito por uma tal Mundica, não é verdade?
— Ela nega, e atribui a uma outra, chamada Eulália, o crime.
— É uma infame, aquela perdida; juro-lhe em como é uma calúnia, para tomar uma vingança miserável contra a outra. Queira ler a carta.
O subdelegado rasgava a obreia que fechava o papel, quando o grupo aproximou-se.
— Deixem em liberdade esta moça - disse ele assinalando Eulália; e dirigindo-se a esta: - pode retirar-se.
O cavaleiro, que havia dado as costas ao grupo, olhou de através para ver a direção tomada por Eulália.
— Conduzam esta outra para dentro, e esperem até que decida qual o destino que lhe devo dar.
Houve geral perplexidade da multidão, ainda despeitada por não ter podido efetuar justiça bárbara na pessoa da infanticida.
— Que vergonha: mosca-morta com uma assassina e cruel com uma inocente - murmuravam.
O subdelegado, que havia terminado a leitura, teve um movimento de surpresa e caminhou para o desconhecido.
— Queira perdoar-me qualquer desatenção; não tinha a subida honra de o conhecer, sr. vigário.
— Queira perdoar-me o vestuário; sirvo-me deste meio para evitar um escândalo. Pela carta sabe que fui torpemente caluniado em B. V., e para maior tristeza minha, com esta pobre menina que V. Sa. acaba de pôr em liberdade.
— A outra argumentou com esta circunstância.
— Ah! Ela tem razão, era filha do meu sacristão, e pensavam ela e o pai que tudo quanto pertencia direta ou indiretamente à igreja lhes pertencia.
Sorriram ambos, e o subdelegado perguntou:
— E a respeito do furto do dinheiro, o que hei de eu dizer?
— Que, felizmente, já apareceu a quantia furtada. Tem aqui V. Sa. uma prova evidente para dar, é uma carta do próprio comissário, que comunica ao vigário Belmiro haver encontrado a latinha no lugar que foi designado pelo seu hóspede.
— E este hóspede, era vossa reverendíssima?
— Exatamente; havia saído à noite para espairecer e passei pela casa do comissário, que, como sabe, mora na mesma rua em que reside o vigário. Vi então dois vultos dirigirem-se para a extremidade da rua e aí enterrarem no areal um objeto. Quando ouvi que o comissário tinha sido furtado, lembrando-me do caso, comuniquei ao vigário.
— E foi encontrada a quantia exata?
— Pode afirmá-lo sob palavra de honra. O pajem que me acompanha é do lugar; ele deve conhecer a Mundica, sabe do fato e pode já referi-lo.
— Bem me pareceu que a tal Mundica mentia, e que era ela a verdadeira autora.
— Eu não juro que fosse ela, mas juro que não foi Eulália.
— Não ficou averiguado então.
— Eu fui a única testemunha, e não pude reconhecer os vultos, quando procediam ao enterramento do furto.
— Neste caso, nada se deve também fazer à Mundica.
Paula, que temia o encontro com Mundica, porque tinha certeza da sua perseguição, ponderou com um suspiro:
— É certo que Mundica pernoitava na casa do comissário; que ambos dormiam no quarto em que estava o dinheiro; que à noite Mundica pediu ao comissário que lhe desse dinheiro para que ela se retirasse temporariamente do lugar; é certo também que o comissário mostrou-lhe o dinheiro que tinha em seu poder e que na mesma noite deu-se o roubo.
— É, pois, quase certo que não podia ser senão Mundica a autora do furto, porque ninguém senão ela podia saber onde estava o dinheiro.
— É pelo menos o que parece.
— Neste caso, o melhor é deixá-la ficar aí de molho, até que venham notícias de lá.
— Eu não faria assim; perdoe-me V. Sa., eu dava apenas exemplo. Em épocas de miséria tudo é possível e não se pode ser severo. Detinha-a por uma semana. E consigo pensava Paula:
"É o tempo necessário para que Eulália siga até Baturité, e daí por diante não tenho nada mais a temer".
— É o que vou fazer - disse o subdelegado, e, apontando a Paula o caminho da casa: - queira esperar-me lá; tenho muito que fazer aqui.
"Bem, cheguei uma vez a tempo" - pensou Paula, que, distanciando-se do grupo, dirigiu o olhar para o lado que Eulália havia tomado.
Ela caminhava apressadamente e o vigário, como se fosse pela força de uma torrente, seguia a mesma direção. No seu olhar brilhante a paixão tocava rebate ao coração deveras amargurado, convidando a dessedentar-se nas carícias Eulália, a escrava submissa de outrora, não ousaria negar.
— Não é na casa do subdelegado que Vossa Mercê pousar?
— É - respondeu Paula contrariado.
— Então já estamos quase à porta; é ali. Paula teve um sobressalto semelhante ao de quem é de e acordado, e, para não ter de parar, observou:
— Devemos ir primeiro entregar a carta ao pároco; depois pensaremos na casa do subdelegado.
— Se Vossa Mercê quer ir à casa do vigário, temos de voltar; já lá ficou.
Vendo que para guardar conveniências era obrigado a parar, porque se continuasse a seguir Eulália todos o perceberiam, Paula resignou-se a voltar em procura do vigário, a quem principalmente vinha recomendado.
À porta, não podendo resistir ao desejo que tinha de falar à Eulália, de conciliar-se com ela, de pedir-lhe, enfim, a dedicação do passado, Paula perguntou ao pajem:
— Reparou naquelas mulheres que iam presas?
— Uma era a Mundica.
— A outra seguiu por ali; não deve ir longe; você acompanhe-a e venha dizer-me onde ela está pousada.
Durante a manhã inteira Eulália ocupara-se em procurar pela vila a família, e foi com este fim que se dirigiu à casa da autoridade, para onde a maioria da população era atraída pela notícia do crime descomunal da mulher de Virgulino.
Aí a esperavam, além de uma desilusão, os sofrimentos que lhe ocasionou a sua presença em tal lugar, e quando, por uma razão que não sabia explicar, viu-se livre da prisão, a infeliz caminhou a esmo, apressada como se ouvisse após si os passos da justiça.
Na caminhada que levava, embarafustou pela feira, sem reparar nos ditos e nos olhares que a sua beleza, embora machucada pelo tormento, provocava. nos circunstantes. Não reparou também em um homem que, sentado em uma das saídas da feira, com o queixo fincado nas palmas das mãos, amargurava-se em silêncio, como uma fermentação de plantas venenosas.
Depois de haver passado por ele, o homem levantou-se como alucinado, e puxou-a bruscamente por um dos braços:
— É a minha boa ama - exclamou ele. - Eu estava aqui parafusando como havia de convencer esta gente de que a minha ama era inocente.
— Estou felizmente livre, meu amigo - respondeu Eulália - e quero certificar-me de que não estão mais aqui minha tia e minhas irmãs. Quer você acompanhar-me?
— Até que Vossa Mercê possa sair da vila; para adiante não, porque tenho também família e devo cuidar dela.
— Volta então?
— Amanhã, uma vez que a minha ama já não corre perigo. Eulália, depois de repetir os sinais da sua família e de recomendar ao camarada a maneira pela qual havia de dirigir-se a ela, caso a encontrasse, separou-se do seu honrado companheiro.
— Assim tenho a certeza de que não fica um único canto da vila sem ser examinado, e se elas estiverem aqui eu as encontrarei por força.
A pesquisa recomeçou com todo o ardor da piedade fraternal de Eulália, mas em vão, porque já d. Ana e as sobrinhas haviam deixado a vila.
O tratamento que era dado aos retirantes aconselhou à prudente senhora não demorar-se ai. Ainda na véspera da chegada, um sério conflito se havia travado entre a comissão, os seus empregados e os famintos, que, açulados pela fome, arrombaram o armazém do governo e tentaram assassinar um dos comissários. A punição do delito foi tremenda severidade e de justiça. Não só os chefes do assalto foram presos e metidos no tronco, mas as próprias mulheres foram vergastadas em público. Para que o exagero da pena chegasse ao máximo, mandaram prender todos aqueles que eram acusados pelos empregados, de modo que muitas pessoas, que não haviam tomado parte no acontecimento, foram castigadas. Além disso corria a fama de que a beleza das mulheres o aferidor das necessidades das famílias, e os empregados, provê-las, exigiam dos chefes que fossem as filhas, as esposas e as irmãs que as relatassem.
D. Ana julgou mais acertado vender os poucos objetos que lhe restavam e pôr-se de novo a caminho e sem demora. Não podia ser mais infeliz do que tinha sido, e além disso a estrada, muito mais habitada do que o interior do sertão, acenava-lhe como um abrigo em caso de penúria. Partiu, pois, demora em busca da esperança derradeira, que lhe ficara do passado de felicidade: encontrar-se com o velho Monte na capital da província.
Só à tardinha Eulália convenceu-se de que não podia descobrir a família em Quixadá, e, desanimada, fatigada, hesitou sobre a deliberação que devia tomar. Deveria seguir ou permanecer?
As hipóteses encontroavam-se no seu espírito, julgava impossível que d. Ana pudesse já haver passado pela vila, quando, além das meninas menores, tinha ainda a caçula para demorar-lhe a marcha. Por outro lado a estrada geral para a vila não dava ocasião a que os viajantes se desgarrassem, e portanto não era possível que d. Ana se houvesse desviado. Não podia ser também que estivesse ainda na vila, abrigada em qualquer casa, em que chamassem a comiseração para tamanha desgraça?
Esta hipótese, que era a menos justificável, mas que se fortalecia nos sentimentos generosos de Eulália, sobrepujou a todas, e a infeliz resolveu demorar-se na vila.
— Eu partirei amanhã, visto que a minha ama já não corre perigo - disse o camarada ao saber da resolução de Eulália.
Este aviso impunha à moça a obrigação de pagar na mesma ocasião os serviços do camarada, e Eulália, que estava na feira, onde viera encontrar-se com o seu companheiro, levou a mão à cintura.
— Ah! Ainda não fui buscar a carteira na mão do subdelegado. Espere-me um pouco, e, enquanto eu vou, arranje por aqui um lugar em que possamos pousar.
Quando Eulália se afastou, o pajem de Paula, que, ora a cavalo, ora de pé, a havia acompanhado sempre, aproximou-se do camarada e perguntou-lhe com a familiaridade própria dos sertanejos se aquela moça não era uma das que tinham sido presas.
Recebendo resposta afirmativa, o pajem, querendo informar-se do destino que Eulália ia tomar, entabulou uma rápida conversação com o camarada.
— Foi uma alhada de mil diabos, hein? Quase que a pobrezinha vai parar no tronco.
— Mas Deus protege os seus, e, como ela é uma pérola, achou quem a defendesse.
— É verdade; por fortuna, o homem a quem eu venho acompanhando sabia do negócio da Mundica, e pôde deslindá-lo.
— Aquela é que é uma peste! Passa fora, demônio! Aquela Mundica é mulher para dizer que Deus não é Deus.
— Má casta de gente. Eu não sei como a sua ama tem coragem de ficar aqui morando, quando a Mundica também fica. Mais dia menos dia, arma outra estralada...
— Agora ela já está conhecida, a peste da odienta, e além disso a ama só se demora aqui uns dias, para ver se encontra a família.
— Mas neste tempo mesmo...
— Quando a ama voltar, eu ainda hei de ver se lhe dou um jeito. Ela foi à casa do subdelegado, e não tarda aí. Ainda veremos se ela fica.
— Pois fale com ela, homem, diga-lhe que é bom ter cautela, e que é melhor fazer mais umas léguas, e ir descansar em Baturité.
— Havemos de ver isto - respondeu amavelmente o camarada, e perguntou ao pajem: - você que é mais sabido por aqui, não me dirá onde a gente poderá pousar aí por uns dois ou três dias? Está tudo isto tão mudado com a seca, que é custoso arranjar-se até quem dê uma sede de água.
— Pagando, acha-se sempre, vamos perguntar em qualquer venda.
Caminharam alguns passos e perguntaram em uma pequena vendola; mas, desde que o camarada informou que Eulália vinha só, negaram recebê-la. A mesma recusa foi feita em diversas casas, até que afinal o pajem ponderou:
— Homem, o melhor é não procurar muito; por aí há casas de algumas pessoas que não são muito lá para que se diga, mas que sempre servem para dormir. Vamos bater em uma delas?
— É o único recurso.
— Dentro em pouco estava arranjada a pousada para Eulália, e o pajem se despedia do camarada.
— Vou para a casa do subdelegado; lá no povoado, na casa do vigário, ficamos amigos, está dito?
— Dito! - respondeu o camarada apertando-lhe a mão.
Eulália, que não se demorou na casa da autoridade, encontrou-se ainda com o pajem a pequena distância da feira, e, admirada pelo cumprimento profundamente respeitoso que este lhe dirigiu, perguntou ao camarada quem era aquele homem.
— Um conhecido lá do povoado, e como sabe que eu estou ao serviço de Vossa Mercê, saudou-a.
Depois de haver exposto a dificuldade que tivera em arranjar pousada, o camarada disse constrangido a Eulália a casa em que ela devia pernoitar.
— Não faz mal - ponderou Eulália resignadarnente -, em qualquer lugar se dorme.
Encaminharam-se para a casa, que ficava perto da feira.
Eulália entrou com a repugnância da honestidade naquela morada do vício. Duas mulheres mal trajadas, de modos bruscos, filhos de uma afetação canalha, vieram recebê-la à porta, e cumprimentá-la por entre baforadas dos cachimbos que tinham entre dentes.
— É como se a casa fosse sua, moça - disse uma delas; - moramos aqui nós duas: a Candinha e eu, que sou a Nenê; veja os cômodos, para dizer onde se há de armar a rede.
Eulália, agradecendo o oferecimento, entrou na saia, que tinha por única mobília uma rede encardida, duas peles de cabrito, duas almofadas em que havia rendas já principiadas e uma meia dúzia de tamboretes. Um quadro, representando a crucificação de Cristo, com um grande aparato de centuriões de lança ao ombro em atitudes teatralmente ameaçadoras, decorava a sala.
— Eu fico aqui mesmo, não precisam ter maior incômodo - disse Eulália.
— Oh! Gente! - exclamou a Candinha. - Pois há de ficar na sala ?! Vote que até parece...
E riu desenvoltamente cuspindo por entre os dentes, com um chilrado canalha.
— Olhe que de noite, quando estivesse à fresca, podia alguém espiar - acrescentou ela - e você talvez não gostasse.
— Não, dona - ponderou Nenê, que, notando a confusão de Eulália, lançou um olhar repreensivo a Candinha; - não se avexe com a gente, temos quartos lá dentro onde pode ficar a seu gosto. Venha ver.
Eulália, que mal podia levantar os olhos, tão corrida estava, obedeceu e seguiu as duas moças, que a levaram para um quarto espaçoso, nos fundos da casa.
— Agrada-se deste?!
— Serve, sim, senhora; é só por um ou dois dias; qualquer lugarzinho chega.
— E como é só para dormir...
— Sim, senhora, é só para dormir.
— Pois então, é tomar conta a gosto.
— Está numa casa de moças solteiras - disse Candinha -, mas está tão guardada como na sua própria casa.
— Pode dormir descansada; trouxesse ouro em pó, não lhe havia faltar uma pitada.
— Na nossa casa há pouco, mas o que há para duas chega para três.
— Já jantou?
Eulália, que estremecera a princípio amedrontada pelos modos das duas mulheres, cobrou mais coragem e acolheu, com a sua boa vontade para com todos, os protestos e os oferecimentos que lhe eram feitos.
— Não quer mandar entrar o homem? Ele que se abolete por aí em qualquer canto, isto de homens dormem bem até sobre um espeto.
Chamaram pelo camarada, que entrou, e repetiram-lhe o oferecimento que haviam feito a Eulália.
— Minha ama sabe que eu devo seguir viagem amanhã, e, portanto, é só dar as suas ordens.
— Falaremos mais tarde - disse Eulália.
As duas mulheres saíram para arranjar o jantar para Eulália e o camarada, que ficaram sós.
— Para mim - disse o camarada - fica mais cômodo dormir aí em qualquer puxada. Posso levantar-me com a madrugada para seguir viagem, mas se minha ama quiser posso ficar aqui.
Eulália não respondeu.
— Tem algum receio? - acrescentou o camarada. - Desconfia que essas mulheres possam fazer-lhe alguma coisa?
— Não, parecem boa gente.
— Quase sempre são umas infelizes, e aquele rapaz, que foi quem me trouxe aqui, não me deu má nota a respeito delas.
— Eu verei se preciso ou não de si.
As mulheres trouxeram o jantar sem demora, e, pedindo desculpas, convidaram Eulália a servir-se dele.
— É de muito longe? - perguntou Nenê a Eulália.
— De umas 20 ou 30 léguas.
— Credo! E fez todo este viajão com essas cores? Nem parece retirante.
— E as senhoras são daqui mesmo?
— Somos: perdemos desde muito crianças nosso pai e nossa mãe; ficamos em companhia de uma madrinha, que morreu quando eu estava com 17 e Candinha com 13 anos. Por isso é que nos vê aqui sozinhas.
— E não têm parentes?
— Temos sim, porém eles nos deixaram por nossa conta.
Eulália, olhando para o camarada, que estava de pé a contemplá-la, disse para testemunhar-lhe a confiança que depositava nas mulheres.
— Quando acabar de jantar pode ir cuidar da sua vida.
Reatada a conversação, Nenê e Candinha desfiaram com a ingenuidade sertaneja todas as circunstâncias da posição que tinham. Acharam-se completamente sós no mundo, eram moças e diziam que eram bonitas. Houve quem se oferecesse para ajudá-las e aceitaram. Depois estas pessoas faltaram com as suas palavras e a necessidade veio bater-lhes à porta, porque as rendas e os labirintos, que faziam ainda hoje, não davam nem para pagar metade do que elas comiam num mês.
— Cada um tem a sua sorte - murmurou Nenê -, nós seguimos a nossa.
A sinceridade com que foi feita a narração comoveu profundamente a mísera Eulália, que antevia o seu destino nas palavras da moça.
Automaticamente apertava de encontro à cintura a carteira que lhe fora dada pelo bandido, como se temesse que a fatalidade viesse misteriosamente esvaziá-la e obrigá-la a cair no mesmo momento na degradação que ela piedosamente lastimava.
— Vai para o Ceará, não é verdade? - perguntou Candinha com respeitoso comedimento, nascido dos modos de Eulália.
Recebendo resposta afirmativa, perguntou com interesse:
— E tem lá parentes?
— Não, tenho amigos.
As duas moças olharam-se tristemente, e como percebessem que Eulália notara o mútuo olhar, acrescentaram para disfarçar:
— Então não há de passar pelo que temos passado aqui.
"São umas pobres de Deus", pensou Eulália, e, quando se despediu do camarada, agradeceu-lhe não só os serviços que dele havia recebido na viagem como o que lhe acabava de prestar.
À noite, a simpatia que de pronto nasceu no coração de Eulália pelas desgraçadas aumentou. Haviam-na deixado só, a pretexto de a deixarem descansar, e, dentro em pouco, soando na sala uma voz de homem, Eulália ouviu que Nenê recomendava-lhe que abaixasse a voz.
Durante a noite a casa inteira silenciou como se não fosse habitada. É que uma extraordinária reserva havia imposto temporariamente moderação à libertinagem. Todavia o vício não levantou daí a sua tenda, e se Eulália houvesse ousado o limiar do quarto, teria visto entrar cautelosamente na sala um homem que, sendo desconhecido para as duas moças, era não obstante recebido por elas.
Este desconhecido sentou-se na rede encardida, que era um dos ornamentos da sala, e Candinha sentou-se junto dele, com um requinte irrisório de acanhamento.
Envoltos na claridade crepuscular que espargia na sala vela de carnaúba colocada sobre um dos bancos em um cantos do recinto, os dois guardaram por algum tempo
Nenê foi em bicos de pés espreitar o corredor e, de volta, fez um sinal a Candinha, que abriu os lábios num sorriso acariciador para o desconhecido.
— Moram sós? - perguntou ele, tomando nas suas as mãos de Candinha.
— Sozinhas, com a graça de Deus - respondeu Candinha.
— Não temos a quem dar contas.
— É muito bom viver só.
O silêncio tomou de novo lugar entre o desconhecido e a moça, que, embaraçada e começando a entediar-se com a frieza do hóspede, levantou-se e foi ter com a irmã, que estava de costas para a sala, debruçada na janela.
— Veja se o desemburra: é um matuto muito peco - disse Candinha. - Está ali calado como uma pedra.
— Pois fale-lhe você, tente saber quem ele é, anime-o.
Candinha pós em prática a lição que recebera, mas apenas conseguiu saber que o desconhecido era de B. V., que se dirigia ao Ceará, e que só se demoraria mais um dia na paróquia. Não pôde dirigir a conversação ao ponto que visava.
Percebia-se claramente no olhar e no semblante do desconhecido que a sua visita à casa das duas moças não passava de um meio para chegar a um fim, que entretanto ele temia desvendar.
— Sabem que eu não sou aqui da vila, não é verdade? Pois bem, eu não sei se acertei, ou se me enganei vindo a esta casa à procura de uma pessoa que se hospedou aqui.
As duas irmãs olharam-se despeitadas, e Nenê, com um gesto amuado, respondeu:
— Veio certo, mas a pessoa não é o que o senhor pensa. A afirmação de Nenê fez com que o desconhecido resfolegasse à larga e o semblante se lhe desanuviasse. Perdendo o ar reservado que tinha guardado desde que chegara, passou o braço pela cinta de Candinha, que foi suavemente constrangida a sentar-se sobre os joelhos dele, e acenou para Nenê.
— Vamos ficar muito bons amigos; falando é que os homens se entendem.
— Está tão caído agora - murmurou Candinha -, não parece o mesmo bitu.
— Em primeiro lugar, aqui têm vosmecês isto - disse o desconhecido, apresentando duas notas do tesouro às moças; - falemos agora no nosso negócio.
Embora estivesse falando em voz muito baixa, abaixou ainda mais a voz, e acrescentou:
— Esta rapariga que aí está dentro é minha conhecida velha...
— Não temos nada feito - murmurou Nenê. - Pode guardar o seu dinheiro, se entende que nos compra com ele. A moça que se hospedou aqui não tem nada com a nossa vida.
— Eu bem o sei. Vi-a pequena, cresceu nos meus braços. Hoje é infeliz, e eu, que sou amigo da família dela, que posso ler no seu coração, devo prestar-lhe o auxilio que estiver nas minhas mãos.
— Espere quando ela sair amanhã; nós não podemos consentir que ninguém vá ter consigo.
— Há outro meio, uma vez que já se conhecem - ponderou Candinha -, nada mais simples: se ela ainda estiver acordada, pode-se pedir-lhe que venha até cá.
O alvitre de Nenê foi rejeitado pelo desconhecido mesmo antes de ter sido de todo formulado, e Nenê acrescentou:
— Se o senhor é conhecido dela, por que não quer que ela venha aqui? Pode guardar o seu dinheiro; somos pobres, mas não precisamos dele por semelhante preço.
A altiva recusa de Nenê, que foi secundada pela irmã, chegou até ao arremesso do dinheiro; mas, longe de irritar como que lisonjeou o desconhecido.
— Eulália há de agradecer-lhes muito esta nobre ação -murmurou ele; - eu hei de referir-lhe tudo. Não tenham medo de deixar-me chegar até junto dela; não lhe desejo mal.
— Não o podemos saber - murmurou Nenê -, não o conhecemos de todo.
— Eu sou o vigário da freguesia em que Eulália nasceu, um seu amigo, um velho amigo de seu pai.
As duas mulheres, interditas pela revelação, não sabiam o que decidir. A profissão do desconhecido era a maior garantia que lhes podia ser dada do caráter, das intenções e da natureza da missão que ele queria desempenhar junto de Eulália.
Para assegurar a boa predisposição em que as via, Paula chamou a atenção das duas perdidas para a sua barba curta, e fê-las reparar no alto da sua cabeça, em que o disco da coroa não havia desaparecido de todo.
Uma única dúvida foi sugerida por Nenê, que buscava descarregar inteiramente a sua consciência - o motivo da fuga de Eulália, o qual foi explicado facilmente por uma fraqueza com um rapaz, que havia fugido depois de a ter seduzido.
— Não notam - acentuou ele -, que, em tamanha penúria da província, quando as estradas se alastram de cadáveres de pessoas que morrem à fome, quando nas próprias vilas e cidades a alimentação escasseia, Eulália pôde atravessar incólume tão difíceis caminhos, tão ingratas paragens?
O argumento produziu o efeito esperado pelo espírito fino
do vigário, que mal podia conter o coração, que pulsava com a violência da saudade e do desejo de reconciliação com a sua vitima. Não obstante, uma vaga hesitação, uns visos de temor transpareciam no ar das duas moças, que o encaravam com a agudeza da dúvida.
— O meu encontro com Eulália - continuou Paula – é um descanso grande para si. Notícias falsas fazem-na crer que a miséria bateu também às portas de sua família e que, deixando a paróquia, erra por essas estradas mendigando como retirante. Quero dissipar-lhe este pesar, livrá-la do remorso que lhe causa a idéia de que ao seu erro prende-se tão desastrada conseqüência. Negar-me-ão ainda o aproximar-me de Eulália?
As duas moças não responderam mais. A nobreza dos intentos que Paula se atribuía desarmou-lhes a resistência, e Nenê pediu apenas licença para ir ver se Eulália ainda estava acordada.
— Não lhe declare o meu nome - pediu Paula com empenho; - a vergonha de encarar comigo talvez me proibisse de prestar-lhe um grande serviço.
Nenê, que se afastara e voltara em bicos de pés, conduziu Paula até o corredor que ia terminar justamente na porta do quarto de Eulália, que, deitada na rede, olhava fixamente para o teto, absorta em seguir, talvez, uma esperança risonha.
— Ela está ali - murmurou; - pode entrar.
Paula caminhou cautelosamente, contendo até a própria respiração. Sua alma, repassada pelo ante-sabor da alegria com que contava, fazia-o preparar cuidadosamente a encenação teatral da sua aparição, para que não falhasse o efeito.
Nenê e Candinha, de pé no corredor, acompanhavam-no com os olhos, e a primeira resmungou
— Eu não tenho muita fé neste homem; se ele quiser violentar a moça, não sai daqui senão para a cadeia.
Caminhou direito à porta da rua, trancou-a e, guardando a chave, veio deitar-se na rede da sala, ao passo que a irmã recolhia-se ao quarto.
Paula começava a empurrar brandamente a porta do aposento de Eulália, e logo, entrando sem ruído, cruzados os braços sobre o peito, os olhos descaídos num desmaio piedoso, os lábios trêmulos, a fisionomia velada por uma tristeza sincera, foi parar junto à rede em que Eulália repousava.
A pobreza do aposento revestia o quadro de uma solenidade tristíssima. O chão do quarto, ondulando com as depressões das pisadas, estava levemente escavado em um dos contos, e fazia vir à imaginação a lembrança de uma nesga de cemitério em que houvesse uma cova recentemente fechada. Também a imobilidade de Paula, diante da quietude de Eulália, lembrava um coveiro que, apaixonado por um cadáver e horrorizando-se com a idéia de entregá-lo aos vermes, o contemplasse, como se quisesse enterrá-lo na irradiação do olhar.
O vigário parecia de todo absorto da sua contemplação; do semblante de Eulália como que partia uma corrente imânica a atraí-lo. De feito, os sofrimentos que a haviam emagrecido e descorado filtravam-lhe no semblante um quê indefinido de santidade; o próprio desleixo do vestuário, deixando-lhe transparecer as formas ainda belas, dava-lhe um recato e a respiração cadenciadamente exalada, com as longas pausas dos sonos sem remorsos, dizia que, apesar de todas amarguras, aquele espírito respirava uma tranqüila honestidade.
O encantamento de Paula, embora profundo, só durou alguns minutos: Eulália, que apenas madornava, descerrou as pálpebras morosamente, e encarou-o com um olhar que era um misto de sobressalto e dúvida.
Mas, já acostumada a conviver com esse olhar e atitude, que eram a atalaia dos seus delírios, que reproduziam a imagem de Paula nos primeiros tempos dos seus amores, a vítima não proferiu uma única palavra. Julgando ter diante de si a visão permanente dos seus sonhos, limitou-se a esconder os olhos na mão espalmada e a fronte nos punhos da rede. A mão correu dos olhos até os cabelos, com um movimento pesado, como se Eulália quisesse apagar da cabeça as pegadas de um horrendo pesadelo. O esforço foi, porém, baldado; desta vez não se tratava de uma larva da imaginação, mas da realidade.
O enleio da vítima encorajou propiciamente o vigário, que foi cair de joelhos diante dela.
— O que me quer mais o senhor? - tartamudeou ela.
— Por que vem perseguir-me até na miséria?
— Quero que o seu amor por mim, Eulália, não seja mais um tormento; que se regozije com a certeza de que é ardentemente correspondido.
Eulália percorreu com uma vista de olhos suspeitosa todo o aposento. Á dúvida a esmagava, porque não podia crer que tivesse junto a si o seu algoz. Mas de pronto acudiu-lhe à memória a conversa que ouvira na igreja do último pouso, o que lhe deu a certeza de que já não dormia. Uma reminiscência da fascinação de outrora assomou-lhe no espírito através das mágoas pungentíssimas, e um esquecimento momentâneo de todo o passado amolentou-a inspirando-lhe desejos de condescender.
— Deixe-me em paz - soluçou ela; - é tarde agora: eu já não o amo.
— Não creio - murmurou Paula tomando-lhe as mãos nas suas; - diga antes que já não devia amar-me. Teria razão, Eulália; pareci esquecê-la, ser indiferente às dores que a acabrunhavam, mas, sabe-o Deus, compartia longe de si o quinhão de angústia que me tocava na sua má sorte. Dia por dia, hora por hora, passei eu isolado a agravar com o pensamento o horror do nosso fadário, e, sem esperança de encontrá-la, rasgava pelo remorso a ferida que a saudade abrira dentro em mim. Perdoe-me, Eulália, o meu arrependimento é sincero; gerou-o no silêncio e no desespero a dor de consciência de haver condenado à morte o meu próprio filho. Peço-lhe por ele: para uma mãe não há crime que não possa ser resgatado pela invocação do filho. Perdoe-me por ele, Eulália.
À medida que estas palavras, bulhando e encontroando-se, nos lábios de Paula, eram ouvidas por Eulália, uma reação indomável se operava no ânimo da moça. Quando o vigário calou-se, ela já não respirava: a indignação a sufocava e entontecia. As lágrimas que lhe haviam brotado com as primeiras palavras, extinguiram-se, e os olhos adquiriram um brilho tigrino.
Como fera enfurecida, ao ver o filho pequeno preso em uma gaiola de domador raiva em silêncio a sua cólera que nada pede apaziguar, assim Eulália, recalcando no íntimo a ira que lhe causara a súplica, ficou a encarar com o vigário. Depois tirando-se com um movimento brusco de entre as mãos do amante, murmurou com uma acentuação cruciante:
— Deixe-me em paz: eu tenho vivido bem na miséria, não me queira perverter de novo. As minhas afeições são outras.
— Não se procure iludir, nem iludir-me - suspirou Paula; o coração desmente-lhe as palavras.
— Não - respondeu com firmeza; - eu já não o amo, não quero amar; as minhas afeições são outras.
— Veja bem o que diz, Eulália; eu vim com o coração transbordando de esperanças pedir ao amor a minha redenção. Vim para lavar do meu passado a mancha ignominiosa que o denegriu; queria reconciliar-me com o bem e divorciar-me para sempre dos meus erros de outrora. A sua recusa, porém, fecha-me a porta a esta esperança, abre-me de novo o caminho para a indiferença e o mal. Qual será a sorte do nosso filho, Eulália, se você afasta-me de si?
— A sua sorte já não me incomoda mais - soluçou Eulália.
Paula, que não tinha desviado os olhos do rosto de Eulália, fitou-a sobressaltado, e, levantando-se de um salto, travou violentamente dos punhos da sua vítima.
— Diga-me o que é feito dele - exclamou com uma entoação desesperada; - a vingança aconselhou-a a matá-lo?
— É exato - respondeu afetando calma e perversidade; - fiz o que o senhor aconselhou-me que fizesse. Não disse que eu ainda o amava? Pois bem, obedeci-o.
— Miserável! A desgraça fê-la vil como as outras.
Um arremessão brutal, dado pelos pulsos vigorosos de Paula, impeliu Eulália, que cambaleou até que se pôde apoiar na parede. Mas a coragem com que resolvera arrostar as explosões do gênio irascível do seu ex-senhor não sofreu o menor abalo.
— Continue a sua obra e complete-a. O seu amor teve por começo um crime, cevou-se de crime e deve acabar por um crime. Eu estou na casa de umas mulheres perdidas, compradas talvez pelo seu dinheiro; não tenho defesa, nem a quero; não pode haver melhor lugar para que o senhor se veja livre para sempre de mim.
— Pode insultar à vontade. A sociedade em que ultimamente tem vivido dá-lhe direito a que assim proceda. Quantas vezes já tem entrado na prisão?
O insulto fez com que Eulália ficasse por largo tempo silenciosa, arquejando de cólera e de vergonha, mas afinal tornou ela energicamente:
— Nenhuma. Hoje, porém, uma mulher que o senhor conhece queria acabar a obra pelo senhor começada. Nenhuma, porém, nunca fiz por isso. Há assassinos que andam sãos e salvos, sem que ninguém sequer suspeite de que, sob a requintada hipocrisia dos modos delicados, esconde-se um miserável que faz emboscadas a pessoas desarmadas. Não é muito que eu ainda não tenha entrado na prisão pelo crime de ser infeliz.
A repulsa calma e enérgica, vibrada com a superioridade de quem está convencida da justiça da sua indignação, caiu como uma chuva de metal incandescido sobre o coração de Paula, que doía ao mesmo tempo de humilhação e de ira.
Por duas ou três vezes resfolegou extensamente e ensaiou passos para precipitar-se sobre a vítima, e, não obstante a alucinação que o desvairava, conteve-se.
Um fenômeno principalmente o surpreendia. Eulália aparecia sempre nas suas cismas como a fascinada amante de outrora, a qual, ainda mesmo ameaçada de perder o filho, defendia-se com rogativas e lágrimas. A imaginação, desdobrando-se sobre tais recordações, dava uma encenação sedutora ao seu encontro com Eulália. Algumas lágrimas - e eram sinceras - bastariam para lavar todas as ingratidões e delir todos tormentos. A eloqüência de suas palavras, acreditava ele, a própria confiança de Eulália, a sua ingênua sinceridade. Mas de repente o castelo dourado se esboroa, em vez da amante apaixonada de outrora encontra com a mulher ultrajada, com a mãe ameaçada, que resoluta e calma não recua diante da sua cólera explosiva e nem ao menos hesita em provocá-la.
— Quem tem razão é a senhora - bradou Paula; - eu sou é o culpado. Adeus!
Eulália não respondeu, mas não deu nenhum sinal de alegria pela despedida de Paula: conservou-se como estava, fria e altiva.
O vigário caminhou até a porta, e, antes de transpô-la, relanceou um olhar a Eulália, que nem o percebeu. Impelido pelo despeito, atravessou rapidamente o corredor e a sala, diante de cuja porta esbarrou, que tinha sido trancada, e chave Nenê guardara para que, no caso de urgência pudesse prestar auxílio a Eulália.
Paula, sofrendo mais esta contrariedade, tentou obrigar a porta ceder, mas não levou a cabo o propósito, visto que Nenê que dormia numa rede a alguns passos apenas, acordada pelo barulho, veio ao seu encontro.
— Com os diabos ! - disse Paula. - Estão ambas a dormir, e quase me obrigam a passar mal a noite.
— Era só chamar, sem fazer cerimônia. Já se vai?
— Não queria, mas se continuam a dormir...
— Não se tinha o que fazer.
— Pois eu fico por aqui esta noite; lá agora não saio senão com a madrugada.
— E então? - perguntou Nenê admirada. - O que arranjou lá por dentro: conseguiu o que queria?
— Mudemos de assunto; tratemos de outras coisas mais divertidas. Candinha! - chamou Paula em voz bem distinta.
— Ó Candinha!
— Pode chamar à vontade; não dá uma nota; aquilo quando ferra, não se acorda assim, é preciso certo jeito.
— Pois eu vou chamá-la.
Nenê alumiou, mostrando o quarto, e Paula, que não passara o limiar, saiu logo que Nenê se retirou, e caminhou para o quarto de Eulália, que se trancara por dentro, desde que se viu livre da importuna solicitação e das injúrias cruéis.
A vela continuava acesa, e Paula, espreitando pela fechadura, pôde ver o que se passava lá dentro. Eulália, que não podia deixar de ter-lhe ouvido a voz, estava sentada na rede e, com os olhos alevantados para o teto, soluçava compungentemente.
— Abra por um instante - suplicou ele. - Abra.
Eulália voltou-se para a porta, mas, em vez de atender ao pedido, soprou a vela.
— Vingativa - murmurou Paula. - Mas eu hei de vencê-la, seja como for. O ciúme talvez ma entregue hoje mesmo. Vejamos.
Voltou à porta do quarto de Candinha, e, entrando por ele a tatear a escuridão, foi afinal esbarrar com a rede em que dormia a perdida.
— Afinal acertei - acentuou ele de modo a poder ser distintamente ouvido. - Acorde, senhora preguiçosa. Então pensava que eu havia de dormir ao tempo? Oh! Nenê, diga-me cá: não tem em casa nada que se possa beber?
Nenê, acudindo ao chamado, respondeu que não, mas que se podia obter, se ele quisesse.
— Pois arranje lá isto; quero uma noite de pândega. Vou pagar-lhes o enjôo de ainda agora.
— Ele ainda me amará? - perguntava-se Eulália, soluçando. - Ou será mais uma infâmia que planeja?
A noite escoou-se aturdida pelas estroinices de Paula, que ao romper do dia retirou-se pensando consigo:
— Se eu insistir, ela não me resistirá.
Mas enganou-se ainda uma vez.
O meio de que lançou mão para reduzir Eulália a ceder a sua nova sedução, só produziu efeito momentâneo; a reflexão impediu que a vítima se continuasse a imolar à sua paixão carnal.
Às primeiras palavras trocadas entre o vigário e Nenê, o natural orgulho da beleza sublevou-se, e, num assomo de indignação, Eulália, saltando da rede com uma elasticidade felina, veio até a porta, disposta a exigir de Paula o mesmo respeito que ela tributava ao mútuo passado. O egoísmo do amor ferido impelia-a a este passo, mas a altivez da honestidade deteve-a, e a infeliz limitou-se a defender-se do contato do seu repulsivo ex-amante.
Em vão, num exagero orgíaco, Paula atropelou o silêncio a noite; em vão soaram as gargalhadas báquicas das duas irmãs meio ébrias e a voz do vigário ecoou dizendo licenciosidades de sátiro. Eulália limitou-se a chorar, e a maldizer-se, agitada pela dúvida tremenda:
— Ele ainda me amará?
Cada palavra de Paula trazia-lhe à memória uma cena do passado, dissolvida em carícias e dedicações, esbatendo-se em um colorido vivaz sobre sonhos de uma felicidade inextinguível. Então as brutalidades, as crueldades de Paula apareciam aos olhos de Eulália como conseqüências perdoáveis da paixão, que ela avaliava pela sua, que tinha passado os limites excesso para acampar de todo na alucinação.
Arrastada por essas recordações, quase que se resignava dar ganho de causa ao vigário. O coração pedia-lhe o esquecimento de todas as mágoas e aconselhava-a a que fosse arrancar dos braços das duas perdidas o algoz da sua mocidade.
Pela madrugada, Eulália, extenuada pela luta, sentia-se aniquilar pela idéia da submissão, mas providencialmente o vigário começou a despedir-se.
— Se ele vier ter comigo - pensou Eulália -, eu o perdoarei.
Mas Paula, que não mediu perfeitamente a extensão que devia ter o recurso brutal de que lançara mão, não se lembrou de ir novamente ao quarto de Eulália. A vergonha do ato que acabava de praticar desviou-o dali, e, longe de ter uma frase carinhosa, proferiu uma indignidade ao retirar-se.
— Basta de fingimento! - exclamou ele afastando Candinha de si. - Vocês todas são as mesmas. Muita festa, muita promessa, mas a verdade é que só amam o dinheiro.
— Volte que verá claramente que não tem razão.
— Eu as conheço, mesmo as que não vivem como vocês. Tenho exemplo; quando encontram alguém que faça as despesas, esquecem os amores puros do passado.
— Que infâmia - soluçou Eulália, percebendo que o vigário se referia à carteira que servira de acusação contra si; - julga-me já perdida.
— Mas nem todas lêem pela mesma cartilha...
— Veremos; como é só de passagem, vá lá; até logo.
Retirou-se plenamente satisfeito consigo mesmo. Tinha infligido a Eulália um castigo tão cruel como a sua repulsa, e, ao passo que à infeliz restava apenas a incerteza, Paula voltava com a certeza de que no seu primeiro encontro com Eulália seria vencedor.
Não me resistirá; há afrontas que são testemunhos de amor. Não me resistirá.
Dentro em si, Eulália, lembrando-se do pensamento cobarde que tivera na hora da despedida de Paula, tremeu pela própria dignidade. À noite ele voltaria e de certo repetiria as mesmas cenas. O que faria ela? Ceder? Era desarmar-se inteiramente diante dele, e por sua vez tornar-se indigna diante da própria consciência.
— É preciso que eu saia, que eu fuja daqui.
A resolução, porém, teve de estender-se a todo o povoado. Não conseguiria hospedar-se em uma casa honesta; não era casada. Não podia também hospedar-se no abarracamento de retirantes, porque o existente era composto de pequenas casas e estas fechavam as portas a todos os estranhos.
Logo pela manhã, pois, saiu afetando a maior cordialidade para com as suas hospedeiras; foi até a feira para ver se descobria noticias da sua família, e, desenganando-se de poder consegui-las, decidiu recomeçar imediatamente a marcha para a capital.
