Anexo:Imprimir/Uma Campanha Alegre

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Índice

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Volume I

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Volume II

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I

Junho 1871.

Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito — se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós, e vê.

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniênci a. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.

Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.

De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.


Não é uma existência, é uma expiação.

E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na economia, na moral, o País está desorganizado — e pede-se conhaque!

Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!


Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar — o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação amarga de panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina de humoristas?

Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico só há lugar para o humorismo? Esta decadência tomou-se um hábito, quase um bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios, eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam insuficientes. Contra este mundo é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça!

Achas imprudente? Achas inútil? Achas irrespeitoso? Preferias que fizéssemos um jornal político, com todas as suas inépcias e todas as suas calúnias, vasto logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga entre as mãos dos tipógrafos?

Não. Fundaríamos antes um depósito de bichas de sangrar, ou uma casa de banhos quentes. E se nos tiranizasse excessivamente o astuto demónio da prosa, então, em honrada companhia do Sr. Fernandez de los Rios, ajoujados aos líricos de Barcelona, cantaríamos, voltados para os lados da Palestina, a pátria, a e o amor! E patentearíamos aquela crença vivida, aquele arranque peninsular, com que outrora se pelejou a batalha de Aljubarrota — e hoje se fazem caixinhas de obreias!

Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, doutrinário e grave!

Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.

Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabemos, decerto, onde se não deve estar.

Catão, com Pompeu e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Ternos esta meia ciência de Catão.

De onde vimos? Para onde vamos? — Podemos apenas responder:

Vimos de onde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes.

Nesta jornada, longa ou curta, vamos sós. Não levamos bandeira, nem clarim. Pelo caminho não leremos a Nação, nem o Almanaque das Cacholetas. Vamos conversando um pouco, rindo muito.

Somos dois simples sapadores às ordens do senso comum. Por ora, no alto da colina, aparecemos só nós. O grosso do exército vem atrás. Chama-se a Justiça.


Assim vamos. E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa. Apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um sinal! As nossas bandarilhas não têm cor, nem o branco da auriflama, nem o azul da blusa. Nunca poderão tão ligeiras Farpas ferir a grande artéria social: ficarão à epiderme. Dentro continuará a correr serenamente a matéria vital — sangue azul ou sangue vermelho, dissolução de guano ou extracto de salsaparrilha.


Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.

Aqui está esta pobre Carta Constitucional que declara com ingenuidade que o País é católico e monárquico. É por isso talvez que ninguém crê na religião, e que ninguém crê na realeza! E que ninguém crê em ti, ó Carta Constitucional! Os ministros que te defendem, os jornais que te citam, os jurisconsultos que te comentam, os professores que te ensinam, as autoridades que te realizam, os padres que falam em ti à missa conventual, aqueles mesmos cuja única profissão era crer em ti, todos te renegam, e, ganhando o seu pão em teu nome, ridicularizam-te pelas mesas dos botequins!

A Carta adorada da Grã-Duquesa tem mais sucesso do que tu!

Descrê-se da religião, a que deste a honra de um parágrafo. A burguesia fez-se livre-pensadora. Tem ainda um resto de respeito maquinal pelo Todo-Poderoso, mas criva de epigramas as pretensões divinas de Jesus, e diz coisas desagradáveis ao Papa. O cepticismo faz parte do bom gosto. Nenhum ministro que se preze ousaria acreditar em S. Sebastião. A Teologia, o maior monumento do espírito humano, faz estalar de riso os cavalheiros liberais. Desprezam-se os padres e despreza-se o culto, o que não impede que a propósito de qualquer coisa se exija o juramento!

A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da consciência liberal, as burguesas enriquecidas tomaram-na sob a sua protecção: e gostam igualmente que as suas parelhas sejam vistas à porta da Marie e à porta dos Inglesinhos. Aceitam Deus como um chique.

Nos templos mesmo a religião caiu em descrédito. Ser padre não é uma convicção, é um ofício; o sacerdote crê e ora na proporção da côngrua. E como acredita mais na secretaria dos negócios eclesiásticos do que na revelação divina, trabalha nas eleições. O povo, esse, reza. E a única coisa que faz além de pagar.


A pobre realeza, que a Carta tanto honra, não é mais bem sucedida. E a perpétua escarnecida. E escarnecida pelos jornais de oposição, e pelos governos demitidos. 11 escarnecida nos teatros, onde o tipo do Rei Bobeche teve o triunfo de um panfleto. E escarnecida nas conversações dos cafés, e na maledicência do Grémio.

Segundo a Carta, a realeza é irresponsável. Mas não há partido que não lance a sua inépcia à conta da realeza. — Se não fosse o Rei! — é a desculpa invariável dos ministros que não governam, dos oradores que não falam, dos jornalistas que não escrevem, dos intrigantes que não alcançam.

A realeza é acusada por tudo: pelas despesas que faz e pela pobreza em que vive; pela sua acção e pela sua inacção; por dar bailes e por não dar bailes. O público está para com ela num estado enervado, como com um importuno a quem não lhe convém dizer: vai-te embora!

No entanto a opinião liberal continua a declarar que existe um trono. Existe para ela como um efeito de Quintiliano — como um movimento de eloquência para os discursos de grande gala!


Apesar disso, a esta política infiel aos seus princípios, vivendo num perpétuo desmentido de si mesma, desautorizada, apupada, pede ainda, a uma multidão inumerável de simples, a salvação da coisa pública. E trágico, como se se pedisse, a um palhaço de pernas quebradas, mais uma cambalhota ou mais um chiste.


O orgulho da política nacional é ser doutrinária. Ser doutrinário é ser um tanto ou quanto de todos os partidos; é ter deles por consequência o mínimo; é não ser de partido nenhum — ou ser cada um apenas do partido do seu egoísmo.

De modo que todos estes monárquicos, bem no íntimo, votariam por uma república. Todos estes republicanos terminam por concordar que é indispensável a monarquia!

Quer-se geralmente o prestígio da realeza e a majestade do poder; mas deseja-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguel e que Sua Majestade a Rainha não tenha mais que dois pares de botinas.

Chega-se a admirar Luís Blanc, mas prefere-se a tudo isso uma terra de semeadura obrigada à côngrua para o pároco e aos tantos por cento para a viação. A burguesia invejosa e desempregada fala na federação, na república federativa, na extinção do funcionalismo, na emancipação das classes operárias; mas entende que o País pode esperar por estes benefícios todos, se no entanto lhe derem a ela lugares de governadores civis ou de chefes de secretaria. Uma plebe ardente fala em beber o sangue da nobreza; mas ficaria satisfeita se a nobreza, em vez de oferecer a veia, mandasse abrir Cartaxo.

Tanto se conciliam todos! E assim que o egoísmo domina. Cada um se abaixa avidamente sobre o seu prato.

— Mas tudo se equilibra, diz a opinião constitucional, não há comoções, não há lutas!

Sim, tudo se equilibra — no desprezo, por desprezo.

Nas sociedades corrompidas a ordem chega assim às vezes a reinar.

E a ordem pelo desdém. Outros diriam pela imbecilidade!


A opinião é tão indiferente e alheia às mudanças de ministério, como as cadeiras do Governo são indiferentes a suportarem a pesada corpulência do gordo ministro A, ou a inquietação nervosa do esguio ministro B. O País ouve falar da evolução política, com a mesma distracção com que ouve falar dos negócios do Cáucaso.

Sabem, pois, qual seria o Governo útil, profícuo, necessário, neste deplorável estado do espírito público?

Aquele que o País, chamado a pronunciar-se por um plebiscito negativo, declarasse terminantemente e compactamente — que não queria. Porque então a opinião acordaria talvez, viveria, lutaria, e apareceriam dois partidos que não existem agora, e sobre os quais gira como nos seus pólos naturais a lei do aperfeiçoamento: — para um lado a Reacção, para outro a Revolução.


Até lá os poderes do Estado subsistem, tendo perdido a sua significação.

O corpo legislativo há muitos anos que não legisla Criado pela intriga, pela pressão administrativa, pela presença de quatro soldados e um senhor alferes, e pelo eleitor a 500 réis, vem apenas a ser uma assembleia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim. Às vezes procura viver; e demonstra então, em provas incessantes, a sua incapacidade orgânica para discutir, para pensar, para criar, para dirigir, para resolver a questão mais rudimentar de administração. Não sai dela uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito fino! A deputação é uma espécie de funcionalismo para quem é incapaz de qualquer função. E o emprego dos inúteis.

Por isso o parlamento é uma casa mal alumiada, onde se vai, à uma hora, conversar, escrever cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos.

O ministério, o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. E apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta. O País verifica todos os dias que alguns correios andam atrás de algumas carruagens — e fica contente.

— Lá vai um ministro! — diz-se na rua.

— Ah! vai? — exclama a burguesia. — Bem, existe a ordem!


E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro!

Pagou — já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Paga os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.

E em recompensa, dão-lhe uma farsa.

No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez

— Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam. O que apenas podemos dizer é que não é o sr. bispo de Viseu.


E não obstante, como tudo parece feliz e repousado! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério, todo encolhido, diz aos partidos — chuta! As secretarias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter, maneja sorrindo as quatro espécies. A polícia, torcendo os bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os cães vadios.

As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera... Viva a Carta!


Decerto, como tudo é congénere! Vejam a imprensa. A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os políticos.

Os políticos têm todos a mesma política:

A — quer ordem, economia e moralidade.

B — queixa-se de que não há economia nem moralidade, o que ele receia muito que venha a prejudicar a ordem.

C — diz que a ordem se não pode manter por mais tempo, porque ele nota que principia a faltar a moralidade e a economia.

D — observa que no estado em que vê a economia e a moralidade, lhe parece poder asseverar que será mantida a ordem.

Os noticiosos têm todos a mesma notícia:

A — noticia que o seu assinante, colaborador e amigo X, partiu para as Caldas da

Rainha.

B — refere que o seu amigo, colaborador e assinante que partiu para as Caldas da

Rainha, é X.

C — narra que, para as Caldas da Rainha, partiu X, seu colaborador, assinante e amigo.

D — que se esqueceu de contar oportunamente o caso, traz ao outro dia: «Querem alguns dizer que partira para as Caldas da Rainha X, o nosso amigo, assinante e colaborador. Não demos fé».


Se a imprensa política é assim harmónica na exposição da doutrina, nem sempre o é na apreciação dos factos.

Assim, por exemplo, o ministério Fulano propõe em cortes : — que, atentos os serviços da ostra, o Governo seja autorizado a declarar que se considera para com a ostra como um verdadeiro pai.

Então os jornais Fulanistas exclamam: «O Governo acaba de se declarar pai da ostra. Medida de grande alcance! E uma garantia para a ordem, um penhor solene de zelo pelos serviços públicos. Quando um Governo assim procede, pode-se dizer que ampara com mão segura o leme do Estado!»

Mas no dia imediato, por qualquer coisa, o ministério Fulano cai. Sobe o ministério Sicrano, e logo em seguida propõe em cortes: — que de ora em diante, atentas grandes vantagens para a causa pública, o Governo se declare para todos os efeitos em relação à ostra, mais que um pai, uma verdadeira mãe!

Dizem os mesmos jornais Fulanistas: «O ministério ominoso, que com mão tão incerta dirige o leme da coisa pública, declarou-se mãe da ostra. É mostrar um profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um ministério assim pratica é que vai no caminho da anarquia, e nos leva direitos ao abismo!»


Também não é igualmente harmónico o processo para julgar as pessoas.

O Sr. Fulano, feito presidente de ministros, vai à Câmara.

Ao outro dia dizem os jornais ministeriais:

«O nobre Presidente do Conselho tinha ontem, à sua entrada na Câmara, umas magníficas botas de pelica. Que admirável pelica! Só quando se tem como S. Exª um tão grande zelo pelo bem do País e uma tão alta experiência das coisas públicas, se pode encontrar uma tão boa pelica!»

Os jornais moderados, em expectativa, em meia oposição, declaram: — «Não somos aduladores do poder, dizemos-lhe em face a verdade. Conhecemos a longa experiência, os fortes dotes oratórios do Sr. Presidente do Conselho; mas, apesar do seu tacto político, S. Exª tinha simplesmente umas botas moderadas de vitela francesa».

Os jornais de oposição exclamam:

«Insensatos! Que vindes vós falar na experiência, nas virtudes cívicas do Sr.

Presidente do Conselho? S. Exª é ominoso! Não! As suas botas não são de vitela francesa, como quer uma oposição refalsada, nem de pelica fina, como quer uma maioria venal. As suas botas demonstram que caminhamos para a anarquia e são de couro de Salvaterra!»


Olhemos agora a literatura. A literatura — poesia e romance — sem ideia, sem originalidade, convencional, hipócrita, falsíssima, não exprime nada: nem a tendência colectiva da sociedade, nem o temperamento individual do escritor. Tudo em torno dela se transformou, só ela ficou imóvel. De modo que, pasmada e alheada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a compreende a ela. E como um trovador gótico, que acordasse de um sono secular numa fábrica de cerveja.

Fala do ideal, do êxtase, da febre, de Laura, de rosas, de liras, de Primaveras, de virgens pálidas — e em torno dela o mundo industrial, fabril, positivo, prático, experimental, pergunta, meio espantado, meio indignado:

— Que quer esta tonta? Que faz aqui? Emprega-se na vadiagem, levem-na à Polícia!

Ela, desatendida e desautorizada, vai todavia soltando, com grandes ares, por entre o gás e o pó do macadame, as declamações sonoras do lirismo de Lamartine e do misticismo de Chateaubriand. E gloria-se de ser nos seus costumes e nas suas obras, intransigentemente ideal. Mera questão de retórica: os poetas líricos e os cismadores idealistas tratam de se empregar nas secretarias, cultivam o bife do Áurea, são de um centro político, e usam flanela.

Em França ao menos a literatura, quando a corrupção veio, exprimiu a corrupção. No Paris da decadência, no Paris do barão Haussmann, e dos Srs. Rouher e Fialin (vulgo de Persigny), os livros detestáveis foram a expressão genuína e sincera de uma sociedade que se dissolvia. A literatura de Boulevard há-de ficar por esse motivo, e há-de ter o seu lugar na história do pensamento, assim como da decadência latina ficaram Apuleio, Petrónio e o mordente Tertuliano, cujo estilo tem cintilações ainda hoje tão vivas que parecem emanadas da podridão do moderno mundo poético.

Na corrente da literatura portuguesa nenhum movimento real se reflecte, nenhuma acção original se espelha. Como nas águas imóveis e escuras da lagoa dos mortos, apenas nela se retratam sombras. Mas são sombras que não têm as lívidas roupagens usadas no Estígio: estão de fraque e de chapéu alto — e é a única coisa que lhes dá direito a julgarem-se vivas!

A poesia fala-nos ainda de Julieta, Virgínia, Elvira — belas e interessantes criaturas no tempo em que Shakespeare se ajoelhava aos seus pés, em que Bernardim de Saint-Pierre lhes oferecia rapé da sua caixa de esmalte circundada de pérolas, em que Lamartine, embuçado na capa romântica de 1830, as passeava em gôndola nos lagos da Itália. Hoje são um ideal de museu.

E todavia, além destas mulheres, ela nada conhece no Mundo. A poesia contemporânea compõe-se assim de pequeninas sensibilidades, pequeninamente contadas por pequeninas vozes. O poeta lírico A diz-nos que Elvira lhe dera um lírio numa noite de luar! O poeta lírico B revela-nos que um desespero atroz lhe invade a alma, porque Francisca está nos braços de outro! O poeta lírico C conta-nos uma noite que passou com Eufémia, num caramanchão, olhando os astros e dizendo frases. E no meio das ocupações do nosso tempo, das questões que em roda de nós de toda a parte se erguem como temerosos pontos de interrogação, estes senhores vêm contar-nos as suas descrençazinhas ou as suas exaltaçõezinhas! No entanto operários vivem na miséria por essas trapeiras, e gente do campo vive na miséria por essas aldeias! E o Sr. Fulano e o Sr. Sicrano empregam toda a sua acção intelectual em se gabarem que apanharam boninas no prado, para as ir pôr na cuia de Elvira! Noites e noites movem-se os prelos a vapor, calandra-se o papel, esfalfam-se os tipógrafos, arrasam-se os revisores, emprega-se uma imensa quantidade de vida e de trabalho, para que o público saiba que o poeta lírico, Policarpo de tal, ama uma virgem pálida com olheiras!

E ainda se a poesia lírica se contentasse com ser de uma inutilidade lorpa... Mas ela é de um erotismo ofensivo! Há lupanares mais castos do que certos livros de versos que se chamam melancolicamente Harpelos ou Prelúdios.

Poesia lírica, poesia lírica, esconde-te nos conselhos de ministros ou nas secretarias do Estado! Não apareças ao mundo vivo. Sabes qual é o lugar que tu nele mereces? Não é o Panteão, é o Limoeiro.


A poesia individual tem um nobre alcance quando o poeta se chama Byron, Espronceda, Hugo, Lamartine, Musset. Porque então, naquelas almas, todo o século com as suas dúvidas, as suas lutas, as suas incertezas, as suas tendências, as suas contradições, se retrata. São grandes almas sonoras onde vibra em resumo toda a vida que as cerca. Estuda-se ali, como num sumário, a existência de uma época. Mas, com franqueza, que se há-de estudar na alma do Sr. João, ou na alma do Sr. Francisco? A imensa dúvida que pesa sobre a Baixa? Os tormentos ideais que agitam a Rua dos Fanqueiros?

E a maior desgraça e a maior tolice é que, por farfanteria lírica, alguns homens honestos na sua vida vêm diante do Público declarar-se perversos na sua rima!

Tomemos um exemplo, um dos mais piegas — o Sr. X. O Sr. X é um rapaz honesto, bom chefe de família, ganhando honradamente o seu pão. Merece a nossa estima.

Vejamos a sua poesia. Aí não se fala senão em amores, prazeres, delírios, orgias, virgens sacrificadas... Das seguintes coisas, uma:

Ou o Sr. X pinta a verdade quando escreve estes seus versos, e então é um devasso que dá um exemplo detestável a seus filhos, e desconsidera sua esposa... Como havemos de acreditar em tal caso na seriedade do seu carácter?