"Como é grande o ladrão Virgulino comparado com um ministro de Deus", pensou Eulália, abrindo a carteira, não só para deixar na casa em que dormira a quantia com que devia pagar a hospedagem, mas também para munir-se de provisões.
Todavia, no seu espírito pairava triunfantemente a imagem do segundo, a ponto de ser-lhe impossível resistir a informar-se dele.
Na feira, ao ver o pajem, dirigiu-lhe a palavra, a pretexto de saber notícias do camarada que a acompanhara.
— Já viu hoje o seu amigo? - perguntou ela. - Seguiu sempre para o pouso?
— Não o vi, e é sinal de que já bateu as alpargatas.
— O senhor e o seu amo é que não vão tão cedo, não é verdade?
— Eu devo voltar amanhã; o homem a quem me viu acompanhar é que não sei quando seguirá. Veio recomendado ao subdelegado, que é quem o está hospedando, e quem, com o vigário, há de arranjar-lhe condução para seguir viagem.
Eulália desejava saber dos pormenores da viagem de Paula, mas notando que por sua vez o pajem tentava obter dela o destino que ia tomar, apressou-se em retirar-se, tomando como causa a obrigação em que estava de visitar a mulher que assassinara o próprio filho.
Consolada com a certeza de que teria ocasião de ver antes de partir aquele mesmo que era a causa de seus medonhos sofrimentos, tomou a rua que marginava a prisão e em que residia também o subdelegado, e, como visse que o pajem a seguia de longe, alegrou-se ainda mais, porque Paula seria avisado da sua passagem e assim ela realizaria o seu intento - poder vê-lo.
De feito, da porta da prisão distinguiu o vulto de Paula, que veio colocar-se à janela para que a visse na volta, e Eulália apressou-se em fazer-lhe a vontade.
"Agora posso partir - pensou ela -, não me perseguirá e nem eu deixarei de levar viva dentro de mim a sua imagem, que é o meu castigo e a minha ventura."
À noite Eulália estava muito distante da vila e abrigava-se numa casa abandonada, lastimando e aplaudindo ao mesmo tempo a coragem com que fugira de Paula, que, iludido pelo bondoso olhar que a moça lhe deitara ao passar, contava com a vitória. À mesma hora em que Eulália pensava nele, Paula entrava alegre pela casa das duas perdidas.
— Boa noite! - exclamou ele. - Como vai o pássaro? Ainda muito espantado?
— Saiu desde manhã e ainda não voltou à gaiola. Creio que fugiu - respondeu Nenê - mas não se perde nada.
— Doida - resmungou Paula, levando a mão aos cabelos. - Para vingar-se, condena-se ao martírio.
Em vão Nenê e Candinha buscaram acordar no vigário a mesma febre da véspera; conservou-se por largo tempo sentado e silencioso, até que se retirou cabisbaixo e acabrunhado por uma pergunta que de continuo lhe dominava a reflexão.
— O que devo eu fazer para salvar Eulália?
Durante a noite não achou solução e, no dia seguinte, deixando a vila, ainda não atinara com a resposta.
Poucos dias depois da retirada de Eulália e do vigário a vila alvorotou-se, como se dentro dela convulsasse uma revolução.
Feliz nos tempos normais da província, a pequena vila era agora uma das mais flageladas. A própria excelência do seu clima de outrora concorreu para agravar-lhe a situação, porque a convertia num hospital de moribundos.
A anasarca, que parecia ter assentado o seu quartel-general na cidade vizinha, emigrara dali para a vila, e batia a todas as portas com a fatalidade da morte. Acompanhavam-na as febres fulminantes e o grande cortejo de moléstias produzidas pela penúria em que viviam os retirantes.
Agora as condições tristíssimas agravaram-se, porque o novo presidente da província, indignado pelas delapidações escandalosas, resolvera suspender as remessas de gêneros para o interior e chamar para a capital e cidades mais próximas aqueles a quem a seca reduzira à miséria.
Tal ordem recebida na vila exacerbou os ânimos, e os adversários políticos e os interesses lesados, trabalhando na sombra, conseguiram dar começo a um movimento popular.
Os retirantes, em massa, acometeram o armazém em que se guardavam os socorros públicos, e à viva força dividiram os despojos do assalto, com os quais deviam prover-se durante a retirada para a capital.
Em vão as autoridades procuraram descobrir quem tinha sido o amotinador que havia conseguido emprocelar a onda estagnada dos famintos; vários nomes de influências políticas eram repetidos, mas a acusação contra eles não podia ser seriamente feita, visto que, era sabido, eles não se comunicavam diretamente com os retirantes.
Quem quer que era o motor do acontecimento inesperado, sabia esconder-se perfeitamente na treva.
Entretanto os cabeças do movimento andavam bem às claras pela vila. Eram dois indivíduos vestidos de couro, um de cerca de 30 anos, o outro ainda muito novo e que vestia luto. Os seus modos humildes e reservados não chamavam a atenção, mas quem cravasse perspicazmente o olhar nos seus semblantes reconheceria facilmente que os dois retirantes, muito novos na vila, em nada se pareciam com a massa geral.
As autoridades, porém, que durante o dia tinham-se exclusivamente ocupado em efetuar prisões daqueles que se mostravam mais exaltados, passaram descuidadamente por junto dos dois indivíduos, cuja extrema submissão captava simpatias longe de inspirar suspeitas.
— Se V. Sa. quiser - dirigiu-se um deles ao subdelegado -nós estamos prontos para qualquer serviço.
— Bem, fique com esses três homens guardando a cadeia. Revezando as sentinelas o trabalho não é grande.
Investido desta autoridade, o que se dirigira ao subdelegado aproximou-se do outro para comunicar-lhe o bom êxito da empresa.
— Vai tudo às mil maravilhas; dentro de poucas horas minha mulher estará salva.
— Se descobrem o que desejamos fazer? Não estamos de uma vez para sempre perdidos, Desempeno?
— Você está ficando medroso, Diabrete; tem calafrios por dá cá aquela palha. Vá embora se receia, eu cumpro com o meu dever.
— Você bem sabe que eu não temo, porém quando a gente está quase com o pescoço na corda do carrasco, é preciso muito cuidado. Se estivéssemos os dois lá dentro a tomar conta, não havia nada a temer, porém você só é difícil.
— Eu preciso mais de si lá fora, entre os retirantes, aconselhando-os que venham soltar os companheiros de barulho que foram presos; será nesta ocasião que eu tratarei de libertar a minha desventurada amiga. Conto consigo?
— Conte - exclamou o Diabrete, apertando estreitamente a mão de Virgulino. - Faça, porém, as coisas com jeito, porque eu tenho muito medo da justiça. Ainda não fiquei curado do último susto.
Virgulino, sorrindo desdenhosamente, murmurou:
— Criança.
— É verdade, e é bom de dizer quando se vê as coisas de longe.
As palavras do Diabrete referiam-se a sucessos que se haviam dado com a quadrilha dos Viriatos.
O ódio de Pedro passou da temeridade à loucura e dois grandes combates foram por ele planejados para aniquilar inteiramente os seus inimigos, que tinham conseguido o malogro do primeiro plano do roubo da venda e assassinato de Virgulino.
Emissários foram por ele mandados às autoridades para que se efetuasse a captura dos dois principais chefes conhecidos da quadrilha, e, como complemento desta medida, Pedro resolveu dar combate aos Viriatos no mesmo dia em que o sobressalto os pusesse em debandada.
O plano audacioso foi posto em prática e produziu em parte o resultado que inimigo irreconciliável tinha em vista.
A perícia do Onça, porém, evitou que a quadrilha fosse aprisionada, e, ainda que a liberdade dos seus companheiros lhe custasse a vida, o Onça a conseguiu. No campo do combate ficaram os cadáveres dos dois chefes Pedro e Onça, que, travados em um combate singular, disputaram palmo a palmo a fama dos seus dois criminosos grupos.
O resto da quadrilha dos Viriatos salvou-se ganhando as alturas dos Cariris, enquanto que o Diabrete, desligado dela pela morte do pai, veio juntar-se a Virgulino na vendola das vizinhanças de B. V., onde partiram em procura da família do segundo.
A rápida sucessão dos acontecimentos causou ao rapazola um temor inexplicável, porque sabia que para toda parte tinham sido expedidas precatórias a fim de que fossem capturados os bandidos da quadrilha. Era por isso que recomendava a Virgulino a maior discrição no plano, que haviam tramado para libertar a infanticida, que tanto horror causara à vila.
Tinha razão para assim insistir. Estava com Virgulino quando este soube da inqualificável desgraça que sobreviera à sua família, e tamanho foi o seu abalo que a pessoa que lhe comunicara o fato ponderou-lhe:
— Homem, o caso é de espantar e causar pena, mas para incomodar tanto é preciso que seja a uma pessoa da família.
— Nem a conhecemos - interveio prontamente o Diabrete.
— O sentimento do meu companheiro é nascido das muitas dores que a sorte o tem feito sofrer.
Quando a sós com o Diabrete, Virgulino tomara uma resolução tremenda. Entendeu que o crime de sua mulher devia ser logo punido e quis ir imediatamente à prisão para atravessá-la com a sua faca de bandido. Muito custou ao Diabrete conter-lhe este primeiro ímpeto, que não deu lugar a mais uma cena lastimosa porque o rapazola proferiu uma terrível ameaça.
— Mate-a, está no seu direito, mas saiba que irá substituí-la na prisão, e aos seus filhos não ficará na terra nem mais um protetor, e a miséria e a fome será o futuro de todos eles. Faça você como entender melhor.
Virgulino moderou-se e, fundindo em lágrimas parte da grande dor que o alucinava, ficou a pensar no destino que devia tomar e que devia dar à sua mulher.
— Se eu pudesse arranjar algum meio de a salvar... -pensava ele. - Se eu a pudesse furtar, se eu ao menos a pudesse envenenar...
Todas as idéias que lhe acudiam, breve se dissipavam, porque eram de todo inexeqüíveis. No entanto a mais ousada, a mais audaciosa, que lhe atravessou o espírito, foi a que dominou-o e por fim foi posta em prática.
O desgosto popular contra a ordem do presidente da província, mandando suspender os socorros públicos, cresceu com as horas que se escoavam. Todos murmuravam, censuravam, e. alguns já cheios de um entusiasmo que vinha mais da paixão partidária que do amor pelos seus semelhantes, propalavam calúnias contra as intenções presidenciais.
Havia um ponto em que todos os calmos, como os exaltados, concordavam: que era de todo impossível terminar bruscamente com os socorros, porque equivalia a condenar toda a população retirante à morte pela fome.
A comissão incumbida do serviço, porém, entendeu justamente o contrário do modo de entender geral.
O presidente não tem confiança na comissão, e a esta cumpre abandonar desde logo o cargo. Demais, o que ele quer é que os retirantes vão todos para a capital, para que o trabalho da distribuição de socorros seja feito sob os seus próprios olhos.
— Mas isto não quer dizer que, havendo no armazém do Estado gêneros, vocês não os queiram distribuir com os retirantes, que se querem pôr a caminho.
A comissão não atendeu, ferida nos seus brios, sabendo além disso que o novo presidente não fazia a respeito da generalidade dos comissários senão um justo juízo: que o patriotismo já tinha produzido demais e o móvel da persistência devia ser agora alguma coisa bem diversa ao amor à pátria.
O que pelo menos era verdadeiro e incontestável era que a mortalidade dos retirantes crescia na razão direta do dispêndio com os socorros, o que de alguma sorte justificava a fama de que as comissões eram os verdadeiros retirantes socorridos.
Virgulino e o Diabrete, recém-chegados no lugar, aturdidos em parte não só pela notícia da desgraça particular, como pela ameaça tremenda que era feita à massa dos necessitados pelos comissários, puseram-se a observar miudamente, com o olhar e critério dos bandidos.
— Isto era um momento, se nós tivéssemos quem nos seguisse. Que bela presa, Diabrete!
— Faziam-nos em cisco.
— Se tivessem tempo; era fazer causa comum com os retirantes e tudo estava feito.
— Hoje é só haver quem dê um grito, que eles seguem logo. Virgulino, ao ouvir as palavras do Diabrete, teve um estremecimento demorado; tomou-o de uma comoção profunda, que não tinha nenhuma razão de ser na frase dita.
Diabrete reparou no abalo sofrido pelo companheiro, mas atribuindo-o ao próprio estado moral em que a notícia fatal o deixara, não o interpelou.
Caminharam na direção do abarracamento, mas sem que para lá os conduzisse outra intenção além da curiosidade.
Aí parecia que tinha transbordado um mar tempestuoso; havia um movimento geral, brusco e ameaçador; o vozear unia-se numa zoada ruidosíssima, e gritos de indignação partiam de todos os lados.
Todavia a falta de coragem e de iniciativa continha nos da ordem a população, e deixava às autoridades confiança bastante para que não tomassem providências.
Diante deste espetáculo, Virgulino comoveu-se ainda mais, então, como já não se pudesse conter, disse para Diabrete:
— Houvesse um homem de coragem que se pusesse à frente deste povaréu, e esta vila podia voar pelos ares.
— Infelizmente não o há, e estes desgraçados hão de esbravejar aqui à toa, até que morram todos de fome ou os lancem fora da vila.
— Eu estou perdido, não é verdade? - perguntou Virgulino depois de uma longa pausa. - Não sobrevivo à desgraça que me feriu sem que possa salvar Maria, para salvar o meu pobre filho...
— E o que quer você fazer?
— Pôr-me à frente dos retirantes, levá-los até o armazém, causar um rebuliço na vila para que durante ele possa salvar Maria.
Diabrete pareceu acovardar-se diante da ousadia da empresa, mas dentro em pouco a abraçava e com tanto entusiasmo, como se dela fosse o autor.
Os dois não demoraram o ousado cometimento. Embora desconhecidos, permearam a multidão e, comunicando-se com todos os grupos mais exaltados, chegaram a conseguir o que desejavam. A multidão arregimentada caiu como um raio dentro da vila e, precipitando-se de chofre sobre o armazém de víveres, fez voar portas e janelas em estilhaços. Os gêneros, tomados como despojos do assalto, foram arrastados para a rua, e aí divididos no meio de uma confusão que degenerou em conflito.
Virgulino e Diabrete, que só tinham em vista prender a atenção das autoridades para o lado do armazém, a fim de que eles pudessem assaltar a cadeia, dirigiram-se para esta.
O cálculo, porém, foi frustrado. A excitação pública, a que dera lugar a prisão da infanticida, obrigou o subdelegado a manter a cadeia sempre perfeitamente guardada, para que a mulher não fosse assassinada. As sentinelas tinham tido ordem terminante de matar a quem quer que ousasse querer resistir-lhes.
Diante da atitude das sentinelas, Virgulino e Diabrete recuaram, porque entenderam que não deviam perder a ocasião que tão azada se lhes oferecia, e esperaram que os acontecimentos lhes viessem em auxílio.
De feito, a confusão que produziu a divisão dos gêneros ocasionou a prisão de vários retirantes que se mostravam como cabeças, e a necessidade de reforçar a guarda da cadeia deu lugar a que Virgulino se oferecesse e fosse de boa vontade aceito para tal fim.
Embora a dificuldade da empresa, Virgulino começou desde logo a pô-la em prática, captando a simpatia dos companheiros por meio de oferecimentos, que são a maior recomendação entre aquele povo essencialmente hospitaleiro.
Diabrete, por sua vez, entregava-se ao seu trabalho, que, embora menos arriscado, era muito mais difícil do que o de Virgulino. A astúcia, porém, conseguiu o que parecia quase impossível. Diabrete pôs-se a espalhar por entre os grupos a nova de que estavam surrando na cadeia a quantos retirantes prendiam e que a vila já se estava armando para vir sobre os outros.
— O que é preciso fazer? - perguntavam todos.
— Assaltar a cadeia; arrasá-la se tanto for preciso para tomar os presos e depois sair logo da vila.
O plano foi imediatamente acolhido, e a onda da miséria, ululando o seu rancor concentrado contra os comissários, foi bater de encontro à cadeia.
Virgulino, ouvindo a grita dos assaltantes, correu para o interior da cadeia, que era uma casa baixa, cujos quartos serviam de prisões.
Os guardas vendo-o correr pensaram que ele ia proteger os fundos da casa e um dos três seguiu-lhe no encalço, enquanto os outros trancavam as portas.
Virgulino, porém, já havia parado diante da prisão da sua mulher e entre ela e ele trocaram-se os primeiros cumprimentos:
— Você aqui? - perguntou Maria.
— Eu, sim - respondeu ele. - Avie-se; arranje a criança é preciso....
As pisadas do outro guarda não o deixaram acabar a frase e o mergulharam num despeito profundo.
— Estamos perdidos - pensou ele -, não é possível salvá-las.
— Todo cuidado com esta, pensou muito bem - exclamou guarda. - Que se safem todos, não importa, porém esta, não; vá ver se guarda os outros, esta fica por minha conta.
— Sim, sim - respondeu Virgulino automaticamente; recobrando logo o sangue-frio. - Duvidam, porventura, de mim? Não serei eu bastante corajoso para defender esta entrada?
— Como quiser, ficaremos então os dois; sempre faremos muito mais.
Não havia nada a objetar e tanto mais porque o guarda cortou logo toda a evasiva de que Virgulino se pudesse servir.
— Os outros são retirantes que se meteram no barulho, não podem ficar presos senão alguns dias; têm sempre de sair, e se há de ser amanhã, seja hoje.
— Mas...
— É o mesmo; estamos perto um do outro; ali é a prisão da ladra, de uma tal a quem chamam Mundica. Eu vou para ali.
Estava irremediavelmente malogrado o plano de Virgulino; qualquer movimento seu seria percebido pelo outro, que, segundo ordens recebidas, podia disparar a arma sobre quem ousasse querer tocar na assassina.
Um milhão de pensamentos revolutearam-lhe no cérebro, e qual deles o mais temeroso. Afinal decidiu-se por um que, por ser o mais horroroso, era o mais eficaz. O companheiro, conforme se depreendia das suas palavras, tinha inteira confiança em Virgulino e este podia portanto aproximar-se dele. Assim o fez. De um salto, dado com a elasticidade e a certeza de um último recurso, Virgulino caiu sobre o guarda com a polida faca desembainhada, a qual enterrou-lhe no lado esquerdo. O companheiro não teve forças senão para soltar um ai soturno e deu em terra com todo o peso do corpo.
O bandido não perdeu tempo; enquanto a sua vítima arquejava nas últimas contorções da vida, meteu o ombro robusto à porta da prisão, e como esta não cedesse logo retirou-se a alguma distância e dai correu e atirou-se com toda a força de encontro à porta, que estalou e abalou-se.
O esforço do infeliz duplicou-se com o terror que a própria ação lhe causava.
Ouvia-se o barulho dos assaltantes às portas da cadeia, e o som dos seus empurrões hercúleos para arrombar as portas e as janelas. Dentro também começara um barulho infernal, porque os presos, e principalmente Mundica, pediam socorro e clamavam que já havia morrido um guarda. — Cala-te, infame mulher, cala-te, ou morres também -gritou Virgulino, a quem já parecia inteiramente impossível a salvação da mulher.
A ameaça produziu felizmente o efeito desejado, e afinal o bandido pôde tirar da prisão a malsinada esposa.
Uma nova dificuldade veio amedrontá-lo. Doida sinceramente pelo crime praticado, Maria não tinha tomado alimentos durante os dias que tinha estado na prisão e o sobressalto, a comoção, reunidos à fraqueza em que se achava, não permitiam-lhe dar um passo.
Virgulino tomou-a nos braços possantes e saiu a correr com ela, mas justamente neste momento a onda assaltante acabava de penetrar na cadeia e já embarafustava pelo corredor para dar liberdade aos companheiros.
Ao vê-la, ainda Virgulino teve um assomo de sangue-frio e exclamou:
— Eu já levo aqui uma, que quase morreu de susto; vamos aos outros.
Falando à medida que corria, chegava ao fim de uma pequena cerca de pau-a-pique, e levantou sobre ela a mulher.
— Atire-se com Deus, Maria, ganhe forças, ou estamos de todo perdidos.
— E o nosso filho, Virgulino, o nosso pobre filho?
— Eu vou buscá-lo; agora não custa.
Mal acabara de dizer estas palavras, Virgulino ouviu desmentida a sua esperança; um grito uníssono partiu da multidão,
— Morra a assassina, morra a assassina, morra o infame que a quer salvar.
Felizmente para Virgulino, só aqueles que estavam para dentro da casa podiam saber onde estava a assassina, visto só eles tinham podido ouvir de Mundica a narração do sucedera. Isto fazia com que os assaltantes que estavam junto da porta não se precipitassem logo no quintal, o que teria como conseqüência a imediata captura de Virgulino e da esposa. Mas, ao contrário, todos querendo penetrar ainda para tomar parte no arrombamento das prisões, causavam uma enorme confusão, e impediam a prontidão dos movimentos, que era agora essencial.
— Pelo cercado, pelo cercado! - gritaram por fim, e repetiram por vezes o grito.
Já era tarde. Virgulino vendo-se ameaçado pelo grito -morra a assassina! - saltou também a cerca e, tomando nos braços a esposa, correu até que pôde deixá-la em lugar seguro na estrada geral que era caminho de Baturité.
— O nosso filho - murmurou ela. - Perderemos ainda este?!
— Não me fales nos filhos - arquejou Virgulino. - Deixe-os comigo e saberei fazer por eles o que você não soube.
Pôs-se a correr na direção da vila, e rápido e lépido como se não tivera acabado de transportar tamanha carga, e sempre correndo, veio incorporar-se à massa dos retirantes.
— Fogo! - gritaram na multidão. - Deitaram fogo na cadeia.
Virgulino, como se tivera um acesso de loucura, repetiu a fuzilar raios do olhar:
— Fogo! Deitaram fogo à cadeia. Não, não devem fazer, não é justo, não é direito.
E ia impelindo diante de si aqueles que não se afastavam para dar-lhe passagem.
Desta sorte abriu caminho até junto da cadeia, que já se enredava em vivas labaredas e cujo vigamento começava a estalar entre os braços rubros das chamas.
Virgulino olhou desvairado para aquele tremendo espetáculo, para aquela cena que punha em sobressalto a vila inteira, porque toda ela era ameaçada pela brutalidade do furor dos retirantes.
— Meu filho - exclamou finalmente o bandido. - Não morrerás sozinho.
Com a celeridade da alucinação internou-se nas chamas e nelas desapareceu com geral assombro dos circunstantes, que só depois tiveram voz para exprimir a sua comoção.
Passaram alguns minutos, longos como séculos, e afinal uma nova comoção mais violenta do que a primeira avassalou o coração da multidão.
Virgulino, semelhante a uma aparição das tremendas justiças religiosas, das medonhas punições de além-túmulo, assomou entre as labaredas e as rompeu de novo, com uma coragem indizível.
Fora das chamas que haviam-lhe queimado o rosto e em parte o tronco, o ousado pai entregou à primeira pessoa que dele se aproximou a criança que fora buscar e que trazia embrulhada na sua véstia de couro.
— Morta - exclamaram os circunstantes, olhando para a criança. - Está morta.
O pai tomou-a de novo nos braços e, aproveitando-se da perplexidade solene causada pela sua ação inqualificável, caminhou para o ponto em que deixara a mulher.
Grande número de pessoas o seguiu de longe, e, ainda que vissem claramente que ele era o marido da assassina ninguém ousou destratá-lo.
Virgulino parou finalmente junto de Maria, e com a voz muito sumida disse-lhe:
— Vê? Está aqui, fui buscá-la entre as chamas.
A mulher não respondeu, e o desgraçado insistiu na sua observação, agora sacudindo o corpo da mulher. O mesmo silêncio.
— Maria - exclamou ele, precipitadamente -, Maria!
Olhou em redor de si, e, como daí descobrisse as labaredas do incêndio, bradou lamentosamente:
— Oh! Ela adivinhou a nossa desgraça. E fui eu a causa de tudo.
Ajoelhou-se a chorar sobre os dois cadáveres e a comover os que se aproximavam do quadro tristonho. Assim jazeu por longo tempo, até que o subdelegado, mais para arrancá-lo de junto dos entes que lhe causavam aquela dor do que para cumprir a lei, chegou-se a Virgulino e deu-lhe voz de prisão como protetor de uma evasão.
— Sim - murmurou ele -, estou pronto. - E tirando do bolso um revólver, aplicou-o contra o ouvido, e desfechando-o exclamou: - Vamos!
A agitação da vila não cessou, apesar da comoção que a todos causou o pungente espetáculo dado pela família do bandido. Longe de acomodarem-se, os retirantes, mais exacerbados pela desgraça daqueles companheiros de infortúnios ameaçaram levar a fogo e a ferro várias casas da vila e só se acalmaram com a promessa formal de que todos os gêneros que restavam lhes seriam entregues.
— É do imperador - gritavam eles. - Mandou que nos dessem, é nosso.
A prudência das autoridades conformou-se com a exigência e todos os gêneros foram distribuídos, mas sem que presidisse à divisão a eqüidade que só a calma poderia manter.
Só 36 horas depois dos medonhos sucessos que puseram fim ao estádio dos retirantes na vila, partiram estes, a princípio unidos como um exército, e enveredaram pela estrada que leva a Baturité.
Para aí dirigiram-se também Eulália e o vigário Paula, e este já começava a trilhar as terras afortunadas da serra, que pareciam um grande oásis perdido no meio do imenso deserto da província.
À medida que subia, Paula rejuvenescia e revigorava-se. Os males dos meses passados dissolviam-se no verdor embalsamado dos plantios, que lembravam uma parasita disforme vicejando às expensas da maioria da vegetação morta da província.
Aquele amontoado de morros, que se sucediam com a gradação dos cones de uma pinha enorme, muito verdes, cintados pelos vastos leitos fulvos das estradas, afogados numa abundância palaciana de luz, acordavam no coração deprimido do vigário imagens em que ele já nem ousava pensar.
A viração, brincando nos cafeeiros, punha no ar, de mistura com o soar rítmico dos farfalhos, um banho de perfume em que aquele espírito conturbado lavava-se e bracejava numa aspiração de sensações tranqüilas. E coisa singular: a lembrança de Eulália, que até então encarnara-se-lhe no pensamento, como que ia amortecendo, como se ela fosse uma aparição da noite, que se dissipasse com a claridade triunfal da aurora.
Uma transformação muito semelhante apoderou-se de Eulália, desde que pisou o solo da serra. Em caminho perguntara pelos seus e deles tivera indícios e, mais do que isso, uma esperança risonha.
— Pode seguir em paz; daqui a Baturité ninguém morre de fome.
— Chegarão, pois - pensava Eulália. - Lá ou no Ceará reunidos, todos poderemos fugir à tortura que o destino nos infligiu.
E o coração dilatava-se-lhe num bem-estar insólito. A voz dos pássaros filtrava-lhe no espírito e aí entoava uma aleluia às suas alegrias; diziam-lhe que estava terminado o martírio, que em poucos dias receberia o prazer de ter junto de si, senão no mesmo teto, ao menos ao alcance dos olhos, a caçula, as irmãs e a velha tia.
Só uma dúvida vinha turbar-lhe o contentamento; era uma pergunta que insistentemente subia-lhe da consciência aos lábios:
— E receber-me-á minha tia?
Não resolvia por si; a maneira por que a honrada senhora pensava acerca da honestidade fazia-a estremecer e, na deficiência de uma resposta cabal, apelava para o acaso. Tomava raminhos à beira da estrada e, desfolhando-os a repetir ao despegar cada folha - sim ou não - alegrava-se ou entristecia-se com o horóscopo.
As impressões porém, não tinham estabilidade, boiavam e afundavam-se na inconsciência feliz, que era o resultado da brusca mudança das perspectivas, que lhe enlevavam os olhos e o pensamento.
No último dia de jornada, Eulália, que já havia parado em alguns povoados, demorou-se por algum tempo na Conceição e aí teve indícios da família. Havia dois dias que passara; devia, portanto, estar com certeza em Baturité.
Todo o longo sofrimento indenizou-se com esta certeza, e foi quase alucinada de alegria que à tarde desceu em demanda da cidade.
A noite, porém, a surpreendeu em meio caminho, nas alturas da Cruz. A sombra, que lançavam na estrada os cafezais e as matas, causou-lhe medo, e Eulália experimentou de novo a incômoda impressão de quem se vê só numa estrada.
Seguiu quase a correr, descendo a íngreme ladeira como se fosse intento seu não parar. Embaixo um panorama esplêndido desdobrou-se diante de si. Uma situação perfeitamente cultivada estendia-se com os seus canaviais viridentes, cheios de ruído, com os seus cafezais e mandiocais verde-negros dominando um grande espaço. Sobre um pequeno tabuleiro a casa, iluminada, surgia sonora de gargalhadas e gritaria de crianças. Próximo a ela, num curral espaçoso, o gado meneava os chocalhos, ruminando tranqüilamente. A pouca distância do curral, um vasto telheiro mostrava-se inteiramente iluminado por enorme fogueira.
— São felizes - pensou Eulália. - Não negarão uma telha a quem precisa.
Caminhou até o telheiro, que ficava mais perto da estrada e em que oscilavam diversas redes, impelidas por pessoas que conversavam.
— Sabem dizer-me se o dono da casa dá pousada? -perguntou Eulália.
— A quem pede - respondeu um velho que estava sentado sobre um forno de bulandeira. - A casa é de quem quer dormir.
— Posso então pousar aqui?
— Sem cerimônia, moça - tornou o velho -, e principalmente se for bonita.
Todos riram-se, e a própria Eulália sorriu da jovialidade do velho, que, sendo o dono do sítio, julgava-se obrigado a vir todas as noites alegrar por um momento os seus hóspedes forasteiros.
— Pois foi o diabo; ontem saiu uma leva que parecia um pedaço do mundo. A tal ordem do presidente há de dar-lhe na cabeça; cai a província inteira na capital e Deus queira que não haja muito que lastimar.
— Mas quem sabe se não é história dos comissários?
— Não, eu também recebi ofício; é a verdade. Baturité não tem hoje duzentos retirantes.
Eulália estremeceu. O seu coração anteviu logo que a família Queiroz não ficara na cidade, uma vez que os seus recursos não lhe davam para viver independentemente dos socorros.
— Foi um alvoroço dos meus pecados - continuou o velho.
— Estavam na cidade mais de 8 mil pessoas e de uma hora para outra ficaram sem um grão de farinha.
— Virgem!
— Aquilo estourou como um morteiro; quase que vai tudo pelos ares; as mulheres então cortavam o coração.
— Que calamidade!
— Mas também não havia outro meio; os retirantes não comiam nem metade do que lhes era enviado.
— Ah! A seca tem sido inverno para muita gente.
— É a verdade. Deram-se cenas muito tristes; ontem e hoje pela manhã encontraram-se muitas crianças abandonadas pelos pais, e algumas até recém-nascidas. Parece que já não há sentimentos no povo.
— É a desgraça, meu senhor.
— Hoje quem vai para Baturité precisa de ter coração duro; senão volta de lá sem um dez réis. Gente que tinha com que passar está aos paus.
— Mas aqui ao pé da serra?
— Pois então! A serra não dá para todos e nós que aqui moramos já não podemos. Fomos forçados até a impedir que subissem retirantes para cá. Daqui para baixo, para cima ninguém, que não vá de passagem. Se não fizéssemos assim, morreríamos também de fome.
A conversação, como era natural, desfez a alegre impressão que o aspecto da serra, a sua vegetação sadia e forte Causara a Eulália.
A imaginação pintava-lhe, no meio do torvelinho da revolta, a sua desventurada família, sem pão, sem amparo, ao alcance da mão do primeiro ousado que entendesse desrespeitá-la.
Não havia exagero nessa dolorosa previsão; as infelicidades tinham descido sobre as fracas mulheres em cardume, como enorme revoada de corvos. As afrontas, as injúrias como que as elegeram por campo de manobras e de espanejamento de seus horrores.
Não era, pois, muito que no meio de um tumulto, quando.. de par com a cegueira da indignação, anda a perversidade escolher vítimas, d. Ana e as indefesas meninas fossem escolhidas.
Trabalhada por este pensamento, Eulália não cerrou as pálpebras durante a noite, e ergueu-se com os primeiros raios da aurora. Embora para si, filha do sertão, o romper do dia tivesse na serra atrativos infinitos, não se demorou a partir. Cantavam os pássaros alegremente, vinha um longínquo rumor de cachoeira embalar numa sensação de paz e de confiança os habitantes e os hóspedes do sítio e convidá-los ao descanso mas para Eulália o próprio festejo da natureza era uma intimação de retirada.
“Estarão ainda em Baturité?" - pensava. – “Elas são tão medrosas. Talvez tenham seguido, ou estejam prestes a partir."
A dúvida fazia dobrar a velocidade da caminhada e tornava-a indiferente para o que via em torno. Não se demorava a olhar para as perspectivas que as subidas e descidas de ladeiras desenrolavam por todos os lados.
Não reparava, à margem das estradas, nas casas de palha dos moradores, que, surgindo de entre o verdor das folhas das canas, e atapetando-se com a folhagem das batateiras e das aboboreiras viçosas, falavam de fartura e de tranqüilidade.
O seu alvo era a cidade, o seu desejo era atingi-lo já, se fosse possível, e apenas quando a ingremidade das ladeiras obrigava-a a demorar-se encarava com os ribeiros para invejar-lhes a rapidez extraordinária com que coleavam por entre as plantações e sumiam-se para logo surgir adiante com a mesma celeridade.
Só depois de longas horas de caminho, com os pés magoados pelos acidentes do solo e pelas dificuldades da estrada pedregosa e bronca, Eulália pôde desafogar num suspiro de satisfação. Ao dobrar uma das curvas da estrada sinuosíssima, apareceu-lhe de improviso a cidade.
O sol matinal, tornando ainda mais negra a encosta da montanha, a cujo sopé, sob uma pequena elevação, jaz a cidade, fazia sobressair a cor dos telhados e de algumas fachadas da sua casaria, alinhada em poucas ruas. A estrada até agora quase sempre silenciosa e solitária enchia-se de rumor de cargueiros, que subiam, cantando numa toada tristonha, muito pausada, estrofes inspiradas pela vida agrícola e pastoril.
“Vou saber notícias da cidade" - pensou Eulália, e dirigiu-se ao comboieiro.
— Lá embaixo está uma epidemia respondeu o homem; - a doença tem atacado muita gente.
— Tem morrido muitas mulheres?
— É onde a doença faz o seu roçado, e nas crianças então não falemos.
— Santo Deus ! - exclamou Eulália, e foi com as lágrimas a merejarem-lhe que perguntou: - E como se chama essa doença?
— Ora, é muito de ver! Quem vem de cima não sabe o nome da doença dos retirantes?! É a fome...
E o comboieiro afastou-se cantando num barítono afinado:
O sol nasce igual p’ra todos,
Mas o home' o dividiu;
Para o pobre o sol em pino
Foi o quinhão que caiu.
Eulália, sobressaltada com a lutuosa nova, desceu, quase correr, a ladeira e, ganhando a estrada larga que vai desembocar na cidade, dirigiu-se para uma ponte, formada de um grosso tronco atravessado sobre um ribeiro que passa pela base da elevação em que assenta a casaria.
Um homem, vestido como os sertanejos, de camisa sobre as ceroulas, com um grande chicote na mão, tomou-lhe o passo.
— É de cima? - perguntou secamente e como recebesse resposta afirmativa: - De que lugar da serra?
Eulália hesitou na resposta. A presença do homem na entrada da cidade explicava que ele estava ali de sentinela, ou que era talvez algum malfeitor. Respondeu, pois, mentindo serenamente:
— Do alto da Cruz.
— Bom, pode subir a ladeira; se fosse retirante passava aqui por baixo; hoje deitamos fora o resto dessa praga.
— Como? - perguntou Eulália dolorosamente impressionada.
— Ora, como? Não havia o que dar-lhes para comer, estavam ai a fazer motim e a referver como bicharia. Manda-mo-los andar; quem for dono da alhada que os ature.
— Mas, puseram para fora todos, todos?
— Todinhos, moça, e você que é da terra deve gostar disso e não estar aí quase a chorar. Olhe que lá diz o ditado: livra-te dos ares que eu te livrarei dos males.
— Desgraçadas - murmurou Eulália -, o que será feito delas?
Deu alguns passos, mas de chofre voltou e perguntou ao guarda da ponte:
— E hoje puseram para fora muitas mulheres?
— Todas quantas estavam aí por essas baiúcas. Talvez pelo mato estejam algumas acoitadas.
— Não as encontrarei, pois; desventurada de mim, talvez não as torne a ver.
— Não vale a pena ter dó dessa gente; é uma canalha -exclamou o guarda. - Demais podem estar no Ceará em três dias, e o mato ainda tem muito croatá e raiz de mandacaru para que eles comam.
— Obrigado; não quero ouvir mais nada - exclamou Eulália.
E acrescentou baixinho:
— Que homem sem coração l
Entrou na cidade, que mergulhava no silêncio que segue as grandes comoções. O olhar dos guardas e das autoridades, mais do que ele a própria desconfiança, fizeram-na recear que lhe fizessem alguma violência.
Percorreu a rua em que havia diversas palhoças, residências marcadas aos retirantes, e viu-as fechadas. A feira, que era em todos os povoados o ponto de reunião dos esfaimados filhos do sertão, estava também deserta, e dois negociantes, conversando, deram-lhe uma noção exata do que se havia dado.
— Foi uma caçada em regra; hoje não se vê um só, nem se acharia um para remédio, ainda mesmo caminhando uma légua.
— Graças; eles eram capazes de fazer voar isto tudo.
Certa de que não encontraria ainda a família, Eulália decidiu-se imediatamente a partir, e mais uma vez recorreu à bolsa do bandido para comprar provisões.
A cidade, que tão agradável impressão lhe causara, parecia-lhe agora tristíssima e de um aspecto pronunciadamente hostil. A esperança que a embelezava, ao desvanecer-se envolvera a cidade na cor sombria dos padecimentos de Eulália que, sem poder conter mais a tristeza que a acabrunhava, pôs-se de novo a caminho apesar da soalheira.
Durante mais de 30 horas de jornadas sucessivas a mísera retirante caminhou, penetrando em cada povoado, e procurando neles a família.
Cada esperança dissipava-se numa desilusão, mas nem assim a coragem dedicada de Eulália extinguia-se: as decepções duplicavam-lhe a constância.
No terceiro dia chegou à vila de Pacatuba, que ao sopé da serra deste nome vegeta numa tristeza de cegonha.
Era a hora da chegada do trem: quase noite. O espetáculo da miséria desenrolou-se em toda a amplitude ante os seus olhos.
Dir-se-ia que o solo tinha-se aberto para expelir um vômito imundo nas cercanias da estação. O silvo da locomotiva semelhante às palavras mágicas de um evocador, acordava em toda parte seres de uma aparência fenomenal. Mulheres andrajosas, descuidosas da compostura, umas carregando crianças nuas, opiladas, com grandes ventres e braços e pernas atrofiados, corriam para junto do trem e, cercando-o com a impertinência e a gula das harpias de Virgílio, coagiam os passageiros a dar-lhes esmolas.
Era um coro tristíssimo aquele. A miséria exagerava as suas tristezas, pensando que era preciso ainda maior horror para que os felizes se comovessem.
— Veja, meu senhor, esta criança: eu já não tenho mais leite para dar-lhe.
— Eu tenho perdido aqui quase todos os meus filhos, mortos à fome.
— Esmola para um cego.
A polícia intervinha para conter a vozeria da desgraça, com a qual a inclemência muitas vezes se divertia, atirando moedas de cobre no meio da mó e deleitando-se com o alvoroto e as lutas, que se travavam tão encarniçadas que tornavam necessário o castigo.
— Quanta miséria, Santo Deus - meditou Eulália a ver esta cena compungente; - e ainda há pessoas que se distraem em torná-la mais evidente.
De pé sobre a plataforma da estação, espionava miudamente a multidão e, como sentisse o coração pulsar-lhe violentamente, interpretando este resultado da viva impressão que recebera como um horóscopo de que encontraria a família, demorou-se até que o ajuntamento dissolveu-se.
— Nada - disse ela, indo postar-se na rua que comunica a estação com o povoado; - ainda aqui não os poderei talvez encontrar.
O desalento avassalou-a então; temeu que a precipitação da viagem a tivesse feito demorar-se menos do que fora necessário para uma estreita pesquisa nos povoados intermediários a Baturité e Pacatuba.
Resolveu, pois, ficar o dia seguinte na vila para que a consciência não a acusasse de haver passado precipitadamente por aí.
Ainda uma vez a desesperança veio enlutar-lhe o coração, porque, de par com a impossibilidade de encontrar a família, torturava-a a notícia de que mais de 100 mil retirantes enchiam agora a capital.
— Como encontrá-las no meio deles? - perguntava a si mesma, sem saber responder.
Entretanto, devia partir para chegar ao ponto terminal da viagem, que deviam fazer suas irmãs, onde contava achar lenitivo às suas saudades, ou desenganar-se para sempre.
Na manhã do segundo dia, Eulália, tomando o trem que gala para a capital, sentia ao mesmo tempo levantarem-se dentro de si duas grandes esperanças: o encontro com a família e o encontro com Irena e o velho Monte. Teriam eles sobrevivido à enorme desventura que os acometera? O seu infortúnio não podia ser tamanho que de um golpe a despojasse de todas as suas afeições.
O trem partiu com uma celeridade vertiginosa, quase tamanha quanto desejava a ansiedade de Eulália.
A planície, coberta de uma vegetação amarelenta, aqui e ali semeada de pequenos grupos de carnaubeiras, fugia para trás do comboio com uma rapidez inqualificável e, de espaço em espaço, uma estação; obrigando a locomotiva a silvar e a parar, como que lhe dava maior força para recomeçar a carreira.
Em uma dessas estações, em que sempre uma onda de retirantes vinha esmolar, o que desafiava muito a atenção de Eulália, o trem demorou-se mais do que em todas as outras.
Estava-se em Arronches, que parecia ser o quartel-general da miséria; meninas que teriam, no máximo 13 anos, tinham estampados nos rostos e nos colos descarnados os estigmas perdição. Grandes círculos dartrosos gravavam nos semblantes tristonhos daquelas infelizes a condenação eterna dos encarregados dos socorros!