Ou o Sr. X não diz a verdade, e todos aqueles seus êxtases são rimados muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça... Neste caso como havemos de acreditar na seriedade da sua arte?

O romance, esse, é a apoteose do adultério. Nada estuda, nada explica; não pinta caracteres, não desenha temperamentos, não analisa paixões. Não tem psicologia, nem acção. Júlia pálida, casada com António gordo, atira as algemas conjugais à cabeça do esposo, e desmaia liricamente nos braços de Artur, desgrenhado e macilento. Para maior comoção do leitor sensível e para desculpa da esposa infiel, António trabalha, o que é uma vergonha burguesa, e Artur é vadio, o que é uma glória romântica. E é sobre este drama de lupanar que as mulheres honestas estão derramando as lágrimas da sua sensibilidade desde 18501 O autor, ordinariamente, tem o hábito de Sant’Iago. O editor tem a perda. O leitor tem o tédio. — Santa distribuição do trabalho!

De resto, quando um sujeito consegue ter assim escrito três romances, a consciência pública reconhece que ele tem servido a causa do progresso e dá-se-lhe a pasta da fazenda.


Deves querer que te falemos do teatro, leitor de bom senso. Mas tu tens lido por essas esquinas os cartazes, e tens visto, mal sentado, quando o gás da sala diminui, erguer-se o pano sobre farsas tão melancólicas como uma ruína, e sobre dramas tão cómicos como uma caricatura de Cham!

O teatro perdeu a sua ideia, a sua significação; perdeu até o seu fim. Vai-se ao teatro passar um pouco a noite, ver uma mulher que nos interessa, combinar um juro com o agiota, acompanhar uma senhora, ou — quando há um drama bem pungente — para rir, como se lê um necrológio para se ficar de bom humor. Não se vai assistir ao desenvolvimento de uma ideia; não se vai sequer assistir à acção de um sentimento.

Vai-se, como ao Passeio, em noites de calor, para estar. No entanto, como é necessário que, quando se ergue o pano, se movam algumas figuras e se troquem alguns diálogos — tem por isso de existir em Portugal uma literatura dramática.

A ideia que acode a todos é traduzir. E desde logo moços, que ficaram no seu tempo reprovados no exame de Francês, traduzem. Onde está vous, põem v. exª; e este esforço prodigioso de invenção está gastando em Portugal a força de uma geração literária. Mas nem sempre se pode traduzir... O público gosta de ver coisas que se pas-sem no Chiado e na Rua dos Fanqueiros; e depois, as obras francesas são para grandes companhias de actores, que pelo seu número, pelos seus recursos, pelo seu saber, deixam livre a fantasia criadora do dramaturgo. Então imita-se. Onde está Mr. Valeroy, põe-se o Conselheiro Bezerra; onde está Lyon, põe-se Arcos de Valdevez; onde está Rue Vivienne, põe-se Beco do Fala-Só. Os jornais aplaudem, o Rei preside ao espectáculo, e todo o mundo vai tomar chá com emoção.


Mas é necessário por vezes que haja obras originais. Nesse caso imita-se do mesmo modo, mas põe-se no cartaz: original. Que importa? Sabem-no apenas três ou quatro amigos. Ou faz-se deveras uma coisa original. A dificuldade não está em obter os nomes das personagens. Uma acção também se alcança: há muitas feitas — a filha per-dida e depois achada, o cofre roubado, o fidalgo arruinado, o homem do povo sublime, etc. O difícil e fazer falar esta gente Neste lance, o dramaturgo nacional tudo explora e tudo aproveita: vai, procura, tira aqui, copia ali, arranca frases dos Miseráveis, gracejos do Sr. Luís de Araújo, discursos do Sr. Fontes ou de José Estêvão, tratados de Economia política, pedaços de artigos de fundo, sermões (muitos sermões!), recorta, cirze, cose, remenda, cola aqueles pedacinhos à língua de cada personagem, salpica-os de gestos de desespero, faz esguedelhar os cabelos, ensaia músicas tristes para os finais de actos (puxando assim ao sentimento o arco do rabecão), manda levantar o pano — e repousa na imortalidade.

O tempo em que o teatro floresceu foi o tempo em que o teatro cantou Offenbach. Offenbach então triunfava; todas as famílias o decoravam; todos os realejos o moíam; todos os sinos o repicavam. Levantava-se então a hóstia ao som da canção do general Bum! A alta burguesia sobretudo é que o frequentava, e que o adoptava. E nesta simpatia geral apenas alguns dramaturgos, alguns arranjadores, acusavam o maestrino filosófico de perverter o gosto, desmoralizar a consciência, e abaixar o nível intelectual.

Nem a burguesia teve razão em o adoptar, nem os dramaturgos em o maltratarem.

Não, dramaturgos amigos, não compreendestes Offenbach! Offenbach é maior que vós todos. Ele tem uma filosofia, vós não tendes uma ideia; ele tem uma crítica, vós nem tendes uma gramática! Quem, como ele, bateu em brecha todos os preconceitos do seu tempo? Quem, como ele, com quatro compassos e duas rabecas, deixou para sempre desautorizadas velhas instituições? Quem, como ele, fez a caricatura rutilante da decadência e da mediocridade? Vós, com a vossa severidade, não tendes feito um único serviço ao bom senso, à justiça, à moral. Tendes só feito sono! E ele? o militarismo, o despotismo, a intriga, o sacerdócio venal, a baixeza cortesã, a vaidade burguesa, tudo feriu, tudo revolveu, tudo abalou num couplet fulgurante! Não, alta burguesia, não fizeste bem em o aplaudir e em o proteger. Julgaste encontrar nele um passatempo, encontraste uma condenação. A sua música é a tua caricatura. Tão mal alumiados são os teatros, tão estreita a vossa penetração, que vos não reconhecestes um por um naquela galeria ruidosa dos medíocres do tempo? Não é o Rei Bobeche a fantasmagoria cantada da vossa realeza? Não é Calchas, da Bela Helena, a mascarada pagã do vosso clero? Não é o general Bum a personificação ruidosa da vossa estratégia de salão? Não é o barão Grog a grotesca pochade da vossa diplomacia? Não é o trio da conspiração a fotografia em couplets das vossas intrigas ministeriais? Não é toda a Grã-Duquesa a charge implacável dos vossos exércitos permanentes?

Vós ristes perdidamente de todas aquelas criações facetas? Pois da vossa realeza, da vossa diplomacia, do vosso exército, das vossas intrigas, dos vossos cortesãos vos ristes. E convosco riu-se todo o mundo, clero, nobreza e povo.

Sim, Offenbach, com a tua mão espirituosa, deste nesta burguesia oficial — uma bofetada? Não! Uma palmada na pança, ao alegre compasso dos cancãs, numa gargalhada europeia!

Offenbach é uma filosofia cantada.


Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.

Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.

Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos corno uma fatalidade.

Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.

Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.

Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.

Serve-se, não quem se respeita, mas quem se vê no poder. Um governador civil dizia: — «É boa! dizem que sou sucessivamente regenerador, histórico, reformista!... Eu nunca quis ser senão — governador civil!» Este homem tinha razão, porque mudar do Sr. Fontes para o Sr. Braamcamp, não é mudar de partido; — ambos aqueles cavalheiros são monárquicos e constitucionais e católicos. A desgraça é que, se em Portugal existissem partidos republicanos, monárquicos, socialistas, aquele homem, assim como fora sucessivamente reformista, histórico e regenerador — isto é, as coisas mais iguais — seria republicano, monárquico e socialista — isto e, as coisas mais contraditórias.

A família é a primeira a desmoralizar neste sentido a consciência. — «Quem apanhou, apanhou», é a voz doméstica. O indivíduo assim rebaixado, tendo perdido a altivez da dignidade e da opinião, habitua-se a dobrar-se; dobra-se diante do agiota, do merceeiro, do criado... Dobra-se sempre; propõe injustiças e aceita-as. Extingue-se nele gradualmente a noção do justo e do injusto. Julga o favor, a protecção, a corrupção, funções naturais e aceitáveis. Não há um juiz em Portugal que não possa contar que se lhe tem pedido as coisas mais monstruosamente iníquas, com a simplicidade com que se pede o lume de um cigarro.

O homem, à maneira que perde a virilidade de carácter, perde também a individualidade de pensamento. Depois, não tendo de formar o carácter, porque ele lhe é inútil e teria a todo o momento de o vergar; — não tendo de formar uma opinião, porque lhe seria incómoda e teria a todo o momento de a calar — costuma-se a viver sem carácter e sem opinião. Deixa de frequentar as ideias, perde o amor da rectidão. Cai na ignorância e na vileza.

Não se respeitando a si, não respeita os outros: mente, atraiçoa, e se chega a medrar, é pela intriga.


As mulheres vivem nas consequências desta decadência. Pobres, precisam casar. A caça ao marido é uma instituição. Levam-se as meninas aos teatros, aos bailes, aos passeios, para as mostrar, para as lançar à busca. Faz-se com a maior simplicidade esse acto simplesmente monstruoso. Para se imporem à atenção, as meninas têm as toilettes ruidosas, os penteados fantásticos, as árias ao piano.

A sua mira é o casamento rico. Gostam do luxo, da boa mesa, das salas estofadas: um marido rico realizaria esses ideais. Mas a maior parte das vezes, o sonho cai no lajedo: e casam com um empregado a 300$000 réis por ano. Aquilo começou pelo namoro e termina pelo tédio. Vem a indiferença, o vestido sujo, a cuia despenteada, o cão de regaço. As que porventura casam ricas desenvolvem outras vontades: satisfeitas as exigências do luxo, aparecem as exigências do temperamento.

Outrora havia a religião. Mas hoje as mulheres crêem da religião o que é necessário para ser moda; ou então crêem apenas na exterioridade — novenas, festas de igreja, flores e altares — tudo o que excita os sentidos, exalta a sensibilidade, e não dá uma regra para o julgamento, nem um critério para a consciência.

A Moda é que é uma religião. A modista reina, absorve tudo, não deixa tempo para a menor ocupação ou curiosidade de espírito. Rara a mulher que lê um livro. Rara a que tem um interesse intelectual

É porventura isto desenhar, a capricho, um quadro sombrio? — Não, descrevemos a acção de uma lei geral.

No fim de tudo, as mulheres virtuosas, as mulheres dignas formam ainda na sociedade portuguesa uma maioria inviolável! Se alguma coisa podemos dizer profundamente verdadeira é — que elas valem muito mais do que nós.

Nós é que somos abomináveis com a nossa caça à herdeira. É esse, hoje, para o homem, o supremo motivo do casamento. Em que se tornou hoje a família? A Família é o desastre que sucede a um homem por ter precisado de um dote!

A grande questão é o dote. Mulher, filhos, parentes, criados, são desagradáveis consequências que se sofrem. Faltando assim o laço moral, a família vive no egoísmo.

O homem, sem respeito, dá-se à concubinagem e ao jogo. A mulher, desocupada e enfastiada, dá-se ao sentimentalismo e ao trapo. Os filhos, se os há, são educados pelos criados, enquanto não são educados pelos cafés.


— Ando aborrecido! — é o coro geral. Os espíritos estão vazios, os sentidos insatisfeitos. Gradualmente, com a vontade doente, o corpo enfraquecido, o homem só procura distrair, matar o tempo. Mas em quê? Na leitura?

Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponson du Terrail — emprestado!

Ao teatro não se pede uma ideia: querem-se vistas, fatos, mutações. O espírito tem até preguiça de compreender um enredo de comédia; prefere-se olhar, recostado, fazendo a digestão de um mau jantar, os bastidores pintados do Rabo de Satanás.

O Passeio Público é um prazer lúgubre. E uma secretaria arborizada, onde se vai estar, gravemente, em silêncio, de olhar amortecido, de braços pendentes!

Os cafés são soturnos. Meio deitados para cima das mesas, os homens tornam o café a pequenos goles, ou fumam calados. A conversação extinguiu-se. Ninguém possui ideias originais e próprias. Há quatro ou cinco frases, feitas de há muito, que se repetem. Depois boceja-se. Quatro pessoas reúnem-se: passados cinco minutos, murmuradas as trivialidades, o pensamento de cada um dos conversadores é poder-se livrar dos outros três.

Perdeu-se através de tudo isto o sentimento de cidade e de pátria. Em Portugal o cidadão desapareceu. E todo o País não é mais do que uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam.

É uma Nação talhada para a ditadura — ou para a conquista.

ADVERTENCIA

 

As paginas d’este livro são aquellas com que outr’ora concorri para as Farpas, quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que a tolice tem cabeça de loiro, decidimos farpear até a morte a alimaria pesada e temerosa. Quem era eu, que fôrça ou razão superior recebera dos deuses, para assim me estabelecer na minha terra em justiceiro destruidor de monstros?... A mocidade tem d’estas esplendidas confianças; só por amar a Verdade imagina que a possue; e, magnificamente certo da sua infallibilidade, anceia por investir contra tudo o que diverge do seu ideal, e que ella portanto considera Erro, irremissivel Erro, fada. do á exterminação. Assim foi que, chegando da Universidade com o meu Proudhon mal lido debaixo do braço, me apressei gritar na cidade em que entrava — Morte á Tolice! E desde então, á ilharga de Ramalho Ortigão, não cessei durante dois annos de arremessar farpas, uma após outra, para todos os lados onde suppunha entrever o escuro cachaço taurino. Não me recordo se acertava; sem duvida muitos ferros se embotaram nas lages; mas cada arremesso era governado por um impulso puro da intelligencia ou do coração. E assim d’esses tempos ardentes me ficara a idea d’uma campanha muito alegre, muito elevada, em que a ironia se punha radiantemente ao serviço da justiça, cada rijo golpe fazia brotar uma soberba verdade, da demolição de tudo resaltava uma educação para todos, e o cumulto do ataque apparentemente desordenado era, como os dos gregos combatendo em Platéa, dirigido por Minerva armada— quero dizer, pela Razão.

Vinte annos são passados; — e hoje releio essas paginas amarellecidas das Farpas. Que encontro n’ellas? Um riso tumultuoso, lançado estridentemente através d’uma sociedade coino seu commentario unico e critica suprema. Encontro um riso desabalado — mas escassamente uma verdade adquirida, uma conclusão de experiencia e de saber, algum resultado visivel d’essa inspiração de Minerva que eu suppunha combatendo por traz de mim, invisivel e armada d’ouro, como nos campos de Platéa. Nada que para governar entre os homens o pensamento ou a conducta merecesse ficar archivado em tomos duraveis; — unicamente um riso immenso, troando, como as tubas de Josué, em torno a cidadellas que decerto não perderam uma só pedra, porque as vejo ainda, direitas, mais altas, da côr torpe do lôdo, estirando por cima de nós a sua sombra teimosa.

Ora vale a pena recolher, perpetuar este riso, esparso outr’ora em pamphletos leves? Ha por ventura utilidade em codificar assim a gargalhada? Aos milhares de livros que atravancam o mundo con. vém ajuntar um livro mais d’onde nada sae, quando aberto, senão o rumor fugidio e remoto de risadas de ha vinte annos, tão mortas como as rosas d’então?

Penso que não. E, por determinação minha, eu deixaria estas Farpas nos breves folhetos amarellos onde o Diabo ri por traz d’um oculo, já tão raros, e cada vez mais sumidos n’essa corrente vaga chamada «dos Tempos, que providencialmente vae acarretando tudo o que se tornou inutil, folhas de lirio e folhas de louro, os homens, as suas illusões immensas, e os seus pequeninos livros. Não o consentiu porém assim, por uma tocante superstição d’amizade, o meu camarada Ramalho Ortigão. Reunindo as suas Farpas, vasta obra, es. sa, de pensamento e de saber, elle desejou que não ficassem fora do seu monumento aquellas paginas que eu compuz a seu lado, nos primeiros tempos, quando, levados na mesma santa revolta, nos abalançamos a atacar toda uma Sociedade com um punhado ligeiro de ironias douradas.

Ahi vão pois as minhas Farpas, a que eu dou agora o nome unico que as define e as justifica — Uma Campanha Alegre. Não ha ahi com effeito senão uma trasbordante alegria empenhada n’uma campanha intrepida. Todo este livro é um riso que peleja. Que peleja por aquillo que eu suppunha a Razão. Que peleja contra aquillo que eu suppunha a Tolice.

Ahi vão pois estas Farpas, na sua forma primordial, improvisada na pressa e no fragor da lide — forma desordenada e tumultuaria, em que as palavras, as exclamações, as mesmas virgulas, tudo é empurrado para ávante, ao acaso, n’um tropel clamoroso, contra a cousa detestada que urgia demolir. E todavia, tal me pareceu agora a desordem, e tão incorrigivelmente se me impõe o amor da harmonia, que não resisti por vezes a disciplinar esta turba fremente de vocabulos em correria, e a estabelecer, n’estas orações descompostas onde adjectivos se estramalhavam, pesados adverbios cahiam no fundo de reticencias inesperadas, e verbos se acavallavam sobre verbos, — alguma regra, compostura e rythmo. Mas, além d’estas depurações exteriores, procurei escrupulosamente que não se desmanchasse aquelle feitio especial das Farpas que constituiu a sua força especial, e que nem uma nota se evaporasse d’aquelle riso que outr’ora tão triumphalmente cantou, e pelo contagio da sua sinceridade accordou os risos da multidão contra a Tolice de cabeça de toiro.

Terá ainda hoje este riso vibração bastante para despertar outros risos?... As cousas que o provo. carão são já tão passadas como as de Troia. Este livro é menos uma reimpressão que uma excavação. As minhas Farpas surgem á superficie, enferrujadas, sem gume e sem brilho, como as antigas armas d’uma batalha de que ninguem sabe o nome.

Que importa? O que me encanta, n’esta solemne reedição, é sobretudo a camaradagem. Depois de ter combatido arrebatadamente ao lado de Ramalho Ortigão em folhetos fogosos que um vento levava e espalhava nas ruas, sinto felicidade e orgulho em me encontrar ainda junto do meu amigo em volumes repletos, calmos, dorès sur tranche, que vão repousar no decoro e na paz das Bibliothecas.

Paris, outubro, 1890.