— Veja - diziam os passageiros, chamando a atenção recíproca; - aquela menina não chega a ter 12 anos, e no entanto em que estado lá se acha.
— Aqui a perdição faz concorrência à fome.
Eulália sentia-se tão profundamente comovida, que já não podia olhar para o ajuntamento, e alegrou-se quando ouviu o primeiro sinal de partida. Estava debruçada em uma das janelas do vagão e relanceou ainda uma vez o olhar para aquele transbordamento da desgraça.
Soou o último sinal de partida e, de envolta com ele, um grito dolorosíssimo:
— Mana Eulália! Minha irmã!
Eulália voltou-se como doida, e respondeu por outro grito.
— Chiquinha! Eu vou já, eu vou já.
Quis dar um passo, mas o arranco de saída do trem fê-la cair sobre o banco. A alucinação da alegria fê-la, porém, insistir no seu propósito, e caminhou até a plataforma. Era já muito tarde; o comboio desfilava e punha entre ela e a irmã o obstáculo invencível do rápido movimento.
— Pare! Pare, pelo amor de Deus! - gritou Eulália com acentuação desesperada.
Uma gargalhada estrepitosa dos passageiros respondeu ao apelo insensato, e Eulália, atingindo ao último grau da alucinação, tentou precipitar-se.
O recebedor de bilhetes deteve-a, porém, segurando-a bruscamente e vibrando uma afronta à sinceridade do sentimento que motivara o temerário procedimento.
— Se está bêbada, vá cozinhar.
E impeliu-a para dentro do vagão.
Eulália foi cair sobre um dos bancos e ai ficou, inerte e perplexa, a encarar com um olhar estúpido o seu brutal salvador.
A violência da decepção que acabava de sofrer arrebatou-lhe os sentidos e, imóvel, muda, conservou-se até que o trem parou na estação terminal.
Aí o modo grosseiro pelo qual foi sacudida pelo recebedor fê-la acordar do espasmo.
— Ia fazendo-a boa; estava com o diabo no corpo em Arronches, bem?
Eulália não respondeu; saiu cambaleando e tomou o leito da estrada na direção de Arronches.
— Não pode andar por aqui - bradou-lhe um vigia; - se quer levar o diabo, é outro falar. Para fora, não seja besta.
Eulália, sentindo-se agarrada pelo braço, voltou e foi sentar-se, lavada em lágrimas e sufocada em soluços, junto à estação.
A cidade da Fortaleza está situada à beira do mar, sobre um extenso cômoro de ondulações tão suaves, que se disfarçam numa vasta planície.
As suas ruas se cruzam com a regularidade das carreiras de uma tábua de xadrez, e de quando em quando vão desembocar em praças espaçosas, elegantemente arborizadas por longas filas de árvores gigantescas.
As casas, edificadas quase todas por um só modelo, térreas, com largas janelas muito rasgadas, portas muito altas, as frentes pintadas por um verniz especial, dão-lhes uma singela monotonia, que torna aprazíveis e bonitas as ruas calçadas sem arte e algumas vezes deformadas por altas soleiras e passeios não nivelados.
Do denso da casaria ergue-se a catedral da província; as duas torres caleadas sobressaem à cobertura da nave, como dois braços perpendicularmente erguidos. Está colocada ao lado de uma praça, onde termina uma rua que por outra extremidade desemboca em uma grande área despovoada nas três faces, em uma das quais, em frente à rua, está o cemitério.
Na face norte de uma das faces desta praça, a oeste da cidade, ergue-se o grande prédio da estação, neste tempo ainda não acabado.
Eulália esperou aí durante longas horas o aparecimento de sua família. Fora vista por Chiquinha, e contava que d. Ana, sabendo da sua chegada à capital, viesse procurá-la.
— Elas virão - pensava ela. - Devem logo ver que eu não sairei da estação sem que elas cheguem. Daqui até lá é boa distância, e é por isso que se demoram.
Para atenuar o tédio da espera, Eulália reparava no que se passava em torno.
Desse lugar, onde cemitério e o abarracamento de crautá, composto de cabanas esparsas, falavam de morte e de miséria, entrevia-se o quadro medonho das conseqüências da seca.
Quando o trem chegara, e depois quando partira, Eulália avaliou por alto a quantidade de retirantes que existia na cidade. Mais de 2 mil pessoas entraram e cercaram a estação e dessas mais de quinhentas disputavam entre si o carreto das cargas do pequeno número de passageiros que havia chegado no trem.
Na maneira por que o faziam, no baixo preço que pediam, via-se claramente que era a extrema penúria que os aconselhava.
Isto ainda mais se evidenciava com a presença de um crescido número de mulheres e de crianças, que sobressaíam na multidão. As crianças estavam quase todas nuas, e as suas faces escaveiradas, as barrigas monstros, as pernas muito finas revelavam que a estada na capital não lhes havia melhorado a sorte. As mulheres estavam em tão completo estado de miséria, que algumas delas mal podiam guardar a compostura e defender o pudor.
Agora, que todos tinham se retirado da estação, novos espetáculos tinham vindo desenrolar-se ante seus olhos.
Na rua que atravessava a praça, a alguma distância da estação, não cessavam de passar indivíduos conduzindo redes na direção do cemitério.
— Muita gente morre por aqui - pensou Eulália. – É medonho isto.
Entretanto o movimento contínuo, tão diverso do que se dava em B. V., quieta, preguiçosa, só se reunindo para as festas, causava-lhe prazer, e como que a sepultava ainda mais na semi-inconsciência em que a deixara a dor da grande decepção que experimentara.
Só à tardinha resolveu-se a ir procurar com quem se entender para que obtivesse casa e fixasse morada até que se entendesse com a sua família ou encontrasse Irena e seu pai.
— Não vieram - dizia entre si, pensando na família por minha causa. Egoísta que eu sou, devia ter ido ter com elas e esperei que fossem elas que viessem. Amanhã, porém, resolveremos.
Caminhou até a rua por onde, ao longe, via, sem intervalo de cinco minutos, passarem redes umas após outras, e aí quase que deu em terra. Um quadro medonho lhe saíra ao encontro.
Amarrados pelos artelhos, pelo ventre e pela nuca, espichavam-se dois cadáveres ao longo de um caibro. Iam, demais disso, completamente nus e estavam cobertos de pastas de imundícia. Os homens que os conduziam, muito andrajosos conversavam indiferentes, fumando.
— Quantas caminhadas nos faltarão ainda?
— Temos dado nove; para dez falta ainda uma.
— É o diabo; é um serviço que eu não gosto de fazer de noite; prefiro limpar canavial com sol quente.
— A verdade é que é um pedacinho daqui à Pimenta e, com o sol, só à força de muita necessidade é que me faz trabalhar.
— Homem, agora ainda é pior para romper estas ruas; os diabos estão com fome canina, e só com um terror de força a gente faz com que eles abram caminho.
Eulália cambaleou ao ver o medonho quadro, e só com grande esforço pôde conservar-se de pé.
A desilusão que experimentava era tão pungente que excedia incomensuravelmente a extensão das suas perdidas esperanças. Julgou que estava sonhando, porque só um sonho poderia fazê-la ver um espetáculo tão vergonhoso no lugar em que o governo da província residia.
"Ai! quanto havemos de sofrer!" - pensou Eulália. -"Só imensos padecimentos na vida explicam tamanho desrespeito à morte."
A grosseria dos dois carregadores de cadáveres não a impediu de perguntar-lhes onde moravam os comissários.
— Por aí; entre por esta rua a fora, vá em frente sempre, mas olhando para a mão direita. Quando vir povaréu em qualquer lugar, abique.
— E como hei de saber qual é o comissário?
— Perguntando; quem tem boca vai a Roma.
Não era prudente dirigir mais uma pergunta, e Eulália, compreendendo-o, afastou-se agradecendo.
À medida que ia se aproximando da face da praça reparava no movimento extraordinário de povo que nela havia. Dir-se-ia que se passava naquela hora um acontecimento extraordinário que agitava a cidade inteira. A rua que desembocava em frente, estava quase cheia de homens que desfilavam a toda carreira, e de mulheres que, carregando no braço uma criança, puxavam outras pela mão.
Quando afinal pôde entrar na rua e ver de perto o enorme concurso, entristeceu-se ainda mais, se é possível, do que ao chegar à estação e ao ver o saimento dos retirantes. Grande parte das mulheres e dos homens recatava-se apenas por meio de um saco de linhagem amarrado à cintura e tinha o resto do corpo completamente nu.
Homens, que pelos seus trajos mostravam que habitavam na cidade, postados na calçada, a fumar e a gargalhar, dirigiam graçolas às mocinhas que passavam, e divertiam-se em levar desatenciosamente a mão aos corpos destas e das mulheres seminuas.
— Olhe, aqui estão dez tostões, uma fortuna; valem mais do que dez rações de carne velha - diziam eles. - Se querem, não façam cerimônia.
E algumas das mulheres os repeliam, porém outras, cedendo prontamente à solicitação, paravam a pequena distância, à espera de que o oferecimento fosse repetido, para que o aceitassem.
Eulália sentia que a sufocavam no meio daquele ambiente, que lhe arrancavam o coração e o espezinhavam.
Que sorte lhe esperava no meio de tanta depravação e de tanta crueldade? E suas irmãs, e sua tia, e Irena? Teriam elas coragem para lutar, para arcar com a miséria e afrontar resignadamente a morte?
A verdade era que a cena excedia a tudo quanto a imaginação podia cogitar de mais degradante; e, o que era pior, a alma dos desgraçados, aclimando-se naquele meio corruptor, afazia-se a ele, e como que não se doía de ver-se contaminar por ele.
A própria Eulália, depois da primeira impressão, vendo repetido o mesmo procedimento em toda rua, começou a tolerá-lo, ainda que ela também fosse alvo dele; e só se impressionou de novo vivamente à esquina da rua da Palma, onde a multidão se adensara de modo a impedir-lhe a passagem.
Realizava-se aí uma das mais tristes e inacreditáveis cenas da seca, a distribuição dos socorros.
O novo presidente, empossado da administração, encontrou a província entregue à improbidade. Entre o retirante e o Estado havia um sorvedouro - as comissões de socorros.
Cresciam de par as despesas, a mortalidade e a penúria, porque indivíduos desnaturados, abusando da boa fé do ex-presidente, aproveitavam-se da miséria do torrão natal para enriquecer.
O retirante desolado murmurava a sua frase irônica:
— A seca tem sido inverno para muita gente.
Tomada de indignação, a autoridade administrativa, que não podia avaliar precisamente as circunstâncias da província, desfechou nos ímprobos um golpe certeiro: a suspensão da remessa dos socorros. Infelizmente o golpe feriu mais fundo do que o honrado administrador desejava: traspassando as comissões, encontrou no fio a massa dos retirantes alevantada até ele por vingança da improbidade. Todas as comissões extintas impeliram para a capital a população adventícia das suas localidades e, dentro em alguns dias, a cidade via-se inundada por mais de 100 mil famintos e maltrapilhos.
Entrou com eles a confusão. Para acomodar essa enorme quantidade de homens, não havia senão um pequeno número de abarracamentos, e estes, já antes do imenso acréscimo de população, estavam completamente cheios.
Todos os vãos aproveitáveis em diversos edifícios foram logo convertidos em hospedarias, mas ainda assim nem a cima parte da aluvião pôde ser alojada. Mais de nove partes ficaram ao relento, tendo por único teto a copa meio desfolhada das árvores das praças.
A distribuição dos socorros, em tais condições, era de uma iniquidade compungente e inevitável. Por maior que fosse o esforço do velho presidente, que, em pessoa, percorria as praças e assistia muitas vezes às distribuições, era impossível impedir que milhares de pessoas ficassem privadas de socorros.
O que era ainda mais para lamentar era que o maior peso da iniqüidade caía sobre os fracos: as famílias das viúvas e os pequenitos a quem a epidemia e a fome deixavam ao desamparo.
Uma distribuição foi a cena que Eulália presenciou ao chegar à esquina da rua da Palma.
O povo apinhado sussurrava como um enxame de varejas sobre um animal putrefato, e a especulação, postada em cada esquina, explorava-lhe a miséria.
Era o mercado da fome.
Os retirantes que haviam recebido as suas rações iam trocar grandes pedaços de carne por um punhado de farinha, ou por uma xícara de arroz. As crianças, esfaimadas e nuas, tentando romper a aglomeração compacta, eram maltratadas e atropeladas; as mulheres, não podendo caminhar, choravam e maldiziam. Do meio desse pandemônio de lágrimas, de maldições, de ais doridos, sobressaíam de quando em quando gargalhadas estentóreas, assovios e gritos perseguindo ladrões.
Mas o que principalmente chamou a atenção de Eulália foi um grupo de indivíduos, que, pelos seus trajos, mostrava não ter sido vítima da calamidade.
Protegidos pelo crepúsculo e pela confusão que reinava entre o povo, esses homens divertiam-se em insultar a desgraça das famílias, oferecendo-lhes pão em troca do sacrifício da honestidade.
Tentando em vão continuar o caminho e lembrando-se da indicação dos homens, que encontrara carregando cadáveres, Eulália parou a olhar estupefata.
Uma mulher passava, levando nos braços uma criança.
— Pode me dizer onde moram os comissários? - perguntou Eulália. - Chego hoje e não conheço ninguém nesta cidade.
— Há 15 dias que aqui estou - respondeu a infeliz - e ainda não pude falar a um deles. É uma desgraça; vou a todos os pontos em que se dão esmola e nunca posso chegar a falar com os homens. Já tenho visto morrer dois filhos e este, veja!
A mulher levantou a cabeça da criancinha pendida sobre o seu ombro. Fazia chorar aquele indescritível semblante. Com os dedos metidos na boca, a mísera já sem forças tinha um olhar estagnado, que parecia a cristalização de uma súplica. Os ossos do rosto, muito salientes, faziam-na parecer uma caveira coberta por uma pele seca..
— Que doença tem ela? - perguntou Eulália, comovida.
— A mesma que matou os irmãos; a doença dos retirantes: fome! - soluçou a desventurada mãe.
Eulália, aturdida pela honrosa declaração, uniu as suas às lágrimas da mulher e levando a mão ao bolso:
— Eu também sou muito pobre, mas não deixarei morrer seu filho à míngua. Como eu, encontrará muitos que a socorram; tenha coragem, peça.
— Tenho pedido, minha senhora. Vê aquelas casas? Estão todas fechadas, e assim ficam sempre que para elas se dirige uma de nós. Deus a conserve, minha senhora, adeus!
As palavras da infeliz chamaram ainda mais a atenção de Eulália para a tremenda realidade que a cercava e se impunha aos seus olhares. Entretanto tamanha desgraça como que atenuava a sua e foi com um sobressalto que ouviu a despedida da mulher.
— A senhora não me conhece - exclamou Eulália -, mas pode avaliar que eu não sou uma perversa. Consente que fique por esta noite na sua casa?
A mulher sorriu tristemente e, meneando a cabeça, disse com uma entoação irônica:
— Na minha casa podem ficar todos: estamos nela agora, rua.
"É medonho, meu Deus, é incrível: o que terá sido feito de Irena, e que destino espera as minhas pobres irmãs?" - pensou Eulália. - Eu endoideço.
— Se quer vir comigo, terá um lugar junto a mim no lugar onde durmo. Terá ao menos uma amiga junto a si. Olhe, é ali.
O dedo da retirante assinalou a catedral, cujo corpo enorme se alevantava em frente, na extremidade da rua.
— Vê aquela igreja? Tem uma praça em frente; e daí vai uma rua para o mar, na qual está o quartel. Foi ali que eu pude arranjar meios para dar alguns dias comida aos meus filhos. Tomei amizade àquele lugar; é infame, mas sou mãe.
— Não; eu ficarei aqui mesmo.
A mulher retirou-se e Eulália acompanhou-a com a vista até que ela perdeu-se no meio da multidão.
— Desgraçada; quanta amargura nas suas palavras. E eu?!...
A interrogação como que lhe arrebatou os sentidos. Afigurou-lhe que o solo balançava, e as casas, inclinando-se e agitando-se com ele, iam bater umas de encontro às outras. A multidão começou a girar com a rapidez de um corrupio e fundir-se num único corpo, descarnado, nu, coroado por centenas de cabeças e ouriçado de milhares de braços.
Chamou em vão pela sua coragem, pelo seu sangue-frio. Não os tinha mais: as pernas fraquearam-lhe, enturvaram-se-lhe os olhos e, cambaleando, foi cair junto a uma das faces da rua.
— Estou perdida - exclamava ela dentro em si -, morro. Uma injúria pungentíssima, veio acabar de turbar-lhe inteiramente a razão e deprimir-lhe as forças. Um dos indivíduos do grupo que tanto impressionara Eulália, veio parar junto dela e, dando-lhe com a ponta da botina no quadril, exclamou:
— Olhem este diabo: está completamente bêbada.
Chiquinha, vendo a irmã no vagão, sentiu sublevar-se dentro em si a saudade, mas deliberara calar-se para não desgostar d. Ana, que se entristecia sempre que ouvia o simples nome de Eulália.
Muitas vezes a velha senhora tinha dito à caçula, de modo que impressionava às outras irmãs:
— Não fale nela, minha filhinha; não devemos estar a dizer sempre o nome dos mortos, porque fazemos com que eles penem mais.
A impressão de Chiquinha, porém, não podia no momento estreitar-se na deferência; precisava expandir-se, espanujar-se livremente, e a moça, chegando arquejante de uma longa corrida, exclamou a rir e a enxugar lágrimas:
— Sabem? Acabei de ver Eulália, de dizer-lhe adeus.
— Onde? - perguntaram todos, deixando-se arrastar pelo sentimento de Chiquinha.
— Na estrada de ferro; ia num carro para a cidade.
Houve um silêncio longo depois destas palavras, porque a fisionomia de d. Ana tinha feito uma rápida mudança.
Foi a velha senhora quem reatou a conversa.
— E por que não vem ela ter conosco?
Chiquinha expôs o incidente e demorou-se em justificar sua irmã aos olhos da tia. Não foi porque as desprezasse que não desceu; no momento em que se viram, o trem partia, e ainda assim Eulália quis descer.
— Então ela voltará a ter conosco - murmurou d. Ana; - antes da noite estaremos consigo, porque o trem volta de tarde.
— É exato; ela virá.
Absorta nesta esperança, a família como que olvidou o estado de penúria em que se achava. Só depois de algum tempo a caçula chamou-as à triste realidade, lembrando que tinha fome.
— Não pude conseguir coisa alguma; nem um vintém -ponderou Chiquinha. - Estava um mundo junto do trem; não pude chegar muito perto.
— Nós - acrescentou d. Ana - também nada conseguimos. Vamos correr as ruas; talvez tenham pena de nós.
A família, que estava reunida na estação, caminhou para o interior da linda povoação. Cada passo, porém, assinalava-lhes uma desilusão.
Havia dois dias que ali chegara, e no entanto não tinha encontrado um abrigo, a não ser um canto no abarracamento para suspenderem as redes. Foram debalde à comissão. Um dos empregados limitou-se a achar muito lindas as três mocinhas.
— Que flores ! São suas filhas? - disse ele. - Deixe estar que não lhes faltará nada. Venha amanhã; o comissário as atenderá.
O oferecimento, porém, longe de desvanecer a infeliz senhora, fizera-a estremecer e amedrontar-se, e no dia seguinte d. Ana, dirigindo-se à comissão, cometeu a imprudência de ir só.
O empregado reconheceu-a logo e, com um tom de familiaridade ofensiva, sorriu para a honrada senhora.
— Então vem só? Por que deixou as meninas? Fez mal; é preciso mostrá-las, senhora; tem nas mãos uma fortuna.
D. Ana respondeu a esta série de amabilidades grosseiras por uma pergunta seca:
— Poderei hoje falar ao comissário?
— Não esta aí agora, mas é o mesmo. Deixe-me ficar o seu nome e o das meninas.
D. Ana obedeceu quase a chorar de vergonha.
— Ora bem - ajuntou o empregado -, dentro de uma hora mande cá uma das meninas para que seja socorrida. Agora não posso dar-lhe nada; estou só, e, se vou dar-lhe alguma coisa, invadem-me isto. Dentro em uma hora mande hein? Será servida.
Indignada pela aviltante intenção que o empregado deixava transparecer nas suas palavras, d. Ana resolveu logo abrir mão dos socorros que pudesse obter.
O próprio empregado incumbiu-se de dar maior base à sua resolução. Quando d. Ana já ia saindo, ponderou-lhe ele:
— Escute; por que não deixa aqui o lugar onde está morando? Fica mais fácil, e demais a gente precisa de ir por lá ver as senhoras.
— Estou mesmo no abarracamento - respondeu d. Ana, e consigo acrescentou: - mas não estarei lá nem mais um quarto de hora.
De volta, ocupou-se logo em fazer a sua mudança de forasteira, para que não se visse nas condições em que já uma vez se achara. Mundica ensinara-lhe qual era o grau de prepotência dos comissários e a lição não tinha sido esquecida.
As circunstâncias da família eram portanto extremamente precárias, e a vinda de Eulália, que, pela aparência, podia modificá-las, devia alegrá-la.
Depois de correr a povoação, não tendo obtido mais do que o necessário para comprar uma bolacha para a mísera criança, a família Queiroz volveu de novo à estação, onde já começavam a reunir-se os esfaimados retirantes.
A honestidade, posta em feira, aleiloava-se ali como em todas as cidades do Ceará, e a depravação passeava sobranceira e ovante através da fome alucinada e cobarde.
A família inteira aconchegada, como que para defender-se do contágio da epidemia geral, esperava ansiosa, estranhando a lentidão do tempo.
De repente o silvo da locomotiva, quebrando o profundo silêncio em que se mergulhava a vasta extensão circunvizinha, lançou o alvoroço no meio da sussurrante massa que cercava a estação. De todos os lados do povoado correram mulheres e crianças precipitadamente, como se foram ao encontro de um remédio infalível para a sua desgraça.
A família Queiroz, colocada no meio dos trilhos, concertava o plano para que pudessem logo ser vistas por Eulália.
Quando o comboio parou e o alvoroço cresceu, as infelizes acercaram-se dos vagões a espioná-los atentamente.
— Não a vejo - ponderava d. Ana; - perdê-la-emos ainda de vista.
— Parece que não veio - advertiu Chiquinha; - se estivesse no trem, meu coração adivinhá-lo-ia.
O tempo de demora corria rápido, de um modo inqualificável. Já a sineta havia dado o sinal da partida e a locomotiva soltara um rouco bufo. Os chefes de trem trancavam as portinholas.
Chiquinha, perdendo a cabeça com a desilusão iminente, não hesitou mais, e, esquecendo-se da sua triste posição de retirante, ousou por o pé no estribo de um dos vagões.
— Para fora, estupor! - bradou o chefe do trem. - Vai-te para o diabo.
— É um instante só, meu senhor, para ver se a minha irmã veio.
— Safa-te; vamos.
— Não demoro, saio já, se ela não estiver; não custa nada...
A infeliz não teve tempo de completar a frase. O homem desnaturado, franzindo o sobrolho e levando aos lábios o apito, disse com uma acentuação de enfadado:
— Vejam o diabo como tenta; onde está o homem está o perigo: para fora, peste!...
As mãos do brutal empregado, acompanhando a rudeza das suas palavras, empurraram a pobre Chiquinha, que foi cair longe.
Um grito consternado rompeu do seio da infeliz, enquanto a maioria dos passageiros ria e a mó dos retirantes aplaudia com palmas a ação do miserável, que, de pé na plataforma do vagão, se movia rapidamente e agradecia tirando o boné.
Talvez instigada pelos cumprimentos, a mó impiedosa não se contentou com as chufas e com a assuada. Ao ver a pobre moça por terra, um rapazinho atirou-lhe um punhado de areia e os outros o imitaram. Para logo passarem deste desacato aos empurrões, e foi com grande dificuldade que a desditosa Chiquinha pôde caminhar, sempre perseguida pelos apupos.
D. Ana, que não tinha visto o incidente, esperava já a sobrinha no ponto combinado para o encontro: a face lateral da estação; e quando a viu assim perseguida, correu ao seu encontro enraivecida como leoa faminta. Mas a sua cólera impotente sopitou-se de pronto para dar lugar à humildade, e à defesa limitou-se a estreitar nos braços a moça desvairada pela afronta.
— Eulália? - perguntou d. Ana. Não a pôde ver, minha filha?
— Não veio - soluçou Chiquinha; - e é por ela que sofro.
A assuada, que se havia amortecido um pouco, recresceu diante do quadro das infelizes que choravam abraçadas.
Ninguém é mais intolerante para com a desgraça do que um desgraçado. Os mendigos disputam-se até o último desforço a migalha que lhes afiram; não respeitam as lágrimas, não lhes reconhecem a majestade, porque estas lá se tomam sedição nos seus olhos.
— Olhem, a pequenota estava industriada pela velha. Eh! Cabras de força ...
— Não pegaram as bichas; toca a choramingar agora.
— Queriam lapear alguma coisa, mas não puderam.
— Fora, fora!
À medida que aumentava a grita, formava-se um círculo em torno de d. Ana e suas sobrinhas, e a garotada colocava-se de modo a empurrar as retirantes com a sofreguidão do jogo da peteca.
— Que mal lhes fizemos? - soluçou d. Ana. - A menina ia ver se a irmã tinha vindo no trem.
— Cala, cabra velha; fora!
Um homem rompeu sem dificuldade a grande massa, no meio da qual sacudia com violência um pau e impunha silêncio aos rapazolas mais exaltados. Era o empregado com quem d. Ana havia falado no abarracamento, e que vinha providencialmente ao seu encontro.
— Arreda para longe, canalha! - bradou ele, logo que se achou no meio do círculo. - Caluda! ou não terão esmola por dois dias.
A intimação peremptória produziu o efeito desejado, apesar de alguns protestos covardes, que mal podiam ser ouvidos.
Desde que se viu só com d. Ana, o empregado, esforçando-se por fingir condolência pelo desacato sofrido pelas infelizes, ponderou:
— A senhora é a única culpada do que acontece; não lhe disse eu que mandasse uma de suas meninas ao abarracamento? Porque não o fez? Para que há de se expor à perversidade dos brutos?
Semelhante compaixão insultava a velha senhora ainda mais pungentemente do que a assuada; mas a melindrosa situação inspirou à infeliz a prudência necessária para disfarçar a repulsa numa desculpa.
— Esperávamos no trem de hoje uma pessoa, que devia chegar do Ceará. Hoje mesmo partimos para lá.
— E quem é essa pessoa? Pode dizer quem é?
— Uma parenta nossa.
— Rica?
— Nós somos todos muito pobres.
O empregado deixou cair a máscara ao ouvir estas palavras; a hediondez da sua intenção esbateu-se na torpeza das suas palavras, e d. Ana, para evitar novo desgosto, disfarçou a impressão dolorosa que lhe causara ouvi-las.
— Venha comigo; eu lhe afianço que nada lhes faltará -exclamou ele por fim.
D. Ana prometeu fazer a vontade ao miserável, meio único para conseguir que ele se afastasse. Quando se viu só, porém, e percebeu no olhar de Chiquinha uma condenação ao que lhe acabava de ouvir:
— Infame! - resmoncou d. Ana. - Eis o que é a piedade deles.
— Oh! minha boa tia - exclamou Chiquinha -, perdoe-me a injustiça que lhe fiz. Tenha sempre coragem que Deus nos há de defender. Eulália está no Ceará, e nós reunidas poderemos ali trabalhar para viver.
— É exato, minha filha, poderemos viver honestas, mas para isto é preciso que todos que conosco vivam sejam honestos.
— E seremos; Eulália tem um coração generoso.
— Teve um coração generoso - murmurou d. Ana; - mas que respeito merecemos nós àqueles que souberem do erro de Eulália? Eu não consentirei que ela venha morar conosco; quase o tolerei num momento de fraqueza, mas felizmente a sua ingratidão salvou-nos desta vergonha.
— Perdoe-lhe, minha tia; ela talvez pensasse que nós fôssemos ao seu encontro.
— Pensou, decerto; nós as mais infelizes, tanto maior razão para não a querer conosco.
— Mas é cruel demais; ela não merece este castigo.
— É verdade, eu sou quem o merece talvez, Chiquinha; ainda agora acabei de ouvir oferecimento e, tendo fome, não o quis aceitar. Eu sou quem merece castigo.
Chiquinha respondeu com os soluços e as lágrimas à injustiça que a exaltação de d. Ana acabava de fazer-lhe, e apenas murmurou:
— Eu estou pronta para fazer o que me disser.
Não é possível descrever a grandeza de sentimentos, que neste instante se puseram em jogo no coração das duas mulheres, que não trocaram entre si mais que uma única frase:
— É preciso sair daqui hoje mesmo.
A noite já as veio encontrar longe de Arronches e nas circunvizinhanças da capital. Fazia um luar tropical, sereno como o desdém da natureza pelo orgulho do homem. Na intensa claridade destacava a massa seminua de grandes cajueiros, próximo aos quais ardiam fogueiras, deixando ver sórdidas redes suspensas sob a copa das árvores.
A estrada silenciosa, coleando pelas ondulações suaves do terreno, parecia a traça de um labirinto, ou melhor, o vestígio das indecisões, das incertezas que tumultuavam na alma das caminhantes.
A pouco e pouco o deserto como que se foi animando; as árvores como que se transformaram em habitações, e a família Queiroz percebeu que começava a pisar o solo da cidade.
Os grupos de retirantes abrigados sob as árvores aumentaram; já não era de distância em distância, sob os cajueiros Só, que se viam: estavam debaixo de todas as árvores, numa promiscuidade brutal.
— Quem sabe se não seria melhor ficarmos por aqui mesmo? - ponderou Chiquinha.
— Não; devemos entrar na cidade desde já; amanhã sofreremos menor impressão.
Caminharam até próximo da estação, onde resolveram pernoitar, porque Chiquinha pensava que na manhã seguinte Eulália viria aí encontrá-las.
— Se amanhã Eulália nos vier encontrar aqui, o que lhe dirá vosmecê, minha tia?
— Nada - respondeu d. Ana; - eu não tenho coisa alguma a dizer-lhe.
— Não a consentirá conosco?
— Não tenho direito sobre vocês; não é a mim que deve pesar mais a ingratidão.
A grosseria pela qual foi acompanhada Eulália na sua queda provocara a princípio ditos canalhas, mas não ecoou por muito tempo nos corações.
O corpo inerte, o olhar estatelado, as feições demudadas da moça, e principalmente a lividez mortuária que mascarou-lhe o semblante impuseram respeito.
— Parece que ela foi-se; para ser bebedeira é muito forte.
— Talvez seja algum mal de estupor ou ataque de cabeça.
— Se não a acudirem já, vai-se para ai à míngua como um cão.
A piedade substitui a indiferença e alguns dos circunstantes inclinaram-se sobre a mísera retirante.
— Não há dúvida; é mandar vir a rede e mandá-la para o cemitério; esta já não sofre mais.
A convicção geral foi de que Eulália havia morrido, e os mercadores ignóbeis da honra das famílias retirantes, impressionados e corridos pelo sucesso inesperado, começaram a retirar-se, fingindo uma impassibilidade que era desmentida pelo seu próprio semblante.
— Já está fria como gelo - disse um deles que pusera a mão sabre a testa de Eulália; - morta e bem morta.
A onda popular, como que afastada por mão invisível, recuou a pouco e pouco de junto de Eulália e voltou-lhe as costas para não vê-la mais. O aspecto da morte desanimava-a, porque era uma antevisão da sorte que a esperava dentro em alguns dias.
Toda a atenção voltou-se exclusivamente para a distribuição dos socorros; todo o esforço tendeu a ganhar distância a fim de se aproximarem dos empregados da comissão. De repente uma grita atordoante ergueu-se na rua transversal a pequena distância do lugar onde Eulália havia caído.
— Nós temos fome; morremos à fome; salve-nos.
As vozes que assim clamavam eram pela mor parte de mulheres, e estas imprudentemente cercavam um homem de estatura média, magro, grisalho, vestido de sobrecasaca preta, e que fazia gestos acariciadores para todos os lados. Dois soldados, que o acompanhavam, resmungavam entre dentes:
— É preciso ter muita paciência para aturar esta ralé; fedem como animal podre.
— Bem, meus amigos, tenham paciência, isto vai melhorar muito; não hão de ter mais razões para queixas, eu lhes prometo.
— Mas veja vosmecê esta criança, meu senhor; está quase morta! Ah! Sr. presidente, vosmecê não sabe o que é a fome...
O homem, a quem todos se dirigiam e que era de feito o presidente da província, respondia com bonomia prometendo remediar tudo.
— Olhe, Vossa Mercê, veja: nós não estamos mentindo, Aqui mesmo caiu, não há nem uma hora, uma rapariga.
Pelo grito, parece que o que ela tem é fome. Está ali, veja. O presidente caminhou apressadamente até junto da infeliz e, com um arrebatamento filho da comiseração, tomou um dos pulsos.
— É exato; está quase a morrer, tem o pulso fraquíssimo.
— Como esta - ponderava o povo -, têm morrido dúzias e dúzias de pessoas.
— Eu mesma que estou aqui - acrescentava uma mulher - não tardo muito, se Vossa Mercê não vem em socorro da gente.
— Esta moça estava aqui sozinha?
— Parece...
— Não tem nenhum parente aqui, nem marido, nem qualquer pessoa que se interesse por si?
Ninguém respondeu ao apelo feito pela autoridade suprema da província.
— Chame aí dois homens - disse ele dirigindo-se a um dos soldados - e conduzam esta moça para a Santa Casa da Misericórdia; digam que vão da minha parte.
A especulação inspirada pela desgraça começou logo a fazer concorrência à desacordada Eulália. Várias mulheres, simulando desfalecimentos, caíram redondamente por terra, para ver se lhes era dado o mesmo destino.
O presidente, sorrindo com a sua triste experiência de iguais cenas, esperou até que Eulália fosse colocada nos braços de dois retirantes.
O honrado velho e a mísera moça seguiram direções opostas e, ao passo que o primeiro, subindo a rua, era importunado pela multidão, Eulália dentro em alguns minutos era entregue às Irmãs de Caridade no edifício da Misericórdia.
Uma febre violenta, que dava à pele uma secura de areal e ao mesmo tempo uma temperatura incomodativa, sucedera ao espasmo que a havia gelado.
— É uma retirante que o sr. presidente encontrou caída na rua; pede toda a atenção para ela.
A recomendação do camarada era inútil. As poucas irmãs, que faziam o serviço do hospital, eram verdadeiras sacerdotisas da caridade. Acostumadas à triste existência do recolhimento, como que os enfermos eram as suas únicas afeições. Tinham por eles cuidados maternais, e pensavam-nos com uma paciência evangélica.
Também como que a natureza se esforçava em compensar-lhes a dedicação e a humanidade: a mortalidade ficava numa desproporção extraordinária com o número dos enfermos.
Transportada para a enfermaria, Eulália conservou-se durante longas horas desacordada, e o médico, examinando-a, deu-a como um caso perdido.
A febre, ressequindo-lhe os lábios e escancarando-lhe de vez em quando os olhos, punha-lhe no corpo um tremor convulsivo, ao mesmo tempo que a fazia de espaço a espaço pronunciar frases soltas e algumas vezes de um sentido ininteligível para a irmã que velava à sua cabeceira:
— Adeus, adeus, não envergonharei os meus - dizia ela; - adeus.
E, contraindo os lábios, estalava beijos no ar, de certo beijando na imaginação conturbada a face de algum ente caro.
A estas palavras repassadas de dignidade e de mansidão, sucediam outras, enérgicas, ameaçadoras, que revelavam a meio a história íntima da retirante.
— É inútil, não quero, não matarei o meu filho; mate-me com ele se quiser, mas não lhe obedeço.
A irmã intervinha acalmando-a, assegurando-lhe que ninguém a queria violentar, mas essas palavras como que exacerbavam a febricitante e ela acrescentava:
— Faça-o, ameace-me quanto quiser; se matar o meu filho, eu denunciá-lo-ei e darei como testemunho a arma com que feriu Feitosa. Tem o seu nome.
Soluços abafados e gemidos de uma tristeza dolorosamente comunicativa seguiam a frase altiva e resoluta que se continuava por uma explosão sobranceira e ao mesmo tempo humilde.
— Treme agora; não tem coragem, queria ferir-me o coração. Ai meu desgraçado pai, como fostes feliz morrendo; se existísseis não resistiríeis à vergonha. O vigário, o vosso amigo...
A irmã inclinando-se sobre a doente para ouvir melhor as revelações do delírio, estremecia a cada palavra e, como que, ouvindo-a, abria simpaticamente o coração àquela desgraçada misteriosa que viera dar a costa no hospital.
Ainda em hora muito adiantada da noite a febre e o delírio continuavam com a mesma intensidade, e a irmã, firme no posto que lhe era indicado pela caridade, velava solicitamente pensando consigo:
— Esta moça foi vítima de uma grande infelicidade.
Pela madrugada a febre fez remissão quase completa, e a agitada sonolência foi substituída por algum repouso.
A irmã sentiu renascer a esperança de ver salva a recomendada do presidente, a quem estreitava-a não só a curiosidade, mas já poderosa simpatia. Naquele rosto sereno, onde a resignação e a cordialidade haviam conservado a frescura infantil, passava um reflexo de alegria íntima sobre a palidez da vigília.
De manhã, à hora da visita do médico, a irmã tinha um ar triunfante, e apressou-se em ir ao encontro do facultativo para dar-lhe a boa nova:
— A nossa doente de ontem à noite está quase sem febre.
— É um milagre, irmã; não esperava.
— Teve um mau delírio durante a noite, sofreu muito, mas está felizmente melhor.
As novas indicações do facultativo operaram sobre a doente um efeito eficaz, mas ainda assim a irmã não ficou de todo descansada. Eulália conservava-se inteiramente alheia ao que se passava em torno; nem por um gesto, nem por uma palavra deixava perceber a menor impressão.
— Está apatetada - dizia consigo a irmã; - quem sabe se não é uma idiota?
O olhar incerto, sonolento, os movimentos tardos e inconscientes, os gemidos meio abafados, tudo enfim fazia acentuar-se a suspeita da irmã, que felizmente convenceu-se do contrário, horas depois.
Eulália dormiu longamente; o anélito quente e fétido da febre foi substituído por uma respiração pausada, ampla, que denotava apenas um grande cansaço. Afinal o sono interrompeu-se de manso, e Eulália, abrindo e para logo esfregando os olhos, encarou para o que via diante de si. Como se esta só verificação não lhe bastasse, sentou-se de pronto no leito e alongou a vista por toda a enfermaria.
A irmã, ajoelhada a pequena distância do seu leito, orava em face de uma imagem da Senhora, que surgia de entre
festões de rosas brancas e rubras, entrelaçadas de modo a emoldurá-la. Reinava inteiro silêncio na enfermaria. As filas de leitos, estendidos ao longo do enorme salão, cobertos com lençóis de algodão, davam ao lugar o cunho adorável da ordem. Dentre o leve alaranjado dos lençóis surgiam as cabeças das enfermas magras e tristes, que olhavam quietas.
Seria meio-dia. O sol, quebrando os raios no calçamento e no areal das ruas, fazia com que se visse a evaporação do solo subir com uma vibração vítrea. O Passeio Público, em frente, farfalhava à viração da baía as poucas folhas que restavam ao seu arborizamento.
A canícula filtrava nos corpos uma quebreira invencível. Não se podia estar bem senão encurvado em uma rede violentamente agitada.
Eulália, sentada no leito, viu a imobilidade geral e, como não tivesse logo divisado a irmã, resolveu-se de novo a deitar-se.
A irmã, vendo o seu movimento, veio postar-se junto da sua cabeceira, e com uma voz de uma entoação maternal:
— Como está? Vai melhorzinha ?
— Muito melhor - respondeu voltando-se e, encarando com a irmã, acrescentou: - dei-lhe muito trabalho, minha senhora, não é verdade?
— Nenhum, minha filha, cumpri com o meu dever.
Houve uma pausa, durante a qual Eulália de quando em quando levantava os olhos para fitar a irmã, e esta, fingindo não perceber a curiosidade da moça, deixava observar-se e por sua vez observava. Via-se claramente que Eulália coligia recordações para saber qual era a posição social da mulher, tão esquisitamente vestida, que se conservava ao seu lado.
— Quem foi que me trouxe para aqui, pode dizer-me?
— Veio carregada por dois homens, por ordem do presidente.
— Mas eu não conheço o presidente.
— Não é preciso para que ele faça o bem. É um bom homem.
O silêncio interpôs-se de novo às duas vozes e só se rompeu de chofre com uma pergunta de Eulália.
— Mas diga-me onde estou, de quem é esta casa.
— É de todos os pobres: a Santa Casa da Misericórdia.
— Ah! - exclamou Eulália e, caiando-se, tentou esconder o rosto sob os lençóis.
— Sente-se mal, minha filha? - perguntou a irmã ocultando saber a causa do movimento de Eulália.
— Não é coisa séria, minha senhora; não se incomode. A irmã tinha-se colocado em frente de Eulália e, assentando-se no leito, segurou-lhe em uma das mãos. Depois, inclinando-se muito sobre ela, murmurou:
— Vexou-se de achar-se aqui, não é verdade? A todos acontece assim, mas não têm razão. Esta casa é de infelizes, mas não rebaixa.
— Oh! minha senhora, eu nem podia querer melhor; se soubesse quanto eu tenho sofrido!...
— Imagino, minha filha; ouvi ontem quando delirava.
— Sim, eu delirava ontem? Nem vi quando me trouxeram para aqui.
— É filha da cidade ou do sertão?
— Do sertão.
— E a sua família sabe que veio para o hospital? — Não - exclamou Eulália sentando-se; - não sabe, e a esta hora deve sofrer muito...
— Onde mora ela? Mandarei avisá-la.
— Não sei; ninguém pode dizer ao certo. Eu devia encontrar-me com ela hoje...
— Saiu então sem falar-lhe?
— Sim, eu sou muito desgraçada, minha senhora, muito desgraçada.
Em vão a irmã quis acalmar a sobreexcitação da doente; as lágrimas debulharam-se-lhe perenes e pôs-se a soluçar dolorosamente.
— Não se mortifique assim - observou a irmã. - Olhe; eu já sou sua amiga e não sairá daqui sem que esteja perfeitamente curada, e sairá somente para ver os seus parentes, porque eu lhe arranjarei um emprego aqui.
— Obrigada - murmurou Eulália -, mas não posso aceitar nada do que me oferece. Eu preciso sair hoje, já, agora mesmo.
— Não é possível, minha filha, só o médico lhe poderia fazer tal obséquio, e eu empenhar-me-ia com ele para que não o fizesse.
— Preciso - acrescentou Eulália; - quero salvar minhas irmãs.
— Não as salvará, porque irá recair e morrer.
— Ah! minha senhora - exclamou Eulália -, é porque não sabe quanto eu sou infeliz, não imagina que desgraça causa hoje a minha ausência; por isso opõe-se a deixar-me sair?
— Não está nas minhas mãos, filha; amanhã, só amanhã o médico lhe poderá dizer. A sua saída, porém, será a sua morte.
— Não posso, pois, sair?
— Não - respondeu a irmã ameigando a voz para tirar toda a aspereza da negativa. - Há de curar-se primeiro para então poder servir à sua família.
— Meu Deus, meu Deus, o que vão dizer elas de mim? Estou de uma vez para sempre condenada.
Eulália tinha razão quando assim pensava.
A tarde e a noite anteriores haviam gerado na imaginação de d. Ana as mais extravagantes idéias acerca do caráter da moça e do seu destino.
Um ponto estava de si para si definitivamente assentado: era que a sua sobrinha não passava de uma perdida. Tal era o motivo da repugnância que tinha do contato daquela, repugnância que não externava claramente para não ofender o pudor de Chiquinha.
Uma ponderação somente a fazia abrandar e dispor-se a ceder às solicitações da sobrinha, para que de novo se juntassem com Eulália. Não estaria esta arrependida do mau passo que dera? Ousaria ela querer enxovalhar a pobreza de suas irmãs? Não era possível que esta última hipótese fosse verdadeira; Eulália errou, mas não era uma perversa.
Entretanto, amanhecendo, d. Ana e suas sobrinhas foram colocar-se à porta da estação, junto ao bilheteiro, lugar em que não podiam deixar de ver todos os indivíduos que entravam para tomar o trem.
A caçula tinha fome, e tinha passado a noite a choramingar. O sono fê-la calar, mas, acordando, recomeçou as suas queixas e os seus pedidos.
— Não temos com que comprar comida; mas tua irmã, a tua mamãe, não tarda ai para dar-nos dinheiro - disse-lhe Chiquinha, afagando-a.
A criança consolou-se por algum tempo, mas não recomeçou o choro, desde que nos lábios da tia e das irmãs soaram palavras de esperança.
A locomotiva deu o primeiro, o segundo, o terceiro sinal; os circunstantes apertaram-se mais na plataforma; pessoas que vinham no largo puseram-se a correr.
As infelizes, com os olhos presos em quantas mulheres entravam, examinavam-nas de alto a baixo, como se temessem que a sobreexcitação em que estavam as fizesse não reconhecer logo Eulália.
O apito do condutor do trem anunciou a partida imediata, e a locomotiva, dando o primeiro arranco, fez soar o choque dos vagões uns contra os outros.
— Não veio - suspirou Chiquinha.
— Não veio - repetiu amargamente d. Ana, e acrescentou: - eu já esperava por isto.
— Foi por força de algum contratempo que sobreveio, titia; não pense mal de Eulália.
O choro da criança, ao ouvir o desengano cruel; a triste certeza de que a sua mamãe não viria, dobrando-se, fez com que o diálogo se interrompesse. A voz da coitadinha, chamando a família à realidade da sua posição, lembrou-a de que devia tratar de arranjar alguma coisa para comer.
Chiquinha, que tinha nos braços a caçula, foi postar-se em frente à família, e daí estendeu a mão aos transeuntes pedindo-lhes, em nome de Deus, uma esmola.
— Vá para a comissão - exclamavam uns. - Vá trabalhar. -exclamavam outros.
Mas no meio dessa indiferença marmórea pela desgraça alheia, algumas almas generosas depunham na mão da mocinha o óbolo, que ela abençoava fervorosamente.
Quando a multidão se dispersou, o bilheteiro, vendo a família e principalmente ouvindo algumas palavras dela, comiserou-se.
— Eu esperava por esta - dissera d. Ana; - e Eulália não se importa mais conosco.
— Pode ter-lhe acontecido algum desastre não é possível? - perguntou Chiquinha, amuada.
— É possível, mas era preciso muita infelicidade para nós.
— E duvida, minha tia? Alguém poderá acreditar no que nos tem acontecido?
D. Ana calara-se por algum tempo, mas afinal reatando a conversação exclamara:
— Seja como for, Chiquinha, eu não quero mais saber de Eulália. Perdeu-se, fique lá com o seu erro. Não quero comer à custa de um dinheiro que não chega honestamente às mãos dela. Quem lho dá? É um marido, é um irmão, é um parente? Não; quem lho dá é o causador da sua e da nossa desgraça. Eu não quero aproveitar-me de tal dinheiro.
Chiquinha pôs-se a soluçar e exclamou com a ingenuidade de seus 15 anos:
— Mas assim vamos morrer todas, porque no meio deste povaréu não há de haver meio de ganhar a vida.
— Melhor será morrer - ponderou severamente d. Ana; mas, notando na impressão que o seu tom causara à moça, ameigou a voz e acrescentou: - não morremos, não, minha filha; em toda parte há trabalho para os que se querem sujeitar. Demais, procuraremos o nosso velho amigo Rogério Monte, e quem sabe se não encontraremos por cá o sr. Augusto Feitosa? Tenhamos fé; antes sofrer honestamente do que receber socorros de mãos que não no-los devem dar.
Neste ponto da conversação, o bilheteiro veio parar em face de d. Ana, e, cumprimentando-a respeitosamente, fez-lhe algumas perguntas banais, com o intento de travar conversa.
— São de fora - disse ele por fim - e não conhecem aqui ninguém que lhes possa de pronto encaminhar, não é verdade?
D. Ana, a quem os oferecimentos espontâneos já eram suspeitos, olhou de soslaio para o interlocutor e entendeu que devia dissimular.
— É exato, mas nós como já estivemos aqui uma vez, conhecemos mais ou menos as ruas e podemos procurar alguns amigos que temos.
Chiquinha olhou para a velha tia e para o interlocutor de modo que este compreendeu que a honrada senhora buscava negar-se a segui-lo.
— Mas são parentes ou amigos que a senhora tem aqui? - perguntou o interlocutor. - Desculpe a minha importunação; sou daqui e sei que hoje é inútil procurar os amigos: não servem.
— Oh! os que eu vou procurar são sinceros.
— Não basta; é preciso que possam ser úteis agora.
— Trabalharemos.
— Mas em que hão de trabalhar?
— Serviços não faltam.
— Ouça, minha senhora; eu estava ali quando conversava e ouvi tudo. Sou pai de família, sei avaliar o quanto sofre, e que heroísmo é necessário para assim negar-se a ser protegida. Mas não deve desconfiar absolutamente de todos.
D. Ana abaixou a cabeça e Chiquinha, animada pelas palavras do desconhecido, perguntou-lhe:
— E o senhor pode dar-nos um lugar em que moremos?
— Posso recomendá-las num dos abarracamentos; serve?
— Muito - acudiu d. Ana; - já vejo que o senhor é um homem de bem.
— Deus há de agradecer-lhe o benefício - exclamou Chiquinha; - nós estávamos em termos de morrer.
Caminharam através do largo, diversas ruas e praças, até que o homem, parando em uma porta, deu à família um cartão em que escrevera algumas palavras.
— Esta é a casa do comissário; esperem por ele e filem-lhe; é o primeiro pedido que lhe faço e ele há de atender-me; se não o fizer, vão falar-me amanhã lá na estação.
Pouco depois que d. Ana e suas sobrinhas passaram pela rua da Assembléia atravessavam-na também duas pessoas, cujo encontro era ansiosamente desejado pela família.
Uma dessas pessoas era uma rapariga loira, extremamente pálida e emagrecida, cujo trajo revelava mais do que pobreza - verdadeira miséria. Estava descalça, e no corpinho os cerzidos longos traíam uma preocupação de compostura e asseio pouco comum no grosso da população adventícia que enchia a capital.
Via-se num lance de olhos que a infeliz moça fora vítima de uma grande catástrofe; lembrava um pedaço de mármore esculpido no meio de um esterquilínio; tamanha era a diferença que havia entre ela e qualquer outra retirante.
Quem demorasse a contemplar aquele semblante tinha necessariamente por ele interesse compassivo. Da exagerada palidez ressaltavam dois olhos azuis, muito grandes e amortecidos, que pareciam diluir-se numa umidade luminosa, e o olhar que deles transudava trazia alguma coisa de sobrenatural. Duas tranças loiras, enroladas sobre o occipúcio, completavam-lhe a cabeça simpática.
Pela mão dessa rapariga caminhava tropegamente um velho, que apresentava mais idade do que a real. Os sofrimentos tinham-no acabrunhado de tal forma, que dar-se-lhe-ia mais de 60 anos.
Estes dois infelizes, caminhando através da soalheira das 11 horas da manhã, paravam de porta em porta, mas, em vez de pedirem esmolas, a moça oferecia rendas para vender.
Ordinariamente à oferta correspondia um movimento triste da moça, que suspirava, abaixando a cabeça.
— Tem paciência, minha filha - murmurava o velho; - acharemos adiante quem no-las compre.
— Não me incomodo, não, meu pai; já estou acostumada.
Mas, enquanto a voz se encarregava de dar este conforto ao velho, a infeliz não raras vezes levava a mão aos olhos para enxugar as lágrimas que neles marejavam; e, quando, depois de algumas passadas, ela parava em outra porta, era já receosamente que oferecia as suas rendas.
— O dia está hoje aziago, rainha filha - ponderou o velho, depois de ouvir várias recusas.
— Mas ainda é muito cedo; ainda podemos correr outra rua.
— És uma santa, minha Irena - murmurou o velho; - não desencorajas.
— O negócio é assim mesmo, meu pai; um dia bom, outro mau; não há, pois, que estranhar.
Um suspiro do velho Rogério Monte respondeu à frase que estereotipava a enorme valentia moral de Irena.
A tímida amiga de Eulália tinha-se de feito modificado radicalmente. O seu natural retraimento como que se transformara numa concentração de força de ânimo, de tal sorte que ela se mostrava heroicamente sobranceira a todas as desgraças.
Rogério muitas vezes desacoroçoava de todo e revoltava-se contra o destino cruel que o fustigava desapiedadamente, mas a voz de Irena achava tais argumentos na própria desventura, que para logo fazia voltar-lhe a calma e a resignação.
Houve dois dias de máxima provação para Rogério, depois das tremendas decepções que o perseguiram desde que se retirou da paróquia.
A primeira dessas foi a morte de um dos escravos, com a venda dos quais contava saldar inteiramente as suas dívidas e readquirir a boa vontade dos seus credores.
Por mais que o honrado velho documentasse a morte do escravo, não conseguiu autorizar a sua palavra.
— É um excelente subterfúgio - respondiam-lhe os credores; - mas infelizmente já não pegam as bichas.
Em Aracati, portanto, longe de encontrar quem o amparasse, Rogério só teve perseguidores, e foi obrigado a refugiar-se para que não tivesse de amargar na prisão dois crimes que lhe eram imputados com iguais fundamentos: a tentativa de assassinato contra Augusto Feitosa e a sonegação de um escravo, com o intuito de defraudar àqueles que haviam confiado em sua honra.
Todavia a sua vida não se repassou ali de todo o amargor, que lhe estava reservado; o honrado velho tinha ainda sorrisos para repartir com Irena, cujo coração reagia contra o infortúnio, para não dilacerar a última parte não ulcerada do de seu pai: aquela em que ele encerrava a consciência da amizade que ela lhe dedicava.
Breve, porém, a penúria, estreitando cada vez mais o círculo em torno dos dois náufragos da fortuna, impôs a Rogério como condição de salvar-se a retirada de Aracati. Foi então que, mudando de nome, resolveu partir para o Ceará.
Medonha recordação deixou-lhe tal viagem, e agora, cego, ainda mais se lhe avivava na memória.
Para iludir a vigilância, aliás pouco temível da polícia, agravara ainda mais as aparências das suas necessidades. Pôs-se descalço, e pediu a Irena que fizesse o mesmo e, carregando cabeça os poucos objetos que lhe restavam, foi dar o nome num abarracamento de retirantes.
Daí seguiu, no primeiro vapor, para a capital.
— Sabes em que estou pensando? - dizia às vezes o cego à sua filha.
— Aposto que está pensando em mim - respondia-lhe dando à voz uma entoação acariciadora; - não faz isto.
— Sim, penso em ti, mas naqueles dias da viagem.
E punha-se a recordar as cenas que via com essa vista do cego, que é três vezes mais perfeita do que a dos homens.
Vinha à proa e, como ele e a filha, vinham centenas de retirantes. Aquela aglomeração de farrapos e de enfermidades antecipava-lhe a amarga existência que o esperava na capital. Tinha visto o que podia haver de mais horroroso nas horrorosas cenas da seca.
A maior parte dos passageiros retirantes nem tinha lugar para estender as pernas. Entontecidos pelo enjôo, os infelizes juntavam ao mal-estar geral a imundícia, porque alagavam o convés com vômitos abundantes. Outras enfermidades sórdidas colaboravam nessa obra nauseabunda.
Irena padecera muito e Rogério chegou a perder a esperança de vê-la chegar à capital.
Durante uma dessas horas de angústia, mais uma porção de fel veio misturar-se ao muito que já amargurava o desgraçado. As trouxas que trouxera para bordo desapareceram, e entretanto dentro delas estava tudo que restava ao descendente de uma das mais fidalgas famílias da província.
Rogério, sempre que se lembrava do fato, deixava medir a extensão da cólera que experimentara.
— Tinha coragem de arrancar os olhos a quem me roubou.
O fato alucinou-o no momento e, apesar de ser expressamente proibida a passagem dos retirantes da proa para a ré, afrontou a ordem e foi ter com o comandante.
As providências tomadas foram tão fracas, que não foi possível descobrir o autor do roubo, e além disso em vez de consolo encontrou apenas escárnio e humilhação.
— Tu estavas fora de ti com o maldito enjôo e não viste o que se passou, Irena. Sabes apenas que a punição do comandante foi tamanha, que eu nunca a pediria aos céus.
E Rogério estremecendo referia o desastre, que, no seu entender, punira o pouco caso com que foi tratado pelo comandante.
Quando recebeu o triste desengano de que não era possível descobrir os objetos Rogério voltou à ré.
Sentados junto à borda do vapor, o comandante e a esposa conversavam, e entre os dois brincava uma criancinha, que teria, no máximo, quatro anos.
Embevecido na felicidade que lhes causava tão intimo conchego, o comandante respondeu às lamentações do velho com algumas palavras em que a indiferença repassava a piedade mal simulada.
— Bem viu que tomei logo providências, mas vá lá descobrir o homem da capa preta, entre centenas de indivíduos.
Rogério, por um grito da consciência, repeliu a suspeita que era lançada sobre os seus companheiros de infortúnio, e, com um tom grave, acrescentou:
— Fosse eu o comandante e o senhor a vitima e eu lhe mostraria como descobria em meia hora o autor do roubo.
— Pois dou-lhe poderes, vá descobrir.
— Descobrirei, mas hei de ter permissão para correr as caixas dos seus marinheiros.
— Meu velho - replicou o comandante -, eu perdôo-lhe, porém não repita o que disse. Está decidido, não tenho mais nada a fazer. Pode ir.
Monte retirou-se duplamente ferido pela repulsa do comandante e pela perda inestimável que acabava de sofrer.
Chegando junto de Irena e vendo-a profundamente abatida, todas as desgraças, que imaginou desde logo no futuro, assaltaram-no em tropel. A presença da filha torturava-o; quando ela, entontecida e desanimada, estendia-lhe os braços e rodeava-lhe com eles o pescoço, afigurava-se à imaginação alucinada de Rogério que apertavam-lhe com uma tenaz em brasa.
"O que vai ser de nós?" - pensava ele; - "que mundo de sofrimentos desabará sobre nós? Irena, Irena, melhor fora que morresses.”
O enjôo da moça reunido à falta de comodidades prostrou-a extraordinariamente. Depois da violência dos acessos caiu em um profundo torpor bem semelhante ao espasmo de um moribundo.
— Ela morre, santo Deus - suspirava Monte - e eu não posso ao menos cumprir com o meu dever de pai.
Olhava em vão em torno de si para pedir socorro: a sua desgraça só encarava com desgraçados.
— Não, não morrerás à mingua, minha filha, eu te salvarei.
Cambaleando, dirigiu-se de novo para a banda de ré. Marinheiros postados no passadiço impediram-lhe a passagem.
— Para lá, velho; basta de incomodar o comandante, basta.
— Mas eu sou pai, entendem? E vejo que a minha filha vai morrer.
— É o mesmo, não será o primeiro pai a perder um filho.
Rogério, vendo que inútil seria apelar para a força, não pôde mais conter as lágrimas e, com uma entoação compungente, exclamou:
— Veja, meu amigo, eu estou velho, só tenho aquela filha; se a perder, morrerei também.
— É exato, é - murmurou o marinheiro -, eu bem sei que dói, mas cumpro ordens.
— Esta ordem não pode se estender até um pai que tem a filha moribunda. Olhe, o comandante é pai também; veja-o, está ali contente a rir porque o seu filhinho brinca. Ele perdoará a falta que eu preciso cometer; deixe-me passar.
O marinheiro voltou os olhos para o lugar assinalado por Monte, e depois observou:
— Estou vendo, sim; ele está alegre com o filho, é feliz e não quererá que se dê aos outros a mesma alegria; coisas do mundo!
— Não pense isto; ninguém desdenha da dor de um pai, ninguém se zanga com outrem por saber que se compadeceu dos sofrimentos do seu semelhante. Veja como a criança brinca, e ele e a esposa sorriem?
Houve um instante de silêncio, durante o qual o marinheiro coçava a cabeça como que para afastar daí a idéia de desobedecer à ordem do comandante.
De repente, ambos exclamaram com uma entoação indefinível:
— Virgem!
Um ai que parecia trazer dentro de si pedaços de um coração ecoou em todo o navio, e a esposa do comandante caiu redondamente sobre o tombadilho.
— O que tens tu? - bradou o esposo, precipitando-se sobre ela.
Rogério e o marinheiro, estatelados, sem voz, olhavam-se, ao passo que os outros marinheiros e alguns dos passageiros de ré, correndo para junto do comandante, ajudavam-no a levantar o corpo desmaiado da senhora.
A confusão e o espanto causados pela cena inesperada cresciam, porque todos tratavam de inquirir a causa do desmaio da senhora e limitavam nela os seus cuidados.
Só depois de alguns minutos - longos como um século, porque eram medidos por uma enorme catástrofe - o marinheiro, cambaleando, veio por sua vez parar em face do comandante.
— A menina - disse ele com um acento gutural de enorme comoção - a menina...
O mísero pai atirou-se de encontro ao bordo do vapor com a prontidão de uma bala. Só então pôde medir a extensão do golpe que transpassara-lhe o coração e, levando as mãos à cabeça e contraindo-se como uma serpente no momento do bote, tentou atirar-se nas ondas.
Os braços possantes dos seus companheiros o detiveram, não sem um grande esforço, e ao mesmo tempo todos a uma voz bradaram:
— Escaler ao mar; para trás o vapor.
O velho Rogério parava então para resfolegar e concluía, enxugando lágrimas que marejavam-lhe impertinentemente dos olhos sem luz:
— Eu tinha pedido a Deus que te levasse, minha Irena; mas, ao ver a tremenda dor daqueles pais, fui abraçar-me contigo. Dormias à espera de futuros infortúnios.
Passando então a ocupar-se de Irena, Rogério acentuava as tristezas que vieram recebê-lo no desembarque.
Fora como todos os outros retirantes acomodar-se em um dos abarracamentos e aí, para fazer jus ao socorro do Estado, era obrigado a carregar pedras nas horas da canícula.
Uma noite, de volta do trabalho, chegou à mísera choupana em que morava, ardendo em febre.
Irena padeceu tanto como ele, porque a infeliz em cada gemido paterno ouvia os ecos dos próprios prantos de orfandade.
Rogério por sua vez sentia que a dor da filha agravava-lhe a enfermidade, mas por um dom do acaso veio o delírio roubar-lhe a consciência do infortúnio!
A febre, porém, declinou um pouco e ao romper da alva desapareceu de todo.
Rogério, acordando então, chamou pela filha.
— Diz-me, Irena, o que tive eu à noite?
— Uma febrezinha, mas passou.
— Sim, e onde estás tu? Por que não vens para o pé de mim?
Irena, que não lhe havia abandonado a cabeceira, respondeu a sorrir:
— Olhe para cá e verá que não estou longe.
— Estou a olhar, filha, repara; tenho os olhos abertos, e entretanto não te vejo.
Irena, inclinando-se sobre o rosto de Rogério, abriu os seus tanto quanto estavam abertos os olhos do pai, e fundiu em soluços:
— Somos bem desgraçados! - suspirou a desditosa.
— Muito, minha filha, muito!
Rogério Monte estava cego.
Desde então Irena deixou de ser a tímida menina da paróquia para ser a filha corajosa e dedicada. Como que as forças perdidas pelo velho Rogério tinham vindo abrigar-se dentro dela. Quando o infeliz desanimava, Irena, com uma energia piedosa, realentava-o, e era tamanha a sua dedicação, que mantinha a esperança no meio de tão grandes desilusões.
— Ainda nada, minha filha; voltas hoje para casa com as tuas rendas.
— Daqui até a noite ainda há muito tempo; verá como faço ainda um negocião.
Havia entrado no largo da Assembléia o qual estava agora convertido num abarracamento.
Reinava aí o grande sussurro que enche sempre as aglomerações populares.
Na parte media do largo, diversos vendedores estacionados apregoavam, acirrando a gula dos retirantes - arroz cozido e mel.
O velho Rogério Monte, ouvindo o pregão, sorriu, e murmurou:
— As tuas economias não chegam hoje para que possamos enganar a boca. Há entretanto 24 horas que não comemos!
— Um pouco de paciência mais, meu pai, e teremos fartura. Fiz quatro varas de renda, e hei de vendê-las a dois tostões...
— Se vendê-las, minha filha.
Deram mais algumas passadas, porém, chegados a uma esquina, Rogério, cuja fraqueza não podia resistir à soalheira, propôs a Irena esperá-la ai.
— És mais forte do que eu; vai ver se vendes as tuas rendas, e vem encontrar comigo aqui. Olha: eu não preciso do meu paletó, põe-no sobre a cabeça; abriga-te nele; faz um sol de rachar.
Irena obedeceu e, depois de fazer Rogério sentar-se em um portal, caminhou para o largo.
Pouco adiante estava reunido um grupo compacto em torno de um homem, cujo rosto Irena não pôde ver. O rebuliço das pessoas que estavam ao redor dele (as bênçãos que de todas as partes o cobriam, fazia ver que o homem dava esmolas.
Irena parou. A sua educação, os seus precedentes geravam-lhe uma repugnância quase invencível para esmolar. Poucas vezes se tinha visto forçada a lançar mão deste recurso para socorrer o seu velho pai, única razão por que pedia. Por si só, preferiria morrer de fome.
Hoje era um dos dias em que precisava urgentemente arranjar dinheiro, e por isso a necessidade de esmolar impunha-se-lhe, porque, apesar de ter discordado de Rogério quanto à impossibilidade de vender as rendas, estava convencida de que não as venderia.
Depois de longa hesitação, uma idéia lisonjeira veio ao espírito de Irena.
O homem que estava a distribuir esmolas, é porque tinha um coração generoso. Devia, pois, compreender que a sua oferta de rendas era o mesmo que um pedido de esmola, e atendê-la-ia.
Encorajada por esta idéia, aventurou-se aos encontrões e às grosserias do ajuntamento e, resistindo aos brutais vaivéns que lhe davam, chegou à distancia de poder se fazer ouvir pelo homem, cujo rosto entretanto não conseguia ver.
Ofereceu uma, duas, muitas vezes as suas rendas, sem que fosse atendida, e já começava a desanimar, quando o grupo que a encobria aos olhos do desconhecido deu-lhe passagem.
— Faça-me a esmola de comprar esta renda, meu senhor, murmurou Irena.
— Espera um pouquinho, filha - disse o homem sem voltar-se, mas colocando uma das mãos sobre Irena.
O som da sua voz, porém, produziu sobre a moça uma comoção tão violenta, como se ele a houvesse ofendido. Irena levantou os seus grandes olhos azuis, e, ao deparar com o rosto do desconhecido, baixou-os, reprimindo um grito.
O esmoler, em torno do qual se agrupava tanta gente, e em cuja porta paravam durante o dia centenas de retirantes, era Augusto Feitosa.
Agora, como sempre, ao dar a esmola, o moço, em cujo semblante estavam estampados os mais vivos vestígios de sofrimentos profundos, perguntava a cada socorrido o lugar da província onde anteriormente morava e concluía sempre por esta pergunta:
— Não conhece ninguém que tenha vindo de B. V., à margem do Jaguaribe?
Um não fatal respondia sempre à pergunta em que ele punha todo o interesse.
Irena, ao ouvir a insistência da pergunta, sentiu-se ainda mais perturbada. A comoção nem lhe dera espaço para uma furtiva alegria, por ter visto o escolhido do seu coração.
A piedade filial via apenas em Augusto Feitosa uma tremenda ameaça contra a liberdade de Rogério e contra a sua vida.
A calúnia que pesava sobre o seu pai, acusado de haver tentado assassinar Augusto, fazia-a desvairar. Estava na capital a vítima, queria informações de B. V., e estas provavelmente deviam ser pedidas com o intuito de descobrir o lugar em que Monte se refugiara.
— Entretanto eu - pensava Irena -, eu mesma venho servir de denunciante.
Quis ver se podia retirar-se sem ser percebida, mas Augusto, segurando-a pelo ombro, exclamou com um tom acariciador:
— Não vá embora, não; eu compro-lhe as rendas já. Quantas varas tem?
— Quatro - respondeu Irena disfarçando a voz, cujo timbre aliás não podia ser distinguido no meio do alvoroço.
— E a como as vende?
— Pelo que Vossa Mercê quiser pagar.
— Bem, aqui tem quanto eu lhe posso dar; mas guarde as rendas, para me entregar quando eu as exigir.
Augusto, tirando a mão de sobre o ombro de Irena, entregou-lhe uma nota do tesouro, e Irena, vendo-se livre da pressão com que a bondade desinteressada de Augusto a retinha, quis desde logo desaparecer dos olhos dele.
Um violento encontro que lhe foi dado pelos circunstantes que porfiavam em obter um lugar diante de Augusto, fez com que a moça cambaleasse, e o paletó, com que se mascarara aos olhos do amante, caísse.
As tranças loiras, as belas tranças que haviam colaborado na paixão intensa de Augusto, apareceram, e este, com um movimento brusco, tentou pôr a mão no braço de Irena. Em vão; a piedosa filha, tirando agilidade do perigo que julgava correr o pai, desviou-se e sumiu-se no meio da mó compacta e irrequieta.
Vendo-se finalmente livre do olhar de Augusto Feitosa, atravessou correndo a pequena distância que a separava de seu pai e foi parar arquejante diante dele.
— Vamos já, já, meu pai, não podemos ficar aqui nem mais um minuto.
— Infames! - resmoneou Rogério. - Achaste quem te insultasse, não?
— Ninguém, mas é preciso que saiamos já daqui, ou senão estamos perdidos.
— Mas o que fizeste tu? Vendeste as rendas? - perguntou precipitadamente Rogério com uma entoação em que transluzia o temor de que a filha houvesse cometido alguma ação vergonhosa.
— Vendi, sim, meu pai; não me pergunte mais nada, fujamos daqui porque eu acabo de ver uma pessoa de B. V., e se ela nos reconhecer.
Rogério Monte interrompeu a filha para concluir a frase que lhe explicava tanto temor e alvoroço:
— Estamos perdidos.
Augusto Feitosa não teve forças para conter a comoção que a vista das tranças loiras da moça lhe causara.
O coração, lince que não se ilude, reconheceu prontamente aquela que tinha conseguido disfarçar-se aos olhos. Uma simples semelhança bastou-lhe para basear a indefectível certeza.
— Não pode deixar de ser ela, eu não me podia enganar, murmurou Augusto, que se esforçou desde logo para sair do círculo em que os retirantes o prendiam.
Não podia, porém, dar um passo. Dezenas de braços, dirigidos pela necessidade, estenderam-se para cercá-lo, e um coro de lamentações e de súplicas o atordoaram.
O egoísmo do amor opôs-se, não obstante, à compaixão da filantropia, e Augusto, tentando desviar-se bruscamente, exclamou:
— Deixem-me, isto excede a toda impertinência. - E, com uma entoação severa, acrescentou: - preciso sair.
Os importunos, porém, não o atenderam, não compreendiam que o moço tivesse direito de pospô-los aos seus interesses, e atropelavam-no e azoinavam-no.
— Deixem-me - repetiu Augusto; - deixem-me em nome de Deus; torturam-me.
Nestas palavras sentia-se ansiar a única esperança que suavizava a triste vida do moço; elas foram proferidas com um tom soturno, que traduzia o surdo rumor das profundas angústias que lhe torturavam a mocidade desventurada.
Ao ver aquele semblante, ainda há pouco sereno e carinhoso e agora sombrio e hostil, percebia-se que dentro daquela alma dava-se uma violenta sublevação de sentimentos. E assim era. Havia longos meses que o malsinado rapaz entregava-se a um lento suicídio. A princípio era o ódio que o impelia contra Rogério Monte, a quem atribuía o crime de que fora vítima, crime, cuja extensão Augusto Feitosa media menos pelos seus sofrimentos do que pela impressão que produzira sobre sua velha mãe.
Padecia muito; de um lado a prostração em que via sua mãe aconselhava-o, impelia-o a perseguir Rogério, de outro a imagem angélica de Irena, colocando-se como um véu diante do pai, suplicava-lhe o sacrifício da vingança ao amor. Assim, qualquer resolução que tomava constrangia-lhe o coração; a condolência desfechava golpes sobre sua velha mãe, a perseguição assassinava Irena.
Depois, deram-se os sucessos tristíssimos de B. V. Um documento importante, uma carta de Rogério Monte ao professor Queiroz e que fora rasgada pelo sacristão Marciano, veio cair-lhe nas mãos. Neste documento escrito com a despretensão da intimidade, com esse venerando perfume da lealdade, com que a mútua confiança da amizade repassa as revelações, a inocência de Monte estava evidentemente provada: nenhuma outra prova era preciso juntar.
Esse documento teve uma confirmação.
Como o próprio Rogério Monte, Feitosa, depois de convencer-se da inocência do honrado velho, perguntava e não sabia responder quem seria o autor do crime.
Antônia, a ex-cozinheira do vigário, veio, porém, trazer-lhe uma prova, com a revelação de que, na manhã seguinte à noite em que se dera o crime, a bacia do quarto de seu amo tinha amanhecido com água ensangüentada, e que lavara roupas de S. Revma. também manchadas de sangue.
Desde então o ódio contra Rogério transformou-se em desespero e remorso, por havê-lo perseguido.
Todos os dotes de Irena, extremando-se em sua imaginação, aumentavam-lhe o sofrer. Aos seus próprios olhos, Augusto viu-se como um réu que não devia, que não podia ser perdoado. Considerava-se duplamente assassino: de um lado, cruel, ferira a lealdade e a honra de um homem de bem, de outro pagara com a mais requintada ingratidão a confiança que nele depositara a tímida Irena.
Este pensamento, principalmente, tomava proporções sobrenaturais no seu imaginar. Que sinceridade não havia naquele coração, quão profundo não era aquele amor para irromper através de dois séculos de ódios e de vinganças, para corresponder heroicamente ao amor que ele lhe demonstrara?
— E, no entanto - exclamava Augusto nas suas horas de amargura -, eu paguei-lhe tudo isto caluniando e enxovalhando as honradas cãs de seu pai!
Comunicando à sua velha mãe a injustiça que havia praticado, obtivera imediatamente dela consentimento para oferecer a sua mão à Irena, como reparação do passado.
Mas intervieram logo os tremendos acontecimentos que deram em resultado o abandono da paróquia. A velha senhora, ameaçada na sua e na vida do filho, foi atacada por um acesso febril, que teve como resultado o idiotismo e a morte, vinte e tantos dias depois.
Durante todo o tempo da moléstia de sua mãe, Augusto nada pôde fazer a favor de Rogério Monte, a não ser contra-avisar a polícia.
Dirigindo-se em seguida ao Aracati, todas as suas pesquisas foram infelizmente infrutíferas. Rogério Monte havia trocado o nome e não se servia do que mandara para endereço das suas cartas.
A única notícia que obtivera serviu apenas para desanimá-lo mais. Soube, pelos correspondentes de Monte, que este havia desaparecido e algumas frases deixaram-lhe perceber que o velho devia ter tomado todas as providências para ocultar-se e para sempre.
Olhe, que saiu uma vasilha muito ordinária, aquele sujeito - disseram os correspondentes; - sonegou um dos escravos na impossibilidade de pregar-nos calote redondo.
— Mas é preciso que se expliquem bem - ponderou Augusto; - não se atribuiu nunca ao velho Rogério este defeito.
— A ocasião e que faz o ladrão: deu um dos escravos por morto.
— Ele que disse, é que é a verdade.
— Ah! - exclamou um dos correspondentes sorrindo. - O senhor também ainda acredita na probidade dele? Preparou bem o laço, e tão bem que nós ficamos no desembolso e ele continua a passar por homem honrado.
— Não é exato também isto, porque eu tenho negócios com Rogério Monte e autorização para pagar qualquer dívida sua.
Prestado este serviço à honra do nome de que usava a sua escolhida, Augusto empenhara-se ainda com maior dedicação na descoberta do esconderijo de Rogério, o que fez com que ele perdesse muito tempo em Aracati.
Cada dia que passava, em vez de diminuir-lhe a esperança pelo desânimo, aumentava-a pela consciência do dano que havia causado aos interesses e à boa fama de Monte, que, apesar de ser pelo próprio Feitosa proclamado vítima de engano quanto à autoria do crime, continuava a ser apontado como o autor.
— Pobre homem - soluçava Augusto; - nem ao menos lhe resta o recurso de suplicar entre os seus parentes proteção e agasalho. Estes, certos de que iriam incomodá-los, negar-lhe-iam o serviço.
Todos os recônditos da cidade, todos os arredores foram explorados e, no cabo das pesquisas estreitas, minuciosas e feitas, não só com os olhos mas com o coração, Augusto Feitosa só encontrou o desengano.
Um indicio vago apontou-lhe então para a Fortaleza: era quase certo que Rogério para lá se dirigira, e tanto bastou para que Augusto tomasse aquela direção.
Dias depois Feitosa chegava à Fortaleza.
O coração, comprimido pelas angústias tenazes que lhe causava a presunção dos sofrimentos de Monte, dilatou-se-lhe em face do estado da capital.
Era horrível o que via, mas sobre este horror pairava a esperança. A capital, imenso desaguadouro de todas as correntes da emigração provincial, era o enorme Cáspio, em que todas essas correntes despejavam sem achar saída. Podia-se, pois, pressupor que seriam ai encontrados todos aqueles que uma vez houvessem transposto o seu círculo, a menos que a morte os não arrebatasse.
Feitosa, na primeira noite, ocupou-se em reler a carta que, por um lance do acaso, lhe viera às mãos, e em que vira desde logo que a assinatura Antônio de Louredo mascarava Rogério Monte.
Nesta carta, em que, explicadas miudamente as desgraças que o haviam acabrunhado, vinha o roteiro do destino que Rogério pretendia tomar, tinha Feitosa o seu melhor guia.
Havia um trecho que lhe iluminava os passos a pesquisas eficazes. Dizia a carta:
"A calúnia fatal que manchou o meu nome, porque, amesquinhando a conta em que tenho as tradições de minha família, aponta-me como me tendo emboscado para atacar um Feitosa; a calúnia fatal impede-me de viver à luz. A minha honra não é tão eloqüente como o dinheiro do meu inimigo.
Confundir-me-ei, portanto, com a mais baixa camada do povo, até que possa obter de algum parente recursos para provar a minha inocência e levantar de novo o meu crédito".
Feitosa, pois, chegando à capital, dirigiu as vistas exclusivamente para a massa dos retirantes.
Dias e dias passou-os à porta de todas as comissões e circulando os abarracamentos; mas, no cabo desse trabalho, só colhia decepções, que lhe geravam no espírito sentimentos contraditórios com a sua índole.
Naturalmente compassivo e impressionado, Feitosa alegrava-se agora vendo com as horas aumentar o número dos retirantes.
— Quanto mais gente houver na cidade, tanto maior será a confiança de Rogério Monte em não ser reconhecido -pensava ele; - sairá com mais franqueza à rua.
Para dobrar a certeza de seus cálculos e facilitar o encontro, Feitosa dirigiu-se a alguns dos seus parentes, que residiam na capital, e sendo por eles apresentado aos comissários, procurou em todos os recenseamentos anarquicamente escriturados por estes o nome de Antônio de Louredo.
Foi tempo gasto em pura perda, e a reflexão mostrou-lhe depois que Rogério Monte, ocultando-se da polícia, não havia de servir-se do mesmo nome que dera à família Queiroz para endereço de suas cartas.
O resultado das pesquisas foi, portanto, o desânimo. Aqueles a quem procurava parecia que tinham a impalpabilidade das larvas: não ocupavam lugar.
— Morreriam? - perguntou um dia a si mesmo o desalentado moço. - Terei eu de acusar-me ainda desta tremenda responsabilidade?
Esta suspeita, pela sua própria natureza cruciante, foi acossada pela paixão, cada vez mais ardente, que ele sentia pela mísera Irena; e Feitosa voltara à sua peregrinação através do povo, em quem indenizava as lágrimas que fazia derramar aos dois foragidos.
Imagine-se, pois, que profunda comoção lhe causou a semelhança das loiras tranças da vendedora de rendas, e qual seria o seu despeito, vendo-se impedido de seguir ao encalço da moça!
Repetindo, pela segunda vez, o pedido para que o deixassem passar, Augusto Feitosa sacudiu impetuosamente aqueles que o seguravam e abriu caminho.
O seu esforço, porém, não produziu resultado. Na imensa rua, completamente cheia de povo, espécie de formigueiro de homens, não era possível descobrir largo horizonte; a vista era circunscrita a um pequeno raio pelo povaréu, e qualquer pessoa, para evadir-se, não precisava dar 20 passos.
A visão das tranças loiras desapareceu inteiramente, deixando apenas a claridade da esperança, brilhante via-láctea em que se deviam abotoar sonhos ridentes de felicidade para Augusto.
O moço, desvairado e impaciente, dirigiu-se a todas as pessoas que se achavam próximas, perguntando se não tinham visto passar a sua protegida. Não colheu um único indício certo, e levado por informações erradas foi parar justamente no lado da praça oposto ao em que Irena reunira-se ao seu velho pai.
— É horrível, é horrível, meu Deus; esteve junto a mim e no entanto eu não a reconheci logo.
E pela imaginação exaltada de Augusto começaram a atravessar, tristes como um saimento, as idéias que naturalmente surgiriam no pensamento.
"Hás de pensar que eu já não te amo, e tens razão; que me importa a mim que outros sofram? Por que hei de esquecer-me de meu amor, quando os outros se lastimam? A minha vida, a minha felicidade és somente tu, Irena, e eu cheguei a desconhecer-te na mesma hora em que pensava em ti."
O golpe cruel alquebrou-o profundamente; sentiu que ia desfalecer, e a passos lentos e vacilantes dirigiu-se para o hotel que fica em uma das faces da praça.
Naquela casa, onde só se hospedavam aqueles que não tinham enfrentado em luta com a indescritível calamidade que assolava a província, reinava a alegria. Vários hóspedes, sentados em volta de uma grande mesa, conversavam, esvaziando lentamente copos de refrescos.
Um dos hóspedes, sentado a alguma distância, lia atentamente um periódico, e parecia completamente alheio à conversação dos outros.
Um caixeiro, porém, vindo abrir junto dele uma soda, fê-lo de modo tão desastrado, que lhe molhou completamente a folha.
— Bem se diz que os capengas não formam - disse o leitor contrariado.
O caixeiro, que coxeava de uma perna, abriu um riso alvar e retirou-se, enquanto os outros hóspedes, intervindo nos comentários do insignificante incidente e aplaudindo o dono do hotel, que, deixando a cadeira em que estava sentado, acompanhou o caixeiro repreendendo-o, observaram ao patrão:
— Não se apresse; os coxos apanham-se sem dificuldade.
— Custa menos ainda a apanhar um mentiroso.
— Nem sempre.
— Haja vista a folha que o senhor acaba de ler a respeito do tal vigário de B. V.
— Como assim?
— Não repararam na notícia que dá da chegada dele a esta cidade? Pois vejam.
O interlocutor tomou o periódico e leu:
"Acha-se entre nós o Revmo. vigário de B. V. Foi um tipo de caridade na sua paróquia, e durante a horrível calamidade que a tem afligido prestou os maiores serviços, os quais só cessaram depois que a extrema miséria violentou-o a retirar-se daquela localidade com a maioria da população".
— Seguem-se congratulações com a capital pela aquisição de mais um digno continuador da obra de Cristo.
— É pessimista demais, doutor; não há nada nesta notícia que autorize a julgá-la mentirosa. Um homem, por ser padre, não deixa de ser homem.
— Eu conheço bem a história dos padres do interior; sei quais os seus serviços nesta seca.
— Então não há exceções?