E. Q.

II

Maio 1871

Há em Portugal quatro partidos: o partido histórico, o regenerador, o reformista, e o constituinte. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro par. tidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente uns contra os outros de dentro dos seus artigos de fundo. Tem-se tentado uma pacificação, uma união. Impossível! eles só possuem de comum a lama do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências de princípios que os separam? — Vejamos:

O partido regenerador é constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e lembra nos seus jornais a necessidade da economia.

O partido histórico é constitucional, imensamente monárquico, e prova irrefutavelmente a urgência da economia.

O partido constituint e é constitucional, monárquico, e dá subida atenção à economia.

O partido reformista é monárquico, é constitucional, e doidinho pela economia!

Todos quatro são católicos,

Todos quatro são centralizadores,

Todos quatro têm o mesmo afecto à ordem,

Todos quatro querem o progresso, e citam a Bélgica,

Todos quatro estimam a liberdade.

Quais são então as desinteligências? — Profundas! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos modos.

O partido histórico diz gravemente que é necessário respeitar as Liberdades Públicas. O partido regenerador nega, nega numa divergência resoluta, provando com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são — as Públicas Liberdades.

A conflagração é manifesta!


Na acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia... — Propõe um imposto.

«Caminhamos para uma ruína! — exclama o Presidente do Conselho. — O défice cresce! O País está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc...»

Mas então o partido regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!

— Como assim! — exclamam todos — mais impostos!?

E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o cheque ao ministério histórico... Zás! cai o ministério histórico!

E ao outro dia, o partido regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de

S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais — mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.

Abre a sessão parlamentar. O novo ministério regenerador vai falar.

Os senhores taquígrafos aparam as suas penas velozes. O telegrapho está vibrante de impaciencia, para communicar aos governadores civis e aos coroneis a regeneração da patria. Os senhores correios de secretaria teem os seus corceis sellados! Porque emfim o ministerio regenerador vae dizer o seu programma, e todo o mundo se assôa com alegria e esperança!

– Tem a palavra o sr, presidente do conselho. — O novo presidente: «Um ministerio defasto apoiado, apoiado! exclama a maioria historica da vespera) cahiu perante a reprovação do paiz inteiaro. Porque, senhor presidente, o paiz está esorgaanisado, é necessario restaurar o crédito. E a unica amaneira de dos salvarmos...» Murmurios. Vozes: Ouçam! ouçam!

«...É por isso que eu peço que entre já em discussão... (attenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão — o imposto que temos a honra, etc. (apoiado! apoiado!)»

E n’essa noite reune-se o centro historico, hontem no ministerio, hoje na opposição. Todos estão lugubres.

«Meus senhores, diz o presidente, com voz acava. – O paiz está perdido! O ministerio regene«rador ainda hontem subiu ao poder, e doze horas adepois já entra pelo caminho da anarchia e da oppressão propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o paiz a esta ultima desgraça! — Guerra ao imposto!»...

Não, não! com divergencias tão profundas é impossivel a conciliação dos partidos!

III

 

Maio 1871

O sr. Anthero de Quental abriu no dia 19 as conferencias domocraticas no Casino. É a primeira vez que a revolução, sob a sua for. ma scientifica, tem em Portugal a palavra. O mundo revolucionario, ou antes, na sua feição partidaria e politica, o mundo republicano, tinha-se até hoje manifestado muito indistinctamente, — por alguma voz isolada que sem écho se extinguia no silencio da opinião, ou pelas agitações, mais suspeitadas que verificadas, de especuladores e de intrigantes. As vezes meia folha de papel era distribui. da gratis, com alguns insultos aos ministros, ao rei, e a um ou outro regedor. Outras vezes apparecia um jornal, que, em tom lyrico, cantava a fraternidade e os seus encantos, dirigia apostrophes ao rochedo de Guernesey, citava o Golgotha em questões de fazenda, e voltando-se para o rei dizia-lhe: — Tu! Por vezes ainda um jornal de capa verme. de outras cores, a propósito de liberdade insultava senhoras, e, sob pretexto de ser um jornal de combate, era um jornal de difamação. Havia outros republicanos: todos os jornais na oposição se dão vagamente esse ar, falam então no suor do povo... (Imaginarão que a aristocracia não sua? Como se iludem!) O Jornal do Comércio, representante da burguesia liberal, foi algum tempo republicanos e dizia aos tiranos coisas desagradáveis que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores. O partido do Sr. Marquês de Angeja parece que também tendia para republicano; pelo menos assim o pensavam os criados do Martinho. Alguns reformistas têm dito que o sr. bispo de Viseu, bem no seu fundo — é republicano. Corre que outros chefes de partido o são também. E isto vai numa tal contaminação democrática, que o único conservador constante que nos fica — é Danton!

Tal era o partido republicano, que causava hilaridade! Por isso o espanto é grande, vendo aparecer homens que apresentam a revolução serenamente — como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia.


As conferências hão-de encontrar resistências. Em primeiro lugar o nosso público inteligente e literário, ama sobretudo o bel-esprit, a oratória, a frase. Moda peninsular. Ora as conferências pela sua natureza científica e experimental — exigem justamente o contrário dos aparatos retóricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência. As declamações têm tirado à democracia o seu carácter privativo de realidade e de ciência. Temos ouvido cantar a democracia, berrá-la, soluçá-la: é tempo de a vermos demonstrar. Deixemos no bengaleiro a nossa perpétua inclinação nacional de escutar odes — e entremos só com a tendência humana de resolver problemas.

A revolução aparece ao mundo conservador, como o cristianismo ao mundo sofista. Os solistas tinham tomado o partido de rir daqueles nazarenos. É o que faz agora o periódico a Nação, quando se trata da revolução. Não és original, ó Nação!

Tenhamos bom senso! Escutemos a revolução; e reservemo-nos a liberdade de a esmagar — depois de a ouvir.

Uma coisa que a compromete é ela falar em nome do proletário. O proletário pretende explicar-se; quer por um lado contar a sua miséria, por outro provar o seu direito. O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário. Silêncio ao pobre! gritava Lamennais em 48. Esta palavra horrorosa, que é um dobre a finados pela dignidade humana, inspira ainda as instituições. — Santo Deus! Parece que lhes dói a consciência, às instituições! Deixemos falar o proletário. Que receiam? Não temos os nossos exércitos, os nossos parlamentos, a nossa polícia? Deixemo-lo falar.


Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refutemo-lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências — se bem atentamos neste acto — reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer conferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. E, quando aqueles que falam no poder os representam mal, os operários ingleses pedem-lhes contas nos seus comícios, cobrem-nos de impropérios, e atiram-lhes com cebolas à cara. Se a vítima tenta fugir ou fazer resistência à cebola ou ao insulto, um policeman segura-o gravemente pela gola da casaca, e convida em nome da moralidade, o procurador do povo, a esperar pelos restos da injúria e da hortaliça.


Temos ainda que, actualmente, o grande carácter das conferências é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue?

Não o nega decerto o parlamento onde todos os dias ministros, maiorias e oposições, dizem que o País está desorganizado.

Não o nega decerto a imprensa, que todos os dias declara que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comércio, Gazeta, etc., passim).

Não o nega a opinião, que todos os dias exclama, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos:

— Ora! isto está podre!

Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema, e deseja, por uma propaganda nova, uma reforma social.

Sejamos lógicos. As Farpas não são o legitimismo, nem a república, nem o constitucionalismo, nem o sebastianismo. Desejam simplesmente ser a lógica e o bom senso.

Vejamos: não tem a imprensa confessado todos os dias a podridão do País e a desorganização das suas forças vivas? (Jornais políticos, passim).

Ou são sinceros, ou não. Se não são, então faltam duplamente à dignidade, porque desconsideram os outros enganando-os, e desconsideram-se a si mentindo. São perturba dores de profissão: querem lançar, de caso pensado, o cepticismo no espírito público, para o interesse da sua intriga. Pertencem portanto ao ministério público. — Se são sinceros então devem estar radiantes de alegria, porque têm essa propaganda nova que implicitamente pediam.

Não vemos nós os ministérios dissolvendo câmaras sobre câmaras, depois de lhes experimentarem um momento a inteligência — Outra, que esta não presta!?

Não vemos os partidos, em quem deve residir a consciência do Estado, derrubarem todos os dias ministérios, como um homem que num chapeleiro experimenta chapéus — Outro, que este não serve?

E vós, jornais políticos, não confessais vós todos os dias a impotência dos vossos políticos? Não vos tendes dito uns aos outros os extremos insultos? Não vos tendes destruído uns pelos outros? Apelamos para ti, leitor de bom senso. Não é verdade que o Diário Popular tem dito, dentro do sistema, que o Sr. Fontes é incapaz de organizar o  País? É. — Não é verdade que a Revolução tem provado à saciedade, dentro do sistema, que o sr. bispo de Viseu é incapaz de organizar o País? É. — Não é verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles são incapazes? E não é verdade que a Revolução e o Diário Popular têm afirmado uniformemente que o incapaz é o Sr. Braamcamp? É. Por consequência parece que estais inutilizados uns pelos outros. Se um fala verdade, todos a falam. Se um a falseia, todos a falseiam. Portanto ou tendes de aceitar a vossa condenação, ou tendes de confessar a vossa falsidade.

Qual é a conclusão? A necessidade de uma propaganda nova. É o que a imprensa está pedindo há longo tempo; é o que o Casino enfim lhe fornece! Muito feliz ainda que lhe não apareça com chuços, tocando a rebate pelas ruas, e que lhe apareça apenas com ideias, e tocando a rebate através das consciências. Todos os partidos estão pois interessados nesta propaganda. Quem fala depois do Sr. Antero de Quental? Deve ser o sr. bispo de Vizeu!

IV

Maio 1871.

O partido reformista appareceu um dia, de repente, semn se saber como, sem saber porque. Era um estafermo austero, pesado, de voz possante. Ninguem sabia bem o que aquillo queria. Alguns diziam que era o sebastianismo sob o seu aspecto constitucional; outros que era uma seita religiosa para a creação do bicho de seda. Corriam as mais desvairadas opiniões. Apresentava-se tão grave, tão triste, tão intransigente, que no Chiado affirmava-se ser um personagem da historia romana — empalha. do!

Ninguem se approximava d’elle, no meio da immensa impressão que causava nos môços de fretes. Por fim, pouco a pouco, alguns jornalistas mais curiosos fôram-se chegando, começaram a tocarthe com o dedo, a ver se era de páu. Era de carne, verdadeiro. Percebeu-se mesmo que falava. Então os mais audaciosos fizeram-lhe perguntas.

— Senhor — disseram — espalhou-se por aí que vindes restaurar o País. Ora deveis saber que um partido que traz uma missão de reconstituição deve ter um sistema, um princípio que domine toda a vida social, uma ideia sobre moral, sobre educação, sobre trabalho, etc. Assim, por exemplo, a questão religiosa é complicada. Qual é o vosso princípio nesta questão?

— Economias! — disse com voz potente o partido reformista.

Espanto geral.

— Bem! e em moral?

— Economias! — bradou.

— Viva! e em educação?

— Economias! — roncou.

— Safa! e nas questões de trabalho?

— Economias! — mugiu.

— Apre! e em questões de jurisprudência?

— Economias! — rugiu.

— Santo Deus! e em questões de literatura, de arte?

— Economias! — uivou.

Havia em torno um terror. Aquilo não dizia mais nada. Fizeram-se novas experiências. Perguntaram-lhe:

— Que horas são?

— Economias! — rouquejou.

Todo o mundo tinha os cabelos em pé. Fez-se uma nova tentativa, mais doce.

— De quem gosta mais, do papá, ou da mamã?

— Economias! — bravejou.

Um suor frio humedecia as camisas. Interrogaram-no então sobre a tabuada, sobre a questão do Oriente...

— Economias! — gania.

Foi necessário reconhecer, com mágoa, que o partido reformista não tinha ideias.

Possuía apenas uma palavra, aquela palavra que repetia sempre, a todo o propósito, sem a compreender. O partido reformista é o papagaio do Constitucionalismo.

V

 

Maio 1876.

O sr. bispo do Algarve, patriarcha, publicou uma pastoral.

Ergueu-se a este respeito um debate na camara, em que se falou consideravelmente em placet e non placet. A opinião liberal irritou-se vendo o sr. bispo do Algarve lamentar com azedume a extincção do poder temporal. A opinião liberal não ama o poder temporal, e entende que o Papa se deve occupar unicamente dos negocios do céo. A opinião liberal faz a policia do espiritualismo.

Ora affirmar que o papado pode viver exclusivamente do poder espiritual é uma patente má fé (não é o caso da opinião liberal), ou um prurido revolucionario (não é tambem o caso da honrada maioria constitucional). O que é então? Uma falta notavel de principios e de logica.

O papado podia viver sem o temporal quando a religião lhe dava o dominio em todas as consciencias, e fazia d’elle o vicariato de Deus. us.

Escusamos de citar épocas históricas. O Papa tinha então também um domínio temporal — mas como uma jóia da sua tiara, não como condição vital da sua supremacia.

Não foi por possuir Roma e mais uns pedaços de terra que Gregório VII, Urbano II,

Inocêncio III se afirmaram tão grandes: as terras, de conquista ou de doação, eram apenas a glorificação do seu pontificado. O verdadeiro império tiravam-no eles da espontaneidade da fé católica e da força da unidade.

Desde que a fé se extinguiu, que por toda a parte o Estado fez cisão com a Igreja, e que a religião de dominadora passou a consentida — o que sustenta o catolicismo e a soberania espiritual? É a soberania temporal, o reino de Roma. Se o papado perder para sempre Roma, símbolo visível da supremacia religiosa — que fica? Um vago e indefinido interesse espiritual, falando em nome da fé que ninguém possui, e da tradição de S. Pedro que ninguém já sabe em que consiste.

O catolicismo degenera assim numa espécie de protestantismo — equilibrado entre o calendário e a indiferença.

De modo que a opinião liberal, que no parlamento protestou ser católica apostólica romana, censurando a defesa do poder temporal, censura a defesa do catolicismo e a defesa da unidade. E através dos seus protestos ortodoxos mostra-se inimiga do catolicismo — por consequência inimiga do cristianismo, porque o catolicismo é a expressão mais lógica do cristianismo — por consequência inimiga da religião, porque o cristianismo é a expressão mais lógica do conceito religioso.

E aqui temos, num país católico, os ilustres senhores deputados, em pleno parlamento. fazendo profissão de ateísmo!

De resto a pastoral de S. E. R. é um documento deplorável.

Se fosse um protesto católico, a condenação pura e simples da filosofia e da razão, uma pequena encíclica para uso nacional, uma defesa do temporal intransigivelmente posta — aplaudiríamos a pastoral. Seria um documento lógico.

Mas não! a pastoral é uma espécie de artigo de fundo molhado em água benta, o que quer que seja de beato e de lacrimoso, panfleto de sacristia sem critério, sem lógica, sem ciência, sem ortodoxia, com um cheiro a opa e a feno seco, começando por dirigir apóstrofes à arca de Noé e terminando por pedir esmolas para o Papa.

Esmolas! Esmolas! O papado quando tinha Roma, apresentava o estranho caso de um estado fundado unicamente sobre a mendicidade. Roma vivia das esmolas do

O sr. bispo do Algarve, patriarca, publicou uma pastoral.

Mundo. Papa, cardeais, clero e populaça eram todos mendigos de profissão.

Mas hoje o Papa não tem Roma, e as esmolas continuam a tomar o caminho de

Roma!

O caminho de Roma? Quem sabe?

Aí estão os jornais espanhóis que declaram que a subvenção católica para o Papa não é mais que unia inscrição disfarçada para o legitimismo; e que todos esses dinheiros, que os fiéis imaginam que vão tomar mais chorumenta a terrina papal, vão simplesmente ser empregados em comprar balas e pólvora para a insurreição da

Navarra.

VI

Maio 1871.

A opinião tem pela Câmara dos Deputados um sentimento unânime, e unanimemente declarado: o tédio.

Diz-se mal da Câmara por toda a parte. Os jornais mais sérios falam constantemente na sua improdutividade. Aparecem contra ela panfletos satíricos. Ela é geralmente considerada como um sórdido covil de intrigas. Se se pergunta:

— Que houve hoje na Câmara?

— Uma farsa — respondem uns.

— Uma feira — respondem outros.

Os jornais políticos vêm cheios destas fórmulas: «A Câmara ontem deu um espectáculo triste para quem preza os verdadeiros princípios... «A Câmara está oferecendo a prova da sua falta de independência...» «A Câmara salta por cima dos princípios mais rudimentares de administração».

— O parlamento é uma vergonha — diz-se nos cafés.

— Vamos aos touros! — exclama-se nas galerias (textual).

— Amanhã há escândalo! — murmura-se na véspera das sessões.

Fazem-se-lhe epigramas, põem-se-lhe alcunhas. Os folhetins escarnecem-na; os jornais de notícias contam com uma singeleza dramática: «Ontem a sessão passou-se em injúrias pessoais». Um grande escritor, que é também um grande carácter, chamou-lhe:

«Lupanar!» O dito julgado justo, e coberto de aplausos, é sempre citado.

De que provém este desdém geral? De um surdo fermento de hostilidade que haja entre nós contra os grandes corpos do Estado? Da convicção nascida de uma experiência diária?

Tu, leitor de bom senso e de boa-fé, que não és deputado, e te sentas na galeria, ou lês as sessões no jornal, responde tu, nosso amigo e confidente!

A opinião é legítima e fundada em experiência. A Câmara (tomemos a actual, para exemplo) não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem patriotismo, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade. Isto não quer dizer que isoladamente, indivíduo por indivíduo, se não encontrem estas qualidades com um relevo poderoso; seria ridículo negar a erudição do Sr. Latino, a honestidade do Sr.

Rodrigues de Freitas, etc., etc. O que se quer dizer, é que, como corpo constituído, sentada nas suas cadeiras, com o seu presidente, a sua campainha, o seu copo de água com açúcar, e os seus contínuos — a Câmara tem a falta absoluta de qualidades que a ilustrariam, e a abundância de defeitos que a desonram.

A Câmara não tem princípios. É monárquica, e corta a lista civil, dando toda a latitude ao Rei na política, mas reduzindo-lha no orçamento. É católica, e mostra-se hostil à defesa do poder temporal, o que, por uma dedução lógica, é mostrar-se simpática à condenação do catolicismo. Dá, alternadamente, maioria a todos os partidos.

E só serve as ambições de chefes, que a exploram e que a desprezam.

A Câmara não tem ideias. Diante de um país desorganizado de um extremo ao outro, que faz? Discute a questão das ostras. Não apresenta uma lei, um regulamento, uma reforma, um projecto. Durante um mês inteiro discute se o Sr. Soares Franco deve ter o comando da Armada, ou se o não deve ter. O ministro declara que sim — «porque o comando da Armada é de tradição de três séculos». Este princípio do Governo, logi-camente entendido, obriga o ministério a levantar a forca, reconstruir os conventos, ressuscitar Afonso Henriques, ir imediatamente descobrir outra vez o caminho da índia

— e ficar sempre a descobri-lo!

A Câmara não tem justiça. Se alguma coisa decide, na sua pequenina área de alterações pequeninas, não é no terreno da justiça pública, é no do interesse político.

Quem ignora os exemplos? A sua enumeração fatigaria Homero.

A Câmara não tem consciência. O seu critério, a sua moral, é a intriga. A intriga política, a intriga partidária. A maioria apoiava o sr. marquês de Ávila; a maioria abandona-o. Porquê? Era ontem apto, é hoje inepto? É que o sr. marquês de Ávila se nega à discussão do orçamento. Nesse caso para que lhe dão a lei de meios até Julho? É um imbróglio conduzido por uma intriga. Acham-no tão impróprio que se afastam dele, mas dão-lhe o poder por mais dois meses.

A Câmara não tem patriotismo. É necessário prová-lo? Que lhe importa a ela o

País, a sua organização, o seu progresso? Que faz por ele? Com que instituições o dota?

Que melhoramentos lhe dá? Que interesse tem pela instrução, pela indústria, pela agricultura? A Câmara intriga e vocifera! De resto é um baralho de cartas com que chefes hábeis fazem uma partida de voltarete. E o País é quem leva os codilhos.

A Câmara não tem independência. Vede as ameaças de dissolução. Ainda a dissolução não aponta ao longe, já a Câmara está encolhida debaixo dos bancos!

A Câmara não tem ciência. Nem administração, nem economia, nem direito público, nem direito constitucional, nem história, nem gramática: a Câmara nada sabe.

O Sr. Dias Ferreira, um professor consagrado, o Sr. Sampaio, um jornalista ilustre, e um ou dois magistrados que são deputados, poderiam, melhor que nós, vir contar nas

Farpas os discursos grotescos proferidos no parlamento em questões de doutrina.

A Câmara não tem eloquência. Queres ver, leitor de bom senso, um modelo de discurso? Foi o sr. deputado... Para que dizer o nome? A nossa questão não é de nomes,

é de factos. Vejam o Diário das Câmaras. O orador começa por um exórdio. Conta como Platão dormia a sesta, e o que faziam as abelhas do Himeto. Depois diz que desejava ter os dotes de suavidade e brandura para rastrear Platão. Pausa. Entra em seguida em matéria. Principia por declarar que já vai longe para ele o período da adolescência, mas que é natural que por lá lhe ficassem antigas fervenças, restos daqueles fluxos seivosos (textual). Depois explica como era o acordo que reinava entre os deuses de Homero: «Aquiles empunhava o gládio, Ájax brandia o ferro!» Passa em seguida aos trabalhos de Hércules. Narra durante dez minutos a fábula de Oxilus. Fala na Eólia, na Etólia, e no Peloponeso. Menciona Júpiter, no Olimpo, sentado no seu trono coruscante (textual). Trata dos sacerdotes egípcios, dos ídolos, do cão Anúbis, e da esfinge, que segundo ele, era um deus com cabeça de gato (parece incrível mas é textual!) Logo adiante cita as portas da Aurora. A propósito da sua alma brada:

«Malheur à qui sonda les abimes de l’âme!»

Depois ocupa-se da maneira de conceber das aranhas. Aponta por essa ocasião

Saturno, um pouco mais abaixo Isócrates. Alude às hidras. Desenrola uma história imensa das Confissões de Santo Agostinho. Discursa ainda sobre Sião e Babilónia, e senta-se! Tudo isto a propósito do sr. marquês de Ávila e da comissão de fazenda.

A Câmara não tem seriedade. Quem não viu uma sessão? O sussurro, o barulho, a confusão são perpétuos. Vota-se sem saber o que se discutiu, e continua-se a conversar.

As questões pessoais estão constantemente na ordem do dia. Voam os desmentidos.

Fervilham as injúrias. Nos momentos mais serenos é a graçola e a troça. E das galerias o público assiste, ora indignado ora divertido, ao espectáculo sem igual.

Achaes estas paginas crueis? Pensaes que não nos dóe tanto escrevel-as como vos doe o lêl-as? Pensaes que é com espirito alegre, e a penna ao vento, que levantamos um por um, deante do publico, os farrapos da vossa decadencia? — Appellamos para vós mesmos. Se algum de vós, na sua consciencia, acha que não dizemos uma verdade perfeita, que nos atire a primeira pedra como no Evangelho, isto é, que nos lance a primeira contradicção.

VII

Junto 1871.

Todos os jornaes, na épocha de eleições, teem os seus candidatos predilectos. Os jornaes francezes lançam os nomes d’esses, á adhesão publica, no alto da pagina, em typo enorme. Os jornaes portuguezes é n’uma prosa dormente que os aconselham, com recato.

Nós possuímos também dois candidatos queridos.

São:

O Dr. João das Regras!

O condestável D. Nuno Álvares Pereira!

São estes dois cavalheiros — cidadãos! — a expressão gloriosa da sua Pátria. Um é o seu pensamento jurídico, outro o seu valor heróico. Qual será o liberal inteligente que recuse o seu voto a estes dois homens históricos? Valerá mais o Sr. José de Morais, ou o Sr. Coelho do Amaral?! E depois quem, como o Sr. João das Regras, velaria pelos foros populares? Quem como o condestável manteria a independência da Pátria? — À urna, cidadãos!

Podem apenas pôr-nos uma objecção — pequena por si, mas que talvez influa nos

ânimos timoratos: é que o doutor e o condestável morreram há quatro séculos!

Pois bem! nós afirmamos que esse detalhe nada importa, porque eles se acham em identidade de circunstâncias com a grande parte dos candidatos que se apresentam por esses círculos, de Norte a Sul do País! Todos esses beneméritos estão na realidade tão mortos como João das Regras, e como D. Nuno Alvares Pereira!

Debalde passeiam! Debalde falam! Estão mortos. Viver para sentir fisicamente é simples — basta que os pulmões respirem, que o sangue circule, que o alimento se digira.

Mas viver para legislar e pensar é mais complexo — é necessário que a inteligência e a consciência estejam em vigor, trabalhando. Ora grande parte dos senhores candidatos têm aquela porção do seu ser tão morta como o Dr. Regras, ou o condestável Pereira.

Com efeito, no sentido de legislar, organizar, e dirigir um país — viver é ser do seu tempo, estar no seu momento histórico, ajudar a criação social do seu século, sentir a comunhão das ideias novas. Ser democrata de 20, ou carlista de 36, ou cabralista de 45, ou regenerador de 51 — não é viver, é recordar-se. E, por este lado, quem sabe também se os mortos se recordarão?

Por consequência, como a maioria dos candidatos se acham mortos e embalsamados no seu próprio corpo — estão na categoria em que se encontram os defuntos Regras e Álvares Pereira.

Propomos pois:

O DOUTOR!

O CONDESTÁVEL!

Podem todavia observar-nos:

Sendo verdade (como é) que os srs. deputados estão mortos no seu espírito — é também verdade que estão vivos no seu corpo, que podem dizer presentes! na chamada, e que desta condição não se gabam o doutor e o condestável, os quais, sendo um punhado hipotético de pó, não podem ter a pretensão, verdadeiramente tirânica, de dizerem presentes! — como o Sr. Melício, ou o Sr. Carlos Bento, que são de carne!

Bem! Então uma vez que é necessário um vulto, um corpo, uma pouca de matéria,

Todos os jornais, na época de eleições, têm os seus candidatos predilectos. Os jornais franceses lançam os nomes desses, à adesão pública, no alto da página, em tipo enorme. Os jornais portugueses é numa prosa dormente que os aconselham, com recato. para que os senhores secretários os possam tomar como personalidades — propomos:

A ESTÁTUA DE CAMÕES.

A DE JOÃO DE BARROS.

Não nos dirão decerto que estes não tenham forma, medida, peso! À urna, pois!

Mas podem fazer-nos sentir:

Que se estes últimos cavalheiros têm a condição corpórea, lhes falta a condição vocal — aquela grande condição de deputado que consiste em dizer:

— Apoiado!

Nesse caso, como não temos a pretensão de provar que o bronze e a pedra possuam uma extrema facilidade de locução — propomos:

Dois papa gaios, à escolha do sr. marquês de Ávila!

VIII

Junho 1871.

Este mês, quando os cravos abriam, as Câmaras fecharam. Fecharam, isto é, foram expulsas!

Houve talvez umas certas fórmulas, fez-se decerto o programa do encerramento; mas a verdade é que elas foram precipitadas, aos empurrões, pelas escadarias de S.

Bento abaixo.

A Câmara estava quieta, bem barbeada, comodamente sentada nas suas cadeiras, sem desconfiança, esperando com gravidade cívica que o Governo manifestasse a sua ideia por um projecto, um relatório, um dito, um grito, uma carranca!

O Governo entrou, e, com um gesto palaciano e galhardo, fez evacuar a sala!

E aí está como a grande ocupação do mês são as ELEIÇÕES.

É necessário que te expliquemos, leitor pacífico que não pertences aos centros, o organismo interior de uma eleição. É ao alegre fugir da pena, um curso de anatomia política.

Lê-o ao chá aos teus pequerruchos, a quem tua mulher prepara as fatias com manteiga. E o melhor ensino que lhe podes dar do abaixamento do seu tempo. Se eles adormecerem no meio mais pungente da declamação, não penses que foi a sonolência comunicativa das nossas palavras severas. E que em Portugal tudo faz sono — até a anarquia!

Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia — porque uma

Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nitidamente impresso no Diário do Governo: o processo dessa nomeação é mais complicado e moroso. É por meio de votos, os quais são tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixas de pau, que se chamam roman-ticamente urnas. Uns homens graves, de camisas lavadas, estão em roda da urna. Estes homens chamam-se a mesa. São eles que, com gesto cívico e cheios do espírito das instituições, metem gravemente o papelinho branco (o voto!) na caixinha (a urna!).

A urna afecta várias formas, segundo as freguesias: Há urnas do feitio de caixas de açúcar, do feitio de vasilhas, do feitio de chávenas, etc.

Os candidatos gritam sempre, no último período dos seus manifestos, transportados de furor constitucional:

— Cidadãos, à urna!

E puramente uma denominação sentimental.

Para serem exactos deveriam exclamar, em certas freguesias:

— Cidadãos, ao caixote!

E noutras:

— Cidadãos, à vasilha!

Ora, apesar desta nomeação aparatosa e de grave cerimonial, o deputado é tão igualmente funcionário como se fosse nomeado por oito linhas triviais e burocráticas do

Diário do Governo. O deputado obedece ao Governo, e exerce uma função. Há o apagador, o gritador, o interruptor, o homem dos incidentes, o homem dos precedentes, etc. E quando desagrada, é demitido. Somente não se diz demitido. Diz-se, com menos asseio, dissolvido.

O Governo pois nomeia os seus deputados. Estes homens são, naturalmente e logicamente, escolhidos entre os amigos dos ministros. Por dois motivos:

1º Porque a amizade supõe identidade de interesses, confiança inteira.

2º Porque sendo a posição de deputado ociosa e rendosa, é coerente que seja dada aos amigos íntimos — àqueles que vão ao enterro dos parentes e trazem o pequerrucho da casa às cabritas.

Os amigos dos ministros são, naturalmente, os primeiros escolhidos. Para completar o número de uma maioria útil, estes amigos, mais em contacto, indicam depois outros, seus parentes que procuram colocar, ou seus aderentes que querem utilizar.

— Tu não tens ninguém pelo círculo tal? — pergunta X ao ministro, seu íntimo.

— Não.

— Espera! tenho eu um primo. O pobre rapaz tem poucos meios, é pianista. Mas é fiel como um cão. Um escravo! Posso dizer ao rapaz que conte com a coisa?

— Podes dizer ao rapaz.

Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa. Os pretendentes são numerosos. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. Um tem um primo que casou; outro sabe de um folhetinista com talento e língua fácil; outro quer um cunhado; outro deseja um homem a quem deve uns centos de mil-réis (mas dispensa a candidatura para esse ladrão, se o ministro fizer esse ladrão recebedor de comarca)... Depois os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um, a quem se prometeu o círculo D, dá-se o governo civil de B — como indemnização. Tira-se a C a candidatura, porque se descobre que C tomou chá com o chefe da oposição. Mas dá-se a E, que foi quem denunciou C.

Às vezes é um influente pelo círculo X, que, em paga da sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.

— Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista! Seu genro tem pelo menos algum curso?

— Meu genro não tem curso nenhum. Eu é que tenho influência. O jornal da localidade já provou que meu genro era um animal. Mas meu genro espancou a redacção.

E quem vem pelo círculo Z não é o professor distinto, mas o sujeito convencido de animal pelo periódico da localidade!

Há ainda os amigos do Governo, que residem na província. Esses escrevem ao ministro:

«Tenho aqui tudo preparado pelo círculo, e gasto um dinheirame. Por isso, querido amigo, espero que me mandes apoiar a eleição... Sabes que sou fiel como um cão, quando tu estás no poleiro.»

Meses depois deste exercício o Governo possui enfim, inteira, compacta, abarrotada de nomes fiéis, a lista da sua maioria.

Quando o Governo não tem política própria, nem programa próprio, nem amigos próprios, e vive, como o actual, apoiado em dois partidos — são esses partidos que dão ao ministério as listas das suas maiorias particulares. O Governo aceita, e nomeia estas maiorias.

Constituída a Câmara, cada partido retira a sua maioria, e o Governo, desamparado, cai de costas, estatelado no lodoso chão da intriga.

E as duas maiorias livres da fastidiosa ocupação de amparar um Governo antipático, e com os braços disponíveis, rompem logo a invectivar-se uma à outra com galhardo brio.

Tal é este prodigioso e baixo imbróglio!

Logo que o Governo possui completa a sua lista, comunica-a aos governadores civis. Começa aqui o que se chama o trabalhinho das autoridades. O governador civil chama particularmente cada administrador de concelho, e troca com ele estes nobres dizeres:

— Pelo seu círculo o Governo propõe Fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer?

— Farei as diligencias...

— Nada de palavras equívocas. Ou a eleição certa para o Governo, ou a demissão certa para si. De resto peça, intrigue, compre, ameace, maltrate. Isso é consigo... O que nós queremos é que o Governo vença!

O administrador tem família, vive daquele escasso rendimento, quer seguir a carreira administrativa, sente o seu interesse que o insta, e cede a S. Exª.

— Pois bem — diz — respondo por tudo... Mas tenho exigências.

— Venham elas.

— E necessário que seja demitido o reitor do liceu, que é todo oposição

— Tomo nota.

— Que seja transferido o escrivão de fazenda. Coitado, grande transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila... Mas enfim

— Está claro, para a frente!...

— Além disso preciso uns 300$000 réis para a freguesia de tal, que está muito trabalhada pela oposição

— Conte com eles.

— Precisava também de tropa...

— Com todo o gosto. Trabalhar, meu amigo, trabalhar! Esta nossa vida administrativa é o demónio! Mas, que diabo, alguma coisa se há-de comer! Adeus.

E cada administrador vai trabalhar para o seu círculo.

Honesto sistema!

A primeira dificuldade é que, no círculo, ninguém conhece o candidato.

— Mas quem é ele?

— Eu sei lá quem ele é! — responde a própria autoridade. — É um sujeito de Lisboa.

É do Governo!

O administrador, para ordenar a escaramuça, reúne os seus regedores:

— O candidato é Fulano. Mãos à obra! É trabalhar-me bem essas freguesias! É pedir, ameaçar...

Os regedores partem; e, trotando pelas estradas do concelho, ruminam os seus meios.

Esses meios são:

A compra pura e simples. Regateia-se o voto: 500, 1$000, 1$500 réis. Há-os de meia libra, mas são raros.

A pressão. E o mais eficaz. A pressão é uma arma geral, simples, acessível a todos. O proprietário exerce pressão sobre os rendeiros, que exercem pressão sobre os trabalhadores. Nos centros de distrito ou de concelho a autoridade superior exerce pressão sobre todos os empregados do governo civil, da administração, da repartição de fazenda, da repartição de obras públicas, do liceu, da câmara, etc. Os coronéis exercem pressão sobre os oficiais — com ameaça de participação para a secretaria da guerra, de destacamento para longe, de mudanças de corpo com despesas, etc.

3º A ameaça. A ameaça é mais especialmente feita pelo regedor na sua freguesia.

O regedor dirige-se ao eleitor e verte-lhe esta honesta eloquência:

— Tu tens um filho de 20 anos. Está para entrar no recrutamento. Se votas no

Governo livro-te o filho. Se não, tens o filho com a farda às costas.

Ou então:

— Tu sabes que tua filha tem aí um namoro. Se não votares com o Governo, a tua filha será chamada à presença da autoridade, e tens a vergonha em casa

Ou quando não:

— Tu andas colectado em 10. Se votares com o Governo, arranjo-te a que o sejas apenas em 9. Se votas contra, tens para o ano no cachaço 16 ou 17.

E aqui está como o Governo arranja votos — por cabeça.

Há votos por influência. Isto é — arranja-se um sujeito que dispõe de 50, 100, 200 votos: dá-se a esse homem uma comenda, um título; nomeia-se-lhe um primo recebedor ou apontador de estradas; e esse homem dá generosamente, para maior esplendor da monarquia, esses 50, 100 ou 200 livres votos ao candidato do Governo!