— Não duvido, mas basta olhar para o procedimento que eles têm aqui na capital: estão a comer descansadamente as côngruas e nem ao menos se prestam a levar os sacramentos aos retirantes. Estes vão moribundos à Sé, onde a maior parte expira.
— É exato, mas daí não se conclui que o vigário de B. V. não seja um homem virtuoso.
— Pois eu, julgando o tal padre pela sua classe, digo-lhe que o seu elogio não me fará ver nele uma exceção.
— Não penso do mesmo modo; há aqui pessoas que têm andado pelo interior, conhecem o vigário, e não tratam de desmentir a notícia.
— Terão suas razões - interveio Feitosa pedindo desculpa; - mas eu, que estive na localidade, sei muito bem que o padre Paula é um malvado.
— Está com certeza cônego em pouco tempo - sorriu o doutor; - isto é assim mesmo, quanto pior, mais depressa chega. Feitosa, que havia asserenado um pouco, despediu-se e saiu pensando consigo:
— Não te poderei talvez salvar, minha querida Irena; mas tomarei contra o nosso algoz a mais cruel vingança.
No dia a que se referia a notícia da folha cuja leitura Feitosa acabava de ouvir, um homem, com a barba e os cabelos descurados, vestido de couro, e trazendo na mão um chapelão de sertanejo, entrou pela Sé com passo vagaroso e medido.
Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e, inclinando-se profundamente, demorou-se por largo tempo a rezar.
A igreja apresentava um aspecto tristonho. A claridade da tarde, que iluminava grande parte da nave e punha em relevo as suas decorações, não tinha a mesma intensidade na capela-mor e deixava-a meio mergulhada na penumbra.
O coro e um avarandado próximo, mobiliados de cadeiras cômodas e numeradas corno num teatro, ostentavam à claridade crepuscular uma preocupação hierárquica no domínio da igualdade cristã. Sob eles jaziam, estendidos em cima de redes sórdidas, moribundos que a demasia da anasarca ou o emagrecimento devido ao relaxamento intestinal tornavam deformes.
Junto a um confessionário sucediam-se um a um estes fiéis, que vinham buscar na voz do sacerdote a última esperança.
O homem, depois de concluir a oração, dirigindo-se a um indivíduo que estava encostado a uma das portas laterais da capela-mor, perguntou-lhe quando poderia falar ao bispo.
— S. Ex.a tem estado incomodado e não recebe ninguém.
— Está de cama?
— Não; mas não pode receber ninguém.
— Ele há de falar-me, tenho certeza.
— Pode ser; porém outros e de colarinho lavado o têm procurado e ele não os tem recebido.
— Talvez o senhor não esteja bem informado; é impossível o que me diz.
— Falo porque, sendo sacristão daqui, dou-me com pessoas da casa, e estas, que têm olhos, vêem o que eu lhe disse. Fale com o senhor padre, que ali está, e saiba, ao certo.
— É o que já havia resolvido.
Estas palavras foram proferidas com uma entoação de altivez tal, que o sacristão olhou atentamente para o desconhecido. Mediu-o de alto a baixo e, sorrindo desdenhosamente, murmurou:
— Está bem arranjado; tenho muito de que me rir hoje.
O sacerdote, que estava no confessionário, levantou-se por fim e, erguendo a voz, perguntou se não havia mais ninguém para confessar-se.
— Se está algum dormindo, acordem-no, porque, em saindo daqui, não estou mais para aturar maçada.
Ninguém respondendo ao apelo, o padre fez um sinal para o sacristão, que enfiou pelo corredor da sacristia, enquanto sua reverendíssima caminhava para a porta em que ele se achava.
Quando o padre, depois da genuflexão diante do altar-mor, ia entrar no mesmo corredor em que o sacristão havia desaparecido, o homem desabusado tomou-lhe o passo:
— V. Revma. pode dar-me uma palavra?
O padre, reparando no indivíduo que o interrompera, parou bruscamente e interrogou:
— Há quanto tempo está à minha espera?
— Há quase uma hora.
— E não me ouviu perguntar se faltava mais alguém para confessar?
— Mas eu não quero positivamente confessar-me.
— Pois eu não posso também conversar agora; tenho de dar sacramento a toda esta súcia que ali está.
O padre apontou para as redes e, dirigindo-se ao sacristão, que acudira todo risonho logo que lhe ouviu a voz, acrescentou:
— Creio que as hóstias não chegam.
— Eu enchi hoje a âmbula; temos hóstias a dar com um pau.
O desconhecido, cruzando os braços e meneando a cabeça, reparou por sua vez no padre e no sacristão e ficou a sorrir.
"Isto por aqui não difere muito do resto da província, os costumes não mudaram" - pensou Paula.
O sacerdote e o sacristão voltaram pouco depois, revestidos, para dar o sacramento, e um tilintar prolongado de campainhas encheu o recinto.
Quando terminou a cerimônia, o desconhecido acercou-se de novo do sacerdote, logo que ele começou a desrevestir-se:
— Diga-me, V. Revma.: os sacerdotes do sertão não merecem nem uma palavra dos que moram na praça?
O sacerdote parou e encarou com o seu interlocutor. Havia no seu olhar espanto e confusão; na sua mente de tingido do Senhor não passava a simples hipótese de que fosse possível a um indivíduo da sua classe chegar a tão mísero estado. O voto de pobreza para si não passava de uma vã formalidade.
— Nunca nos negamos a manter boas relações com os colegas - disse ele.
— Então leia - replicou o desconhecido, que tinha levado a mão ao bolso e, tirando dele um papel, apresentou-o ao sacerdote.
— Tenho, pois, a satisfação de falar com o reverendo vigário de B. V. - murmurou o sacerdote, estendendo a mão ao recém-chegado.
Paula correspondeu ao cumprimento e, com seu sorriso irônico e incômodo, respondeu:
— Agradeço muito a bondade de V. Revma.
— Já vejo que não andam bons os negócios lá pela sua paróquia.
— Pela minha ex-paróquia; lá não há mais talvez viva alma, porque, se houvesse, não arredaria um passo do meu posto.
— É desta forma que se deve desempenhar a nossa santa missão, se bem que outros não entendam do mesmo modo.
— Ah! eu tenho muitos exemplos disto...
— Estamos com a capital cheia de vigários que abandonaram as suas paróquias.
— É que hoje não se pode habitar o sertão; não se ganha para o prato.
— Do mesmo, pouco mais ou menos nos queixamos nós; vive-se, porém muito apertadamente.
— Numa cidade como esta?!
— A cidade já deu muito, mas com a afluência de padres não toca uma rua a cada um.
— É mau isto, homem!
— É o diabo, Deus me perdoe; estamos quase retirantes.
Paula esperou em vão que o seu colega lhe oferecesse a casa; mas, vendo que a conversação estendia-se, e que ficaria sem pousada, formulou a pergunta já feita ao sacristão:
— Será possível falar ao sr. bispo?
— Pois não! Vindo comigo terá entrada; se quiser, estou às ordens.
Atravessaram a igreja e, saindo pela porta principal, Paula chamou a atenção do colega para o grande cruzeiro levantado em frente à igreja, logo ao descer do átrio.
— Muitas saudades me causa este lenho.
— Dos tempos de estudante, naturalmente?...
— E dos primeiros tempos da minha carreira sacerdotal.
— Não há quem não as tenha.
— As missas de madrugada, as festas da semana santa. Estas eram então feitas com muito aparato e muito recolhimento.
— Hoje o aparato é maior.
— Mas o recolhimento acabou-se, hein?
— O número de devotos tem diminuído muito.
— Mas nem por isso o respeito pela religião se perdeu de todo.
— Já não se pode fazer tudo; o padre já não é o anjo do Senhor.
A medida que iam falando, os dois padres dirigiam-se para o palácio episcopal, ao lado da igreja, e cuja porta principal estava sempre fechada.
Paula, reparando nesta circunstância, ponderou ao colega:
— Creio que perdemos os passos.
— Não; a porta conserva-se fechada para que S. Ex.a não seja incomodado pelos retirantes. Se ele não tomasse esta providência, nem todo o dinheiro da mitra chegaria para dar esmolas a essa corja. Vai ver como abrem já.
Tinham parado em frente à porta, e o padre bateu três pancadas fortes por duas vezes, e depois uma isolada.
A porta abriu-se e os dois padres subiram as escadas do palácio.
O bispo, muito amável para o sacerdote, apenas inclinou a cabeça diante do vigário.
— Venho apresentar-lhe o sr. vigário de B. V., que chega entre nós neste miserável estado.
— Oh! - exclamou o bispo entendendo a mão a Paula - muito sinto as suas infelicidades e me congratulo com a nossa santa religião, pela coragem que sabe dar aos apóstolos.
— O mais humilde, o ínfimo dos servos de V. Ex.a Revma. - respondeu Paula - e o mais indigno dos ministros do Senhor.
— Fez toda a viagem a pé, não é verdade? Deve estar cheio de fadiga; esta casa fica desde já ao seu dispor.
— Eu contava com a grande caridade do meu digno prelado e, como estou em extrema necessidade, aceito a esmola.
O bispo, deveras penalizado com o estado em que via o vigário, apressou-se em alargar o seu obséquio, dando logo ordens para que todos os cuidados da hospedagem lhe fossem dados.
— Eu calculo quanto sofreu V. Revma.
— A imaginação de V. Exa. pode imaginar o que quiser, mas nunca chegará à verdade.
— O cansaço da viagem...
— Nada é diante das afrontas que sofri...
— As privações cruéis durante as jornadas...
— Foram muitas, mas nada valem, comparadas com a dor das ingratidões com que me amarguraram os últimos dias que passei na minha pobre B. V.
— Foram, pois, sofrimentos físicos e morais, torturas da alma e do corpo.
— Não me aterraram, porque os suportei para maior glória de Deus.
Paula passou logo a satisfazer a curiosidade do prelado acerca dos negócios da paróquia.
A causa das suas perseguições foi um desastre acontecido na família de um seu finado amigo, a quem ele prestou o serviço de amparar.
O semblante de Paula estava tão artisticamente perturbado, que fazia realmente acreditar na verdade das palavras, que eram pausadamente ditas.
Prosseguindo na narração, acrescentou:
— Havia na família uma rapariga de 20 anos, a qual criei nos meus joelhos. Era formosa, chamavam-na rainha do lugar.
Fez uma pausa, como se pela mente se lhe erguesse o retrato primitivo de Eulália, com o seu corpo direito e cheio como os estolhos novos do mandacaru; os olhos grandes, negros, de um brilho seco, olhos que se destacavam muito sob as curtas pestanas das pálpebras finas.
— Dir-se-ia a estátua do pecado - concluiu Paula.
— E esta rapariga perdeu-se? - perguntou o sacerdote. — É exato.
— E o que é feito hoje dela?
— Não sei; porém sobre mim pesa a responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me constituíram seu sedutor.
Duas lágrimas tardas e grossas, espremidas com grande esforço, rolaram pelas faces queimadas de Paula.
— A impiedade vai penetrando até os nossos sertões murmurou o bispo, comovido pela hipocrisia do vigário.
— Já os ministros de Deus não podem sequer professar a caridade - ajuntou o sacerdote; - V. Exa. não se lembra da acusação que me fizeram, a respeito daquela família da rua da Palma?
O bispo meneou a cabeça, e Paula, com a finura que tanto o engrandecera na paróquia, ponderou:
— Já V. Revma. sabe quanto semelhantes injustiças doem; é preciso muita fé na remuneração da inocência por Nosso Senhor Jesus Cristo, para que se vençam as sugestões da ira.
— O sr. vigário foi prudente?
— Tanto quanto se pode ser, apesar da perseguição. A calúnia fez eco, na hora da missa; quando eu recolhia o meu espírito para implorar da misericórdia divina perdão para os meus e para os pecados dos meus paroquianos, estes prorromperam em insultos.
— Dentro da casa do Senhor?
— Dentro da casa do Senhor - repetiu Paula, em cujos olhos as lágrimas continuaram a brotar. - Romperam até ameaças de morte, e tão tremendas, que me vi constrangido a esconder-me na mesma hora.
— E não houve na paróquia quem tomasse o partido de V. Revma.?
— Antes não houvesse; o meu coração não teria um luto perpétuo, luto que só a morte dissipará.
— Houve então conflito?
— Os retirantes, esses desgraçados que são órfãos em toda parte, haviam encontrado em mim um defensor natural. Graças à boa vontade que só a nossa eterna fé sabe inspirar para com os que padecem, eu velava por eles na qualidade de membro da comissão de socorros. Como os tratava, pode dizer a vingança bárbara que tomaram espontaneamente. Na mesma noite da injúria a paróquia era acometida alta noite pelos agradecidos retirantes e a casa do outro comissário, do sacristão da paróquia e de um dos potentados do lugar eram assaltadas. Os dois primeiros pagaram com a vida a leviandade de terem tomado parte nas manifestações injustas que me foram feitas.
— Foi então uma calamidade pública?
— Não pude evitar. Sentindo-me traído pelo meu sacristão, abandonado, resolvi ocultar-me na sacristia e aí permaneci o dia inteiro. Só consegui sair, quando o clamor do povoado advertiu-me da sua iminente ruína. Então, empunhando um crucifixo, saí e contive ainda os ímpetos dos assaltantes, que se desvairavam cada vez mais com a resistência que encontravam nos paroquianos.
— É um fato singular - murmurou o sacerdote pensativo -, muito singular.
O bispo agitou afirmativamente a cabeça e Paula prosseguiu:
— Mais lhe admirará a outra circunstância. Um dos poderosos da terra, moço completamente perdido, soberbo, ímpio, tinha amores clandestinos com uma rapariga da paróquia. Ele era Feitosa e ela, Monte.
— O final há de ser por força uma tragédia.
— Não chegou a tanto, mas uma noite o rapaz, ao sair da entrevista, foi surpreendido e apunhalado em um dos ombros, ferida que não lhe causou a morte.
— Não podia ser outro o fim de tais amores.
— Pois bem; apesar de ser conhecida a rivalidade secular entre Montes e Feitosas, o ódio vivo que eles se permutam, querem saber quem foi o acusado de haver tentado perpetrar crime?
— V. Revma? - perguntaram os dois, admirados.
— Eu - respondeu submissamente o vigário -, eu que não tinha relações íntimas com nenhum dos dois e que fui o primeiro a apontar o Monte como o criminoso.
— Era então uma paróquia de doidos?!
— De caluniadores e perversos - observou Paula - que me odiavam fingindo estimar-me, que me perseguiam, enfim, porque nunca fui condescendente com as suas torpezas e os seus roubos.
— Tem na minha casa um abrigo; é a casa de um seu afeiçoado.
Paula foi, pouco depois, acompanhado pelo sacerdote, conduzido para os aposentos que lhe eram destinados.
— Então a rapariga era uma formosura, hein, seu maganão? E você foi acusado injustamente - disse o sacerdote sorrindo.
— Falte-me a luz neste ponto - disse Paula ajoelhando-se diante de um crucifixo - se eu por acaso tento desculpar-me de um crime por mim cometido.
— Oh! diabo - pensou o sacerdote -, este não é dos nossos, toma as coisas ao pé da letra; mas afinal há de se dar bem com o sistema..."
Eulália demorou-se mais de 15 dias no hospital, e só com grande esforço pôde conseguir da irmã a alta, por muitas vezes pedidas.
— Vai expor-se a grandes sofrimentos e sem necessidade, minha filha - ponderou-lhe a irmã; - Deus queira que se não arrependa.
— É o meu dever que me chama, irmã; não quero que me chamem ingrata.
O sol queimava; o sussurro da multidão derramada pelas ruas e praças chamava a atenção, para logo infundir terror com a miséria dos que falavam.
Eulália caminhava silenciosa e vagarosamente, olhando para todos os lados com a minuciosidade de quem observa por um microscópio.
De repente foi obrigada a parar.
Passava uma fila de carroças sobre as quais eram transportados grandes tonéis de mel.
O líquido, vazando pelas frestas das toscas vasilhas, deixava na calçada um rastilho negro.
Após as carroças precipitava-se uma multidão de crianças, nuas, sórdidas, que apanhavam com os dedos os fios de mel, ou deitavam-se sobre a calçada quente da soalheira para lambê-lo, não sem medonhos conflitos.
"Como devem ter fome estes pequeninos para que lhes consintam fazer semelhante coisa" - pensava Eulália, que aproveitava a parada involuntária para observar à vontade os transeuntes.
Quando o ajuntamento dissolveu-se, Eulália seguiu o seu caminho em direção ao palácio da presidência, o qual é avistado da praça da Assembléia, de que dista apenas alguns passos.
— Disse-me a irmã que o presidente é um bom homem; ele dar-me-á meios de encontrar com a minha família.
A lisonjeira esperança, que apressava e impacientava a moça, não tardou, porém, a desvanecer-se; a ordenança do presidente, com algumas palavras rudemente proferidas, transformou-a logo em desengano.
— Espere lá fora; S. Exa. sairá de tarde. Vamos, desentupa o beco, isto aqui não é comissão.
Eulália não se atreveu a insistir e voltou consternada para a praça, onde havia presenciado o tristíssimo espetáculo dado pelas crianças esfaimadas.
A aglomeração de povo não lhe permitiu andar muito e a moça parou junto da linha de tabuleiros estendida em uma das faces da praça.
As indiretas dos mercadores, as brutalidades de alguns transeuntes começaram desde logo a incomodá-la e Eulália já se dispunha a afastar-se, quando uma nova cena de miséria obrigou-a a demorar-se.
Uma vozeria enorme, atordoadora levantou-se do meio da massa popular. Apitos prolongados e freqüentes sibilavam de todos os lados e de par com eles agudos assovios e estrepitosas assuadas.
— Pega ladrão! - repetiram por muitas vezes centenas de vozes, que eram em parte abafadas pelo barulho da multidão.
Grupos e grupos atropelando-se, enlearam em si a moça, que foi, malgrado seu, transportada para o passeio da praça e para um ponto em que não podia ver a ocorrência; mas logo que o barulho serenou, Eulália pôde saber do que se tratava.
— Ora, é uma velha idiota, coitada, não se pode levar em conta o que ela fez - disse um transeunte.
— Boa desculpa, com o pé de gira ela vai fazendo das suas e comendo a fartar.
— E no entanto ela passa às vezes o dia inteiro a catar no cisco bagaços de cana para chupar. Não está má a fartura.
— Recebe ração.
— Que outros furtam, ou que ela, por não ter onde cozinhar, faz como todos: vende quilos de carne velha por dois vinténs.
— E bebe o dinheiro que apura.
— Ela não sabe o que faz.
— Eu cá se fosse polícia não estava com autos de perguntas: agarrava-a e metia-a na cadeia.
Os interlocutores deste rápido diálogo, que haviam parado junto a Eulália, interromperam-no neste ponto e exclamaram ambos:
— Lá vem a pobre idiota.
— Lá vem a ladra.
Uma mulher de cerca de 50 anos, com os cabelos desgrenhados e tendo por única vestimenta um saco de lona furado para deixar-lhe passar a cabeça e os braços aproximava-se, seguida de uma nuvem de crianças. Os retirantes abriam caminho para deixá-la passar e a infeliz, bamboleando-se, estalando castanholas e cantarolando, marchava como que desapercebida de si mesma.
— Repare - disse o interlocutor que defendia a infeliz; - os seus olhos mostram bem que ela não tem nem pinga de juízo.
— Ora, não há nada que não se possa fingir neste mundo.
A mulher que havia chegado em frente ao grupo formado por Eulália e pelos dois interlocutores parou e, fazendo uma profunda mesura ao que a acusava, perguntou-lhe com uma entoação tristíssima:
— Não conhece o Augusto Feitosa?
Uma gargalhada estrepitosa respondeu à interrogação simplíssima. Só Eulália comoveu-se profundamente e não pôde conter-se.
— Coitada da tia Antônia, como está desgraçada - murmurou ela - já nem conhece a gente.
— Não o viu passar por aqui? - interrogou a idiota. - Há muito tempo que eu o procuro para que ele me dê o conto de réis.
— Pois procure - resmungou o indivíduo a quem ela se dirigia; - há de procurar por muito tempo.
— Eu quero contar-lhe como foi o caso da paróquia. Eu vi o vigário sujo de sangue, e sou capaz de jurar que foi ele e não o Monte quem o quis matar. Ouve? Se vir por ai o Feitosa, diga-lhe que venha falar comigo.
— É a cisma da infeliz - ponderou o outro indivíduo; - não sei o que será isto.
— Um conto de réis - acentuou a idiota - nestas mãos, que festa não farei! Havemos de comer, de pagodear, de cantar, de dançar.
Dizendo estas palavras a velha recomeçou as castanholas e o cantarolado e prosseguiu na sua marcha bamboleada.
Eulália, que tinha custado a dominar o desejo que teve de dar-se a conhecer à velha, ficou como que petrificada.
As palavras da ex-cozinheira de Paula vibraram-lhe um golpe profundo, porque, embora não tivesse mais pelo seu sedutor a paixão de outrora, todavia não pudera desencravar do coração a sua imagem.
A acusação formulada pela idiota comoveu-a. Tinha consigo as provas do crime de Paula e além disso tinha a sua própria confissão. Sabia mais que tal acusação feita ao vigário, este não resistiria embora a levantasse uma idiota.
Demais a velha Antônia procurava Feitosa e era bem provável que este, depois do desbarato da paróquia, tivesse vindo também para a capital e era, portanto, fácil um encontro entre eles.
Se tal acontecesse, qual seria o destino de Paula? Aquele que tanto pânico lhe causava: a vergonha, a infâmia, e agora inevitavelmente, porque havia uma prova fatal, a voz daquela velha que irrompia através da noite de seu espírito.
Perturbada e perplexa diante do futuro horroroso que se desdobrava no horizonte de Paula, Eulália sentiu erguer-se no seu espírito uma pergunta pungente:
— Paula já terá vindo para a capital?
Abaixou a cabeça contristada e, quando a levantou, viu passar em frente a si dois sacerdotes conversando alegremente.
Um deles era Paula.
Tinha readquirido o semblante dos bons tempos da paróquia, o ar acessivo ainda que severo, o passo cadenciado e firme e sobretudo o seu olhar feito de sarcasmos e de altivez.
Eulália, ao reconhecê-lo, sentiu-se duplamente impressionada: pedia-lhe o coração que o avisasse, que o fizesse medir a extensão do perigo que corria; a dignidade ofendida impunha-lhe silêncio e indiferença para com o principal responsável das desgraças de sua família e de seus amigos.
O coração porém venceu, e Eulália, arrastada por uma força invencível, seguiu por algum tempo os dois sacerdotes através da multidão e foi depois colocar-se em lugar em que pudesse ser vista por Paula.
— Quero saber se o amor perdura ou se a sua perversidade chegará até desprezar-me. Vejamos.
Paula aproximou-se em pouco tempo e, impassível, conservando nos lábios o sorriso condescendente com que ouvia o colega, passou olhando friamente para Eulália.
— No fim de contas, é preciso que você saiba a sociedade em que está; é preciso conhecer o mundo - ponderou o companheiro.
— Eu conheço bem os seus enganos e as suas desilusões - respondeu Paula; - a felicidade não foi partilha da terra.
— Miserável - pensou Eulália -, fingiu não me conhecer.
— Com que então há muito a aprender cá neste mundo da capital?
— Muito, mas muito, meu vigário, e quem não souber viver aqui não faz nada.
— Sobre que versam os conhecimentos? Há de ser por força sobre perversidades, porque do que já lhe ouvi sobre o caso da família sua protegida, a virtude aqui não é muito respeitada.
— Meu vigário - disse o sacerdote parando -, atenda bem para esta verdade: a voz do povo é mais vezes voz de Deus do que voz do diabo.
— Como assim?
— Eu tenho experiência própria. Freqüenta-se uma casa; maridos, pais, irmãos, todos, enfim, estão na mais inteira boa fé, ninguém suspeita coisa alguma. O povo, porém, começa a murmurar e, no fundo, há sempre verdade.
— Então o padre confessa que no seu caso houve...
— E crê você que é alguma novidade? Antes de mim, já muitos tinham feito o mesmo.
Paula sorriu olhando de través para o companheiro e acrescentou:
— E nem por isso a igreja deu em terra; a fé continuou o que era.
— Portanto façamos todos o mesmo - acentuou Paula ironicamente.
O companheiro percebeu a intenção do vigário, mas julgou conveniente dissimular.
— Não digo tanto, mas quando se é acusado de haver por sugestões da paixão lançado a desonra no seio de uma família, de haver tentado contra a vida do seu semelhante, de haver atirado uma aluvião de famintos sobre uma povoação pacífica, parece-me de bom conselho não querer ser exceção entre os outros.
— Mesmo se todas estas acusações não passam de calúnias.
— Mesmo assim, porque os jornais têm as suas colunas para receber o que se escreve e não tratam de saber se é exato ou não.
— Isto é uma ameaça formal?
— Não, longe de mim pensar em tal, mas o meu vigário conseguiu as boas graças do senhor bispo, em menos de 15 dias tornou-se já influência junto dele, e o meu vigário, ouvindo uma declaração minha na intimidade, pôs-se a rir de mim.
O sacerdote havia insensivelmente erguido a voz de modo que as suas palavras podiam ser distintamente ouvidas por Eulália, que de novo tinha ido colocar-se na passagem de Paula.
— Foi um engano do meu colega - sorriu o vigário - e para prová-lo peço-lhe que tome os fatos da paróquia do modo que entender.
— Mudemos de conversa - disse o sacerdote e, assinalando Eulália, ajuntou - está ali uma bonita morena. Repare.
— Não é feia, não - respondeu Paula estremecendo involuntariamente - é bonita.
— E é retirante, isto é, não dá trabalhos.
Paula não respondeu. As palavras do companheiro traspassavam-no como punhais buídos e faziam com que o remorso sangrasse-lhe o coração.
De relance passou-lhe pelo espírito uma suspeita. Não teria o despeito levado Eulália a acusá-lo? Os excessos a que ele se entregava na casa das perdidas de Quixadá era uma grave ofensa a qualquer mulher, quanto mais a Eulália que lhe havia dado as primícias do seu amor, toda a abundância de sentimentos que ela entesourara durante 20 anos de virgindade? Era possível que a generosidade daquela alma chegasse ao ponto de perdoar tamanha afronta?
A dúvida ficou irrespondida, e deu como resultado a fraqueza e o terror. Paula, ao passar por Eulália não teve mais coragem de encará-la, estava deveras humilhado e arrependido.
— Oh! vigário - resmungou o companheiro -, a rapariga vem seguindo-nos ao que parece.
— Talvez não, o que quererá ela de nós?
— Talvez esmola... As retirantes gostam muito de pedir esmola aos padres. Sabem que, em regra geral, são sempre atendidas.
— Mas há retirantes e retirantes. Nem todas se sujeitam a pedir.
— Conhece você esta rapariga?
— Não... nunca a vi, mas parece-me, pela cara, ser uma rapariga digna.
— Ai! que você tem saído só de palácio - exclamou o sacerdote; - está com tanto zelo!
Paula sorriu-se a princípio, mas de chofre, sendo avassalado pela dúvida de que o sacerdote, sabedor dos sucessos da paróquia e do papel que neles Eulália representava, o quisesse experimentar, ponderou com uma acentuação severa:
— Está enganado, colega; eu nunca vi aquela moça, e se tem alguma suspeita dissipe-a.
O padre olhou de través para o semblante de Paula, que não podia dominar-se mais e deixava patente a sua impressão.
“É singular" - pensou o sacerdote, notando a comoção de Paula e ao mesmo tempo que Eulália acompanhava-os sempre; - há de haver sucessivamente algum mistério aqui."
Deram mais alguns passos e o sacerdote, parando de chofre, disse para o vigário:
— Tenho urgente necessidade de ir hoje ao palácio; desculpa-me, não, colega?
— Oh! - respondeu Paula, a quem a despedida do padre livrava de um pungente incômodo - eu não quero interrompê-lo nos seus negócios.
O padre afastou-se lentamente, observando, sem que fosse percebido, a confusão do vigário em face da moça.
— O que haverá entre eles? - interrogava a curiosidade do sacerdote.
Paula, voltando sobre os seus passos, caminhou na direção oposta àquela em que estava Eulália, que parou por algum tempo, olhando para o sacerdote; que se viu constrangido a dobrar a primeira esquina.
Eulália percebeu que a intenção de Paula era evitá-la e hesitou em segui-lo.
— Deixá-lo ir, há de parar diante da sua própria ingratidão.
Mas o despeito da mulher desprezada veio eivar a altivez do coração. nobre e generoso. Já não era o mesmo impulso, que a levaria a seguir os dois padres por tanto tempo, o que lhe dirigiu os passos no encalço de Paula, que, fingindo-se indiferente, tomou a rua que passa pela frente do palácio para a praça do paço episcopal.
Na esquina de uma das ruas transversais, que desembocam naquela pela qual seguiam os dois, uma aparição, medonha aos olhos de Paula, como um espectro, fê-lo estatelar.
Era a mísera tia Antônia. A criançada acompanhava-a, dando-lhe puxões e assovios, prorrompendo em gargalhadas cada vez que a infeliz cambaleava.
Eulália aproximou-se então de Paula e com um sorriso, que lhe pertransiu o coração, segredou-lhe:
— Não a conhece também, sr. vigário?
Paula não respondeu, mas, como se fosse bruscamente despertado de um letargo, tentou voltar.
— É a tia Antônia - acrescentou Eulália; - o seu idiotismo tem origem no crime da paróquia, e ela procura o autor dele.
Perturbado e vacilante, o vigário, esforçando-se para libertar-se ao mesmo tempo da multidão que o envolvia e das palavras de Eulália que o torturavam, deu um passo, mas no mesmo instante a mó dos meninos empurrando a idiota violentamente, esta veio bater de encontro ao vigário, em cujos ombros segurou para amparar-se na queda. — Veja como me fazem mal estas crianças e eu não lhes fiz mal nenhum - murmurou a desventurada.
Paula, calado e trêmulo, encolheu bruscamente os ombros para tirar-se da compressão incomoda que o detinha, mas foi inútil: a idiota, segurando-o com mais força, ajuntou:
— Eu não o deixarei mais... Irei consigo para fugir deles. Vê? Estão já quietos. De feito as crianças, educadas no brutal fetichismo das massas pobres da província, ficaram interditas diante do sacerdote. A assuada parou como por encanto, e grande parte dos meninos voltou correndo para a praça da Assembléia, enquanto a outra imobilizara-se em face de Paula.
— Sim, eu a protegerei - disse Paula desnaturando a habitual entoação - mas é preciso que não me impeça de andar; acompanhe-me.
— Está perdido - pensou Eulália -; a velha Antônia o reconhecerá desde que o encare.
Eulália enganou-se; a idiota, ouvindo a voz do vigário, correu a mão pela testa, como que para despertar uma reminiscência; depois encurvou a mão em torno da orelha, fitou longa e minuciosamente o rosto de Paula, e perguntou-lhe:
— Vossa Mercê é padre, não?
Paula, chamando a si todo o sangue-frio, respondeu tranqüilamente.
— Você bem vê, filha; não tenha medo, venha comigo, ninguém lhe fará mal.
Levantou em seguida a voz com a inflexão autoritária do sacerdote respeitado e exclamou:
— Deixem em paz a mulher, vamos, deixem-na em paz, ou os farei espalhar pela polícia.
— Bom padre - murmurou a idiota - eles me faziam mal, e eu não lhes fiz mal nenhum.
— Vamos, filha - tornou Paula com meiguice; - eles são uns malvados.
A velha Antônia, deu alguns passos silenciosa, mas, parando de improviso e colocando as mãos no peito de Paula, exclamou:
— Conhece o Augusto Feitosa?
O semblante de Paula transtornou-se visivelmente, e a velha prosseguiu:
— Ele está aqui, deve dar-me o conto de réis, porque eu sei quem o quis matar. Na mesma noite do crime o vigário entrou em casa com a roupa ensangüentada.
— Cala-te, infame - disse o vigário com uma voz surda e gutural; - quem quis matar o Feitosa tem mãos ainda.
E apertou brutalmente o braço da idiota, a quem em seguida empurrou para longe de si.
A tia Antônia olhou assombrada para o vigário e de novo passou a mão pela fronte; depois murmurou, meneando-a:
— Não, não é ele, eu o conheço bem.
— Não me reconhece - pensou Paula - estou salvo.
Apertou o passo e seguiu precipitadamente.
Eulália aproximou-se então da idiota e perguntou-lhe, sacudindo-a por ambos os punhos:
— Não me conhece, tia Antônia?
— Não - respondeu a idiota, encarando-a fixamente com o seu olhar estúpido -, não sei.
— Sou Eulália; não se lembra da filha do professor de B. V.?
— Não - repetiu a idiota -, não sei.
— Oh, Santo Deus, como os malvados são felizes - pensou Eulália.
Ficou por algum tempo pensativa olhando ora para a velha, ora para o vigário. O cálculo falho abatia-a e fazia com que a razão se lhe perturbasse, vendo que Paula teria a impunidade absoluta, enquanto ela e as outras vitimas ficariam condenadas à dor e à miséria.
— Diga-me, tia Antônia, não conheceu também aquele padre? - perguntou-lhe Eulália repentinamente.
— Não - repetiu a idiota -, não sei.
— Pois é ele o vigário Paula!
Eulália contava que esta revelação produzisse grande abalo à idiota, mas, ao contrário da sua expectativa, a tia Antônia continuou impassível e limitou-se a responder como sempre:
— Não, eu não sei.
Vendo definitivamente perdida a ocasião de tomar a desforra do seu sedutor, mordida pelo desprezo esmagador que ele agora ostentava por si, a moça correu na trilha de Paula, que já entrava no largo do Palácio.
Dentro em pouco tempo, malgrado os esforços do vigário para não se deixar alcançar por ela, Eulália colocara-se-lhe diante.
— O que fiz eu para merecer o seu desprezo? - perguntou arquejando.
— As peripécias da viagem fizeram-na tomar hábitos maus, mulher - ponderou Paula; - eu não quero passar pelo desgosto de a mandar meter na cadeia.
— Eu quero saber o que fiz para merecer o seu desprezo - repetiu Eulália pondo-se-lhe diante e impedindo-o de caminhar.
— O tempo da loucura passou; a senhora não era uma criança; amava-a, correspondeu-me, o erro foi recíproco. Por minha parte, eu hoje apenas quero esquecê-lo.
— Eu tenho um meio de lembrá-lo sempre.
— Não me acobarda; não é muito que uma mulher que ia a minha casa, que foi minha amante pudesse furtar um punhal meu para com ele armar contra mim inimigos.
Eulália, medindo a força do argumento de Paula e ao mesmo tempo sentindo reaparecer naqueles olhos o brilho magnético que lhe dava tanta superioridade, abaixou os olhos confusa e murmurou:
— É um castigo horrível, meu Deus; em paga do meu amor, só tenho a vergonha e a miséria.
Paula sorriu triunfante. as dificuldades, que ele teve a fraqueza de supor lhe seriam criadas por Eulália, desapareciam de chofre, e em vez delas aparecia-lhe o futuro desassombrado. Quis ganhar ainda maior prestigio, esmagar mais uma vez Eulália e, metendo a mão no bolso, atirou aos pés da moça algumas moedas em cobre.
— Tem razão - disse ele -, eu não lhe paguei os meses do nosso amor; leve isto por, conta.
E afastou-se tranqüilamente, deixando Eulália imóvel de indignação.
Enquanto a adversidade desfechava golpes violentos no coração de Eulália,. não poupava também a sua família.
Levadas pelo bilheteiro da estrada de ferro à casa do comissário do abarracamento T..., d. Ana e suas sobrinhas foram por ele bondosa e compassivamente recebidas. Receberam logo uma guia para serem acomodadas e, o que as desvaneceu muito, uma recomendação especial.
D. Ana, a quem as freqüentes decepções tinham tornado suspeitosa em extremo, saiu da casa do comissário abençoando-o sinceramente.
— Santo homem! Iguais a ele é que deviam ser todos os comissários.
De feito, julgado pelas aparências, o comissário inspirava a maior confiança a quantos se aproximavam de si. Era chefe de uma família numerosa, a quem mostrava adorar. Sempre que falava aos retirantes, chamava para a sala os filhos menores, e, afagando-os, beijando-os muito, espremendo lágrimas dos seus 40 anos, expunha fases tristes de sua vida.
— Conte com um amigo. No meu abarracamento não há retirantes e comissário, há somente amigos e irmãos.
Profundamente beato, o comissário misturava às suas frases consoladoras as mais comoventes máximas do catolicismo, de modo que toda a gente acreditava que nele se ocultava o arcabouço de um futuro santo.
— Eu, minhas senhoras, entendo que só há um caminho para a felicidade neste mundo: é compreender bem os mandamentos da Santa Madre Igreja: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Tudo o que não for isto é vão e falso.
E, abaixando a cabeça pequena, sarapintada de cabelos brancos, aquele homem de estatura mediana, de carnação parca, de olhar terno e humilde, acrescentava:
— Quando eu me casei, aos 18 anos, ninguém se lembrou de tais verdades para comigo. Não nutri ódios, porém, resignei-me, trabalhei e consegui.. Sei hoje quanto custa o infortúnio e o preço da felicidade.
D. Ana saiu verdadeiramente tranqüila da casa de tão profundo moralista e chegada ao abarracamento foi aí recebida atenciosamente.
O administrador, um rapaz de vinte e poucos anos, robusto, de maneiras delicadas e semblante que insinuava, esmerou-se em obsequiá-la, a ponto de causar estranheza aos próprios companheiros.
Não havia para hospedar as recém-chegadas lugar nenhum decente. O abarracamento tinha capacidade para mais de uma dezena de milhar em vastíssimos telheiros, sob os quais viviam os retirantes numa promiscuidade de animais. O lanço, que era formado por pequenas casas, estava todo ocupado, e não era possível de momento arranjar aí morada para a família.
— As senhoras hão de ter notado quais as casas em que moram os retirantes. Por ora é o que se tem podido fazer.
D. Ana, receando ser posta em contato com a massa repelente dos seus iguais em desventura, abaixou tristemente a cabeça.
— De pronto não é possível arranjar-lhe uma casa, portanto, à vista da recomendação especial do comissário, as senhoras ficam hospedadas aqui até segunda ordem. Venha comigo.
O administrador atravessou uma pequena sala em que estavam apinhadas as sacas de farinha e as mantas fétidas de carne.
Entre este compartimento e o outro em que devia ficar hospedada a família, havia dois outros: um era a rouparia, e outro um quarto pobre, mas decentemente mobiliado, em que, segundo a frase do administrador, "o comissário descansava e ouvia as queixas particulares de retirantes de uma certa ordem".
— Ah! é um santo homem, o comissário - repetiu o administrador mostrando à família a parte central do abarracamento; nenhum trata os retirantes com tanto carinho.
E o preposto chamou a atenção da senhora principalmente para uma prateleira que havia na rouparia, e que tinha em cima um grande letreiro: Dietas. O aspecto, e a qualidade dos gêneros confirmavam a afirmação do administrador.
— Eis aqui a sua casa - disse ele por fim; - aqui estão um quarto e uma sala. Não é um bom cômodo, mas serve. As senhoras dormem aqui, e podem fazer a sua cozinha lá fora; eis aqui a porta para sair.
D. Ana e as sobrinhas ficaram maravilhadas; tanta bondade afigurou-se-lhes por momento interessada, mas ao mesmo tempo o desinteresse do homem que as recomendara ao comissário, a figura simpática deste, que era um pai de família afastaram a mais leve suspeita acerca das intenções com que tudo era feito.
— O mundo não é felizmente composto de malvados somente, ainda há homens dignos no meio dos perversos - ponderou d. Ana à Chiquinha.
— Parece, pelo menos - respondeu esta cujos olhos tinham por vezes encontrado com os do administrador.
— Agora - disse o jovial preposto - quero mostrar-lhes que, apesar de toda a bondade do comissário, aqui temos meios de manter a ordem. Vejam as senhoras.
Tinham saído e haviam, depois de alguns passos, parado diante de uma casa de paredes fortes. O administrador tirou do bolso uma chave e abriu a única porta, que dava para fora e deixava ver uma pequena sala, completamente nua.
— Esta casa tem seis compartimentos. Serve para castigar os retirantes de uma certa ordem.
— É medonha - disse Chiquinha sorrindo: - não tem janelas? Não entra luz aí?
— Não. Foi feita de propósito para o caso de delitos graves.
— E aí tem estado muita gente presa?
— Nem por isso, felizmente. A maior parte das vezes basta só a ameaça.
Quando o administrador voltou com a família, diversos empregados tinham vindo espreitar, e sorriam maliciosamente.
— Olhem o Neco como se apresenta... Querem ver que ele está fingindo de comissário ~...
— A rapariguinha mais velha é bem bonita.
— Felizardos... o melhor guardam para si.
O administrador, deixando a família, que não reparara no ar dos curiosos, veio a esfregar as mãos e a rir.
— Com que então, seu Neco, você é quem pode.
— Mais baixo; parecem muito ariscas, fidalgas da roça.
— É por isso que começam com este tratamento?
— Coisas do comissário.
— O que vale é que isso não dura muito, é só enquanto as pequenas engordam.
— Mais baixo, cambada, a velha é desconfiada, se ouve falatórios já, é capaz de arrepiar carreira.
— Grande perda, tão boas ou melhores não faltam por aí, é pegar com os olhos fechados.
— Mas o grande caso é que vocês têm água na boca.
O empregados rindo e chacoteando com o administrador afastaram-se finalmente e deixaram-no só com o fiel do armazém.
— É esquisito este procedimento do comissário; nunca se fez isto aqui.
— Ele não me recomendou que procedesse assim, mas como disse na carta - recomendo-lhe tratamento especial -, entendi que devia tomar esta resolução.
— E se ele não concordar?
— Ele há de alegrar-se até.
O administrador tinha razão quando afirmava que o comissário alegrar-se-ia com o seu procedimento.
Quando à tardinha veio ao abarracamento, o comissário ainda a cavalo, perguntou pelas suas recomendadas e, apeando-se, acrescentou falando à puridade com o administrador:
— Então, que tais as meninas?