E por todos os círculos se trabalha sem descanso! As autoridades têm dias pesados de fadigas, noites cortadas de telegramas. Bate-se por todo o concelho a áspera e ávida caça ao eleitor. Aqui ameaça-se, além compra-se. Demite-se aqui um regedor que é suspeito, além muda-se um pároco que é hostil. O eleitor é acariciado, saudado. Paga-se- lhe o vinho na taberna, promete-se-lhe a isenção do recrutamento para o filho, e excepção da décima para ele. Não há interesse que se não seduza, fraqueza que se não ataque, miséria com que se não especule.

E o pobre eleitor, aturdido, diz à mulher em casa:

— Oh! senhores, não me deixam! Por causa do tal conselheiro Felizardo.

— Mas quem é o Felizardo?

— Ora! É o Felizardo! Eu sei lá quem é! É um para deputado!

No entanto a oposição trabalha também. Os seus meios são menores. Recorre sobretudo à prosa. Manifestos nas vilas, discursos populares pelas freguesias, etc. Fala nos impostos, nas vexações do escrivão de fazenda, nas poucas estradas que o Governo faze nas muitas infâmias que o deputado governamental tem feito

No meio disto agita-se um dos tipos característicos da província, o influente de eleições. Lugar nas Farpas ao influente! Lugar à pesada corpulência do sr. influente!

O influente ordinariamente é proprietário. Antigo cavador de enxada, enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta de paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde, num futuro glorioso, vereador! Já não usa jaqueta, nem tamancos. Tem uma casa pintada de amarelo, calça um par de luvas pretas, e fala na soberania nacional. Em vésperas de eleição todos o vêem, montado na sua mula pelos caminhos das freguesias, ou, nos dias de mercado, misturado entre os grupos, gesticulando, berrando, com uma importância tremenda. Dispõe ordinariamente de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. A autoridade passa-lhe a mão por cima do ombro, fala-lhe vagamente no hábito de Cristo. Tudo o que ele pede é satisfeito, tudo o que ele lembra é realizado. As leis afastam-se para ele passar.

As suas fazendas não são colectadas à justa: é o influente! Os criminosos por quem se empenha são absolvidos: é o influente! Se são proibidos no concelho os arrozais, ele pode tê-los: é o influente! Se são proibidos os portes de armas, ele é exceptuado: é o influente! Só ele caça nos meses defesos: é o influente! Só a sua rua é calçada: é o influente!

Se algum dia, leitores das Farpas, encontrardes o influente, tirai-lhe o vosso chapéu. Ele reina, e o seu reino assenta sobre a coisa que, apesar de ser a mais lodosa, é ainda a mais sólida — a corrupção.

Nasce enfim o dia, o domingo desejado.

Os regedores começam a chegar à frente das suas freguesias. Os homens vêm de cara lavada, de grandes colarinhos brancos.

Para os deter até às 10 horas, impedir que eles se desmantilhem, e que, dispersos, fora das vistas zelosas do regedor, estejam expostos às tentações da oposição — há um casarão, ou um grande pátio, ou um enorme armazém, em que são recolhidos. Estão ali uns poucos de centos de homens, amontoados, sentados no chão, com o varapau na mão, a lista no bolso do colete. No entanto vem vinho e bacalhau. Passam os copos em redor, os queixos mastigam, e viva lá seu compadre! e à saúde do nosso regedor! e grandes risadas daqui e empurrões além, e pragas mais longe — e toda aquela multidão avinhada, impaciente, aborrecida, com um cheiro enjoativo e um rumor de troça, espera que chegue a hora de dar o seu voto ao Governo, livre, espontâneo e consciente!

Cada freguesia vai votar arrebanhada, de regedor à frente. Os tamancos soam no lajedo da igreja, o secretário da mesa chama numa voz dormente. A cada nome o regedor volta-se para o indivíduo:

— Vá! és tu. Chega-te... perdeste a lista? Pensei! Deita ali! Rua!

E a igreja vai-se esvaziando, os sacristães apagam as velas nos altares, os senhores da mesa bocejam, as beatas persignam-se com água benta, os papelinhos brancos acumulam-se na urna, os influentes satisfeitos fumam no adro, os Cristos sobre os altares agonizam nas cruzes. Viva o sufrágio!

Bem te compreendemos, leitor! Querias comentários, conclusões, e a moral desta farsa? Olha, se sentires, no fim desta narração, a necessidade de uma liga de todos os homens sérios contra o triunfo progressivo desta corrupção — esse será o único comentário justo e fecundo.

IX

Junho 1871.

Ha muitos annos que a politica de Portugal apresenta este singular estado:

Doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder... O poder não sai de uns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos.

Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião, e os dizeres de todos os outros que lá não estão — os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do País!

Os outros, os que não estão no poder, são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais — os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, e os interesses do País .

Mas, coisa notável! — os cinco que estão no poder fazem tudo o que podem para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do País, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se, para deixar de ser o mais depressa que puderem — os verdadeiros liberais, e os interesses do País!

Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros, os verdadeiros liberais, entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do

País; entanto que os que caíram do poder se resignam, cheios de fel e de tédio — a vir a ser os verdadeiros liberais e os interesses do País.

Ora como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e ruína do País...

Não há nenhum que não tenha sido demitido, ou obrigado a pedir a demissão, pelas acusações mais graves e pelas votações mais hostis...

Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de dirigir as coisas públicas — pela imprensa, pela palavra dos oradores, pelas incriminações da opinião, pela afirmativa constitucional do poder moderador...

E todavia serão estes doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo o

País, neste caminho em que ele vai, feliz, abundante, rico, forte, coroado de rosas, e num chouto tão triunfante!

Daqui provém também este caso singular:

Um homem é tanto mais célebre, tanto mais consagrado, quantas mais vezes tem sido ministro — isto é, quantas mais vezes tem mostrado a sua incapacidade nos negócios, sendo esbanjador da fazenda, ruína do País, etc.

Assim o Sr. Carlos Bento foi uma primeira vez ministro da fazenda. Teve a sua demissão, e não foi naturalmente pelos serviços que estava fazendo à sua pátria, pelo engrandecimento que estava dando à receita pública, etc... Se caiu foi porque naturalmente a opinião, a imprensa, os partidos coligados, o poder moderador, o julgaram menos conveniente para administrar a riqueza nacional. E o Sr. Carlos Bento saiu do poder com importância.

Por isto foi ministro da fazenda uma segunda vez. Mostrou de novo a sua incapacidade — pelo menos assim o julgou, por essa ocasião, o poder moderador, impondo-lhe a sua demissão. E a importância do Sr. Carlos Bento cresceu!

Por consequência foi terceira vez ministro. Caiu; devemos portanto ainda supor

Há muitos anos que a política em Portugal apresenta este singular estado: que naturalmente deu provas de não ser competente para estar na direcção dos negócios.

E a sua importância aumentou, prodigiosamente!

É novamente ministro: se tiver a fortuna de ser derrubado do poder, e convencido pela opinião de uma incapacidade absoluta, será elevado a um título, dar-se-lhe-ão embaixadas, entrará permanentemente no Almanaque de Gota.

Ora tudo isto nos faz pensar — que quanto mais um homem prova a sua incapacidade, tanto mais apto se torna para governar o seu país!

E portanto, logicamente, o chefe do Estado tem de proceder da maneira seguinte na apreciação dos homens:

O menino Eleutério fica reprovado no seu exame de francês. O poder moderador deita-lhe logo um olho terno.

O menino Eleutério, continuando a sua bela carreira política, fica reprovado no seu exame de história. O poder moderador, alvoroçado, acena-lhe com um lenço branco.

O caloiro Eleutério, dando outro passo largo, fica reprovado no 1 ano da

Faculdade de Direito. O poder moderador exulta, e quer a todo o transe ter com ele umas falas sérias.

O bacharel Eleutério, avançando sempre, fica reprovado no concurso de delegado.

O poder moderador não pode conter o júbilo, e fá-lo ministro da Justiça.

E a opinião aplaude!

De modo que, se um homem se pudesse apresentar ao chefe do Estado com os seguintes documentos:

Espírito de tal modo bronco que nunca pôde aprender a somar;

Reprovações sucessivas em todas as matérias de todos os cursos.

O chefe do Estado tomá-lo-ia pela mão, e bradaria, sufocado em júbilo:

Tu Marcellus eris! Tu serás, para todo o sempre, Presidente do Conselho!

X

Julho 1871.

Ninguém até hoje precisou bem a razão real e íntima deste fenómeno; e o motivo

é que ninguém sabe, com verdade e nitidez, a maneira como foi constituído este ministério ilustre.

Para fornecer, pois, a explicação crítica desse caso instrutivo, aqui revelamos a organização do ministério tal como a impuseram as circunstâncias partidárias, as dificuldades de acordo, e a justa repugnância que todo o cidadão decoroso tem em se associar à acção que se chama governar o País.

O ministério foi assim composto:

Presidente do Conselho — Marquês de Ávila e Bolama;

Ministro dos Estrangeiros — Marquês de Ávila e Bolama;

Ministro do Reino — Marquês de Ávila e Bolama;

Ministro da Fazenda — Marquês de Ávila e Bolama, sob o pseudónimo de —

Carlos Bento da Silva;

Ministro das Obras Públicas — Marquês de Ávila e Bolama, sob o simpático e suposto nome de — Visconde de Chanceleiros;

Ministro da Justiça — Marquês de Ávila e Bolama, sob o anagrama — Só Vargas;

Ministro da Guerra - — Marquês de Ávila e Bolama, sob a denominação verdadeiramente inexplicável de — José de Morais Rego.

XI

Junho 1871.

No folhetim do Diario Popular de 24 de junho lêem-se notaveis considerações de ordem moral. São em verso. O poeta dirige-se, na sua declamação solitaria, a uma mulher.

Numa prosa anterior (prelúdio) escreve que a missão da arte é ensinar a amar (!) — e que na arte não entra realidade, justiça ou moral pública porque (acrescenta) a arte nada tem com os direitos civis. Colocado assim à Larga, na anarquia da voluptuosidade e do lirismo, aí está o que o poeta expõe e ensina num jornal popular, com uma tiragem de 20000 exemplares, que anda por cima das mesas e nos cestos de costura!

Começa por dizer:

Que é bom amar no campo, à tarde e a sós!

Depois continua:

Que prefere o campo, porque nas salas do mundo não lhe é dado beijar a mão dela às largas! Que o campo é livre e as sombras dão refúgio !

Por fim acrescenta:

Que queria que os raios cintilantes os cingissem a ele só com ela, erguidos em

êxtase, longe de quanto é vil...

(Quanto é vil, na gíria da poesia lírica, é o mundo real, a família, o trabalho, as ocupações domésticas, etc.).

Dispensamo-nos de citar mais estrofes lascivas.

Aquelas bastam para legitimar as seguintes observações:

Nenhum jornal publicaria semelhantes teorias em prosa;

Nenhum homem que as escrevesse ousaria lê-las a sua filha, sem gaguejar, e sem comer as palavras;

Nenhuma senhora que por acaso as tivesse lido ousaria citá-las.

Como se consente então a sua publicação em verso? A higiene não é só a regularização salutar das condições da vida física; nela devem também entrar os factos da moralidade. Se é proibido que um monturo imundo ou um cão morto corrompam o ar respirável das ruas — porque há-de ser permitido que um poeta, com as suas endechas podres, perturbe o pudor e a tranquilidade virgem?

Há uma postura da Câmara que impõe uma multa a quem pronuncia palavras desonestas: porque não há-de ser igualmente proibido publicar ideias desonestas?

Um ébrio, um pobre homem a quem se não deu educação, a quem se não pode dar leitura, a quem quase se não dá trabalho, diz uma praga numa rua, ouvida apenas de três ou quatro pessoas, e vai para a cadeia ou paga uma multa de 3$000 réis. Um poeta lírico, esclarecido, aprovado nos seus exames, empregado nas secretarias, publica num jornal de cinquenta mil leitores, em letra impressa, permanente e indelével, uma série de desonestidades, e é apreciado, cumprimentado no Martinho, indigitado para uma candidatura!

Pedimos pois:

Ou que seja permitido livremente dizer na rua e no jornal pragas e desonestidades;

Ou que a multa da Câmara Municipal seja aplicada a todos — e que tanto o ébrio que não sabe o que diz à esquina de uma rua, como o poeta lírico que escreve, com reflexão e rascunho de uma semana, ao canto de um jornal, paguem os 3$000 réis à

Câmara, um pela sua praga, outro pela sua endecha.

No folhetim do Diário Popular de 24 de Junho lêem-se notáveis considerações de ordem moral. São em verso. O poeta dirige-se, na sua declamação solitária, a uma mulher.

XII

Junho 1871.

O sr. ministro do reino fez entregar por um empregado de policia ao sr. Zagallo, director do Casino, um papel — reaccionario pela intenção, mas de magogico pela grammatica — em que se notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferencias democraticas.

Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa...

E achas certamente na tua consciência que este acto do sr. marquês de Ávila, não tendo de certo modo equidade, não tem de modo algum legalidade; que é sobretudo profundamente inábil; e que o sr. marquês, dando um golpe de Estado contra alguns escritores que no Casino faziam crítica de história e de literatura, foi criar uma atitude política onde só havia um intuito científico.

Homens que numa sala, com senhoras na galeria, movem questões científicas e literárias, numa alta generalização de ideias, são tão inofensivos na política do seu país como um livro de matemática. São motores de pensamento e de estudo, que não vão tocar a rebate no sino das Mercês.

— Mas homens que o Governo obriga a fazer um protesto num café, na agitação de trezentas pessoas; a percorrerem as redacções dos jornais, seguidos de uma multidão indignada; a colocarem-se como defensores da consciência ofendida — esses parecem-se terrivelmente com homens de uma acção política! As conferências desceram assim da sua serenidade filosófica; estão na luta, estão na discussão da Carta, estão na prosa da

Gazeta do Povo!

Vejamos a legalidade do facto. Num país constitucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a Carta Constitucional — ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento. Diz a Carta no seu artigo 145º:

A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses.., é garantida pela Constituição do Reino, pela maneira seguinte:

§ 3º Todos podem comunicar o seu pensamento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito.

Temos, pois, adquiridos à certeza dois pontos:

1º Que todo o cidadão pode publicar o seu pensamento falando ou escrevendo;

2º Que o cidadão fica responsável pelo abuso do seu direito.

Por consequência, logo na primeira conferencia:

1º O Sr. Antero de Quental podia falar sobre a religião em toda a liberdade da sua opinião;

2º Se abusasse, o Sr. Antero de Quental respondia pelo abuso.

É lógico. Ora quem torna efectiva a responsabilidade desse abuso?

Em primeiro lugar: O comissário que deve assistir a todas as reuniões públicas, na ideia do decreto com força de lei de 15 de Junho de 1870. «As reuniões públicas (diz este decreto) podem ser dissolvidas pela autoridade... quando por qualquer forma perturbarem a ordem pública. A dissolução da reunião só pode ser intimada à assembleia — depois da autoridade advertir em voz alta os directores da reunião (neste caso, o prelector)». O comissário assistente das conferências, o Sr. Rangel, não intimou, e não advertiu o Sr. Antero de Quental, nem em voz alta, nem com gestos. Talvez o

O sr. ministro do Reino fez entregar por um empregado de polícia ao Sr. Zagalo, director do Casino, um papel — reaccionário pela intenção, mas demagógico pela gramática — em que se notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferências democráticas. tivesse feito por suspiros — mas esse caso não está na lei. Portanto o sr. comissário não achou, na sua consciência, que o Sr. Antero de Quental abusasse da liberdade de expor o seu pensamento.

Em segundo lugar: O ministério público querelou do Sr. Antero de Quental? Não.

Por consequência nem o comissário presente à conferência, nem o ministério público, encontraram na conferência do Sr. Antero de Quental abuso punível.

As conferências que se seguiram foram, uma sobre crítica literária contemporânea, outra sobre o realismo, como nova expressão da arte, a terceira sobre o ensino e as suas reformas. Em que atacavam estas a religião ou as instituições políticas?

Fazer a crítica da literatura contemporânea é ofender (segundo a linguagem rococó da portaria) o código fundamental da monarquia? Nesse caso pedimos a cabeça do Sr.

Pinheiro Chagas, o crânio do Sr. Júlio Machado, e uma grande porção do Sr. Luciano

Cordeiro! Quem o diria!? Quando se escrever que o Sr. Vidal é um poeta lírico ligeiramente inferior a Lamartine, o trono de Sua Majestade ficará bambaleando um quarto de hora!

Mas vejamos! A última conferência foi feita no dia 19 de Junho; a portaria foi dada no dia 26 do mesmo mês, antes da conferência que ia ser feita. Por consequência o sr. marquês de Ávila fechou, não as conferências que se tinham feito, o que seria um pouco inútil — mas as conferências que se iam fazer.

Ora, segundo o citado artigo da Carta, só se pode coibir a liberdade de pensamento quando houver abuso: e como esse abuso não existia, pelo simples motivo que a conferência ainda não fora feita, e por consequência o pensamento não fora manifestado — segue-se que o sr. ministro do Reino violou a Carta, se esta palavra violar ainda se pode empregar a respeito da Carta, sem atrair sorrisos maliciosos sobre tão insensata metáfora.

Ao ministro cabia unicamente o direito de fazer processar o Sr. Antero de

Quental. Isso era a lógica, o bom senso, a legalidade.

Do que o ministro não tem o mínimo direito é da rude supressão da palavra a prelectores de literatura, de arte e de pedagogia. Fazendo, como fez, tal supressão está fora da lei, fora do espírito do tempo, quase fora da humanidade.

Com direito igual pode amanhã o sr. ministro mandar suprimir As Farpas, os romances do Sr. Camilo Castelo Branco, os volumes de historia do Sr. Alexandre

Herculano, os jornais, a conversação, esta simples pergunta — «Como está? passou bem?» Pode suprimir ainda um sorriso ou um olhar expressivo. Pode fulminar o espirro!

Ora o artigo 103º da Carta diz:

«Os ministros são responsáveis... § 5? Pelo que obrarem contra a liberdade dos cidadãos.»

E o § 28 do artigo 145º acrescenta:

«Todo o cidadão poderá fazer apresentar reclamações, queixas... e ATÉ expor qualquer infracção da constituição, requerendo... a efectiva responsabilidade do infractor.»

Seria portanto possível responder à portaria do sr. marquês de Ávila com o instrumento seguinte:

— «Requeiro à Câmara dos Deputados que torne efectiva a responsabilidade do sr. ministro do Reino, procedendo contra ele como infractor do § 3º do art. 145º da Carta

Constitucional — segundo me é permitido pelo § 28 do citado artigo.»

Tanto em relação ao prelector que abusou da liberdade, segundo a Carta, como para o ministro que infringiu a lei, segundo a mesma Carta, temos até aqui argumentado com a legalidade.

Agora a equidade:

Que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixa então circular no País os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot?

Foi a crítica religiosa? Para que se consente então que atravessem a fronteira ou a alfândega os livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet?

Sejamos lógicos; fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas expulsemos os livros onde se lêem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a inteligência, para a memória, e para a acção: é a mesma entrada para a consciência por duas portas paralelas. Façamos calar o Sr. Antero de

Quental, mas proibamos na alfândega a entrada dos livros de Vítor Hugo, Proudhon,

Langlois, Feuerbach, Quinet, Littré, toda a crítica francesa, todo o pensamento alemão, toda a ideia, toda a história. Dobremos a cabeça sobre a nossa ignorância e sobre a nossa inércia, e deixemo-nos apodrecer, mudos, vis, inertes, na torpeza moral e no tédio.

Nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, se lance através das ambições e das cóleras o grito de revolta! Queremos a revolução preparada na região das ideias e da ciência; espalhada pela influência pacífica de uma opinião esclarecida; realizada pelas concessões sucessivas dos poderes conservadores; — enfim uma revolução pelo Governo, tal como ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. É assim que queremos a revolução. Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate de sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário — um tanto de mais!

Seríamos pois nós os primeiros a pedir o encerramento das conferências do

Casino, se a ciência dos conferentes se resumisse a dizer:

— A barricada, meus senhores, é amanhã na Rua da Bitesga! Quanto ao petróleo, está lá em baixo no bilheteiro!

Mas que se faça calar, pondo-lhe a mão na boca, a ciência, a critica literária, a história, contra isso, do fundo deste livro, pequeno mas honrado, em nome do respeito que nós devemos a nós mesmos, e do exemplo que devemos a nossos filhos, protestamos e apelamos, não para a Europa, o que seria sofrivelmente inútil, mas para o próprio sr. marquês de Ávila, para uma coisa que ele deve ter debaixo da sua farda, uma coisa que se não cala, ainda quando em redor a intriga e o interesse fazem um ruído horrível — a consciência!

Pois quê! Podem ler-se nas Bibliotecas e no Grémio, jornais republicanos, jornais da Comuna, toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas — e não há-de ser permitido falar do que há de mais abstracto na política, de mais estranho e superior

às agitações humanas e às violências partidárias, a História?

Pois é permitido à Nação publicar, em prosa impressa e permanente, ataques rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucional — e não pode ser permitido ao Sr. Antero condenar as monarquias absolutas, e ao Sr. Soromenho condenar os romances eróticos?

Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a sua política, e não é permitido a um conferente do Casino fazer a crítica da política dos jesuítas?

Argumentemos! Eu posso comprar um livro de Proudhon que combate o catolicismo, as monarquias, o capital: estou na legalidade. Posso lê-lo em voz alta aos meus amigos, ou aos meus criados: estou nos limites da Carta. Posso decorá-lo: haverá alguma lei que me proíba este exercício de memória? Posso recitá-lo, à luz do Sol ou à luz do gás, com gestos moderados ou com gestos descompostos: tudo isto é legal. Que eu trate no Casino de algum dos pontos de que se ocupa esse livro, proíbem-mo!

Concordo em que mo proíbam, mas proíbam também aos livreiros a venda de

Proudhon!

Quando se proibiu em França que Renan falasse, obstou-se ao mesmo tempo que

Renan fosse lido.

Antes de haver conferências no Casino havia ali cançonetas. Mulheres decotadas até ao estômago, com os braços nus, a pantorrilla ao léu, a boca avinhada, cantavam, entre toda a sorte de gestos desbragados, um repertório de cantigas impuras, obscenas, imundas! Num verso bestial, a um compasso acanalhado, ridicularizava-se aí o pudor, a família, o trabalho, a virgindade, a dignidade, a honra, Deus! Eram também conferências. Eram as conferências do deboche. E havia muitos alunos!

Pois isso que era a obscenidade, a infâmia, a crápula, parecia ao sr. marquês de

Ávila compatível com a moral do Estado!

As conferências, que eram o estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, essas pareceram ao sr. marquês incompatíveis com toda a moral!

Homens refestelados, bebendo conhaque, gritando, apupando desgraçadas criaturas que se deslocam em trejeitos vis para fazer rir — isso é permitido por todas as leis!

Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização — isso é proibido com tanta violência que se salta por cima da Carta para o proibir! a isso manda-se um polícia dar duas voltas à chave! Miserere! Miserere!

XIII

Julho 1871.

A Nação, jornal de arqueologia e de piedade, apresentado nestes últimos tempos com um ar de esplêndido triunfo. Os adjectivos dos seus artigos de fundo caminham a marche-marche; os seus advérbios vão desfraldados ao vento; e no mero

êxtase dos seus «pontos de admiração» se sente que ela espera para breve — a restauração. Ora muito bem sabemos a restauração de que, mas totalmente ignoramos a restauração de quem.

A Nação espera a restauração em França com o conde de Chambord — e di-lo claramente. Em Espanha com Carlos VIL — e exulta abundantemente. Depois acrescenta: — e em Portugal com...

Põe pontos de reticência. É respeito? E pudor? Estratégia? Não se sabe.

Evidentemente aqueles pontos de reticência designam alguém. Mas quem? — como se diz nos «vaudevilles».

Querem uns que seja o defunto Herodes; outros o falecido Filipe II; alguns ainda sugerem que seja esse outro ausente do número dos vivos — o honrado Nabucodonosor!

Seja quem for, a Nação espera! A Nação vem cheia de júbilo, desde as suas citações latinas até aos seus anúncios de água circassiana! E a Nação não podendo mandar já preparar-lhe quartos na Ajuda ou em Queluz — prepara-lhe máximas de boa governação!

Eis algumas dessas máximas, colhidas ao acaso entre doces pilhérias de direito divino:

A liberdade de consciência é uma palavra boa para enganar os tolos, que nada significa a não ser um grande contra-senso.

Ora este modo de pensar pode dar lugar a interpretações aflitivas. Suponhamos a restauração feita, a Nação triunfante, agora, em Junho, em que um frio traiçoeiro nos surpreende à tarde, ao desembocar das ruas. Um cidadão, recenseado e eleitor, caminha no Rossio, e diz gravemente, com aquele ar meditado que toma a burguesia nas graves questões da vida:

— Diabo, está frio!

Acode subitamente um polícia legitimista, gritando:

— Perdão! o cavalheiro não tem direito a dizer essa irreverência!

Surpresa do cidadão. E o polícia mostra-lhe o repertório oficial, onde se lê:

— 12 de Junho... calma.

E o polícia terá razão! Desde o momento em que o direito divino nega a liberdade de consciência, nenhum cidadão tem direito a espalhar doutrinas diferentes das de um repertório fundado na sabedoria das nações, autorizado pelos bispos, com uma tradição de 100 anos — infalível cartilha das nossas temperaturas!

Mas volvamos, volvamos, aos pontos de reticência!

Nós afirmamos que a opinião anda transviada quando pensa que aqueles pontos encobrem um nome temido. Não! A Nação é clara, sem equívocos. A Nação quando diz:

— Em França reinará Henrique V; em Espanha Carlos VII; e em Portugal...

Quer simplesmente dizer que em Portugal reinará Pontos de Reticência. Pontos de

Reticência é um nome. O nome de um rei. Pontos de Reticência I.

Nós podemos estranhá-lo, nós que não sabemos a genealogia e os ramos laterais das casas legitimistas da Europa, que temos esquecido o nosso Almanaque de Gota.

Mas a Nação, depositária dos papéis de família da legitimidade, sabedora das suas tradições, autora da sua história — energicamente o afirma. E lícito aos constitucionais ignorá-lo — mas não contestá-lo.

Reinará pois em Portugal — Pontos de Reticência I.

Em breve o teremos no seu trono, com o seu ministério constituído. Como será nobre! tradicional! feudal! Como terá o sereno e radioso aspecto das coisas augustas e eternas!

Presidente do Conselho: — O Duque de Ponto Final.

Ministro do Culto: — Visconde de Parêntesis.

Ministro do Culto: — Visconde de Parêntesis.

Ministro da Guerra: — O Brigadeiro Vírgula.

Ministro da Justiça: — O Comendador Dois Pontos de Vasconcelos.

E serão terríveis!

E para este rei que se preparam tão boas máximas de governação! Citemos outra, tremenda!

O Sr. Adolfo Coelho dissera no Casino, ao que parece — que a ciência no seu domínio era independente da fé.

Pois bem! um correspondente eclesiástico da Nação exclama, voltando-se mentalmente para o Sr. Adolfo Coelho: «Como ousa o sábio dizer que a ciência é alguma coisa sem a fé? Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo, um único, sem ser auxiliada pela fé!»

Queremos que esta seja a verdade; mas pensemos então como a vida deve ser cruel e molesta para aquele eclesiástico e para toda a redacção da Nação. Imaginemos um destes homens piedosos, à noite, de chambre, à luz do candeeiro, tomando o rol à criada. Já examinou as parcelas, está a fazer a soma. A cena é solene. Uma luz mística banha as prateleiras. O gato ressona.

— 3 e 7, calcula o clérigo suando.

E imediatamente pára. A ciência bem lhe diz que são 10, mas a ciência não é nada sem o auxilio da fé — e o homem do Senhor corre a consultar Santo Agostinho. Nada porém ensina sobre essa matéria o sublime Doutor. O eclesiástico arregala para a criada um olho pávido:

— Depressa, filha, baixa-me daí a summa de S. Tomás!

E folheia...

E para a casa das dezenas interroga Santo Atanásio, e para a das centenas os

Evangelhos comparados!...

Já é de madrugada: a criada dormita’ a alvura esbatida do dia faz grandes fios pálidos nas vidraças; as andorinhas gritam na sua glória e na sua alegria; os rebanhos balam; as árvores espreguiçamse nos braços do vento; Deus, o bom Deus, o Deus

Justo, vive na infinita transparência da luz — e o pobre eclesiástico, pálido, sonolento, aturdido, enterrado em in-fólios, folheia o Dicionário de Bergier, Bossuet, Noailles, os concílios de Trento e de Florença, Orígenes, Lactâncio, João Clímaco, Fleury, a

Cartilha, o Larraga — para saber se pelas leis da Igreja lhe é permitido afirmar que «11 noves fora, é 2!»

E erra a soma!

Outra máxima da Nação:

«A liberdade e a igualdade são palavras ímpias e impuras.

Por consequência, no reinado legitimista, nenhum homem de bem, verdadeiro absolutista e verdadeiro jesuíta, ousará pronunciar essas palavras réprobas. Não as dirão nunca nas salas as pessoas delicadas. Serão desonestidades. Ante elas as faces castas corarão — e o ex-Tártaro, vulgo Inferno, não perdoará!

Assim o conde de A., querendo apresentar ao bispo de B., o Sr. Ferreira Fagote, ex-constitucional, murmurará discretamente, para evitar a sórdida palavra liberdade:

Tomo... aquela que o pudor me impede de nomear, de apresentar a vossa reverência o Sr. Fagote!

Um pai austero gritará a seu piedoso filho, que entrou cambaleando às 3 da manhã no ninho seu paterno:

— Quem lhe deu, menino... a que os mais simples princípios de moral me vedam pronunciar... de entrar a estas horas da madrugada?

A palavra igualdade será também forçada a tomar o caminho do exílio.

Nos dicionários virá:

Igualdade, substantivo tão miserável que nem tem género. Empregado outrora nos artigos de fundo, hoje expressamente punido pelo artigo 10º do Código Penal.

E os advogados, no tribunal, para fazer sentir ao júri que circunstâncias que militaram num caso jurídico devem militar num outro, exclamarão, com uma eloquência nova:

— Estamos, pois, senhores jurados, na mais perfeita (tossindo)... que a consideração pelo tribunal e o meu amor pelas instituições me retém na língua de circunstâncias!

Um mestre de primeiras letras, ensinando a ler os meninos:

I-g-u-a-l-gual-d-a-da-d-e-deEsterquilínio.

Há mais! A Nação, num artigo lírico e heróico, diz que a verdadeira missão do

País não é a indústria — é a conquista! A pena de pato da Nação é pois uma lança disfarçada. Toda a mágoa da Nação é que Cacilhas não seja moura! Se o fosse, a Nação vestia a sua armadura e ia lá, num bote! Mas Cacilhas, a fiel Cacilhas, não é moura! Ai!

A Nação, pois, condena a indústria. A Nação julga a indústria uma causa de ruína moral para o País. A Nação, para que se mantenha pura e sem mistura a tradição heróica de Portugal, quer que se proíba a indústria!

Portanto, logo que a Nação triunfe e Pontos de Reticência I suba as escadinhas do trono, a indústria será punida pelos códigos, como perturbadora da ordem e contrária aos destinos nacionais. E o sr. delegado do procurador régio promoverá ordem de prisão contra o insensato que em desprezo das leis, e afrontando o sagrado depósito das nossas instituições, ouse fundar — uma saboaria.

Ouviremos então, na audiência, o mesmo sr. delegado, apontando com o fura-bolos vingativo para o mísero, curvado na dor e no arrependimento, sobre o banco dos réus:

— «Pois quê! senhores jurados, não vedes que o réu lançou uma mácula nas nossas tradições impolutas? Faltava porventura a esse desgraçado onde exercer a sua actividade? Não tinha ele as muralhas de Diu? Não podia ele ir redobrar o Cabo?

Porque não partiu com armas para as plagas do Oriente? Não via ele ao longe a África adusta? E mais perto, não via ele a afrontosa Castela?!

Será um tempo terrível! Haverá sociedades secretas para fazer gravatinhas de seda. A vidraçaria da Vista Alegre passará, transportada a ocultas, para uma caverna. Os fabricantes de caixinhas de obreias, perseguidos, porão nas esquinas proclamações desesperadas com estas palavras — Cidadãos! ou a obreia ou a morte!

A indústria terá os seus mártires, que morrerão com heroísmo. Veremos subirem aos cadafalsos fabricantes de velas de sebo, exclamando com o sorriso iluminado e os olhos no Céu: — «Só tu és verdadeiro, á sebo!»

E nos jornais saborearemos estas locais:

Prisão importante: O célebre Eduardo Compostela foi ontem capturado com todos os seus cúmplices, num covil, onde se dava à criminosa ocupação de refinar o açúcar. O malvado fez revelações.

Tornou-se muito censurável o procedimento de alguns agentes de polícia que destruíram as provas do crime — comendo-as!

A Nação tem sobre os conferentes do Casino esta admirável opinião:

Que eles iam ali falar, não por vontade sua, mas por ordem de uma associação secreta;

Que nenhum acto seu é espontâneo, mas execução de uma ordem da

Internacional;

Que nada lhes pertence, em próprio, nem a acção, nem as ideias, nem o nome!

De modo que se um conferente toma à noite um sorvete no Áurea, é porque recebeu pela manhã este sinistro telegrama:

«Comité central: 7 da manhã. — Esta noite tomai sorvete botequim. Conveniente levantamento classes operárias! Em sorvete intransigentes. Viva a comuna! De morango!»

E o Sr. Antero de Quental, de ora em diante, terá de assinar assim o seu nome:

Antero (por assim dizer) de Quental (se ouso exprimir-me assim).

Ó Nação, tu és grande!

Mas a mais profunda ideia da Nação foi a de um artigo, em que respondia ao Sr.

Antero de Quental. Aí chamou-lhe brisa, e provou que era brisa. Chamou-lhe fariseu, e descreveu-o como fariseu — arrastando por entre a multidão a fímbria da sua toga.

Segundo, pois, a Nação, o Sr. Antero anda vestido com uma toga, cuja fímbria arrasta por entre as turbas da Rua Nova do Carmo.

Este erro de toilette, que a Gazeta do Povo nunca cometeria, é todavia desculpável na Nação. A Nação vive exclusivamente no passado, na arqueologia: não sabe que hoje já se usa o fraque, pensa que ainda se vai na toga!

Se a Nação tivesse de descrever um baile (assim ela se pudesse desprender das contemplações seráficas para se dar a estes exames terrenos!) aí está como ela descreveria um baile, a Nação!

« — Então o nobre marquês de Ávila, erguendo de leve a alva clâmide, adiantou o coturno com meneio gracioso. Por seu lado o Sr. Carlos Testa levantou a túnica tinta em púrpura, e fez chaine de dames, erguendo o pâmpano!... Tinham ambos as cabeças coroadas de rosas... No meio do festim o nobre presidente do Conselho recebeu um papiro que escravo lacedemónio lhe apresentou em lavrada lâmina. As damas reclinadas nos triclínios respiravam aromas, e nos seus olhos brincavam os jogos e os risos.

Circularam até tarde as taças de Falerno. O Sr. Macário dedilhou na harpa eólia concertos maviosos. Velhos legionários, encanecidos em Marte, faziam, apoiados aos gládios, a polícia nos átrios. Na via esperavam numerosas quadrigas!»

Nação, Nação, boa amiga! não nos queiras mal. Tu és velha, tu és fabulosamente velha, tu és de além da campa! Mas tens o carácter firme. E no meio da leviandade movediça destes partidos liberais — tu tens uma vantagem. Lançaste a âncora no meio do oceano e ficaste parada. Estás apodrecida, cheia de algas, de conchas, de crostas de peixes, mas não andaste no ludíbrio de todas as ondas e na camaradagem de todas as espumas! Tu eras excelente — se fosses viva. Mas és um jornal sombra. Es tão viva como Eneias. Tão contemporânea como Telémaco.

Volta, Nação, para ao pé das tuas sombras queridas! E apresenta as nossas saudações carinhosas ao Sr. D. Afonso II, o Gordo!

XIV

Julho 1871.

Todos têm visto, decerto, um pequerrucho jogando a bisca com um irmão mais velho. O pequeno, se tem mau jogo, deita as cartas sobre a mesa, baralha, ri, confunde, grita:

— Desta vez não valeu, vamos a outro!