— Bonitinhas, mas estão multo desfeitas.
— Com uns 15 dias de bom tratamento refazem-se e ficam ai fortes e de se verem.
— Se alguma febre não as lapear de um trago...
— Não agoure; você já está com inveja das minhas moreninhas.
Desfazendo-se em jovialidade, foi logo visitar d. Ana e presenteá-la com o melhor que havia na despensa das dietas.
— Não está tão bem como na sua paróquia, mas não lhe faltará nada, minha senhora - disse o comissário; - o pedido do meu amigo é como se fosse o de um pai. Devo muito, devo tudo aquele homem. O tempo lhe demonstrará quanto vale para mim a recomendação que a senhora trouxe...
De feito, nos dias subseqüentes, o comissário esforçou-se por se tornar cada vez mais amável e acessível. Distribuiu roupa pela família, e contemplou-a na lista das viúvas que recebiam pensão semanal.
D. Ana não sabia até onde estender a sua gratidão e; não sabendo também como demonstrá-la de modo a corresponder a cordialidade do comissário, entendeu que o melhor meio era trabalhar para limitar o mais possível a esmola de que tinha necessidade.
Doze dias passaram-se assim; d. Ana durante todo este tempo não pedira coisa alguma ao comissário que era o primeiro a obsequiá-la.
Em uma das suas visitas diárias, o comissário, que se apeava à porta de d. Ana, pediu-lhe vinho.
— Já não o temos - respondeu a senhora abaixando os olhos de acanhada -, mas se vossa mercê não estranha...
— Pelo amor de Deus, minha senhora, tenha a bondade de mandar uma de suas sobrinhas buscar. Eu vou já à despensa.
Chiquinha foi mandada pela velha senhora e acompanhou o comissário até a despensa.
Caiu então a máscara' ao hipócrita. Às suas primeiras palavras revoltou-se o pudor de Chiquinha, que se limitou a defender-se com as lágrimas e uma queixa inofensiva.
— Minha tia tem Vossa Mercê como um homem de honra.
O comissário, vendo que a sofreguidão podia prejudicar ou pelo menos dificultar os seus cálculos, conteve-se e, sorrindo, ponderou à moça:
— Ah! eu logo vi que você havia de ofender-se; quis experimentá-la. Agora vejo que trato com gente séria.
Chiquinha sorriu contente e agradecida e levantou para o comissário os seus olhos negros arrebatadores.
— Não é preciso que a titia saiba do que se deu não é verdade? Ficamos amigos, sim?
A moça meneou afirmativamente a cabeça e saindo apressadamente, ao chegar à casa, longe de deixar pairar a menor suspeita sobre o caráter do comissário, fez dissipar se uma tácita interrogação que lhe fazia o olhar de d Ana.
O comissário, porém, não tardou a desmenti-la. Não compreendera a profundeza das poucas palavras de Chiquinha; pelo contrário, inferiu da sua brandura que não haveria dificuldade séria aos seus planos. Resolveu dirigir-se jeitosamente à d. Ana e no dia seguinte convidou a velha senhora para correr o abarracamento.
— Vê a senhora? - disse o comissário mostrando as grandes barracas onde os retirantes viviam em brutal promiscuidade. - Dói-me o coração, mas não me é dado fazer mais. Gomo isto é horrível, hein?
— É exato.
De feito, o comissário e d. Ana estavam em face de um espetáculo comovente. Mulheres, homens e crianças, todos esfarrapados e sórdidos, levantavam-se como que desvairados e vinham-lhes ao encontro, erguendo súplicas e prorrompendo em soluços. Tinham fome, viam os parentes moribundos e sem amparo, queriam algum socorro.
O comissário respondia com uma série de consolações banais e esperanças vãs e, convidando d. Ana, fê-la penetrar no casarão emparedado apenas em três das suas faces.
Haviam apenas dado alguns passos, quando o comissário julgou que devia chamar de novo a atenção de d. Ana.
— Vê a senhora quanta miséria eu não posso evitar?
D. Ana não pôde conter as lágrimas, em face do quadro que se lhe oferecia às vistas.
Sobre o chão estava estendido um cadáver.
Era uma vítima da anasarca; a inchação o deformava e tornava-o repelente. Largas fendas nas pernas dessoravam, desafiando a gula de um mosqueiro, que esvoejava e pousava sobre o corpo, ora sugando-o nos lagrimais, ora nos beiços roxos, de que escorria um ló de escuma, ora penetrando nas fendas fétidas. O cadáver tinha como sudário uma tanga feita com um pedaço imundo de lona.
A pequena distância do morto estava deitada uma mulher ainda moça e que devia ter sido linda. Uma palidez mortal revestia-lhe as feições, a tristeza embaciava-lhe os olhos e imobilizava-lhe o olhar de modo que a desventurada parecia estar morta também.
— Olá - disse o comissário chamando o inspetor do abarracamento; - por que deixou ficar aqui este homem?
— A mulher pediu-me que o deixasse ficar ao menos até logo à noite.
— Estas vontades não se fazem - resmungou o comissário - remova-me isto daqui.
Dizendo estas palavras, o comissário olhou de través para d. Ana, para medir o efeito que este rasgo de brutalidade lhe causara. Ficou satisfeito: d. Ana estava perplexa a olhá-lo.
— E quanto a esta mulher, é preciso dar-lhe alguma coisa; ela já comeu hoje?
— Não se distribuíram rações hoje. As rações são dadas nas segundas, quartas e sextas, hoje é domingo.
— E na sexta-feira deram-lhe ração?
— Ela trocou a ração por uma dieta de carne fresca para o marido.
— Que estúpida - exclamou o comissário. - Vão ver que está para morrer de fome.
— Ela é muito soberba, quer se fazer de boa.
— Bom, amanhã não se esqueça de dar-lhe alguma coisa, caso ela não morra hoje como parece.
A mísera mulher, de quem o comissário se ocupava, volveu para ele os seus belos olhos cearenses, onde como que já se projetava a sombra do túmulo, e sorriu.
— Bonitos olhos, não acha, d. Ana? - perguntou o comissário que ostentava perversidade para intimidar a senhora.
— É pena que a terra não demore nada a comê-los...
D. Ana não pôde mais conter os soluços e as lágrimas, e o comissário com um suspiro fingido exclamou:
— Pensa a senhora que a minha alma não se penaliza com isto? Não a quero ver sofrer tanto, vou infringir as minhas ordens e socorrer esta infeliz. O sr. inspetor, leve já a mulher para o hospital.
— Obrigada, mil vezes obrigada - soluçou d. Ana; - eu lhe agradeço em nome dos céus.
A moribunda levantou para d. Ana os olhos em que bailavam duas grossas lágrimas, e o inspetor, coçando a cabeça, levantou a infeliz, que entregou a dois serventes para que se cumprisse a ordem do comissário.
— A senhora tem realmente um coração de anjo - disse o comissário. - Veja agora também quanto tenho me esforçado para ser-lhe útil e minorar-lhe os sofrimentos. Imagine o triste caso de não ter vindo com a recomendação de um amigo meu, ou, o que nunca há de acontecer, a desgraça de não me ser mais possível protegê-la. Quanta miséria, não é verdade?
D. Ana meneou a cabeça afirmativamente.
— Pode perguntar aos retirantes, um por um, se o meu não é o abarracamento em que eles encontram melhor tratamento e, entretanto, é isto: calcule agora o que serão os outros.
— Que horror! - exclamou a boa senhora. - Eu creio porque vejo.
As palavras de d. Ana demonstravam comoção mais profunda do que o comissário visara obter da, incômoda visita ao abarracamento.
De si para si o hipócrita julgou seguro o êxito da sua baixa e criminosa empresa: conseguir pelo terror a desonra da família Queiroz.
Decidiu-se, pois, a terminar a prova a que submetera a honrada senhora, e voltou para a casa da administração.
— Até logo, d. Ana - disse ele ao entrar.
— O mais certo é até amanhã; é quase noite.
— Não, é até logo. -.
— Dá-nos muito prazer.
Separaram-se e com eles o sol despediu-se também do abarracamento, sobre o qual ficaram, apenas pairando as tristes claridades do crepúsculo e os ais dos que sofriam.
Não há cores que descrevam a vizinhança da noite longe dos céus sob os quais temos as nossas afeições, as nossas intimidades, todas as reminiscências, do passado e os escombros de todos os sonhos do futuro. Há, então no pungir da saudade um incitamento invencível às lágrimas. Da funda depressão que ela nos deixa no espírito, a imaginação tristonha levanta visões comoventes, que nos endoidecem abeberando-nos de angústias.
O crepúsculo parece um rosto carrancudo que nos censura a vida, dir-se-ia que ele, com os últimos clarões do dia, arrasta-nos o porvir: tamanho é o vazio que nos fica no coração.
Sob a luz mortiça de semelhante tarde recolhiam-se ao abarracamento os trabalhadores, os miseráveis que debaixo da soalheira do meio-dia, queimando os pés no areal ardente, torturando-se com as gritas e as ameaças dos inspetores, tinham ido conquistar uma ração minguada para a mulher e os filhos andrajosos.
Para recebê-los, havia, entretanto, sorrisos, e que sorrisos - vitórias contra a fome, derrotas da morte.
Como que todo o abarracamento se animava: aquele monturo ganhava uma alma.
O comissário, à janela, vendo as moças retirantes que passavam correndo, e colhendo os andrajos para guardar a compostura, dizia obscenidades a rir com o administrador:
— Olhe você, eu quero estabelecer aqui o banho obrigatório e em comum.
— É quase impossível, não temos local.
— É difícil, sim, e por isso mesmo tenho demorado.
— Há um meio de as ter asseadas; é negar ração aos pais.
— Porém isto não evita que várias: vezes tomemos gatos por lebres.
— Isto é verdade; e ainda agora creio que o senhor cai numa dessas, com as vizinhas.
— Não, eu já lhes dei os contras; estão seguras.
— Eu lhes vejo assim um certo ar.
— Querem vender o peixe caro, mas afinal vendem-no pelo preço das outras.
— Pode ser.,. mas eu quero ver.
— Pois chame-me lá, a Chiquinha... Já se sabe diga à velha, que a mandei chamar.
O administrador, cumprida a ordem, entrou, a convite do comissário, para a rouparia.
Chiquinha acompanhada, pela caçula apareceu dentro um pouco e veio falar com o comissário.
— Aqui estou - disse ela sorrindo -, às suas ordens.
— A titia disse-lhe que eu ia logo lá, não? Vou com efeito e para isto a mandei chamar, para que leve algumas bolachas e café para a nossa ceia. Entre.
Chiquinha, olhando de soslaio para o comissário, entrou tomando nos braços a caçula.
O comissário, que a veio esperar na passagem, fechou a porta sobre si e, antes que a surpresa da moça desse tempo à esquivança, depôs-lhe nas faces um beijo.
— Infame - exclamou Chiquinha -, deixe-me sair.
Uma risada cínica respondeu à interjeição nobre da moça. — Eu estou cansado da comédia, cheguemos já ao desfecho, ou atiro-as na rua com a ponta do pé.
— Faça-o, não lhe pedimos o que o senhor nos tem feito; faça-o quando quiser. Deixe-me sair, porque assim evita o incômodo; nós nos mudaremos hoje mesmo.
— Tem graça, minha atrevidinha, tem graça, mas saiba que sou eu quem governa aqui.
— Socorro! - bradou Chiquinha e, correndo para a janela, repetiu por três vezes - socorro!
Enquanto gritava, quis galgar a janela, depois de ter posto fora a pequenita, que chorava e chamava por d. Ana, mas foi detida pelo comissário, que resmungava furioso:
— Cale-se, desgraçada, eu tenho poder até para mandá-la matar.
O clamor da moça, porém, produziu o efeito que ela esperava. Embora os retirantes que passavam nem ousassem olhar para a casa da administração, d. Ana acudiu resolutamente e, transpondo a janela, colocou-se em face do comissário, que gritara pelo administrador.
— Chame os inspetores e guardas - bradou o comissário; - é preciso que estas miseráveis paguem o crime de desobediência que acabam de praticar.
Um assovio do administrador fez com que num lance de olhos as duas mulheres se vissem completamente cercadas.
— Meta-as na prisão até segunda ordem - sorriu o comissário e, voltando-se para d. Ana, disse com um ar disfarçado - com teu amo não jogues as pêras.
D. Ana e Chiquinha olharam-se perplexas. Estavam definitivamente perdidas; a resistência não só era inútil como fatal, porque deixava as três outras meninas expostas à crueldade do comissário e dos seus agentes.
O amargor do transe, a sua imprevisão fulminante deixavam atônitas as duas mulheres; o olhar de Chiquinha perguntava já a d. Ana se ela devia resignar-se.
— Uma palavra só, sr. comissário - suplicou humildemente d. Ana.
— Esperem - bradou o monstro, que já contava com o arrependimento das duas indefesas mulheres; - ouçamos.
— Em particular.
Foram postar-se em um recanto, e d. Ana, com um sangue-frio inesperado, murmurou:
— Para que faz vossa mercê esforços por esta rapariga, que já foi amante de um padre?
— Ah! - exclamou o comissário - que hipócrita!
Chiquinha ao ouvir a exclamação, percebendo que d. Ana para salvá-la havia lançado mão de alguma inverdade, fundiu em lágrimas.
— Se Vossa Mercê houvesse logo falado comigo, esta cena não se passaria.
— Vejo que procedi mal, é exato. Retirem-se todos - bradou o comissário, não é preciso mais.
D. Ana resfolegou e com um olhar mandou que Chiquinha se afastasse.
— Eu - continuou d. Ana, não sou tão ingrata como o sr. comissário me faz. A menina do meio chegou muito cansada da viagem. Demais... - Inclinou-se no ouvido do comissário, disse-lhe algumas palavras, e depois em voz alta:
— Dentro em três dias, pois, eu mesma me comprometo.
— A senhora é muito mais razoável - disse ele batendo no ombro de d. Ana sem atender para a transformação que se havia operado no semblante da senhora; ficamos amigos.
— Conte.
D. Ana retirou-se e o administrador veio encontrar-se com o comissário, que trouxera a senhora até a porta:
— Chegaram a acordo?
— Com a meã, a mais velha é uma comborça.
— E quando?
— Dentro de três dias.
O comissário retirou-se com a esperança, mas por alta noite a família Queiroz deixava o abarracamento.
Uma semana depois dos sucessos que deixamos narrados uma grande modificação havia-se operado na infeliz Eulália.
A família Queiroz, deixando o abarracamento, ficara completamente desamparada e reduzida a morar como tantas outras sob os cajueiros das vizinhanças dos abarracamentos.
Tinha entrado o ano de 1878, e uma reviravolta política, mudando no governo as idéias políticas, dera em resultado na administração da seca os mais funestos resultados. O presidente da província havia pedido a sua exoneração porque não tinha confiança nem podia inspirar confiança ao novo governo.
Tinha razão de sobra para fazê-lo. O partido que acabava de subir amargurara indescritivelmente na província a alma do honrado ex-administrador, que se viu atassalhado nos pontos os mais sensíveis do seu melindre particular e público.
Pedida a exoneração, o presidente limitou-se a conservar o que já havia feito, mas não se julgou autorizado a continuar no trabalho de organização do serviço, a qual exigia que a autoridade central emprestasse à provincial toda a força.
Esta parada causou males incalculáveis. A mortandade atingiu a um número fabuloso, expressado talvez pela metade, se tanto, nas estatísticas oficiais.
Multiplicaram-se os quadros horrorosos que formaram a feição predominante nesta fase histórica da província. Debaixo das árvores, onde o arbítrio dos abarracamentos havia transbordado os infelizes, desdobravam-se cenas as mais compungentes. A morte era a menos horrorosa de todas elas.
O leilão da honra tornou-se um fato comezinho entre os desgraçados. Os maridos, os irmãos, os pais acossados pela fome entregavam esposas, irmãs e filhas à libertinagem a mais desenfreada, para dela tirarem a subsistência. A prostituição, esta nódoa que outrora não se lavava nunca mais aos olhos do povo sertanejo, tomou-se uma coisa comezinha, a respeito da qual não se discutia.
No meio da onda geral de perdidas que inundava a cidade, aparecia agora a mísera Eulália.
Depois do insulto cruciante de Paula, ela voltara a correr como doida após a sombra da sua família, perdida no meio da espessa mó que atulhava a capital.
Felizmente para a desventurada, d. Ana, impelida pelo temor de que o comissário, para tomar vingança, a perseguisse, fora parar na extremidade da cidade, oposta àquela em que estava o abarracamento T...
O lugar em que d. Ana parara, vizinho ao abarracamento de M., ficava justamente do lado em que está situado o palácio do bispo, em frente ao qual Eulália se achava quando pôde medir toda a extensão da perversidade do padre Paula.
O primeiro pensamento que ocorrera a Eulália foi atirar-se ao mar: a morte apareceu-lhe como o último desforço, porque dela sobreviria a Paula o remorso.
Caminhou, portanto, para o lado do mar, porém em meio caminho lembrou-se da caçula, do estado precário de d. Ana e das outras suas irmãs, e arrependeu-se.
Quis viver para elas e para a sua vingança. Tinha certeza de que as havia de encontrar e esperava que Feitosa tomaria sobre o vigário uma desforra exemplar.
Caminhou direito ao abarracamento de M., guiada por um pressentimento inexplicável; aí se encontrou com o administrador, um velho a quem a seca arrebatara a maior parte da família e da fortuna, mas em cujo coração deixara, para compensar, um sentimento profundo de compaixão pela desventura alheia.
Neste abarracamento, regularmente montado e dirigido por um engenheiro e um médico, cujos nomes a Província do Ceará há de saber lembrar e honrar, Eulália achou uma indicação mais ou menos exata acerca de d. Ana, indicação que o espírito dedicado da moça prontamente completou.
Duas horas depois da sua chegada ao abarracamento, sob um cajueiro, Eulália abraçava Chiquinha e suas irmãs, e podia desafogar as lágrimas que por tanto tempo entesourara para aquele encontro.
D. Ana, porém, recebeu-a friamente e com um escrúpulo visível.
— Bem - disse Eulália -, agora, reunidas todas, podemos ganhar para viver e procurar descobrir Irena e seu velho pai.
O Feitosa deve estar também na cidade.
D. Ana desfez logo o sonho dourado de Eulália. Chamou-lhe a atenção para o estado precário de Chiquinha e das outras meninas e depois de lançar em rosto a Eulália o seu bem-estar relativo, respondeu friamente:
— Vocês podem ficar aqui todas juntas; é mesmo mais razoável, porque Eulália já sabe os meios de ganhar dinheiro sem trabalho. Eu, porém, estou velha, não viverei muito, não quero torturá-las; retiro-me para bem longe.
Em vão Eulália, ferida pelas palavras severas de d. Ana, procurou inspirar-lhe confiança afirmando-lhe que só viveria do seu trabalho; d. Ana não se demoveu.
— Eu não posso ficar no mesmo lugar em que estiver a filha que desonrou o nome de meu irmão. Ou você ou eu.
Diante do dilema fatal, o bom senso de Eulália resignou-se a retirar-se e deixar as irmãs sob a vigilância da honrada senhora.
De resto das suas extremas economias, a carteira que lhe fora dada por Virgulino conservava ainda vinte e tantos mil-réis, de cinco dos quais ela serviu-se para arranjar um casebre para a família, a título de oferecimento de umas vizinhas.
Dentro em poucos dias a carteira esgotara-se pelas dádivas clandestinas de Eulália à família que hospedava d. Ana.
A velha senhora, Chiquinha e as irmãs trabalhavam corajosamente, mas o resultado do trabalho de uma semana mal dava para alimentarem-se três dias. Eulália, reduzida à mais extrema penúria, dormia ao relento, e já começava a sentir os bárbaros efeitos da miséria.
Um dia dirigindo-se à família com quem tratara a hospedagem das parentas, ouviu uma tremenda ameaça.
— Há duas semanas já que a senhora diz sempre que trará alguma coisa e nunca nos traz nada; deste modo não é possível continuar a estar aqui a sua gente. Esperamos mais oito dias, se neste prazo não nos pagar tudo..
— Não acabe - exclamou Eulália soluçando -, eu sei já.
— É o último recurso. Olhe, não tenha medo, as suas duas irmãs são bonitas e viverão bem.
Eulália saiu como alucinada. Tudo quanto possuía era a ração da comissão de prontos socorros, que conseguira para os seus, e que só podia receber incertamente. Este recurso portanto não bastava para garantir a vida e a honra de suas irmãs e estas ver-se-iam necessariamente obrigadas à perdição.
Batida por esta previsão medonha, Eulália vagou o dia inteiro e à noite ainda se achava em uma das ruas da cidade. Prendia-a às calçadas um pensamento mau - a perdição; entregar-se ao primeiro que passasse em troca da honra de suas irmãs, e quando a consciência lhe bradava que não, o amor a aconselhava que fosse por diante, que não temesse o sacrifício.
Extenuada de cansaço, faminta e sedenta, sentou-se a uma porta, na qual havia batido pedindo um pouco de água.
Uma mulher abriu e apresentando-lhe o copo convidou-a a entrar depois de fitá-la atentamente.
— Entre, minha filha, entre, deve estar muito cansada, e é bom descansar um pouco.
A amabilidade educada da mulher surpreendeu agradavelmente a extenuada Eulália. Estava acostumada ao contrário. Levada na vaga das outras retirantes, havia por vezes parado diante dos hotéis, onde em mesa lauta os pensionistas almoçavam à farta. Às vezes via aqueles cruzarem os talheres sobre os pratos, tendo apenas tocado nas comidas. Os retirantes levantavam a voz pedindo-lhes os restos e por única resposta tinham os gestos brutais dos criados, que vinham fechar grosseiramente as persianas. Em um desses hotéis dois cães enormes, acorrentados na área, comiam em grandes tinas, e a fartar, esses restos tão cobiçados.
Bebido, pois, o copo de água, Eulália fitou agradecida o rosto da sua hóspede e arrancou um íntimo obrigada.
— Sente-se agora um bocadinho para descansar - disse-lhe a mulher: - está a pôr a alma pela boca.
Nessas palavras transpirava um agasalho maternal e o semblante prazenteiro, desnublado da hóspede o secundava com uma bondade evangélica.
Eulália, sentando-se, pôs-se a reparar no todo da mulher, trintona de ar nobremente altivo, vestida com o esmero provinciano, com um olhar quebrado, transbordando de umas pálpebras túmidas e roxeadas; os lábios tinham um sorriso permanente.
Em seguida a observação caiu sobre a sala, cuja mobília, sem denotar riqueza, tinha a decência suficiente para mascarar a pobreza.
— Vejo que não é daqui da capital...
— Não, minha senhora, sou do sertão e acho-me aqui trazida pela calamidade que o afligiu.
— E não tem família ...
— Tenho e é ela quem me faz sofrer mais...
— Santo Deus ! Então leva uma vida de torturas...
— É verdade, minha senhora; uma vida cruel, porque não encontro trabalho.
— É dificílimo agora; não obstante ainda há meios de se viver decentemente...
— Eu não o tenho achado...
— É que não encontrou ainda proteção. A senhora é moça, bonita, simpática...
Eulália sorriu, com essa espontaneidade que é natural na mulher, quando elogiada, e replicou:
— Mesmo que fosse assim, nada disto dá o sustento.
— Conforme...
A conversação suspendeu-se temporariamente neste ponto, para recomeçar depois de maneira mais clara e decisiva.
— É obrigada a dormir com a sua família, não? - perguntou a mulher.
— Posso ficar fora, têm confiança em mim.
— Quando se está em épocas como a de hoje, tem-se confiança em todos - sorriu a mulher e acrescentou: - portanto, pode pousar esta noite aqui.
— Quanta bondade, minha senhora; eu não sei como lhe agradecer.
— Olhe que está nas suas mãos se quer pagá-lo; é não me deixar nunca mais. É bonita, pode servir-me muito..
Eulália, corando modestamente, perguntou com a ingenuidade de quem não percebe:
— E em que a minha boniteza pode servir-lhe?
A mulher riu muito, mas percebia-se na sua risada o constrangimento da hesitação que lhe causava a naturalidade da pergunta. Por fim ponderou jovialmente:
— Isto é querer ir muito depressa; havemos de ir devagar.
Continuou a rir fazendo da pergunta de Eulália tema de comentários repetidos, até que afinal perguntou por sua vez:
— Nunca teve o seu namoradozinho lá no sertão? - E como Eulália ficasse enleada: - são perguntas que não se fazem, não é verdade? Não há 15 anos sem amor.
Eulália sorriu tristemente.
— E ficou-lhe viva a saudade deste tempo - acrescentou a mulher. - Eu fui o mesmo: a primeira vez que ri para outro, como se levantou diante de mim a imagem do meu primeiro amor. A senhora não é casada ...
A moça meneou a cabeça, ainda com maior tristeza.
— Eu também não sou, e afinal não me dei mal com isto, pelo contrário tenho vivido feliz.
— É que tem pais que a estimem e protejam.
— Também não; vivo sobre mim...
— Ah! - exclamou Eulália surpreendida.
— Custou-me a princípio, mas acostumei-me.
Metade da simpatia de Eulália pela sua hóspede dissipou-se como por encanto, e, em vez da boa vontade com que se deixava ficar, apareceu-lhe incômodo visível.
Esta mudança não passou despercebida ao olhar perspicaz da mulher, que foi logo direito ao ponto a que visava.
— Já me disse que sua família tem-lhe feito sofrer muito. Decerto tem irmãs e seus pais são velhos.
— Já não tenho pai nem mãe.
— Nem irmãos?
Eulália meneou a cabeça afirmativamente.
— Daí o medo de que aconteça alguma desgraça às suas irmãs.
Eulália olhou fixamente para a sua interlocutora.
— Desgraça inevitável aqui, principalmente se elas são bonitas como a senhora, que já é livre, e pode dispor de si.. Eu - continuou a mulher - não sei por que me interessei por si e não duvido oferecer-lhe na minha casa meios de poder decentemente velar pelos seus. Dou-lhe quanto precisar para poder aparecer. Assim terá de que viver, e evitar que depois de fomes, de tormentos de toda a sorte, as suas irmãs venham a sofrer o mal que tanto parece temer.
Eulália ficou boquiaberta diante da mulher que ousava fazer-lhe tão aviltante proposta, mas longe de indignar-se ficou imóvel e muda a encará-la.
— Está fazendo mau juízo de mim, eu percebo-o - observou a mulher -, mas pense algum tempo e verá que eu não lhe proponho senão o que todos lhe proporão. A diferença é que eu não a degradarei como os homens o farão. Pense.
Eulália, resistindo a todos os esforços feitos pela mulher para detê-la, levantou-se e saiu.
Começaram desde logo a redemoinhar-lhe no cérebro as mais extravagantes e as mais horrorosas idéias. A imagem de Paula, sobrenadando a todas elas, impunha-lhe terror e ao mesmo tempo impelia-a ao cogitar alucinado.
Chegada ao abarracamento, não pôde dormir. O cajueiro, sob o qual pousava, parecia-lhe animado, os seus ramos e folhagem convertidos em asas, e os balanços da rede afiguravam-se-lhe vôos enormes, colossais, que a arrebatavam às mais vertiginosas alturas para depois despenhá-la nos mais profundos e negros abismos, e nesses vôos, quando a infeliz ascendia, pensava nos primeiros tempos do seu amor por Paula, e, quando despenhava-se, ouvia a voz agasalhadora da mulher.
Quando a claridade triunfal do dia desacastelou-lhe do espírito os medonhos pesadelos, Eulália apressou-se em correr à casa em que estava hospedada a sua família, e aí encontrar Chiquinha.
— A caçula morre, Eulália; ela não pode resistir a esta vida; não tivemos ontem um grão de farinha e provavelmente hoje será o mesmo.
— Então não lhes deram nada?
— Você já não lhes paga...
— Sim, já não tenho com que pagar a essas malvadas.
— Elas prometeram já nos pôr fora daqui.
— Sim, prometeram, ameaçaram-me com isto, mas não o farão. Adeus, eu juro que elas não o farão.
Afastou-se quase a correr, e, com os olhos baixos, as feições demudadas, dirigiu-se à rua em que habitava a mulher, que lhe oferecera casa e meio de vida.
— Estou aqui pronta - disse ela entrando; - diga-me o que devo fazer, mas antes eu preciso de dinheiro para levar aos meus.
— Bravo; teve juízo - respondeu a mulher; - eu a porei mestra em poucos dias; descanse em mim, não lhe faltará nada.
Feitosa não abandonou mais o pensamento de tomar no vigário Paula a vingança a que o aconselhavam os longos meses de tormentos.
A própria sofreguidão, porém, fazia-o emaranhar-se em um labirinto de combinações, que não resistiam a mínima reflexão.
Não podia formular contra o vigário uma denúncia; não tinha uma prova só que pudesse fundamentar a acusação. Tudo quanto sabia não passaria de um fugitivo indício para todos; só o seu coração torturado podia extrair uma certeza das palavras de Antônia e dos fatos que se deram na paróquia.
O único meio que se lhe apresentou como realizável e eficaz foi a difamação anônima, a qual prepararia o caminho para que mais tarde fosse possível a denúncia formal.
Um periódico da capital publicou alguns dias depois um artigo narrando amiudadamente os inacreditáveis acontecimentos de B. V.
O retrato de Paula era aí habilmente feito e de tal modo que só a cegueira não o podia reconhecer.
Feitosa visitou neste dia todos os seus parentes e amigos para medir a impressão que haviam produzido as suas palavras.
Falava-se no artigo, mas a indignação que ele julgava ter produzido no espírito público não realizou: todos se limitavam a simplicíssimos comentários.
— Um padre como os outros.
— Isto de padres, é uma canalha.
— Que jeito, se é verdade o que diz o artigo; valem-se bem da rivalidade das famílias.
Perguntavam a Feitosa se o conhecia, e então o moço carregava as cores ao quadro que ele mesmo havia desenhado com o auxílio de um amigo íntimo.
A manifestação pública, porém, não passou destas frivolidades e Feitosa entendeu que devia insistir nos artigos.
Quando julgou que a notícia já devia ter passado as portas, sempre fechadas, do palácio do bispo, dirigiu-se até lá, disposto a apresentar verbalmente a queixa ao prelado.
A entrada lhe foi vedada e o porteiro, por um mero ato de deferência para com os modos polidos e a boa fama de Feitosa, enviou-o ao sacerdote que apresentara ao bispo o vigário Paula e gozava da estima de S. Exa.
— É como falar a S. Exa. Revma; o que o sr. padre resolver...
— É o que se fará, não?
— Pouco mais ou menos; eu não digo que seja tudo, tudo; mas alguma coisa; um bocado mais para lá, outro mais para cá.
— E onde o encontrarei eu?
— Na igreja, de manhã e à tarde.
Feitosa dirigiu-se imediatamente ao templo.
O sacerdote lá estava empregado no seu mister de confessor, com o semblante carregado em sinal de uma austeridade de comédia e enfado pelo trabalho a que era obrigado.
Quando se desocupou e veio falar a Augusto Feitosa, começou logo por afetar uma urgência, que não passava de um assomo de grosseria.
— Viu o senhor em que tenho estado ocupado. Confessei vinte e tanto retirantes moribundos. Ora, eles sãos causam nojo, imagine o que serão nesse estado.
— Entretanto eu me veio obrigado a demorar vossa reverendíssima.
— E com quem estou falando, posso saber?
— Com Augusto Feitosa de...
— Da grande família dos Feitosas...
— É exato e ultimamente morador de B. V., onde residiu, também o vigário Paula, recentemente chegado a esta cidade.
Augusto Feitosa cravou o olhar no rosto do sacerdote para acompanhar-lhe os movimentos da fisionomia. O sacerdote, porém, impassível, afetando com uma naturalidade indescritível desconhecer completamente a pessoa de quem se tratava, respondeu:
— Não sabia que o vigário de B. V. estava na capital.
— Então, V. Revma. não leu as publicações que têm saído a respeito deste vigário?
— Sobre que versam elas?
— Eu vou apresentá-las a V. Revma., que as poderá ver e julgar.
Augusto Feitosa tirou do bolso alguns números do periódico e passou-os às mãos do sacerdote, que se limitou a ler-lhe o nome.
— Ah! é isto?!... Eu não leio este pasquim, e V. Sa. só acredita no que diz isto por não morar nesta capital.
— Perdão - exclamou Augusto; - eu não acreditaria nos fatos aqui narrados se os não tivesse presenciado e não tivesse neles um tristíssimo lugar.
— V. Sa. vem então denunciar-me o padre Paula?
— Venho comunicar à autoridade eclesiástica fatos praticados por esse vigário e que infamam a classe inteira.
— Bem, eu o estou ouvindo, pode expor.
Augusto Feitosa percebeu logo a má vontade do sacerdote, mas, acreditando na sua declaração de que não havia lido os artigos, passou a expor minuciosamente os acontecimentos da paróquia.
— O que eu concluo é que o vigário Paula e o sr. Augusto Feitosa - disse por fim o sacerdote - foram vítimas de uma tremenda perseguição de um inimigo clandestino!
— Como? - perguntou Feitosa perplexo. - Não vê V. Revma. que ninguém, a não ser o vigário Paula, podia praticar semelhante crime?
— E por que não será o próprio Monte? E por que não seria o velho Queiroz ofendido por ver Irena preferida à sua filha?
— Porque diz-me o coração que não, porque nenhum deles tinha a alma torpe de Paula e nenhum podia urdir nas trevas semelhante trama.
— E eu lhe digo que nada é difícil no mundo, e nada é mais fácil do que iludir.
— Em suma - exclamou Augusto Feitosa irritado -, eu devo contar com a impunidade do vigário Paula, não é assim?
— Não apresentou provas que baseiem a sua acusação. Ouça o senhor: eu também já fui vítima de uma história semelhante.
E, zombando da exaltação de Feitosa, o sacerdote, com uma entoação calma e desdenhosa, desfiou com todos os seus pormenores a história a que ele já se referira falando ao bispo.
— À vista de semelhante experiência - exclamou ele -, compreende o senhor que eu não posso dar crédito a qualquer denúncia.
Feitosa levantou-se precipitadamente, e, sem despedir-se do sacerdote, tomou o corredor da sacristia.
O sacerdote acompanhou-o até a porta, sem mostrar-se ofendido e, quando Feitosa punha o pé fora do limiar da igreja, exclamou mansamente:
— Se arranjar provas, não faça cerimônia, venha ter comigo.
Quando o moço desapareceu o sacerdote despegou uma risada prolongada, e chamando o sacristão:
— Viu sair daqui aquele rapaz? É uma boa alma. Se vir por aí o padre Paula, diga-lhe que preciso muito lhe falar. Olhe, vá lá ao palácio e chame-o para chegar até cá.
E continuou a rir, com grande surpresa do sacristão, que abria bajulatoriamente um riso alvar para secundar sua reverendíssima.
— Tenho mais este na rede - murmurou o sacerdote quando ficou só. - Feitas as contas, eu sou o melhor deles todos, não vou às últimas.
Foi sentar-se na sacristia, onde um Cristo amarelado pelo tempo abria os braços numa inconsciência igualitária à hipocrisia de sua reverendíssima, do mesmo modo que a mais acrisolada virtude. Ria-lhe no olhar a tranqüilidade que lhe vinha da certeza de conservar o seu prestígio junto ao bispo e os proventos que dele tirava.
Momentos depois, no assoalho da catedral soaram os passos cadenciados do vigário Paula. O silêncio, passageiramente roto, readquiriu a sua integridade solene.
— Pode ir cuidar da vida - disse o sacerdote para o sacristão que acompanhara Paula; - não é preciso cá.
O sacristão obedeceu e, fazendo uma profunda reverência, saiu a resmungar:
— Muito amigos são estes dois; boa bisca é um deles, conheço-o; o outro para fazer liga há de ser igual. Tramam com certeza alguma trapaça.
Os dois podres uma vez sós olharam-se, ambos sorrindo benevolamente.
— Vigário, não posso explicar a razão por que me interesso por si...
Paula sorriu maliciosamente e respondeu com uma inflexão escarninha:
— É de certo pelos meus lindos olhos.
— Quando, outro dia, aquela mulher nos seguia e você se mostrava incomodado...
— Ah! conte-me esta novidade, porque não tinha ainda reparado nisto.
— Tive desejos de pedir-lhe então uma confidência explícita, de bom amigo que visa a garantir aqui a sua posição.
— Cáspite!
— Não me julguei, porém, com direito a ela, e hoje também não peço senão explicação sobre alguns fatos.
— E quais são eles?
— Em primeiro lugar, devo dizer-lhe que ainda não há meia hora travei relações com Augusto Feitosa.
Paula perturbou-se momentaneamente, porém, fazendo um esforço supremo, conseguiu ostentar o mesmo aparente sangue-frio.
— Dou-lhe os parabéns - respondeu; - é uma excelente relação.
— O vigário pode falar assim, porque o conhece bem; pode deixar à boca render esta homenagem a Feitosa, uma vez que a sua consciência lha nega.
— Não é tanto assim...
— É o que se infere da tentativa de assassinato contra ele.
— Que é uma verdade tão provada como a sedução da rua da Palma.
— Eu estou por isto. Disse-lho logo depois das suas lamúrias ao bispo; houve porém uma diferença entre a minha revelação naquela hora e a sua neste momento: é que eu então pensei que o sr. vigário Paula era realmente inocente.
— E agora?
— Penso justamente o contrário, e não admito comparação entre mim e o sr. vigário. Eu seduzi, mas não tentei matar.
Paula, vendo-se de todo descoberto aos olhos do confidente do bispo, buscou por um lance de ousadia subjugar a sua argumentação vitoriosa, e levantando-se solenemente aproximou-se do Cristo e, colocando-lhe a mão sobre as chagas, exclamou:
— Pela última vez, juro diante de Deus que nos vê e que nos ouve: não tentei contra a vida de Augusto, nem seduzi a filha de Queiroz. Creiam-me ou não, se quiserem, mas não me torturem hipocritamente.
O sacerdote levantou-se também, e pondo as mãos nas ilhargas, demorou-se numa gargalhada soluçada; e meneando a cabeça, caminhou até junto de Paula:
— Eu juro também, pelo Deus que me ouve, e que me vê: nunca seduzi ninguém.
E riu de novo estrepitosamente.
Paula abaixou a cabeça envergonhado. Reconheceu que não podia representar bem a sua comédia de vítima, diante daquele homem frio, que sem necessidade, por um mero gracejo, profanava a imagem do Cristo, de quem ele se dizia ministro.
— Neste mesmo lugar e em hora muito mais solene, ao cair da noite, quando a escuridão já invadia este recinto, estive eu, uma alta dignidade do clero, a minha vítima e a sua mãe lacrimosas, que me lançavam em rosto o meu crime. A minha vítima estava grávida e a velha mãe, para obrigar-me a confessar o meu delito, convidou-me a pedir a Deus que se fosse verdade o meu crime, por mim tão negado, a criança nascesse cega e paralítica. Eu disse que sim.
— Peça-o com a sua mão sobre o Cristo - disse a velha mãe.
— A minha vítima estremeceu; cobriu-lhe um palor mortal as faces avermelhadas pela vergonha e pelo pranto; eu porém caminhei sereno, sem hesitar, sem pestanejar ao menos, abracei-me com o crucifixo, apertei-o de encontro ao peito e disse com voz clara:
— Juro que sou inocente e se não sou recaia sobre mim e sobre o fruto do meu suposto crime o mais tremendo castigo. A mísera moça - continuou o padre -, havendo-se levantado talvez para impedir-me que jurasse, ao ouvir as minhas primeiras palavras, deu um grito e caiu por terra desmaiada. Corri para ela e levantando-a tranqüilamente disse à autoridade que me ouvia:
— Note V. Exa.; buscaram todos os meios de perder-me, de perturbar-me, porém a justiça divina começa a justificar-me; não é sobre mim que pesa a mão de Deus é sobre elas. Já vê, meu padre, que eu conheço bem estas coisas: não valem nada para mim estes juramentos.
Paula veio muito perturbado sentar-se, e olhando súplice para o padre murmurou:
— Não sei por que razão a palavra de um desconhecido há de valer mais no seu conceito do que a de um seu colega.
— Não é a palavra; o que vale mais é a prova, o testemunho de várias pessoas. Ousará ainda você negar?
Paula olhou humildemente para o sacerdote.
— Cala-se, é, pois, verdade, e no entanto, ingênuo que eu sou, deixei-me imbair por si; julguei-o um exemplo de piedade sacerdotal.
O vigário continuou calado e cabisbaixo; a sua sorte estava definitivamente nas mãos do sacerdote, que podia desde então salvá-lo ou perdê-lo, e certo disto o hipócrita não ousava sequer erguer os olhos.
Da sua resposta, séria e verdadeira, depende a sua sorte. Feitosa veio comunicar-me que iria denunciá-lo, se a autoridade eclesiástica não o expulsasse da cidade; responda para o nosso governo: praticou o crime?
— Sim - respondeu Paula altivamente; - mas se não obtiver proteção, denunciá-lo-ei também. Não estava aqui, e, portanto, contando os pormenores do caso da rua da Palma, como revelação sua, posso perdê-lo.
O padre riu de novo prolongadamente, e batendo no ombro do vigário:
— É muito criança ainda; previna-se ou virá a perder-se. Eu só queria ouvir-lhe a confissão; não quero persegui-lo, mas avisá-lo de que estará perdido se por acaso Feitosa puder entrar no palácio. Quem tem inimigos desembaraça-se deles de qualquer modo. É preciso tomar cuidado ou está perdido.
— Eu o procurarei...
— Não basta, é preciso esmagar aqueles que o servem, a todos que podem prejudicá-lo, meu padre.
— Sim, sim, eu os encontrarei e a minha vingança será completa.
— Faz um calor diabólico...
— E esta farsa que você fez-me representar fatigou-me extraordinariamente.
— Queria ensaiá-lo.
Riram-se e afastaram-se vagarosamente da sacristia, onde o Cristo ficava com o mesmo aspecto piedoso.
O sacristão que estava no átrio esperando murmurou ao vê-los:
— Felizardos, sabem passar a vida.