Mas se o jogo que lhe volta à mão é pior:

— Abaixo! — grita de novo. — Este também não valeu. Agora é que é sério!

E derruba um terceiro jogo, e cada vez promete maior seriedade, e cada vez espalha maior confusão, e todo o mundo sorri em redor!

Às vezes — funesto momento das revoltas humanas! — o irmão mais velho, cansado, termina por atirar furiosamente à cabeça do pequeno o baralho de cartas amarrotadas.

Pois bem, o discurso da coroa tem na política a atitude teimosa da criança que joga a bisca.

No começo de cada legislatura, o discurso da coroa declara gravemente:

— Desta vez vamos ocupar-nos com toda a seriedade da questão da fazenda, etc.

Mas durante a legislatura vem a confusão, a dissolução. O poder executivo tinha mau jogo, e deitou as cartas abaixo.

Surge outra Câmara. Volta no seu cerimonial o discurso da coroa. Diz:

— Da vez passada não valeu! Mas agora é que nós vamos aplicar-nos com o maior zelo à questão da fazenda...

E nessa legislatura, como a confusão se alarga mais, é imposta uma nova dissolução.

Reabre-se a Câmara. O discurso da coroa entra esbaforido, bradando:

— Agora é que é a valer! Agora é que é! Das outras vezes não! Mas agora com toda a certeza!

Agora é que nós vamos, positivamente e de uma vez para sempre, resolver a questão da fazenda...

E nada se resolve, trocam-se palavras vãs, especulam-se lugares rendosos, profundam-se dissidências mesquinhas, e baralha-se outra vez o jogo.

E aí vem o discurso da coroa abrir de novo as cortes, rosnando com a mão no peito:

— Pois senhores, palavra de honra, agora a todo o custo, impreterivelmente, havemos de resolver a questão da fazenda, etc.

Ora nós estamos vendo isto ao canto da sala, atentos e desinteressados, enquanto ferve o chá, e já percebemos, no irmão mais velho, um movimento de quem vai atirar com o baralho de cartas à cabeça do pequerrucho.

E francamente tem razão. A teima das crianças — como a teima das instituições — chega a irritar! Se não, que o digam o mestre régio das Mercês — e Félix Pyat.

Singular temperamento o do discurso da coroa! Todo o mundo está desiludido, só ele espera! Segundo ele o País floresce, enriquece, e o Paraíso está ainda mais perto que a Outra Banda. E tentarmos um passo, um leve esforço, e entrarmos para sempre na tranquilidade augusta da perfeição — chegando a dispensar o Sr. Melício, ele próprio! Há só um ponto negro que assusta o discurso da coroa: é a questão da fazenda. No entanto, o discurso da coroa, cada vez que aparece em público, promete resolver a questão da fazenda.

Desta vez, porém, o discurso da coroa foi sobretudo chamente noticioso. O poder executivo, num momento de adorável franqueza, confessou ao poder legislativo que S.

M. o Imperador do Brasil tinha estado em Lisboa. É talvez bastante censurável esta concorrência que o discurso da coroa faz ao Diário de Notícias; mas ele realmente não pode proceder de modo diverso. O discurso da coroa tem de dizer alguma coisa ao Pais.

Mas o quê? factos da vida política? da acção civilizadora? do pensamento público?

Como? se nada se fez, nada se civilizou, nada se pensou! O discurso da coroa, nesta falta de significativos factos da vida pública, tem de recorrer aos cancãs interessantes da vida particular. Não podendo falar como uma página de história, conversa como uma tagarelice do Chiado. O seu dever com efeito é resumir tudo o que politicamente se fez no interregno parlamentar. Mas se nesse interregno o facto mais característico da vida nacional foi o partir para o Porto a companhia do teatro do Ginásio, que remédio senão que o discurso da coroa dê parte desse sucesso constitucional?

E ainda veremos, querendo Deus, o discurso da coroa, assim concebido:

«Dignos pares e senhores deputados da Nação:

— É com o maior prazer que me acho no meio de vós. O sr. conselheiro Pestana partiu para Vizela. Vai publicar-se brevemente um novo jornal, intitulado o Brado da

Lourinhã. Chegou o brigue Carolina. Há hoje dobrada na Rua Augusta, nº108. O cambista Fonseca espera os seus fregueses. Vamos ocupar-nos com todo o afinco da questão da fazenda.

«Está aberta a sessão.»

E, como em virtude da inacção política e sonolência individual, cada vez maiores, não haverá em breve nem factos políticos a proclamar, nem notícias particulares a referir — o discurso da coroa será obrigado, para dizer alguma coisa, a recitar obras de imaginação:

«Dignos pares e senhores deputados da Nação portuguesa: — Por uma fria noite de

Inverno, um vulto misterioso caminhava, embuçado em capa alvadia, pelos desfiladeiros da serra Morena. Vergava-lhe a fronte uma grande amargura. De súbito parou; tinha ouvido, para os lados do despenhadeiro tenebroso, um assobio lúgubre... —

Continuar-se-á na próxima sessão de abertura. Passemos agora à questão da fazenda.»

E mais tarde, cada vez mais vago, o discurso da coroa murmurará:

«Dignos pares e senhores deputados da Nação portuguesa:

«Era no Outono quando a imagem tua

A luz da Lua sedutora eu vi:

Lembras-te, Elisa?...

«E aplicaremos todo o nosso zelo à intrincada questão da fazenda.

«Está aberta a sessão.»

Para quê o discurso da coroa? Para que obrigar o chefe do Estado a repetir uma velha lauda de prosa escrita em 24, e que é hoje uma negação da verdade, uma falsificação da história? O País está desorganizado: esta certeza é dada pelas discussões do parlamento, pelos relatórios dos ministros, pelas afirmações da imprensa, pelas conversações dos cidadãos. Por consequência, ou o discurso da coroa exprime rigorosamente a opinião e a consciência do chefe do poder executivo — e então que confiança nos pode inspirar este magistrado, se ele ignora inteiramente o estado do seu país? Ou não exprime opinião alguma — e então que seriedade tem o chefe do poder executivo, vindo diante do País, quando eram necessárias palavras decisivas, recitar parolas ocas e vãs?

Sabemos perfeitamente que a coroa não é culpada do discurso que lhe obrigam a recitar, como não é responsável pela desorganização em que a obrigam a viver. A desorganização é a consequência de uma política ignorante e torpe — o discurso é a fórmula de um cerimonial antigo e rococó. Mas já que os governos não têm a capacidade de tolher a desorganização, tenham ao menos o pudor de cortar o cerimonial. E seja substituído o discurso da coroa por um franco e honrado: — Bons dias, meus senhores, toca a sentar!

Porque, sabe a coroa o que logicamente devia dizer? — Isto:

«Meus senhores: — E com o maior desprazer que me acho no meio de vós, pois que estou fatigado da vossa imbecilidade, da vossa intriga e do vosso desleixo. A situação exterior é esta: somos o que somos, porque nos deixam sê-lo por misericórdia.

A interior é esta: finanças em ruína; colónias exploradas pelo estrangeiro; marinha nula; indústria entorpecida; clero ignorante e imoral; ensino caótico; vida municipal extinta; funcionalismo desbragado; pensamento emudecido; carácter corrompido; serviços públicos desorganizados; leis em confusão; agiotagem em triunfo; proletariado em miséria; etc., etc., etc. Vão, e que o Diabo os carregue, para os seus lugares. Disse.»

Assim devia falar a coroa.

Mas, assim ou de outro modo, que seja sobretudo nacional em gramática! Que significa a construção do período à inglesa — adoptada pelo discurso da coroa? Que britânico furor a tomou de colocar os adjectivos antes dos substantivos? E uma adulação

à pérfida Álbion? Quebramos nós o Tratado de Methuen — para nos irmos escravizar no tratado de gramática de Sadley? A que vêm estas expressões repetidas de pública fazenda, nacional riqueza? São influências da política inglesa?

Confiemos em que nunca tenhamos de descer à humilhação de ouvir a coroa, por atenção aos nossos fiéis aliados, abrir-se deste modo com o País:

«Dignos pares e senhores deputados da portuguesa nação: — Feliz me acho, por me sentar no meio do nacional parlamento, dando começo às nacionais lides. E necessário que zelemos a pública administração, para manter as pátrias liberdades. Sem o constitucional decoro não há públicas garantias. A nacional fazenda merecerá o maior zelo ao legislativo poder. O executivo poder esse manterá as publicadas leis. Está aberta a ordinária sessão das portuguesas câmaras. All right!»

Esperemos que a coroa, mais bem aconselhada, volte às tradições da nacional — gramática.

E o próprio Sr. Pinto Bessa aplaudirá!

XV

Julho 1871.

«As sessões da Câmara não têm seriedade. Aí reinam o tumulto, a confusão..., etc.»

Uma nova justificação desta verdade apareceu na sessão do dia 29.

O sr. presidente do Conselho falava. Houve um momento em que S. Exª, ou cometeu um erro de gramática, segundo o dizer de alguns jornais, ou arremessou desdenhosamente à circulação a eloquente palavra bomba, segundo a afirmação de outros. O facto é que a maioria entendeu que a melhor maneira de manifestar ao sr. presidente do Conselho que não tinha confiança na sua política, era apupá-lo! E a Pátria deve agradecer aos senhores deputados que eles não lhe tivessem dado bengaladas!

Então o sr. presidente, a título de esclarecimento, perguntou timidamente se se achava numa praça pública. Pergunta excessivamente ociosa. N uma praça nunca há nem aqueles gritos, nem aqueles tumultos — porque a polícia intervém e faz evacuar a praça.

Impunemente, ao abrigo das instituições, sem ingerência policial — uma assuada só se pode dar na Câmara dos Deputados. Em mais nenhuma parte é permitido, pelos regu-lamentos da polícia, ser-se tão excessivamente trocista. O caso é que a maioria, para provar ao sr. presidente que se considerava ofendida com a designação de praça, rompeu num alarido tal como não é uso fazer-se na praça de touros — tudo para demonstrar bem claramente que não estava ali um grupo de moços de forcado, mas um corpo de legisladores. A palavra patife fez então pela primeira vez a sua entrada na

Câmara e tomou assento. Foi também então que o sr. presidente do Conselho, em compensação, mandou o epíteto malcriados a cumprimentar e abraçar os eleitos do

País.

A assuada, o motim, o chasco, o charivari, cresceram tão constitucionalmente que o Sr. Aires de Gouveia, eclesiástico, teve de enterrar na cabeça o seu chapéu alto. A este gesto, cheio de dedicação nacional, a tempestade evacuou a sala. Diz-se que alguns srs. deputados foram cumprimentados à saída pelos melhores frequentadores do sol na praça do Campo de Santana, que se achavam presentes. As galerias permaneceram impassíveis. T al foi esta memorável sessão, em que a altura das ideias competiu com o vigor da eloquência!

Parece pois definitivo que o Parlamento decidiu adoptar o motim e a assuada como a forma parlamentar dos seus trabalhos. Vistes, amigos, a sessão de 29 de Junho.

Quereis assistir à de 29 de Julho? Aí tendes o seu fiel extracto:

O ORADOR (concluindo): — E foi assim, sr. presidente, que se passaram os factos.

O SR. LUCIANO DE CASTRO (interrompendo com grandes punhadas na mesa): — O ilustre deputado diz uma refinadíssima peta...

Vozes: — Apoiado, apoiado!

O ORADOR (voltando-se e desabotoando o colete): — Petas? oh! descarado!

(apoiado, apoiado). Eu, sr. presidente, não posso consentir que esse biltre entre no meu foro interior!

Vozes: — Fora, fora!

O SR. COELHO DO AMARAL (espancando com dignidade o Sr. Barros e

Cunha) : — E assim provo, sr. presidente, que o Sr. Barros e Cunha não tem razão

Escrevemos no primeiro número das Farpas: alguma nos princípios que estabeleceu.

O SR. MARIANO DE CARVALHO: — Mas a ditadura foi nefasta! E não há mariola nenhum que me demonstre o contrário... (acende o cigarro).

O SR. COELHO DO AMARAL (continuando o espancamento): — Não me interrompam o discurso! Não me interrompam!

O SR. PRESIDENTE (aos Srs. Mariano e Santos Silva): — Os senhores não têm direito a interromper sovas que o regimento garante (berreiro).

O SR. PRESIDENTE DO CONSELHO: — A Câmara está-se sepultando na mais profunda abjecção!

(O sr. presidente do Conselho sucumbe, sob uma chuva de bengaladas).

O SR. JOSÉ DIAS (batendo com a bengala sobre a mesa, a um continuo) : — Dois cafés! Um cabaz!

Vozes (atravessando o corpo legislativo). — Salta meia de Colares!

O SE. PINHEIRO CHAGAS (deitado, com ar melancólico):

«Oh virgem pálida e triste

Branca visão doutros Céus!»

O SR. AIRES DE GOUVEIA: — O que diz ele?

Vozes: — Ele cisma! Ele cisma!

A oposição atira cebolas ao Sr. Pinheiro Chagas. Alguns senhores deputados grunhem obscenidades, que o ruído impediu que chegassem à mesa dos taquígrafos.

O ORADOR: — A Câmara não quer escutar-me? Pois bem, eu passo a outros argumentos... (Distribui bengaladas).

Tumulto. O sr. presidente atira a campainha à cara da maioria, e o tinteiro aos queixes da oposição. Alguns senhores deputados miam de gato. O Sr. Santos e Silva, no auge da sua indignação, dá cambalhotas. O Sr. Luís de Campos espalha uma prodigiosa quantidade de pontapés.

O Sr. PRESIDENTE: — Para amanhã continua esta interessante discussão.

A Câmara sai correndo, gritando, rebolando pelas escadas abaixo.

Os contínuos levantam as garrafas de Colares.


A política chegou a tal miséria, que nem a polidez instintiva coíbe os homens.

XVI

 

Julho 1871.

Falou-se muito durante este mez, n’um facto de grande coragem praticado por s. ex.ª...

Foi o caso que s. ex. subia n’uma carruagem a rampa de S. Bento, as Côrtes, quando um policia civil advertiu ao cocheiro que não era permittida a passagem. S. ex.ª, com animo notavel, deitou, em risco de vida, a cabeça fora da portinhola, gritando ao policia: Para traz! e bradando ao cocheiro: Ávante! Mais adeante, novo perigo Outro policia faz parar a carruagem. S. ex.ª, repetindo a façanha heroica, com a simplicidade de Turenne, varou o policia com uma reprehensão, regritou marcialmente: Para a frente! E tomou o reducto — isto é, subiu a rampa. A historia raras vezes regista tão altivos rasgos. Ainda não seccaram os louros de Montes Claros!


Alguns jornaes — a imprensa invejosa amesquinha os heróis — tiveram para este facto censuras ásperas, e fortemente argumentadas.

Quiseram dizer — que S. Exª pretendeu colocar-se ridícula e presunçosamente, como excepção, superior às determinações da polícia: que S. Exª, militar, deu o exemplo do desacato à disciplina militar: que S. Exª, chefe de polícia, tornou irrisórias as disposições policiais: que S. Exª, legislador, ensinou o desdém das leis: que S. Exª, homem de bem que deve cumprir o seu dever, repreendeu dois homens pelo facto de eles cumprirem o seu dever: que S. Exª obriga as pessoas de senso a lembrarem-lhe que ele não é o tirano Nabucodonosor — mas o comandante obscuro de uma milícia civil, e que a fama do seu nome ainda não passou de Cacilhas, e só a muito custo vai conseguindo penetrar para os lados de Aldeia Galega.

Isto disseram alguns malévolos. Nós, porém, que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a realidade secreta, dizemos afoitamente que aquele acto só prova em S. Exª — exuberância de brio guerreiro!

S. Exª é um homem valente, bateu-se bem. Mas as guerras acabaram, e S. Exª está como um homem gordo que não faz exercício: S. Exª sofre de excessos de valor — como esse homem sofreria de excessos de sangue. S. Exª tem congestões de brio. A coragem faz-lhe já vertigens, como aos sanguíneos a abundância de vida. E verão, meus senhores, que ainda há-de acabar por lhe fazer — furúnculos!

Imagine-se com efeito um homem forte, febril de batalhas a dar, palpitante de redutos a tomar, sôfrego de sangue inimigo — vivendo burguesmente e pacatamente na

Baixa, ou no quartel do Carmo, e tendo por única glória estratégica destacar patrulhas para o Arco do Bandeira, e por único troar de artilharia os foguetes do Sr. Cardim! Um bravo, nestas circunstâncias, acumula dentro em si, dos gorgomilos ao estômago — quantidades prodigiosas de furor guerreiro. A cada movimento que faz, sobem-lhe à cabeça, vêm-lhe à boca — ondas de ardor bélico. Acrescentem a isto a atmosfera militar em que esta época se move e respira: guerras no Reno, guerras civis, províncias conquistadas, cidades que ardem, nomes de generais heróicos que cintilam em tele-gramas, o ruído, a fulguração da glória, a imortalidade na história — e ele, S. Exª, condenado, como única acção radiosa, a repreender o 73 da 2ª porque furtou uma correia ao 48 da 5ª!

Esta castidade na luta pesa a S. Exª. S. Exª necessita de dar satisfação às exigências do seu temperamento — e S. Exª está viúvo de glória! Por isso, ao mais pequeno motivo, S. Exª de dentro do deputado da maioria saca o herói da municipal.

Falou-se muito, durante este mês, num facto de grande coragem praticado por S.

Exª...

Houve um tempo feliz entre todos, em que S. Exª andou ferindo as grandes guerras — dos penicheiros. Então S. Exª vivia nos interesses da luta, nas comoções soberbas. Era o tempo das patrulhas dobradas e dos grandes recontros da Rua Nova do

Carmo. Então, quando as guardas avançadas lhe vinham dizer: — «Há penicheiros para os lados da Bitesga» — S. Exª, sorrindo, respondia: — «S. Jorge e Portugal» E partia.

E o nome de s. Exª aparecia nos telegramas do correspondente de Lisboa — para o

Clamor de Alpedrinha!

Outras vezes eram vultos suspeitos que tinham entrado numa casa, a horas lôbregas. S. Exª corria, cercava, bloqueava, destacava um corpo de exército composto do Bento da 5ª — outro composto do José Prefeito da 1ª. Mas ai! os bandidos que S. Exª surpreendia minando as instituições, eram mesários da confraria das Chagas!