Apesar da dificuldade imensa que surgiu diante de Eulália, a infeliz não perdeu a esperança de vingar-se de Paula.
A sua nova posição, degradando-a aos seus próprios olhos, mais do que diante da sociedade que a tolerava e até a favoneava, fazia-lhe vir continuamente à imaginação a imagem do seu sedutor.
Quando pela primeira vez teve de entregar nos lábios os beijos comprados e deixar que olhares libertinos devassassem-lhe as formas, pensou que ia morrer. Passou a noite a deliberar, febricitada por um pensamento monstruoso.
Mão invisível impelia-a para junto do vigário, não para pedir-lhe, mas para indenizar-se no seu sangue do aviltamento a que se via forçada.
Acordando, tirou da cintura o punhal, que nunca mais abandonara, afagou-o com o olhar como que lhe pedindo uma inspiração. Assomou-lhe então um plano monstruoso. Iria à igreja, confessar-se-ia para pedir o perdão a Deus do seu crime, e depois esperaria que o vigário viesse celebrar. Quando ele estivesse mais absorto, quando viesse descuidoso e tranqüilo distribuir a hóstia consagrada aos penitentes, ela cravar-lhe-ia o punhal uma, duas, mil vezes e no meio da geral estupefação suicidar-se-ia heroicamente.
Este pensamento dava-lhe um suave bem-estar ao espírito; o vapor de sangue, refrescava-lhe os lábios secos e despertava-lhe ardente apetite de vida, mas de vida sobrenatural, de lágrimas ou de sorrisos, de torturas ou de bem-aventurança, não importava, porque via nos golpes do punhal unificados o seu e o destino de Paula.
Começou a vestir-se absorta nesta resolução, mas, ao apertar o vestido que lhe fora dado pela dona da casa, como enguiço à lascívia dos transeuntes, o esforço como que lhe rompeu a inércia da consciência. Lembrou-se da família, e das irmãs.
A imagem de Chiquinha apareceu-lhe colocada na posição tristíssima de perdida, macilenta, mascarando com sorrisos o desespero. E, mais desgraçadas do que ela, via as irmãs menores, sendo exigidas pela libertinagem na hora em que as graças da irmã mais velha se houvessem dissolvido nas vigílias crapulosas.
Recuando espavorida diante das larvas que ela própria evocara, soluçou a infeliz:
— Não, eu não as condenarei a tal sorte; serei infame para lhes salvar a vida.
Saiu, entretanto, mas em vez de dirigir-se à catedral, encaminhou-se para a vizinhança de Meireles e aí pagou com o prêmio da perdição a tranqüilidade da família.
Uma satisfação dolorosa compensou-lhe o sacrifício da noite, e a desventurada, resignando-se à crueldade do seu fadário, resolveu-se a aceitar a sua nova posição.
— Voltou mais alegre - ponderou-lhe a companheira de casa; - lá vê que o diabo não é tão feio como se pinta.
— Já paguei a casa para a minha família e tenho fé que nunca mais lhe há de faltar nada.
— Conservando-se aqui. O nosso contrato é despesas por
minha conta e lucro dividido em três partes, duas para mim e uma para si, o mais razoável que poderia encontrar, não é verdade?
Eulália meneou afirmativamente a cabeça.
— Ora, você, mantendo-se num certo pé, pode ter pelo menos 10 mil-réis por dia, e, com os três que lhe ficam, a sua família passa um vidão.
Eulália abaixou a cabeça para esconder as lágrimas, que lhe vieram involuntariamente aos olhos.
— Depois ainda há os presentes; as noites de pândega, passageiros que não conhecem a terra. Está com a fortuna feita, se tiver juízo!
Nos dias que se seguiram, esta última exclamação da companheira repetiu-se por diversas vezes. Eulália conquistou uma série de admiradores, que lhe disputavam os sorrisos e os afagos. Tornou-se uma celebridade.
— Eu quando a convidei não foi em vão, conheço o povo com quem lido - sorria a perdida, quando Eulália vinha fielmente dividir consigo o preço da sua degradação.
Ao contrário da alegria da companheira, Eulália não se alegrava com os seus triunfos.
Só um dia na semana viam-na sorrir. Era às quintas-feiras, quando voltava do abarracamento de M., onde ia levar à honestidade da sua família o socorro que ela, chorando de vergonha, tirava à perdição.
— Você é uma doida - observava-lhe diariamente a dona da casa; - leva a torturar-se. Isto pode vir a fazer-lhe mal. Nesta vida quer-se cara alegre e coração à larga, e você pode tê-los porque é feliz.
— Parece - respondeu-lhe um dia Eulália; - mas estou certa de que nem aqui serei por muito tempo feliz.
Tinha neste dia amanhecido mais sombria do que de costume e evitava toda conversação. Alta noite fora acordada pela companheira, e estava a chorar sem saber a causa. Tinha-a afligido um pesadelo, mas nem ao menos lhe ficara dele a reminiscência; sabia apenas que sofria tanto, que não pudera conter o pranto.
— Há de ser alguma asneira, alguma dessas criançadas em que você passa os dias pensando, e que não têm valor nenhum.
— Deve ser; eu hei de distrair-me.
A promessa era apenas uma evasiva para furtar-se às consolações impudicas da companheira. Esta voz a incomodava, porque a aviltava extremamente, uma vez que não a considerava senão uma fábrica de adquirir dinheiro.
À noitinha, porém, a angústia atormentando-a demasiadamente, mergulhando-a na indiferença que muitas vezes lhe embotava de todo os movimentos nobres do coração, foi colocar-se à janela.
— Não se faça fraca, hein, Eulália! veja bem a quem manda entrar; sentido com os peraltas; siga sempre o meu exemplo - disse a companheira quase automaticamente, pelo hábito em que estava de fazer tal recomendação.
Eulália sorriu tristemente. Aquela mulher baixa, metalizada, tinha diante de si um grande prestígio: dera-lhe um meio, ignóbil mas eficaz, para salvar a honra de suas irmãs e a vida inestimável de d. Ana.
A frescura da tarde encantava-a. Uma viração forte, escapando-se do mar, vinha de esfuziada pela rua, levantando redemoinhos; a poeira, que não tinha tempo de fugir do abraço do vento, limitava-se a cabriolar, a estorcer-se, a descer e a subir, com os movimentos de uma briga de crianças.
Absorta no silêncio da rua, o olhar de Eulália ora descansava no de algum transeunte decente que a encarava insinuantemente, ora envolvia os grupos silenciosos e cabisbaixos de retirantes que passavam, levando sobre o chapeirão de couro as rações de carne do Rio Grande, branquicentas da salga, cheirando mal.
A pouco e pouco as feições da moça foram desanuviando e readquirindo o acento de resignação que nelas predominava.
A companheira veio postar-se a seu lado, elogiando-a.
— Assim é que eu gosto de vê-la, minha santa; é preciso fazer pela vida.
Eulália conservou por muito tempo o semblante calmo; a companheira tranqüila foi sentar-se na rede ao fundo e abandonou-se a longos balouços.
— Vamos ter uma boa noite.
— Parece - respondeu Eulália; - promete.
Houve um curto silêncio, durante o qual só se ouvia o ranger das cordas nos armadores da rede. Mas, de repente, Eulália, levando as mãos aos olhos e entrando precipitadamente, soltou um ai agudo, penetrante e desolador.
— O que sucedeu, meu bem, o que tem? - exclamou a companheira correndo em auxílio de Eulália.
A moça trêmula, tiritante, com o olhar esgarado, nada respondeu, e a companheira intrigada pelo imprevisto do incidente, correu até a janela.
Nada viu que lhe chamasse a atenção, e, voltando para dentro, exclamou com uma entoação maternal:
— Você está hoje com muitos nervos; não há nada de extraordinário na rua. Distraia-se; eu vou buscar água.
Quando a companheira afastou-se correndo, ouviu-se no silêncio da sala estas palavras que vinham da rua:
— Estás muito por cima, comborça.
O eco de tais palavras aumentou ainda mais a perturbação de Eulália. Sabia que elas eram apenas o prólogo de uma página violenta, e quem sabe se fatal à sua vida!
Quando a companheira voltou, Eulália estava tão trêmula que não podia levar aos lábios o copo de água.
— Feche os postigos - disse Eulália; - não quero ouvi-la nem vê-la.
A companheira dirigiu-se à rótula.
Começavam a acender o gás, e o acendedor afastava-se neste momento de junto do lampião, que ficava a poucos passos da casa.
Uma claridade viva dissipou o lusco-fusco que ensombrava o lugar e a companheira pôde ver, sob o lampião, uma mulher que olhava fixamente para a casa. Vestia uma porção de andrajos; cobriam-lhe a cabeça uns farrapos de toalha pardos de sujo, e pelos rasgões do corpinho viam-se-lhe os seios tufando uma camisa encardida. De uma estatura nobre, direita, a mulher parecia uma aparição vingadora, vomitada pela miséria.
A companheira, ao vê-la, sentiu-se por sua vez perturbada, e, vindo assustada sentar-se junto de Eulália, perguntou:
— É da tua família aquela mulher? Pelo seu olhar parece estar fervendo em ódio.
— Não me fale nela - respondeu Eulália -, deixe-a, é a minha asa negra; persegue-me, e eu tenho-lhe medo e ódio.
— Tem má catadura, é medonha, apesar de não ser feia. O que ela quererá contigo?
— É a Mundica - respondeu Eulália -, é ela!...
— Ah! - exclamou a companheira a quem Eulália havia narrado os sucessos da paróquia.
Foi fechar melhor os postigos e veio para junto de Eulália, que continuava agitada e amedrontada, e buscou distraí-la.
— Eu não lhe disse que nem mesmo nesta vida eu podia ter felicidade?
— Qual, filha, isto passa; não vale a pena pensar em coisa tão pequena.
— Até outra vista, comborça - soou lá fora a voz de Mundica -, lembranças ao vigário; nós nos havemos de tornar a ver.
Eulália resfolegou; estava livre por hoje, e o adiamento, concedido por Mundica à tortura que devia infligir-lhe, pareceu-lhe o aliviar de um peso enorme.
— Foi-se, com efeito - disse a companheira que tinha ido espreitar no xadrez da rótula; - estamos livres dela.
Eulália, porém, não chegou a acalmar-se a ponto de ficar inteiramente desassombrada. Tinha certeza de que Mundica viria provocá-la, dar lugar a alguma cena de que resultasse algum escândalo. Passou a noite a cogitar dos meios de evitar semelhante desastre e no outro dia ponderou à companheira:
— Não seria melhor que mudássemos de casa? Esta rua faz-me agora medo.
— Mudemo-nos; ainda que possamos perder alguma coisa com isto. Enquanto se guarda de cor o número da casa, vai tempo.
— Eu creio que maior transtorno será ficarmos aqui; aquela mulher...
— É urgente que nos mudemos; uma desgraça agora que íamos indo tão bem.
A mudança foi no momento resolvida. Aconselhava-a o interesse, a boa fama da casa, fama conseguida pela habilidade com que a companheira tinha conseguido viver até agora, coonestando a sua baixeza. Na vizinhança ignoravam ou fingiam ignorar qual a posição real das duas mulheres; sabiam apenas que elas não eram casadas, mas nem por isso as consideravam perdidas. As mais recatadas senhoras do quarteirão as cumprimentavam e algumas delas, em dias de necessidade, mandavam pedir-lhes dinheiro emprestado.
Mundica viria, pois, causar um grande dano à reputação das duas mulheres e cumpria à fina força evitá-lo.
Vestiram-se e saíram, com o trajo e o andar de gente honesta, cumprimentando discretamente os conhecidos, deitando esmolas nas mãos sujas dos pequenitos, que lhes vinham ao encontro, e fazendo inveja às moças que vinham espiá-las.
— Vão bem vestidas.
— E sérias.
— Parece boa gente.
— Mas não levam homem consigo.
— Talvez seja gente de fora; mulheres dos engenheiros que têm chegado.
— Têm ar.
No meio dessas aclamações da curiosidade, correram toda a rua em que moravam e dobraram afinal tomando o lado beira-mar da cidade, entrando em diversas casas, examinando-as detidamente. Sentiam-se ambas dispostas a prolongar o passeio, apesar do sol que já queimava e ser ainda manhã.
Chegadas, porém, perto do largo em frente à Sé, Eulália não quis seguir na mesma direção. Ficava muito perto do lugar em que morava a sua família, não queria vexá-la, e, mais do que isso, condená-la a amargos sofrimentos, caso d. Ana a visse.
— Minha tia já anda desconfiada da proteção que tem na casa e, se me visse assim, com certeza recusaria o pouco que dou a minhas irmãs - ponderou Eulália; - busquemos outra rua.
Tomaram a rua em frente ao palácio da presidência e seguiram por ela.
— Há de haver na rua que passa por detrás do palácio alguma casa; vamos passar por lá.
Tomaram essa direção.
Em frente ao palácio havia um grande ajuntamento de mulheres. Partia daí um sussurro intenso, e afinal alevantou-se uma vozeria enorme.
— Temos fome - gritavam , matam-nos à fome, os nossos filhos morrem de fome. Socorro!
Eulália e a companheira tentaram voltar, mas não tiveram tempo de fazê-lo. Uma mulher que estava sentada em uma das portas, levantou-se, e, correndo para elas, travou brutalmente do braço de Eulália.
— Onde está o vigário, coisa à-toa? Onde está o teu amante? Queria que ele me visse.
Mundica, que era quem falava, sacudia grosseiramente a infeliz moça, que interdita, com os olhos estatelados, nem se esforçava para libertar-se da incômoda pressão.
Tinha as faces quase sangrando. A perdição não lhe havia calejado ainda a delicadeza dos sentimentos, nem os extremos da educação; passara-lhe sobre o coração como o lodo do brejo sobre as asas das aves aquáticas, cujo verniz não as deixa manchar de todo, e basta um movimento da plumagem para tomarem à limpeza. Não havia, como Mundica, mineirado no cinismo frases obscenas e gestos canalhas, não podia, pois, responder-lhe.
Mundica, aproveitando da confusão de Eulália, levantou a mão e espalmou-a sobre as espáduas da moça, que pôde a tempo livrar as faces. Uma revolta da dignidade fez com que Eulália tentasse repelir a afronta.
Os transeuntes pararam então, formando circulo, chacoteando da luta, em que Mundica tinha superioridade. Vieram em seguida os apupos, a assuada e afinal os apitos, a galhofa e a prisão das duas contendoras, enquanto a companheira de Eulália fugia para não ser envolvida na questão e nas suas conseqüências.
— Eu não fui a provocadora, passava quieta, foi esta mulher quem me veio insultar - soluçou Eulália ao ver-se agarrada por um soldado.
— Silêncio - respondeu o agente; - se resiste à prisão, eu a levarei por mal.
À tarde ainda Eulália achava-se detida na cadeia, misturada com a escória depravada de mulheres avilanadas pela mais extremada miséria, e só à noitinha foi mandada embora.
A pouca distância da cadeia, esperava-a a companheira que se lhe dirigiu friamente.
— Eu gosto muito de si, Eulália, mas não posso continuar a morar consigo. A sua inimiga há de continuar a persegui-la, e isto é vergonha e descrédito. Procure, pois, casa para si desde amanhã.
— Desde já - respondeu Eulália - não dormirei mais na sua.
A decepção de Feitosa, ao ver levantar-se uma barreira invencível diante da sua esperança de desforra do vigário Paula, assumiu as proporções de uma alucinação.
Foi aos periódicos da capital, mas em vão; fechou-os a própria natureza da questão e sobretudo a má fama daquele em que tinham saído os primeiros artigos. Diante da autoridade civil a dificuldade foi ainda maior, reputou-se mesmo impossível qualquer procedimento legal.
O moço, convencido de que era justa a punição de Paula, não obstante os óbices legais que diante dela se levantavam, resolveu a princípio matá-lo. Era fácil. A fome fizera do homem do povo uma fera. Este já havia esquecido todas as noções e perdido todos os nobres traços morais que elevam o cearense ao grau de povo essencialmente digno. Ele já não hesitava diante das questões de honra; vendia esposa, filhas e irmãs ao primeiro preço, alijando-as depois com a facilidade com que náufragos lançam ao mar os designados pela sorte. Uma quantia avultada, pois, armaria não só um, mas cem, mil braços se tantos fossem necessários para a vingança contra Paula.
Mas uma reflexão sensata sobreveio. Sabia-se na capital qual a extensão do seu ódio contra o vigário; sabia-se mais qual a influência dos padres sobre o espírito crédulo dos sertanejos cearenses. Para que um destes levantasse mão criminosa contra um ministro de Cristo, seria necessária uma pressão invencível feita sobre o seu espírito. Embora o assassino se evadisse, era facílimo descobrir o mandante do crime.
Esta idéia fez abortar imediatamente o plano. Augusto sentia que a sua vida dependia de Irena, que não poderia viver sem ela, que não tinha mesmo o direito de torturar-se mais, sem que houvesse adquirido a certeza de que Irena não existia.
— Não te perdoarei, padre miserável, embora eu saiba ter a condenação eterna. Espaceio, mas não cedo a minha vingança.
Volveu ao seu primeiro empenho, trabalho em que viu perdidos meses, e ainda agora já em fins de março não dava o fruto ambicionado.
Uma tarde abriu-se-lhe a imaginação a uma grande esperança. Circulou pela cidade um boato, que, embora não tivesse grande alcance aos olhos de Augusto, produziu sobre si uma agradável impressão. Propalou-se que o enorme cruzeiro da praça da Sé estava a marejar água.
A nova, entrando pelas casas da cidade, pelo palácio, pelos abarracamentos, produziu, principalmente nestes, um grande alvoroço. Semelhante acontecimento não podia ser senão a profecia de que em breve estaria acabada a seca, e para os desgraçados não podia haver sobre a terra nenhum anúncio mais grato.
Este rebate dado por um milagre tão estupendo ao coração dos retirantes, esta evocação sobre-humana das suas mortas esperanças fizeram com que a população inteira dos abarracamentos se entornasse sobre a cidade. Todos queriam verificar o milagre, sentir diante dele o coração desvairar de contentamento, alucinar-se numa alegria tal, que só se poderia comparar à de um leproso que visse de repente me cair a crosta repelente, e aparecer-lhe o corpo são e robusto, o sangue a querer irromper da epiderma nova e finíssima.
Augusto, que havia calculado semelhante efeito do boato sobre os retirantes, saiu logo para tomar lugar diante do cruzeiro, ante o qual devia desfilar todo o mar desses desgraçados.
Chegando à praça, viu realizado o seu cálculo. Desdobrou-se-lhe um espetáculo de cenas indescritíveis. A fé e a sofreguidão davam ao ajuntamento enorme a voz das cascatas em época de enchente; saía dela um ruído que azoinava. Soavam cânticos em toda a praça, onde a multidão se conservava de joelhos; reinava a confusão em todas as ruas que desembocam no largo.
Mas o que chamava mais a atenção era o número incalculável de redes que passavam através da multidão, por entre alas que esta lhes abria, como se quisesse dar aos enfermos esta última consolação.
A credulidade mantinha a exaltação geral; formavam-se grupos onde havia sempre quem afirmasse que tinha visto, que era perfeitamente exato o milagre: o cruzeiro marejava água, e isto depois de tantos meses de soalheira assassina; era por força aviso do céu.
Os próprios moradores da capital mostravam-se impressionados, sem poderem explicar o acontecimento.
— É quase inacreditável...
— Mas diante do fato...
— Sim, diante de fato não há contestação possível.
— Entretanto - interveio finalmente um incrédulo que ouvia um grupo formado junto a Feitosa - um sacristão pode ser o autor do milagre.
— Como?
— Deitando água no madeiro gretado do cruzeiro; este, embebido...
Não o deixaram acabar a frase; expeliram-no a empurrões, chamando-o emissário de satanás, satanás em pessoa.
E clamavam em voz alta:
— Perdão, perdão, Senhor Deus, não vos desafronteis em vosso povo da heresia do demônio.
E cada vez mais amotinado, o grupo repetia em voz alta, com gesticulação exaltada, com soluços, com lágrimas a heresia, que foi logo, com uma rapidez elétrica, sabida por toda a gente.
Começou então uma cena apaixonada de desagravo. Todos queriam ao mesmo tempo oferecer a Deus a sua prova de fé, e ricos e mendigos principiaram a atirar ao supedâneo do cruzeiro todo o dinheiro que traziam.
Planejou-se logo uma solenidade estrepitosa de missas cantadas e de procissões em toda a cidade, durante dias, para que o Ser, que tudo sabe e sé faz o bem e o justo, se amerceasse da contrição daqueles que nada tinham dito.
A noite caiu sobre este imenso fervor religioso para que o luar desse-lhe ainda maior majestade e exaltação.
Feitosa, de pé, olhando, com uma atenção de fera esfaimada, para as pessoas que saíam da praça por uma única rua, providência que dera a polícia para evitar distúrbios, não perdia as feições de nenhuma das que passavam.
— Ela virá, decerto; eu os encontrarei ainda hoje; vou ver, felizmente, acabado o meu tormento.
Mas as horas foram passando sem que a sua esperança tivesse o menor indício de se ver realizada; e o moço começava já a desanimar. Para agravar mais o mal-estar que ele já sentia, começou a diminuir o número dos que saíam pela rua. Feitosa soube então que o povo tinha conseguido zombar das sentinelas e sair por todas as ruas.
— Oh! desgraçado que eu sou - exclamou Feitosa que, sem se poder conservar de pé, foi encostar-se a uma parede próxima.
Um retirante corpulento, vestido decentemente, com a camisa de algodão sobreposta a fralda às ceroulas do mesmo pano, estava havia mais de uma hora, em frente a Feitosa, a olhá-lo, a acompanhar-lhe todos os movimentos da fisionomia.
Quando Feitosa cambaleou e foi recostar-se à parede, este homem deu um salto para ampará-lo, mas logo afastou-se e veio ficar de novo em frente ao moço, a quem continuava a encarar com um olhar em que se lia a hesitação.
Feitosa cansou de observar e com o coração torturado, afogueado de desespero, pôs-se em caminho com o povo que se espalhava.
O retirante, que não o perdia de vista, coçou a cabeça como quem hesita e afinal acompanhou-o até junto de um lampião, sob cuja luz pôs-se diante de Feitosa.
— Vossa Mercê dá-me uma palavra? - disse o retirante.
Feitosa parou e esperou que o interlocutor se aproximasse.
— Eu sou o comboeiro Estevão, de B. V., e queria pedir a Vossa Mercê...
Ao ouvir o nome da paróquia, Augusto Feitosa desanuviou imediatamente o semblante, porque o coração readquiriu a esperança de encontrar Irena.
— Conheceu lá então o velho Monte e sua filha? - perguntou ele precipitadamente.
— Lá e aqui, meu senhor, e é por eles que eu venho pedir a Vossa Mercê...
— Fale, fale - exclamou Feitosa -, diga-me onde eles se acham.
A maneira brusca por que estas palavras foram proferidas, fizeram estremecer Estevão, que interrompeu Feitosa com uma entoação suplicante.
— Morrem à fome; o velho cego e inchado da anasarca, a filha reduzida a esqueleto, sofrem muito.
— Sim, eu imagino, tenho certeza de que devem ter sofrido muito; diga-me onde estão eles.
— Eu não venho denunciar, meu senhor, eu venho pedir perdão para os dois infelizes. Toda a gente na paróquia soube, por fim, que não foi o velho Monte quem cometeu o crime contra Vossa Mercê e não é justo que seja ele o perseguido. Perdão, meu senhor, perdão para os desgraçados!
Feitosa estava como doido. A noticia, que lhe trazia finalmente a paz ao espírito, lançava-o num estado de exaltação, que não lhe dava palavras para exprimir o que sentia. Não respondeu à suplica de Estevão; fez-lhe por sua vez o pedido que lhe pairava, havia longos meses, sobre os lábios.
— Vamos vê-los, meu amigo; já, depressa.
— E perdoá-los, não?
— E pedir-lhes perdão, - exclamou afinal Augusto Feitosa; - tenho-os torturado muito.
Estevão, que conservava na mão o chapéu, desde que se dirigira a Feitosa, enterrou-o na cabeça e disse triunfantemente:
— É por aqui, estamos lá dentro em meia hora.
— Minha santa Irena - murmurou Feitosa -, ainda tenho tempo para salvar-te.
— Decerto, há de salvá-la. Eu por um acaso fui empregado como guarda do abarracamento, há 15 dias, e encontrei-os sob um cajueiro: Irena com febre, o pai inchado pela anasarca. Corri ao abarracamento, o da Pimenta, e lá contei o que eles eram e o que padeciam. O administrador teve dó deles e mandou recolhê-los ao hospital. O velho estava a morrer e d. Irena...
— Não me diga nada sobre o seu estado - interrompeu-o Feitosa; - vamos vê-la.
Em menos de meia hora, atravessando a cidade, os dois
homens chegavam ao alto da Pimenta e aborreciam-se com o embaraço que lhes causava, ao caminhar apressado, o longo areal. Permearam, finalmente, as ruas de casas de palha e o cercado em que eram distribuídas as rações, distante apenas alguns passos do hospital.
Por comum acordo, Feitosa parou, enquanto Estevão ia ao hospital chamar Irena, para que fosse menos violento o abalo do encontro e se lhe dissipasse o temor da vingança de Augusto.
Estevão, tomando uma vela na administração, penetrou no hospital; uma sala de 40 palmos de comprimento sobre 20 de largo e em que se viam uns trinta e tantos leitos miseráveis, feitos com quatro forquilhas e envarados de bambus, sobre os quais, cobertos apenas por um cobertor de algodão escuro, jaziam os doentes.
Quando a claridade da vela alumiou o recinto fétido e asqueroso, Estevão deparou com um quadro comovente.
Numa das extremidades da sala em que estava o leito de Rogério Monte, estava estendida sobre o chão frio e imundo a mísera Irena; e, sobre o leito, estatelado, inerte, o corpo de Rogério. Estevão salvou correndo a pequena distância e inclinou-se sobre o fazendeiro.
— Morto, já está morto! - exclamou ele, que balançava o cadáver. - Infeliz velho, infeliz gente; quem sabe se ainda é tempo de salvar a filha?
Dizendo tais palavras, tomou nos braços o corpo de Irena e saiu com ele para o lugar em que deixara Feitosa.
— Está aqui ela; o pai é morto.
— Irena, minha santa amiga, perdoe-me, perdoe-me -soluçou Feitosa; - nunca mais nos separaremos.
Irena não respondeu. Queimava-a a febre intensa que lhe arrebatava os sentidos e a deixava completamente indiferente a tudo. O seu semblante, muito demudado, parecia já mascarado pela morte.
— Não há de morrer, não, minha amiga; viverá, viveremos para o nosso amor - murmurava Feitosa, cobrindo de beijos as faces da enferma; - vamos já daqui.
Poucos minutos depois, entrava pela cidade Irena, conduzida em uma rede, e ao lado dela Feitosa e Estevão.
O resto da noite passou sobre as maiores torturas e as mais doridas lágrimas que podem sofrer e derramar um coração humano. Feitosa, completamente desvairado, impaciente, febril, não deixava o médico um só momento.
Queria-o de contínuo à cabeceira de Irena e que lhe fizesse desaparecer a febre. Dar-lhe-ia o que lhe pedisse; a vida de Irena era mais que a sua vida. era a sua honra.
Ao romper do dia o médico veio comunicar a Augusto que a doente parecia estar salva; a febre fazia remissão e a fisionomia era lisonjeira.
De feito, pelas oito horas da manhã, quando Augusto, lembrado por Estevão, mandava este tratar do enterro de Rogério Monte, a fim de que o honrado fazendeiro não fosse atirado à vala comum, como os demais retirantes, o moço esteve a ponto de endoidecer.
De dentro do seu quarto vinha o eco das vozes do médico e de Irena, que lhe perguntava:
— Não estou então delirando? É verdade que eu estou acordada e que me vejo assim?
— É, minha senhora, e é preciso acalmar-se, dormir um pouco.
— E meu pai? - perguntou ela precipitadamente.
— Melhor; a moléstia é muito grave; foi necessário retirá-lo daqui para a serra... Está com o beribéri.
— Pois eu era capaz de jurar que ele...
Um soluço compungente sufocou-lhe o resto da frase e o doutor, intervindo sem hesitação, exclamou:
— Também eu pensei, mas felizmente foi apenas um acesso violento que passou... Acalme-se a senhora, porque bem sabe que seu pai não resistiria à sua perda.
Irena, com a sua docilidade natural, obedeceu ao médico e calou-se. Estava nesse estado inconsciente em que as febres violentas deixam o enfermo, estado em que parece que há uma dormência no espírito, proibindo que as sensações e os sentimentos tomem corpo e se arraiguem.
Com os olhos amortecidos, os lábios muitos secos, as faces escaveiradas, Irena ficou a olhar por muito tempo reparando na decoração singela, mas confortável, do quarto e, afinal, perguntou com interesse:
— Quem é que nos socorre?
O doutor, calmo e prevenido para responder à pergunta, disse carinhosamente:
— Pergunte ao coração se não há ninguém que os possa socorrer; que se orgulhe em servi-los.
Irena olhou admirada para o doutor, cuja fisionomia de qüinquagenário se iluminava por um sorriso acariciador.
— Temos vivido tão sós e tão abandonados, que eu não julguei poder encontrar alguém que nos socorresse.
— Eu guardarei o segredo; será o seu presente de convalescença, que deve ser breve para encontrar-se com o seu velho pai.
Irena cerrou as pálpebras depois de algum tempo, durante o qual ficou absorta a olhar para o doutor. Parecia ter adormecido, mas, de repente, levantando-se no leito, exclamou trêmula e ofegante:
— Adivinhei o seu segredo, doutor, adivinhei, e o senhor vai confirmar-mo.
O doutor sorriu benevolamente e respondeu:
— Não é possível.
— Disse-mo o coração, e disse-me mais que o meu desgraçado pai está perdido. O meu protetor é Augusto Feitosa!...
O doutor perturbou-se e não soube como responder. Irena, aproveitando a confusão, buscou sair precipitadamente, mas à porta do quarto Augusto deteve-a, exclamando de joelhos:
— Sou eu, sim, quem vem merecer de ti o perdão que não pude obter de teu pai!...
Irena recuou espavorida e foi sentar-se automaticamente no leito, muda, boquiaberta, a fitar com os olhos esgazeados o amante. Lia-se-lhe no semblante o terror profundo e invencível que a dominava e deixava-a quase inteiramente alheia ao que se passava.
— Não acreditas, não é assim? Também eu ontem pensei que sonhava ao encontrar-te, tamanhas foram a minha ventura e dor, mas a tua presença, hoje e aqui neste momento, convence-me de que não me enganei. Não me encares assim como para um fantasma dos teus delírios; olha-me bem, serenamente, sou eu, o teu amigo que te pede perdão!...
Os lábios descorados do moço tentaram beijar as mãos de Irena, mas um movimento delicado e rápido da moça furtou-as ao beijo apaixonado.
— Tens razão - soluçou Augusto -, eu lá não mereço uma caricia tua, e nem a posso pedir. O meu amor foi a tua
desgraça: as humilhações, as afrontas, a penúria em que por longo tempo viveste, foi tudo obra minha. Sei, não devia afoitamente encarar contigo, Irena! Porém julguei-me castigado pelos meus remorsos e esperei que a sinceridade do meu sofrimento fosse um título à tua piedade...
Houve uma longa pausa em que ressoaram mais alto os soluços de Augusto.
O médico saiu do quarto, cabisbaixo e comovido, e, cruzando os braços sobre os rins, pôs-se a andar de um para outro lado da sala. De quando em quando na quietação do aposento ouviam-se o retinir das ferraduras dos animais no calçamento da rua e palavras destacadas de conversas de transeuntes. Um retirante, que estava ao serviço de Feitosa, ressonava sentado no corredor.
O médico parou afinal junto de uma janela que tinha as vidraças descidas e as cortinas corridas. Duas mulheres conversavam sobre um espetáculo a que tinham assistido na praia.
— Era de cortar o coração; pobre gente! Que dor que ela sofria!
— E a família que só tinha mulheres? O que vai a pobre fazer lá no Pará? Esperanças.
— Por muito mau, sempre é melhor do que aqui; à fome não se há de morrer. Eu e o meu marido já resolvemos ir para o Rio de Janeiro; dizem que lá é um céu aberto.
— Basta estar perto do imperador; lá não hão de fazer muamba, o graúdo está vendo.
— No Pará é que não nos apanham; sei lá o que é aquilo? Ninguém fala, e depois só mandam para lá barcos velhos.
— Este de hoje e assim.
— Uns homens que estavam ali conversando disseram que o barco vai ao fundo mais dias menos dias; que não dá conta da viagem.
— Tudo desgraça...
— É a vontade de Deus.
As duas mulheres calaram-se, e o doutor voltou ao seu passeio maquinal, que para logo interrompeu indo parar à porta do quarto.
Augusto conservava-se de joelhos, com a cabeça pendida sobre a beirada do leito, e arquejando continuava a soluçar.
Irena, por sua vez, conservava-se muda, mas, ainda que na mesma posição, havia escondido nas mãos as faces, que se orvalharam de lágrimas silenciosamente.
A sua cabeleira louro-clara, muito seca e descurada agora, caía-lhe sobre os ombros, exagerando ainda mais a palidez romântica da sua epiderma. Aparecia-lhe por sob o vestido velho de chita o pé, pequeno, fino, escurecido pela poeira, mas ainda assim deixando ver as longas estrias azuis das veias. Do seu todo de mendiga exalava-se um perfume celestial de honestidade heróica, que enchia todo o aposento de um extremo recato virginal.
O médico passeou por largo tempo o olhar sobre os dois mártires. Sua alma, acostumada com as grandes dores, calejada já pelos espetáculos comoventes, acostumada a ouvir prantos desolados de orfandade e viuvez de envolta com os últimos suspiros, com o derradeiro resfolegar de pais e de esposas, vibrou não obstante com uma sensibilidade ampla e comunicativa.
— Eis o que é ser desgraçado - pensou ele; - amam-se, querem-se, e no entanto cada um teme lançar-se nos braços do outro.
Em bicos de pés avizinhou-se de Augusto, e, pondo-lhe a mão sobre o ombro, imprimiu-lhe um movimento delicado; e como Augusto levantasse para si o rosto banhado em pranto o médico mostrou-lhe com o indicador as lágrimas e a atitude de Irena.
— Eu contava com o teu perdão - exclamou Augusto, levantando-se e beijando precipitada e gulosamente as mãos da moça; - fui menos cruel que desgraçado.
Os crebros soluços de ambos concluíram a reconciliação de tão vivo quanto sincero amor.
À tarde Estevão veio comunicar a Augusto Feitosa que tudo estava pronto para o enterro do velho Rogério. O bom do comboeiro ria e chorava ao mesmo tempo. Estava contente de si porque, na sua qualidade de guarda do abarracamento esforçara-se sempre em socorrer o velho Monte e Irena; mas, quando expunha aos seus companheiros que os dois pertenciam à grandes famílias dos Montes, aqueles riam e chasqueavam, atribuindo as suas atenções a causas vis.
Hoje tinha-lhes demonstrado que não mentia, que tinha sido verdadeiro quando recomendou o velho ao respeito de todos. Isto o alegrava.
— Está muito bonito o velho com a sua roupa toda preta, a barba feita, no caixão de belbutina com galões de ouro. Tomou outra vez o seu ar fidalgo.
Mas isto mesmo causava tristeza a Estevão, porque pensava que devia ser vestido assim, com aquele ar grave e respeitoso, que o velho devia ir acompanhar Augusto e Irena como noivos e abençoá-los diante de Deus. Entretanto, no dia em que os dois se encontravam, o pobre velho baixava à terra para não mais se levantar.
Augusto depois de ouvir Estevão foi consultar com o médico sobre o que deveria fazer: se ocultar a Irena o saimento paterno ou dar ocasião a que ela o visse.
O doutor opinou que se deixasse ao acaso resolver.
À tardinha ouviram-se na rua os compassos retardados e a entoação tristíssima de uma marcha fúnebre.
Irena, que havia adormecido, acordou sobressaltada e, arregalando os seus grandes olhos azuis, cheios ainda das sombras do sono, perguntou a Augusto o que era aquilo.
O doutor, convidando Irena a levantar-se, conduziu-a até junto da janela e levantando a cortina das vidraças mostrou-lhe a triste cena que a marcha fúnebre anunciava.
Alguns homens vestidos de preto seguravam nas alças do caixão, e um bando de mulheres e de crianças acompanhavam-no. Logo por trás do modesto féretro caminhava Estevão, que conduzia dois mochos, que serviam de eça, em que de quando em quando o caixão era depositado.
Irena, ao dar com o rosto comovido de Estevão, exclamou com um entono indefinível de dor:
— Meu pai, meu desgraçado pai!
— Irena - soluçou Augusto -, é diante do cadáver de teu pai que eu venho pedir-te com o perdão, a reparação do crime. Perdoas-me?
Irena deixou-se cair sem forças nos braços de Augusto. pálida como um cadáver, e, enquanto o moço, esquecendo no egoísmo da ventura a grande dor da moça, beijava-lhe as faces arrebatadamente, lá da extremidade da rua vinham encher o silêncio da sala os compassos da marcha fúnebre.
Deixando a casa da companheira a sorte de Eulália tornou-se mais cruel e insuportável.
A princípio a infâmia da perdição compensava-se com a certeza do bem-estar da sua família vendia-se aos que passavam para comprar assim a tranqüila honestidade de suas irmãs. Havia alegria naquela miséria; aquele lodo brilhava com os reflexos da boa ação, como o brejo com as irradiações do luar.
Mundica veio mudar tal situação. Avilanada desde os tempos da paróquia, a rapariga havia na capital descido ao mais baixo e sórdido da perdição. Fazia parte da concorrência infame da vizinhança dos quartéis e aí, aguardentada, fumando, vozeando e lutando, arrastava miseravelmente a vida, passando as semanas parte na cadeia e parte na mais assombrosa dissolução. Especulando com a virgindade e a frescura das irmãs, Mundica desde logo as converteu em instrumento de ganho. Amelinha passou a andar com a recua de meninas que pediam esmolas, especialmente nos hotéis e às reuniões dos rapazes.
Tendo descido a tanta baixeza, Mundica, não tendo mais nada a perder, decidiu causar a ruína de Eulália. Aquela perversidade tinha o faro dos cães; não perdia a pista da moça; onde quer que esta se recolhesse, lá a encontrava.
Eulália foi constrangida a deixar de morar nas ruas em que podia decerto modo desmascarar a sua vergonha, e a habitar naquelas em que as palavras obscenas, as injúrias horrorosas de Mundica pudessem ser ouvidas sem escândalo dos vizinhos.
Nesta mudança a infeliz viu partido o degrau dourado da perdição. Passou de ser uma mulher recatada para ser uma coisa à-toa, conhecida da cadeia como desordeira.
Desde então o dinheiro começou a escassear-lhe, à medida que as violências à sua educação e ao seu pudor aumentavam.
A princípio freqüentavam-lhe a casa uns homens que a obrigavam a fumar, que exigiam dela risadas e frases canalhas.
Eulália obedeceu a esta nova exigência do seu aviltamento. Aprendeu a falar torpezas com o cigarro ao canto da boca, rompendo em explosões de uma lubricidade caprina.
Mas nem todos os exageros bestiais bastavam para atrair a concorrência da baixa libertinagem. Eulália tinha de sair à rua, de ir lá enguiçar com as cores desbotadas do enxoval de perdida, que lhe dera a companheira - a sua sagaz introdutora no mundo do lodo e da humilhação -, a lascívia saciada dos d. Juans reles.
Passaram assim semanas, em que dia a dia a desgraçada sentia a beleza desaparecer, o corpo emagrecer, o espírito conturbar-se-lhe, e a sede de dinheiro tornar-se vesana e insaciável à medida que as férias diminuíam.
Um dia acordou com febre; sentia os lábios secos e o hálito quente como o ar próximo a uma forja. Uma quebreira irresistível arrastava-a para o leito; disse-lhe uma vizinha com uma risada, chasqueando da sua ingenuidade:
— Você chegou à primavera; vai dar flores.
O coração torturado de Eulália sangrou; estas poucas palavras eram a sentença fatal que de uma vez para sempre a condenava. Nem mais a sórdida profissão lhe podia valer, estava definitivamente perdida.
A desolação do seu espírito começou então a agigantar-lhe mais as proporções do seu infortúnio. Não se pervertera por si, mas por suas irmãs; contava que o tempo viesse em socorro delas, que a calamidade cessasse e que lhes fosse possível a elas volverem para a terra do berço puras e imaculadas. Mas a seca, em vez de desaparecer, dobrou de intensidade, o mau estado da província longe de melhorar agravou-se. O que seria, pois, de Chiquinha e das outras?
Veio-lhe então à dolorosa meditação uma idéia. A retirada para fora da província era enorme agora. Para todas as províncias do Império retiravam-se cearenses. Iria, pois, falar com Chiquinha. expor-lhe-ia o segredo da sua existência, a origem da comodidade de que elas gozavam e aconselhá-la-ia a insistir com d. Ana para que emigrassem.
Assentada esta resolução, Eulália lançou logo mão de todos os recursos. Foi ter com a família que era a protetora aparente de d. Ana e pediu-lhe que mostrasse a esta desejos de a ver retirar-se de sua casa.
— Eu dentro em muito tempo, talvez, não possa mais pagar a pensão; estou doente, vou tratar-me e, se lhes hei de dar prejuízo, previno.
Não era preciso mais para que os supostos protetores pusessem em campo toda a sua atividade junto de d. Ana, convencendo-a de que devia partir.
Todos os boatos, que então circulavam a respeito do destino que esperava os emigrantes, foram repetidos e exagerados.
Era como sair de um inferno para entrar num paraíso. Os retirantes, ao chegar, eram recolhidos em casas de ótimas acomodações e delas só saíam empregados e ainda protegidos pelo governo. Enquanto não tinham emprego, conservavam-se nessas casas, sustentados pelo imperador, que era para a crédula gente o que nós outros chamamos o governo.
— Todos os que têm ido para fora escrevem e dão boas notícias; pelo menos lá não há fome, nem a gente tem necessidade de vender o que tem de mais santo.
— São terras de muita fartura - acrescentavam; - dizem que lá para o sul chove quase todos os dias.
D. Ana relutou por alguns dias. Era verdadeiramente cearense e sertaneja; amava com sinceridade a terra em que nasceu. A própria desgraça a que a via hoje reduzida ligava-a mais a si, estreitava-lhe a solidariedade com o seu destino. Parecia que o seu lugar era aí no meio dos horrores, dos acontecimentos descomunais que tanto já haviam pungido e que tão diretamente ameaçavam-lhe o futuro. A filha carinhosa, ao ver a mãe afetada de uma moléstia contagiosa, procede assim. Ao passo que todos evitam-lhe o hálito, fogem-lhe do contato, ela, que sente a piedade filial manter-lhe a gratidão vivaz, respira nos beijos, afronta nos apertos de mão e nos abraços estreitos o mal de que os outros se arreceiam.
Afinal d. Ana viu-se obrigada a ceder. Eulália, tendo adoecido gravemente, continuava a manter a família com o produto das suas economias, que eram poucas e, portanto, não davam à moça a confiança necessária para condescender com a sua velha tia. Insistia, portanto, junto dos supostos protetores e estes junto de d. Ana, que afinal se resignou a abandonar a província.
Era urgente que saíssem o mais depressa possível, e a velha senhora portanto não escolheu o lugar para onde ir. Pediu passagem no primeiro navio que partisse; pouco lhe importava o destino; em qualquer lugar viveriam do seu trabalho e seriam mais felizes do que então.
Eulália, que esperava ansiosa por esta resolução, foi encontrar-se com Chiquinha.
— Coragem, minha irmã - disse-lhe ela -, vão porque irei brevemente encontrá-las.
Depositou nas mãos da irmã a pequena soma que lhe restava e que devia servir para as primeiras necessidades da família na província em que chegasse.
Sentiu-se então desafogada, melhor; a honra de suas irmãs estava salva. Se por ela tinha caído sobre a memória de seu pai uma sombria mancha, esta mancha evitara outra maior.
E a mísera Eulália, voltando para o seu casebre, abençoava a sua infâmia. Passou alegremente os dias que decorreram, e só a viram triste na tarde em que Chiquinha, abraçando-a, disse-lhe em soluços.
— Amanhã partiremos; está decidida a viagem.
Pelas 11 horas da manhã, uma onda de retirantes desdobrava-se sobre a vastidão da praia afogada em sol.
Vinha dos navios ancorados uma triste melopéia cantada pelos marinheiros, que marinhavam mastros ou mantinham-se a cavalo nas vergas. Um bando de jangadas, com as velas muito bojadas, voava muito inclinado e com a velocidade dos pássaros pescadores quando se despenham sobre as presas. Misturava-se no espaço, como notas de um uníssono, o sussurro do povo, o murmúrio das ondas, o farfalhar longínquo do coqueiral a leste.
Apesar da claridade do dia e da multidão, pairava sobre a praia uma pesada atmosfera de tristeza, que exalava do lugar e das fisionomias.
O cômoro do Croatá ao lado como que diluía-se na vivíssima luz meridiana. As suas choupanas de tetos havana-escuro, muito baixas, quase roçando o solo, pareciam um cardume de socós enrufando as asas para voarem. Do outro lado a ponta do Mucuripe, entrando prolongadamente pelo mar, dava ao lugar uma aparência de deserto; tão árido é o aspecto da sua extensão pedregosa, que enruga o chão como as pústulas de um lázaro.
No meio da multidão, que tinha o mau cheiro de um monturo, ou de um grande acúmulo de andrajos, apareceu Eulália, com os vestidos sovados e já barrados pela poeira das ruas.
Junto dela veio logo postar-se uma roda de libertinos provincianos, que não faltavam a nenhuma reunião para farejar na miséria as coroas virginais esquecidas pela fome.
— É bonita - conversavam eles olhando para Eulália; -bonito porte.
— O olhar é prometedor, muito meigo, cearense.
— Mas já lhe estão a surgir através das faces...
— Se lhe parece. Queria-a como quando nasceu? Era o supra.
Eulália ouviu e desvaneceu-se a princípio com a conversa. Talvez aqueles elogios lhe dessem ocasião de pôr de parte alguma economia, e esta representava a junção em breve com as irmãs e a velha tia, cuja separação tanto lhe custava.
A palestra, porém, mudou de assunto. Tinha havido um grande movimento no seio da multidão, que se desagregou em uma porção de grupos que corriam para a grande ponte de embarque, a qual buscavam flanquear.
O grupo dos peralvilhos moveu-se também acompanhando Eulália.
No meio das alas abertas pelo ajuntamento começou a desfilar o grupo dos emigrantes, sobre o qual a própria repulsão da miséria fazia convergirem os olhares.
— E embarcam sempre naquele navio os desgraçados? - disse um dos peralvilhos.
— Pudera; a melhor política é mandá-los andar; desentupir a nossa cidade de semelhante peste.
— Não está mau modo.
— É o único; entrouxá-los e marchar.
— Mesmo porque, se houver um naufrágio, ninguém sente, e com razão, porque tanto faz que eles morram de fome como afogados; no fim é sempre morrer.
— Bravos à piedade; vem a tempo.
— Não é piedade, é indignação. Não há quem não saiba aqui o estado em que está aquele navio. Estava já para ser vendido como lenha.
— Então aquele é o patacho ...
— Ele mesmo, e, como já não prestava para nada, o governo fretou-o e responsabilizou-se por qualquer desastre que sobrevenha.
— Ah! sim, o dono é do partido que está em cima...
— E para servir um amigo mata-se mais de 200 pessoas.
— Isto é pessimismo exagerado.
— Eu aposto a cabeça em como o navio não torna ao Ceará, nem chega ao seu destino; ele não agüenta o vento que lá vai fora.
— Eu estou quase arriscando 20 mil-réis.
— Aceito-os contra 200.
— Feito.
— Feito - respondeu convencidamente o interlocutor.
Semelhante segurança não podia deixar de impressionar Eulália. A princípio buscou disfarçar a desagradável impressão que experimentou, mas, quando viu a família no meio dos emigrantes, lacrimosa, desolada, Eulália sentiu que a profecia do conversador era verdadeira e que ela estava condenada a perder para sempre as carícias da caçula e a amizade das irmãs. Esforçou-se para romper as linhas de povo colocadas diante de si, mas a massa fria, impiedosa, repeliu-a, apesar dos motivos com que ela legitimava a sua insistência em passar.
— Para fora; não empeste a gente - resmungavam-lhe; - não se encoste.
— Piedade - soluçava Eulália -, vão ali minhas irmãs e eu sei que o navio vai perder-se.
— Para trás, já lhe disse; gente como você não tem família. Perdida tem você a vergonha.
Torturada, insultada, a infeliz buscou sair. Se corresse pela praia, se tomasse uma jangada chegaria a bordo a tempo de encontrar-se com a família e poderia ainda demovê-la. Mas a saída também lhe foi por longo tempo vedada e só pôde efetuá-la quando a multidão debandou-se. Correu então pelo areal, fixando o solo movediço com a sua violenta resolução. O vento, colaborando com os seus bruscos movimentos, desdeu-lhe os nós das tranças e a sua cabeleira negra, soltando-se do sincipúcio, desgrenhou-se-lhe como um véu negro, como um pedaço das trevas da morte que começasse de envolvê-la.
Arquejante, alucinada, chegou à beira-mar e gritou para uns jangadeiros, que, muito calmos, sentados sobre os paus flutuantes da sua embarcação, comiam a rir.
— Levem-me a bordo.
— Estamos almoçando agora; só por bom preço.
— Levem-me.
— Paga cinco mil-réis?
— Chegue - exclamou Eulália -, chegue e depressa.
Meteu a mão no bolso do vestido e, desamarrando um lenço, pôs-se a contar o dinheiro. Tinha apenas oito mil-réis.
— Ainda sobram-me três - murmurou a desventurada; - bastam-me.
A jangada partiu rápida com o nado certeiro de uma cobra através da correnteza. As ondas, afofando-se em espessa espumarada, tinham o ruído semelhante ao da lâmina de aço de encontro à pedra do rebolo vertiginosamente movida.
Mas a celeridade da jangada não conseguiu compensar o tempo perdido. Quando Eulália aproximou-se do navio, já as escotilhas estavam fechadas; os saveiros, em que os retirantes tinham ido, voltavam vagarosamente, e à proa do patacho, os marinheiros, com o seu coro tristonho, que parece uma lamentação partida do mar, coro que sintetizava todas as dores da despedida, inclinavam-se e levantavam-se, em vaivéns ritmados, suspendendo a âncora.
— Pode-se falar a uma família que aí está embarcada? - perguntou Eulália, trêmula e impaciente.
— É muito tarde já; estão levantadas as escadas.
— Mas é para que ela não vá, porque não precisa ir.
— Traz ordem da comissão? - perguntou de bordo, depois de uma pequena demora, um indivíduo que parecia ser o comandante.
Eulália despenhou em soluços e o homem de bordo acrescentou.
— Sem eu nada posso fazer.
O patrão da jangada disse friamente para os companheiros:
— Aproveitemos o vento, toca para a terra.
A jangada partiu com a sua vela bojada, sussurrando extraordinariamente, e sobre os soluços de Eulália desdobrou-se, como um acompanhamento do oceano, o coro triste dos marinheiros levantando a âncora: — Oi...i! oi...i! arriba, oi...i!
De volta da excursão precipitada, Eulália trazia, de mistura com o desespero, a recaída da moléstia de que, havia alguns dias, fora atacada.
O sol influía-lhe no organismo com a energia de um veneno. Batiam-lhe as têmporas violenta e dolorosamente como o latejar de um tumor; tinha os lábios empergaminhados, ressaibando travor bilioso. Um relaxamento geral dos músculos dificultava-lhe os movimentos.
Quando a jangada varou na praia cuspindo-a de espumarada alvadia, o patrão, indo tomar Eulália nos braços para desembarcá-la, viu-lhe os pés completamente molhados, e, como a fitasse para pedir-lhe desculpa, exclamou assustado:
— Vossa Mercê está muito desfigurada; o mar fez-lhe mal.
Eulália não respondeu; levou silenciosamente a mão ao bolso para tirar o dinheiro e pagar. O patrão fitou de novo o seu semblante, em que as pálpebras entrecerradas punham um tom de tristeza indefinível.
— Vá com Deus, moça - disse o velho homem do mar -, guarde o seu dinheiro; mais perdeu Vossa Mercê. Não paga nada.
Eulália olhou admirada para o velho patrão, significou-lhe o seu agradecimento por um estreito aperto de mão e pôs-se a caminho pelo areal a fora, sob o ardor inclemente do sol.
Chegando à casa, pensou que ia morrer. As conversas, o arrastar dos chinelos das suas companheiras, o menor ruído, enfim, tomava nos seus ouvidos um volume descomunal, que a alucinava. Tinha desejos brutais de se atirar de encontro às paredes, de rolar pelo chão, gritar e dilacerar as roupas. Sentia sob as pálpebras arder-lhe uma forja inextinguível, que irradiava uma temperatura incômoda. Pôs-se a beber água com a demasia de um dromedário, e depois, desvairada, deitou-se numa rede a cantar.
— Foi forte o mar de ontem, Eulália; - exclamaram as companheiras; - a ressaca de hoje é forte.
E ela ria, sem ouvir, automaticamente, por uma ação reflexa, acompanhando a gargalhada alvar das outras.
Mas, em breve, a moléstia avassalou-a; tomou-a nas garras e imobilizou-a. Vieram-lhe bruscos calafrios, que a faziam tiritar, e a sua garrulice de doida extinguiu-se, dando lugar a um silêncio profundo, só perturbado pelo resfolegar arquejado.
Passou assim horas. As companheiras de casa, sentadas à janela, tirando de cigarros e cachimbos longas e fartas baforadas, não se impressionaram; esqueceram-na para ali com um frase vil:
— Está cozinhando.
À noite, porém, ela continuou no mesmo resfolegar de enferma, no mesmo bruto letargo; e uma das mulheres, aproximando-se da rede, teve um sobressalto.
— Credo! Parece que a Eulália aprontou-se de mais; venham vê-la.
A desgraçada ardia numa febre violenta, que a escaldava e tolhia-lhe os movimentos do corpo e da razão. Ao chamarem por ela, respondeu inconscientemente:
— Vim pedir minhas irmãs, não quero que elas partam para morrer; o navio vai ao fundo.
As outras olharam-se perplexas. A salda do navio carregado de retirantes e as palavras de Eulália explicavam a causa da moléstia. Aquelas palavras denunciavam também sentimentos que eram uma justificação do procedimento de Eulália. Embora se entregasse, como as outras, e emparceirasse com elas na prática das mais aviltantes baixezas, Eulália, durante certas horas, ficava intratável, fechava-se no seu cubículo e daí apenas saía nas horas do ganho, e então um círculo roxo marcava-lhe nas pálpebras o vestígio das lágrimas.
— Isto vai ser um inferno - disse uma das perdidas; - ela não se levanta daí tão cedo.
— É botica e dieta - ponderou outra.
— E o trato, e tudo de que um doente precisa - acrescentou a terceira; - nós não podemos com eles.
Houve um largo silêncio, durante o qual as três mulheres se olhavam como se cada uma tentasse ver na fisionomia da outra a resolução que todos hesitavam em manifestar:
— Acho melhor esperarmos até amanhã, talvez ela espaireça.
— Talvez.
— Mas pode piorar.
De novo a dificuldade de resolver surgiu diante das três mulheres, cada uma das quais como que temia revelar à outra a perversidade de que todas eram capazes.
— Eu por mim deixava-a ficar aqui; sempre é nossa companheira e nenhuma de nós está livre de uma igual.
— Este é que é o bom caminho; mas você bem sabe que há morrer e viver.
— Mas não se morre assim como um cão, sem mais nem menos.
Faltava decididamente coragem a todas para dizer qual a medida que deviam tomar, medida que logo apareceu ao juízo comum. As pausas explicavam-no suficientemente; é que nenhuma queria parecer aos olhos da outra a mais desnaturada, para que, em caso semelhante, não fosse o seu conselho de agora um argumento imperioso.
— A morte não marca tempo - disse uma delas; - vem e leva aquele cuja hora é chegada.
— E se ela morrer aqui...
— Sem médico...
— É um incômodo para a gente; fala-se tanto.
— Mas por isso não havemos de pôr na rua uma companheira que arde em febre.
Esta última reflexão fez com que as outras duas perdidas abaixassem os olhos, como se lhe tivessem surpreendido para refutar de chofre uma resolução prestes a ser emitida.
— Se ela morrer aqui - disse uma delas -, nós temos de mudar-nos; ninguém mais entrará em nossa casa; é como se fosse amaldiçoada.
— E para fazer a mudança é preciso achar quem nos queira alugar casa - disse a outra.
— Se ela morrer aqui, por causa de uma, podemos contar que vamos as três para a rua. Não havendo dinheiro, não há casa.
Este último argumento decidiu a sorte de Eulália. Ficou vencido que a infeliz enferma não podia continuar na casa. Somente faltava a cada uma das companheiras a coragem de ser a primeira em segurar em Eulália para deitá-la à rua.
Um incidente demorou por mais algum tempo o alvitre. Um grupo de homens havia parado à porta e dirigia daí frases obscenas às perdidas, e estas, correspondendo ao apelo, distraíram-se algum tempo.
Quando, porém, ficaram de novo sós, voltaram ao projeto. Eulália estava cada vez mais grave; tinha no semblante a máscara da morte e a febre parecia ter-lhe estagnado o sangue numa pasta incandescente que lhe avermelhava extraordinariamente o rosto.
— É preciso decidir - disse uma das mulheres - este despotismo de febre mata-a por força.
Olharam-se as três hesitantes, mas de repente, como se temessem arrepender-se da ação que iam praticar, exclamaram ao mesmo tempo:
— Vamos deixá-la à porta da Misericórdia.
As três mulheres começaram logo a pôr em prática a sua resolução. Duas delas, trançando os braços em cadeirinha, colocaram sobre eles a enferma, envolvida em um lençol enxovalhado e sustentada pela terceira, que a segurava pelas costas.
Puseram-se a caminho; deram um grande avanço, mas a distância a vencer era considerável e o peso que carregavam, enorme para aqueles organismos depauperados pela fome e pelas noitadas lascivas. Demais disso, o corpo de Eulália escaldava, e como o incômodo da posição e fizesse debater-se, era preciso grande esforço para contê-la.
Não obstante, as mulheres caminhavam sempre, e só paravam para revezar e descansar. Vindo de perto do largo dos Voluntários, haviam atravessado já metade da praça da Assembléia, e aí pararam um pouco, sob um lampião, a tomar fôlego.
— Tenho os braços mortos - disse uma delas.
— Eu tenho os meus que parecem uma sopa, de tão moles - disse outra.
— Mau, mau - exclamou a terceira; - se querem dar parte de fracas, não chegaremos lá.
— Não, havemos de chegar, nem que seja de madrugada.
— Descansemos bem.
Sentaram-se as três e puseram-se a fumar.
A praça rumorejava o farfalho das suas enormes árvores, lembrando um grande ajuntamento a cochichar. Era o único ruído que quebrava o silêncio profundo da cidade, mergulhada em sono. A luz dos lampiões projetava uma claridade mortiça na extensão do largo, onde aqui e ali, junto dos velhos troncos, viam-se grandes manchas negras ou amareladas. Eram retirantes que dormiam ou que, paralisados pela fome, esperavam ali a hora do perpétuo descanso.
As três mulheres continuavam a fumar indiferentes ao quadro que tinham diante dos olhos. Estavam acostumadas a ele como figuras que dele se haviam destacado e que mais tarde deviam volver a ele, como que buscavam evitá-lo.
Uma delas, porém, dirigiu o olhar para o centro do largo, fitou-o por largo tempo e depois de levar a mão aos supercílios e dobrar de atenção no observar, disse para as companheiras:
— Vamos talvez ter alhada, olhem para acolá.
As duas mulheres, depois de repararem atentamente, murmuraram com uma expressão de assombro indefinível:
— É a patrulha, não?
— Parece-me - respondeu a primeira -, e não seria mau que nos fôssemos escapando.
As três levantaram-se, mas, antes que tivessem tempo para dar um passo, a patrulha saía do largo e caminhava sobre elas.
— Nem mais um passo - disse uma das mulheres -, sangue-frio.
Os três rondantes pararam junto delas e o comandante informou-se miudamente do que faziam. Depois verificou se era exata a causa dada e, pondo a mão sobre a testa de Eulália, disse para os companheiros:
— Esta lá está arranjada, é uma brasa. Enquanto falava, o chefe trocava com os dois companheiros de patrulha olhares significativos e cada um deles fazia minucioso exame da fisionomia das perdidas.
Afastando-se delas, perguntou o chefe:
— Que me dizem das três? Bonitinhas, não acham?
— Uma delas é quera.
— Mas nós estamos em serviço, ponderou o chefe hesitando...
— Maldito serviço.
Deram mais alguns passos e as mulheres começaram a aprontar-se para seguir.
Um ruído de saias veio desafiar o respeito à disciplina manifestado pela patrulha, que sem querer estacou.
O chefe tirou a barretina e coçou a cabeça brutalmente; depois levou as mãos às ilhargas e, olhando para os outros, que sorriam, resmungou:
— Vocês vêm o que é um precipício? E assim que se perde a divisa de anspeçada.
— Quando se é visto - ponderou um dos camaradas.
— E a esta hora.
— Sim, a esta hora não é costume passar ninguém por aqui, mas por infelicidade...
— Eu não tinha medo, aqui é impossível darem por isto.
— Deveras?
— O meio do largo é escuro e, se formos para lá, veremos um gato que passe por aqui e daqui ninguém nos distinguirá lá. Vêem vocês quem está deitado sob aquela árvore? Descobre-se um vulto e nada mais.
— Coração à larga e marchar - sorriu o chefe. Voltaram a ter com as três mulheres, que já havendo endireitado Eulália sobre os braços, principiavam a caminhar. O quadro infundiu respeito à patrulha, que acompanhou-as por algum tempo silenciosa, mas afinal a animalidade dos três instrumentos do arbítrio venceu a momentânea piedade.
— Oh! lá, vocês erraram de caminho, toca para a outra banda.
— Nós vamos para a Misericórdia...
— Qual Misericórdia, nem o diabo! vocês vão é deixar essa mulher ali sob uma árvore e provar que nada fizeram.
As três a um tempo começaram a defender-se submissamente, apelando para o exame que o chefe tinha acabado de fazer. Havia nas suas vozes o eco do temor que lhes causava a prisão e do respeito de toda a província à autoridade.
O chefe lançou uma olhadela de inteligência aos camaradas, para assegurar-lhes a vitória.
— Não sei lá dessas coisas; os doutores é que, à vista da doente, poderão dizer se vocês fizeram-lhe ou não alguma coisa.
— Mas o que é que nós havíamos de fazer-lhe?
— Diante do delegado vocês provarão que nada lhe fizeram, ou se verá o que vocês fizeram. Eu o que não quero é réplicas; caminhem para acolá! - exclamou, apontando o largo.
As perdidas não ousaram arriscar a mais leve desculpa e, dando vaivéns no corpo dormente de Eulália, atravessaram a rua e penetraram na parte ensombrada da praça.
— Bem - disse o chefe -, depois que elas se desembaraçaram da carga, acompanhem-nos.
Penetraram mais no escuro do largo e aí o chefe renovou as suas perguntas, porém, com uma acentuação tão diferente, que não passou desapercebida nem ao temor das perdidas.
A ameaça tremenda para as mulheres mudou-se em uma cordialidade extrema e daí a pouco, em vez da autoridade que julgava necessário o inquérito e as suspeitas das que lhe deviam responder, no meio do crepúsculo da praça conversavam vozes amigas e condescendentes.
— E nós que não tínhamos dado pela astúcia.
— Caluda, que pode vir alguém.
Correu assim mais de uma hora; afinal as mulheres quiseram retirar-se para seguir.
— Ora, adeus - observou o chefe da patrulha; - tanto faz que ela passe a noite aqui como na porta da Santa Casa. Amanhã hão de dar-lhe alguma volta.
— É verdade - disseram os camaradas; - deixem-na estar Se ela não tiver de morrer, levanta-se fina amanhã; o ar é bom remédio.
As perdidas concordaram, e, acendendo os cigarros, despediram-se familiarmente dos soldados, dizendo-lhes a casa em que moravam.
Quanto a Eulália, ainda ao amanhecer, ardia com a febre intensa que a prostrava, no mesmo lugar em que as companheiras a haviam deixado. Estava de bruços e os vestidos, arregaçados em parte pelos movimentos bruscos, deixavam-lhe ver as meias enxovalhadas e as botinas já fortemente cambadas.
A praça, desde madrugada, enchendo-se de vozes de homens, começou a espalhar sobre a desventurada o sussurro de um mosqueiro esfaimado. Dezenas, centenas de homens passaram junto dela; alguns pararam, formaram roda e comentaram:
— Isto caiu de fome; é dessas que vivem ao deus dará - disse um.
Um mercador de café e bolachas, o qual trazia sobre a cabeça o tabuleiro e na mão direita uma lanterna apagada, parou, e, por temor de que lhe pedissem alguma coisa, contestou a causa.
— Qual fome! Gente desta tem sempre o que comer, nem que seja ração de soldado...
— Enquanto prestam.
— Mas quando já não prestam, não vestem assim; vendem os luxos às conhecidas da mesma roda. Cá para mim, isto é mona grossa.
— Também pode ser - concordou o interlocutor.
O grupo dissolveu-se, sem que ao menos um dos indivíduos se houvesse abaixado para observar as feições da infeliz.
Pelas oito horas da manhã apareceram no largo uma dezena de guardas dos abarracamentos, que, por entre baforadas de cigarro, perguntavam se não havia algum morto na praça.
A mó de retirantes indicava friamente de um e de outro lado, e os urubus como os chamavam, lá iam amarrar nos compridos paus os sórdidos cadáveres.
Dois dos urubus pararam junto a Eulália e desenlearam as cordas com que deviam amarrá-la, mas, ao tocarem-na, sentiram-na quente e repararam então que ela respirava.
— Esta ainda está aprontando o mocó; demos tempo.
Os circunstantes intervieram logo, pensando que os urubus queriam conduzir a desgraçada.
— Deixem-na, esta apenas apanhou um pifão.
— Cozinhe à vontade - disseram os urubus, que se afastaram.
Desde então Eulália ficou completamente abandonada; os transeuntes não se demoravam junto dela mais do que junto de um cão, que se debatesse envenenado.
Toda a gente que enchia o largo ficara convencida de que ali estava uma bêbada e riam do sono pesado e da imobilidade da mísera enferma.
Pelas nove horas da manhã, passando uma banda de música pela rua lateral, o povo que enchia o largo correu tumultuariamente para ver o que era. Diversas pessoas tropeçaram no corpo inerte e um retirante, dando-lhe um pontapé nas coxas, exclamou enraivecido:
— Leve-te o diabo, besta! cais aqui para atrapalhar a gente?
A banda de música passou tocando uma polca de compassos alegres. Após ela ia um pequeno caixão, dentro do qual estava um corpo de criança, um anjo, vestido de branco, com grandes laços azuis; a cabeça cingida por uma capela de flores artificiais. Acompanhando uma porção de homens e meninos de calças brancas, velas de cera acesas e os rostos dilatados de alegria.
O povo que havia corrido, embasbacado ainda diante do esplendor do saimento, comentava-o com frases piedosas:
— Vai em muito boa idade; não sofre mais.
— Não passará o que temos passado.
E outros acrescentavam ingenuamente:
— Morre tanta gente, só os comissários não.
— Estão embalsamados em carne velha e farinha podre.
A onda de povo separou-se em duas alas e todos começaram a descobrir-se respeitosamente. As mulheres e as crianças saindo das alas, vinham para a clareira sofregamente e beijavam a mão de dois sacerdotes que passavam conversando e que nem se demoravam em olhar para elas, enquanto desses lábios de fiéis partiam súplicas em coro:
— Peça a Deus por nós nas suas missas, santo padre; peça inverno nas suas orações.
Os homens, aplaudindo a prova de respeito, davam as razões.
Aqueles dois padres eram os que confessavam os moribundos; um deles, o mais moço, era mesmo um santo. Passava horas e horas na Sé e quando era preciso não se enfadava de ir até os abarracamentos, coisa que nenhum outro fazia.
— Santo homem - exclamavam em uníssono -, não há de durar muito.
Os padres caminhavam sempre, sem se deterem.
Ao dobrar a esquina, quando já o povo não os estreitava tanto, um deles perguntou ao outro:
— Então, Paula, tens-te dado mal com os meus conselhos?
— Você é mestre.
— Olha que nem o bispo é capaz de ter assim tão espontâneas saudações. Estás sendo tido por santo.
— E, nessa fama sem proveito, eu como o osso da caridade e vocês a carne da fé.
— Não sejas sôfrego; eu já te disse que te arranjava a vigararia para a cidade de... Espera mais alguns dias e continua na tua obra. Aquilo dá uns 300, livres de despesa.
— Mas a sua porcentagem?
— Afora esta, talvez; a coisa é saber levar os bichos; não olham depois a preço.
Sumiram-se, enquanto o povo, por sua vez, recolhia-se ao largo alvoroçadamente, fitando os tabuleiros gulosamente e regateavam com os mercadores as custosas migalhas.
Estava marcado para este dia, uma quinta-feira, o casamento de Irena e Feitosa.
A noiva conservara-se fria e triste durante toda a manhã. Faltava-lhe um complemento à sua felicidade: o conchego daqueles que lhe haviam enchido de carícias os primeiros anos da infância; os conselhos austeros de seu pai e os últimos beijos de Eulália no seu rosto virgem.
Quanto a seu pai, ela resiguava-se; não vinha porque a morte o proibia. Mas Eulália devia viver, devia rolar envolvida na túmida vaga da desgraça, que ululava horrores pela capital.
Feitosa fora mais agradável a Irena se tivesse adiado as núpcias para quando encontrasse a infeliz ou obtivesse plena certeza de que ela não vivia mais. A resignação diante do impossível seria então fácil, porém, assim com a dúvida, era amarga.
— Tenho eu direito de ser feliz, quando a minha desventurada amiga sofre? - perguntava a si mesma.
E acusava-se como cansa ao erro de Eulália com o vigário. Deixara-se vencer por ele, porque viu quanto a paixão desse monstro fora a princípio veemente. Se não tivesse tido tamanha prova, talvez resistisse e acabasse por vencer-se. Mas a fatal noite da horta alucinou-a, e alucinou-a porque Eulália, expondo a própria reputação, consentia em que Augusto penetrasse furtivamente dentro da residência paterna.
Cerca do meio dia Augusto entrou risonho e expansivo, e sentando-se junto de Irena pegou-lhe da mão, e, retendo-a nas suas, ficou a olhá-la absorto.
Irena baixou os olhos tristemente corando e. exalou um longo suspiro.
A modesta mobília da sala, única testemunha desta cena de amor, lembrava uma criada grave, discreta, protegendo a paixão clandestina de uma nobre castelã. Havia no recinto um recolhimento pudico, um perfume de casta segurança, um venerando acento de pudor.
— Suspiras, Irena - balbuciou Augusto; - estás triste? Duas lágrimas preguiçosas responderam à carinhosa interpelação.
— Choras?! - perguntou ele admirado. - Nem ao menos hoje colocas diante das tuas tristes recordações a imagem do nosso amor? Olha, eu também perdi minha mãe, perdi amigos, e tenho entretanto risos para ti, e hoje me sinto deveras feliz.
— Não posso - soluçou Irena; - hoje, mais do que nunca, sinto diante de mim alevantar-se a figura de Eulália para acusar-me de ingrata.
— Tu, ingrata? E ela, que, sabendo talvez qual o verdadeiro autor do crime, deixou que a desonra pairasse por tanto tempo sobre a cabeça de teu pai, ela o que será?
— Já lhe pedi que não a acuse; demais não sabemos de nada ao certo. Quanto a mim, sinto que ela não esteja aqui, para dividir consigo um pouco da minha felicidade.
Calaram-se ambos por algum tempo, ambos cabisbaixo e tristonhos. Irena, porém, ao ver demudadas as feições de Augusto, sacudiu gentilmente a sua cabeleira loura e, fitando no noivo os olhos azuis de que enxugara as lágrimas, disse-lhe sorrindo:
— Você há de procurá-la e há de encontrá-la, não é verdade? Posso descansar em si....
— Juro-te, e bem sabes que não deixei de o fazer. Se não a tens hoje aqui, é que a fatalidade impediu-me o encontrá-la.
— Quero pedir mais um favor antes de deixar o meu luto; mas você há de prometer-me já que o fará.
— Pede - disse Augusto sorrindo; - estou pronto a fazê-lo.
— O padre Paula foi um homem perverso para conosco...
Augusto estremeceu, teve ímpetos de retirar a promessa antes que Irena concluísse. Mas a acentuação da voz da moça era tão suave, o seu coração sofria tanto, que Feitosa não teve coragem de interrompê-la.
— Ofendeu-nos nas pessoas que nós mais amávamos. Matou sua mãe, Augusto, com os barulhos da paróquia; matou meu pai pelos horrores da vida que passamos.
— É um monstro - exclamou Feitosa.
— Descarregou sobre si, Augusto, um golpe traiçoeiro, e a mim feriu duas vezes roubando a honrada minha amiga e dando causa a que eu amargasse todos os rigores da miséria.
— Não há castigo bastante para tal monstro.
— Há - assentiu convencidamente a moça - Olhe, quando corrida de susto por havê-lo encontrado, eu retrai-me com meu pai e, escondida nas capoeiras da Pimenta, vigiava dia e noite para não ser vista por si; quando depois vi meu pai lançado naquele hospital imundo onde só tínhamos a proteção do bom Estevão, acudia-me de contínuo a lembrança de Paula, cuja história Estevão havia-me contado. Não tinha coragem para refletir sobre os atos de semelhante homem; a sua perversidade entontecia-me. Proferia então contra ele uma única sentença.
— E qual era ela? - perguntou precipitadamente Augusto, cujas narinas tinham a dilatação da vingança e cujo olhar brilhava com um fulgor de relâmpago.
— O perdão! - murmurou Irena; - deixá-lo para que o remorso o tome de assalto na hora de morrer.
— Não é em almas semelhantes que o remorso pode doer.
— Não importa, Augusto; parece-me que não seríamos felizes se ao ajoelhar-mo-nos diante de Deus levássemos na consciência a mancha da vingança. Perdoa-o por mim, pelos nossos próprios tormentos. Que seria de nós se após tantos sofrimentos ficasse-me um temor pelo futuro? O perdão daquele perverso será o meu descanso.
Augusto Feitosa ficou silencioso. A idéia da vingança contra Paula era uma parte da sua felicidade: cedê-la era como que mutilar a sua alegria.
— Perdoa-o, Augusto? - perguntou timidamente Irena.
Augusto Feitosa fitou os seus nos olhos azuis de Irena. A profunda melancolia que lhes amortecia o brilho tornava irresistível a súplica que neles pairava. Nunca a natureza angélica de Irena se lhe pronunciara tanto. Pareceu-lhe estar diante de uma aparição sobrenatural, de uma força invencível que, de modesta, como que se envergonhava de seu próprio poder, e procurava revogar o seu direito de impor com a humildade do pedido.
O moço deliu todo o seu ódio naquele olhar súplice. Todo o passado desapareceu diante desse instante que o amor dilatava por todo um futuro de compensação dos terminados martírios.
Apesar de tantos meses de atribulação e miséria, aquele simples olhar bastara para suprimir da memória de Augusto as grandes dores que o acabrunharam.
As maiores angústias que o haviam torturado não tinham o amargor suficiente para deixar o mais leve ressaibo na felicidade deste momento.
Apertou nas suas estreitamente as mãos de Irena e proferiu dissimulando a heroicidade do sacrifício na intenção de desassombrar o espírito da moça:
— Tu assim o queres, seja feito. Os sofrimentos que me couberam em partilha não foram tamanhos como os teus, e tu o perdoas.
No semblante de Irena assomou um clarão vivo de alegria; como que aquela alma ressuscitou inteira então para o amor e para a ventura. Todavia teve ainda uma frase sentida:
— Como seria eu feliz se pudesse hoje ver Eulália!
Pelas cinco horas da tarde o préstito do casamento passava pela frente do palácio.
Uma banda de música militar tocava uma valsa e sentados sob as janelas da casa presidencial os músicos faziam movimentos de cabeça e trocavam-se olhares marcando o compasso.
Em uma das janelas laterais estava o novo presidente, fumando um charuto a espaciar as baforadas. Dois amigos, aos lados, conversavam com gestos de uma intimidade respeitosa, de inferior para superior, de uma bajulação insinuante. Descobria-se facilmente no rosto de ambos a intenção de se fazerem notar dos transeuntes, de provar-lhes que privavam com o governo no menu e no dessert, e trocavam com ele toques de taça.
O rosto do presidente, que de vez em quando passava a mão pela barba negra, tinha o desanuviamento da alegria, do homem que vê as coisas friamente e que tem em torno de si um coro continuo a louvá-lo.
Os noivos passaram acanhados e cabisbaixos, Irena pelo braço do padrinho, Feitosa de braço dado com a madrinha; alguns convidados, vestidos de preto, formavam uma linha curva em torno deles; um bando de curiosos ia-lhes no encalço.
— Noivado - ponderou o presidente olhando para o grupo; - ainda há quem case com um tempo destes!
— E tenha sonhos de felicidade - observou um dos comensais.
— Mal seria do homem se não houvesse a esperança -reflexionou o outro.
— É o melhor dom do céu - disse o presidente tomando uma baforada longa e soprando-a no ar morosamente.
— Os conservadores, por exemplo, morreriam de despeito se não tivessem esperança de galgar breve o governo - disse um dos comensais.
— Ah! o imperador é o chefe do partido e eles contam justamente com a sua proteção.
O presidente teve um pigarro a expectorar adrede, porém os comensais não o entenderam.
— Mas agora eu creio que tão cedo Sua Majestade não se atreverá a mudar a face da política.
— Ora não! tudo é possível hoje, e a prova é que ainda não foram dissolvidas as câmaras.
O presidente consertou de novo a garganta.
— Isto não prova nada.
— Prova o poder pessoal, é o que prova; está governando o partido liberal quando a representação nacional é conservadora. Mas a fraqueza dos nossos homens...
— Está a fazer hipóteses vãs, doutor - interveio o presidente. - As coisas são como são e não como parecem. A contradição, que o senhor vê, prova a favor de Sua Majestade. Mais do que às câmaras feitas como nós sabemos, Sua Majestade considera os reclamos da opinião pela eleição direta. Eis aí explicada a mudança. O poder pessoal é um tutu de que o ministério, eu e todos quantos trabalhamos na imprensa oposicionista nos servimos; a verdade única na política de nossa terra é que Sua Majestade só quer o bem do país. Verá; não entra um conservador para a nova câmara...
Os dois comensais, que se conservavam numa curva respeitosa diante de S. Exa., resfolegaram.
— Deus o permita - disse o doutor.
— Não descreia; convença-se. O doutor não parece que há de fazer grande carreira, é muito oposicionista...
O outro comensal teve um riso de quem aprova e se alegra por ver esmagado um competidor.
— Perdão - murmurou o doutor -, eu apenas repito o que dizíamos na oposição.
— Pois eu nem me lembro de que algum dia estivéssemos em oposição ao governo de Sua Majestade.
E o presidente voltando-se de todo para fora continuou a fumar.
A banda militar acabara de tocar a valsa. Ouviam-se agora distintamente o eco das vozerias do largo da Assembléia, o trilo dos apitos e os prolongados assovios, S. Exa. parecia deleitar-se com tudo isto, com o silêncio da banda militar, dos dois comensais e o barulho da praça.
De repente, havendo relanceado o olhar para o lado da igrejinha ao fundo do palácio viu por terra uma criança.
— Que diabo fará ali aquela criança? - perguntou S. Exa.; é um povo muito mal educado este nosso.
— Uma canalha, esses retirantes. Morriam de fome no tempo dos nossos adversários, hoje morrem justamente por uma razão diametralmeate oposta.
— Mas é preciso regularizar o serviço, cumprir as minhas instruções.
— Mas o que se há de fazer? Eles pedem e não se dão por satisfeitos senão quando não podem mais andar de tão empanturrados.
— É necessário todo o cuidado - observou o presidente soltando uma baforada; - vamos muito melhor, é verdade, mas tudo quanto se puder fazer faça-se. Eu estou contente com o que se tem feito, é bom; porém, se for possível mais, não é mau.
A música passou a tocar uma polca.
Os interlocutores puseram-se a conversar sobre fornecimentos de gêneros e a utilidade em comprá-los na província para agradar o comércio...
Completamente alheios a tudo quanto viam em torno de si, os noivos tinham entrado na Sé e lá recebido das mãos do vigário da capital as bênçãos, e sentiam-se tão extraordinariamente felizes que misturavam os sorrisos e as lágrimas.
Quando saíram da igreja em direção à casa, Augusto perguntou à noiva se estava ainda triste...
— Dir-se-ia que já não me amavas esta manhã.
— Eu? - perguntou ela; e depois, abaixando muito a voz.
— Já disse que desejava ver hoje Eulália entre nós.
Voltaram pela praça da Assembléia, porque na superstição popular não devem os noivos voltar pelo caminho que foram ao templo; é sempre um agouro.
Logo que penetraram na praça, como que um véu correu-se sobre as fisionomias dos noivos. Custavam a caminhar, porque de toda a parte os assaltavam pedidos importunos de esmola. Afinal foram constrangidos a parar.
Um grande ajuntamento impedia o trânsito e, ao contrário do que se dava sempre que havia reunião de retirantes, mantinha-se um grande silêncio entre o grupo. O padrinho tomou a frente dos noivos para abrir-lhes passagem, mas quando atravessando o círculo de povo chegou ao centro, voltou de chofre para impedir que os noivos se adiantassem.
— Acho melhor tomarmos outro caminho - disse ele.
— Não - disseram, já agora vamos por aqui...
— Mas é que aí está um cadáver...
— Não faz mal, passemos.
Deram alguns passos. Dois homens haviam já amarrado os braços e pernas de um cadáver de mulher em torno de um pau e agora apertavam-lhe também o corpo. O vestuário da mulher, porém, não era o de uma retirante e por isso mesmo chamava a atenção.
Feitosa desembocara da ala mesmo em frente ao cadáver e não pôde furtar-se a lançar-lhe um olhar furtivo. Teve então um calafrio violento e tornou a olhar.
— É um sonho, por força - bradou ele; Eulália!
Irena precipitou-se sobre o cadáver e ajoelhando segurou-lhe com as mãos no rosto empastado de areia. Quis falar, mas a voz embargou-se-lhe na garganta e a infeliz caiu sem sentidos nos braços de Augusto.
Era de feito o cadáver de Eulália, que havia morrido abandonada no largo a alguns passos do palácio do governo e aos sons da música que todas as quintas e domingos ia acompanhar a digestão da presidência. A desventurada comparecia desta sorte aos esponsais de Irena.
Quando, em casa de Augusto Feitosa, despiram o cadáver, encontraram-lhe amarrado à cintura um canivete-punhal.
Feitosa abriu-o e viu na folha mordida pela ferrugem as iniciais de Paula. Tornou a fechá-lo, deitou-o no caixão de Eulália e na tarde seguinte a terra guardava para sempre todas as provas do crime do vigário Paula.
As folhas públicas desse dia traziam logo em seguida à cena dada na volta do préstito do casamento de Feitosa uma longa local em que se noticiava a nomeação do vigário Paula para a cidade de... e a local concluía assim:
"A cidade de... recebe no seu novo vigário um digno apóstolo da religião do Calvário. Prouvera a Deus que sempre a nossa fé tivesse como órgãos homens iguais: a moralidade e a caridade reinariam eternamente sobre o mundo."