Esse período épico, porém, acabou. O mundo cada vez se torna menos interessante. E S. Exª está de novo na disponibilidade do heroísmo. Por isso atacou com tão cru arremesso os dois polícias civis. Tem ele culpa? Pode ele dizer ao seu sangue que não corra e à sua espada que não vença? Pode ele impedir-se de tomar Cacilhas — e orchata?

Ora, nestas circunstâncias, julgamos que há uma única maneira de salvar este temperamento, fatalmente belicoso:

E estabelecer, no matadouro, reses — para uso do herói. Dá-se assim um calmante

à sua ferocidade. O guerreiro todas as manhãs, como quem vai tomar o seu leite de burra, vai matar o seu vitelo. Sangra o boi — e o brio. Doente de valor, S. Exª chega, brande a espada, e a cabeça armada do bezerro inimigo rola-lhe aos pés. O herói limpa a espada, vem almoçar, e fica para todo o dia repousado, tranquilo, sem ímpetos de bravura, pacato como uma couve. E a polícia civil entrará de novo no gozo da sua dignidade e da sua pele Assim seja!


Julho 1871.

Diz-se - e quem sabe se é uma torpe calúnia? - que o Governo vai ter o impudor de consentir que se discuta o orçamento geral! E natural que por essa ocasião melancólica se atente no orçamento especial do muito belicosamente chamado

Ministério da Guerra. Para tal eventualidade, aqui estiramos sobre estas páginas algumas reflexões amáveis.

Corre que, nisso a que os relatórios chamam pomposamente o exército, se gastam anualmente perto de 4000 contos. Corre, porque se torna difícil averiguar a exacta ver-dade, sendo o orçamento, como é, um inviolável segredo.

Ora se estudarmos bem a utilidade do nosso exército, temos ocasião de algumas francas e fortes risadas, dignas de Homero.

A primeira utilidade de um exército é que se bata.

O nosso exército não se pode bater.

Pelo número dos seus soldados (batalhões incompletos, quadros rareados, etc.), estamos como depois de uma derrota - ao cabo de 24 anos de paz!

O seu armamento é inteiramente ineficaz. Está provado cientificamente que, depois de meia hora de fogo, as espingardas do exército passariam para o inimigo - rebentadas em estilhaços. Quando não rebentem, o seu alcance é humanitário.

Queremos dizer - as balas ficam a meio caminho do inimigo.

Verdadeiramente o nosso exército só poderia alcançar o inimigo - correndo atrás dele: mas para isso faltam-lhe sapatos! Realmente, por tão pouco armamento, mais valia uma tanga e uma flecha!

Quanto à nossa artilharia, há um só meio de ela prejudicar o inimigo: é fazê-lo prisioneiro, colocá-lo amarrado a 4 palmos da peça, procurar não errar o tiro, e conseguir assim inutilizar-lhe a barretina!

O equipamento é nulo. Nem tendas, nem cantinas, nem transportes. Nenhum aparelho de marcha, nenhum material de acampamento.

O soldado português é bravo, firme, sofredor; tem o élan, o arremesso, como o touro. Mas nas guerras modernas estas qualidades são inúteis. Compreendeu-se já que uma peça de artilharia é um soldado mais sofredor e mais firme que um filho de Adão.

Ora estes grandes duelos de artilharia, exigem no soldado outras qualidades além da coragem: exigem sobretudo, nos estados-maiores, a estratégia como uma ciência. Os nossos generais não têm ciência: tiveram outrora, na mocidade, bravura e pulso: depois veio a idade: perderam a força quando ela na verdade já não era necessária, mas não ganharam a ciência, quando ela é indispensável.

Os regimentos não têm instrução. Não têm o hábito do acampamento, da fadiga, das marchas. Não têm pontaria. A disciplina está relaxada; não há respeito, nem subordinação. Não existe mesmo espírito militar, brio de quartel, amor da arma. O soldado vive na cidade, numa indolência de paisano: fuma, namora, canta o fado: é um camponês que procura sofrer a farda cinco anos - o mais alegremente possível.

Não servindo o exército para a guerra - podia naturalmente servir para a polícia.

Mas não serve. Nas cidades de segunda ordem os regimentos vivem ociosos. Pois nessas cidades não há patrulhas, nem rondas, nem sentinelas: as ruas estreitas, sujas, mal alumiadas, são um terreno livre à desordem.

Nada mais natural que aproveitar os vagares do regimento para patrulhar a cidade.

Não! o regimento deita-se às 9 horas, para não apanhar o ar da noite. Quem vigia vagamente, sem cuidado e sem persistência, um dia cada semana, são os cabos de polícia. Ora os cabos de polícia são cidadãos que fazem este serviço obrigatória e gratuitamente. Isto é - cidadãos que têm o seu trabalho, a sua família, os seus deveres, sofrem ainda a obrigação de manter a tranquilidade de graça. Homens que não têm família, nem trabalho, de propósito para mais livremente poderem manter a ordem, que não têm outros deveres que não sejam esses, e que para isso são pagos - deitam-se às 8 horas da noite, depois de terem passeado desde as 8 horas da manhã. Oh bom senso! Oh pátria nossa!

O exército deste modo é uma ociosidade organizada!

Convém ao menos ter exército para o caso de uma revolta?

Nesse caso - o exército seria ainda inútil. Em Portugal o exército não se bate facilmente com o povo: o exército é uma porção de povo fardado. Em França o exército é um mundo à parte, exilado nos seus quartéis e nos seus camps, com ideias, hábitos, sentimentos próprios, sem comunicação com o povo, chamando-lhe bourgeois e pekin, e não tendo dúvida alguma em o espingardear. Em Portugal o soldado vive com o povo: saiu dele, volta brevemente para ele: está com ele no contacto de todos os dias, bebe nas mesmas tabernas, canta as mesmas cantigas, brinca nas mesmas romarias, é ainda um cidadão. Não espingardeia o cidadão! Quando muito, nunca lhe paga o vinho.

De modo que o exército em Portugal:

E inútil para a guerra;

Inútil para policiar;

Inútil para reprimir uma revolta.

Para que serve? Para gastar 4000 contos.

Há mais: um exército só por si é inútil se não faz parte de uma inteira organização militar.

Onde estão as nossas praças-fortes? A nossa artilharia? Os nossos arsenais? Os nossos campos entrincheirados? As nossas fábricas de armamentos para um caso de perigo? Os nossos fortes? Os nossos caminhos estratégicos? - Nada temos, a não ser o bom senso fechado, a fronteira aberta, e umas peças de artilharia a que deu Jogo

Camões - o que é poético, mas frágil!

Dir-nos-ão: «Mas nós não somos um país militar...

Então façamos o que se deve num país que não é militar. Não gastemos 4 000 contos tão improdutivamente, como se os gastássemos em caixinhas de soldados de chumbo - (plúmbeos guerreiros, diria o Sr. Vidal, poeta lírico).

Licenciemos o exército - e criemos:

1º Uma guarda nacional, com serviço extensivo a todo o cidadão válido;

2º Um corpo de gendarmaria civil.

Alcançávamos assim:

1º Economizar 4 000 contos ou pelo menos 3 000;

2º Entregar, à agricultura, uns poucos de mil braços inesperados;

3º Tornar eficaz a defesa nacional;

4º Estabelecer por todos os distritos do País um serviço de polícia, necessidade impreterível;

Havia ainda uma 5ª vantagem; mas não a expomos, receando que a corte nos mandasse assassinar.


XVIII

Julho 1871.

Houve este mez um panico patriotico: julgou-se que iamos perder Macau! A China, segundo se affirmava, tinha intimado Portugal a evacuar aquella colonia —-onde só devia reinar o rabicho.

Foi acusado acremente o Governo; a Baixa pululou de alvitres; e o orgulho nacional da Rua dos Retroseiros pareceu profundamente ferido. Corria que o Sr. Carlos

Bento, como outrora Caím, ouvia, a horas mortas, vozes vingativas que lhe bradavam:

— Que fizeste tu de Macau, Bento?

E tanto que o Governo, para nos tranquilizar, bradou de entre as colunas do Diário do Governo:

— Não, Portugueses, não, Macau ainda é vosso!

A verdade parece ser que Macau está ainda preso à Metrópole — por alguns telegramas que se estão trocando entre o governador de lá, e o Governo de cá. Diríamos que está por um fio! — se tão lamentável eq uívoco se pudesse escrever, quando se trata do orgulho nacional e da Baixa.

As relações de Portugal com as suas colónias são originais. Elas não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um único melhoramento: é uma sublime luta — de abstenção!

— Não — exclamam elas com o olhar voltado de revés para a Metrópole — mais rendimento que o deste ano, que é nenhum, não és tu capaz de nos pilhar, malvada!

— Também — responde obliquamente a Metrópole — em maior desprezo não sois vós capazes de estar!

Quando muito, às vezes, a Metrópole remete às colónias um governador: agradecidas, as colónias mandam à mãe-pátria — uma banana. E perante este grande movimento de interesses e de trocas, Lisboa exclama:

— Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente, somos um povo de navegadores!

É necessário no entanto fazer justiça à Metrópole. A Metrópole tem certas generosidades consideráveis com as colónias. Assim, com os Açores — que não são uma colónia, mas que pela distância, pelo abandono, pela separação de interesses, têm toda a fisionomia colonial... Portugal para com os Açores é inesgotável — de desembargadores!

Às vezes os jornais dos Açores, tomando um ar severo, voltam-se para a Metrópole, e gritam-lhe no rosto: madrasta! O reino imediatamente lhes manda, com todo o zelo — dois desembargadores!

Mas daí a pouco os Açores, inquietos, começam a dizer que não seria mau tentar os Estados Unidos! O País ataranta-se; e para lisonjear os Açores, manda-lhe mais desembargadores. De todos os paquetes, os Açores, aterrados, vêem desembarcar turbas de desembargadores. Já aquele fértil solo negreja de desembargadores.

— Basta! — exclamam os Açores sufocados.

— Basta de segunda instância!

E a Metrópole, inexaurível no seu amor, continua impassível a verter-lhe no seio — catadupas de desembargadores!

Igual generosidade para com as possessões de África, verdadeiras e legítimas

Houve este mês um pânico patriótico: julgou-se que íamos perder Macau! A

China, segundo se afirmava, tinha intimado Portugal a evacuar aquela colónia — onde só devia reinar o rabicho. colónias, essas! Para aí o País é inesgotável — de celerados! E celerados escolhidos com inteligência. Um sujeito que tenha tido a baixeza de roubar só 5$000 réis, nunca poderá aspirar a fazer parte da sociedade de Luanda. Para se ser remetido como mimo da

Metrópole é necessário, pelo menos, ter sondado, com a navalha de ponta, as entranhas de um amigo querido!

Poderá supor-se que Moçambique e Compª recebem estas dádivas com um entusiasmo — extremamente sublinhado. Não! As possessões de África estão contentes.

Há-de vir tempo mesmo em que quem quiser em Moçambique ou em Angola um criado, um amigo ou um noivo — esperará a remessa dos facínoras.

Os comerciantes irão dizendo, com ar pensativo:

— Isto vai mal! Não há caixeiros de confiança! Os ladrões desta vez tardam!

E um sujeito será assim apresentado numa casa particular:

— O Sr. Fulaninho, que teve a honra o ano passado de assassinar seu próprio pai, como demonstra...

— Oh! muito gosto em conhecer...

— E a Srª Fulana, ladra muito conhecida na sociedade da Boa Hora.

— Então? tem a bondade de se sentar!

E com estas generosidades que o Governo responde vitoriosamente àqueles que vão, em falsas vozes, afirmando:

Que o País despreza as colónias; que elas estão abandonadas a uma frouxa iniciativa particular, sem estímulo, sem protecção, sem tranquilidade; que a energia individual só pode ser fecunda num país bem policiado; que nas colónias não há garantias de segurança, nem solicitude pelo comércio, nem polícia, nem higiene, nem instrução; que tudo ali vive na desordem, na desorganização, no desleixo, numa antiquíssima rotina; e que o único movimento é o do estrangeiro que as explora de facto

— apesar de nós as possuirmos de direito.

Mas, meus senhores, antes de tudo, nós não temos marinha! Singular coisa! Nós só temos marinha pelo motivo de termos colónias — e justamente as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha! Todavia a nossa marinha, ausente dos mares, sulca profundamente o orçamento. Gasta 1159 000$000!

Que realidade corresponde a esta fantasmagoria das cifras? uns poucos de navios defeituosos, velhos, decrépitos, quase inúteis, sem artilharia, sem condições de navegabilidade, com cordame podre, a mastreação carunchosa, a história obscura. E uma marinha inválida. A D. João tem 50 anos, o breu cobre-lhe as cãs: o seu maior desejo seria aposentar-se como barca de banhos.

A Pedro Nunes está em tal estado, que, vendida, dá uma soma que o pudor nos impede de escrever. O Estado pode comprar um chapéu no Roxo com a Pedro Nunes — mas não pode pedir troco.

A Mindelo tem um jeito: deita-se. No mar alto, todas as suas tendências, todos os seus esforços são para se deitar. Os oficiais de marinha que embarcam neste vaso fazem disposições finais. A Mindelo é um esquife — a hélice.

A Napier saiu um dia para uma possessão. Conseguiu lá chegar; mas exausta, não quis, não pôde voltar. Pediu-se-lhe, lembrou-se-lhe a honra nacional, citou-se-lhe

Camões, o Sr. Melício, todas as nossas glórias. A Napier insensível, como morta, não se mexeu.

Das 8 corvetas que possuímos são inúteis para combate ou para transporte — todas as 8. Nem construção para entrar em fogo, nem capacidade para conduzir tropa. Não têm aplicação. Há ideia de as alugar como hotéis. A nossa esquadra é uma colecção de jangadas disfarçadas! E este grande povo de navegadores acha-se reduzido a admirar o vapor de Cacilhas!

Têm um único mérito estes navios perante uma agressão estrangeira: impor pelo respeito da idade. Quem ousaria atacar as cãs destes velhos?

Já se quis muitas vezes introduzir nas fileiras destes vasos caducos — alguns navios novos, ágeis, robustos. Tentou-se primeiro comprá-los.

Sucedeu o caso da corveta Hawks. Era esta corveta uma carcaça britânica, que o

Almirantado mandava vender pela madeira — como se vende um livro pelo peso. Por esse tempo o Governo português — morgado de província ingénuo e generoso — travou conhecimento com a Hawks, e comprou a Hawks. E quando mais tarde, para glória da monarquia, quis usar dela, a Hawks, com um impudor abjecto — desfez-se-lhe nas mãos!

Estava podre! Nem fingir soube! Tinha custado muitas mil libras.

Tentou-se então construir em Portugal. Sabia-se que o Arsenal é uma instituição verdadeiramente informe: nem oficinas, nem instrumentos, nem engenheiros, nem organização, nem direcção. Tentou-se todavia — e fez-se nos estaleiros a Duque da

Terceira. Foi meter máquina a Inglaterra. E aí se descobre que a tenra Duque da

Terceira, da idade de meses, tinha o fundo podre! Foi necessário gastar com ela mais cento e tantos contos.

Nova tentativa. Entra nos estaleiros a Infante D. João. 87 contos de despesa. Vai meter máquina a Inglaterra. Fundo podre! O Arsenal perdia a cabeça! Aquela podridão começava a apresentar-se com um carácter de insistência verdadeiramente antipatriótica! Os engenheiros em Inglaterra já se não aproximavam dos navios portugueses senão em bicos de pés — e com o lenço no nariz. As construções saídas do

Arsenal sucumbiam de podridão fulminante. A Infante D. João custou em Inglaterra, mais cento e tantos contos!

O Arsenal, humilhado no género navio, começou a tentar a especialidade lancha.

Fez uma a vapor. Lança-se ao Tejo, alegria nacional, colchas, foguetes, bandeirolas... E a lancha não anda! Dá-se-lhe toda a força, geme a máquina, range o costado — e a lancha imóvel! Mas de repente faz um movimento... Alegria inesperada, desilusão imediata! A lancha recuava. Era uma brisa que a repelia. Em todas as experiências a lancha recuava com extrema condescendência: brisa ou corrente tudo a levava, mas para trás. Para diante, não ia. Pegava-se! O Arsenal tinha feito uma lancha a vapor que só podia avançar — puxada a bois. O País riu durante um mês. O Arsenal roeu a humilhação, encetou a espécie caí que. Ainda o havemos de ver, no género construção em madeira, cultivar — o palito!

A nossa glória, inquestionavelmente, é a Estefânia. Parece que poucas nações possuem um vaso de guerra tão bem tapetado! O orgulho daquele navio é rivalizar com os quartos do Hotel Central. E um salão de Verão surto no Tejo. E no Tejo realmente dá-se bem. No mar alto, não! Aí tem tonturas. Não nasceu para aquilo: um navio é um organismo, e como tal pode ter vocações: a vocação da Estefânia era ser gabinete de toilette. E pacata como um conselheiro. E uma fragata do Tribunal de Contas! Por isso quando a quiseram levar a Suez, quantos desgostos deu à sua Pátria! quantas brancas fez

à honra nacional! E verdade que os cabos novos, da Cordoaria Nacional (sempre tu, ó terra do nosso berço!) quebraram como linhas, e ninguém lhes pode contestar que tivessem esse direito. A marinhagem também não quis subir às vergas (opinião respeitável, porque a noite estava fria). Alguns aspirantes choraram de entusiasmo pela

Pátria. O capelão quis confessar os navegadores.

O caso foi muito falado nesse tempo. Mais celebrado que a descoberta da índia.

Essa só teve Camões que naufragou; — a viagem da Estefânia teve o Sr. O. Vasconcelos que arribou! Tanto é semelhante o destino dos que cultivam o ideal! O facto é que desde então brilha no Tejo, tranquila, reluzente e vaidosa — a Estefânia, corveta mobilada pelos Srs. Gardé e Raul de Carvalho.

Com tal marinha, como podem as colónias prosperar? O Governo daqui a pouco, quando a idade for dizimando estes antigos vasos de guerra — não tem quem lhe leve às colónias um regimento, uma ordem, um ofício. Vê-lo-emos — para vergonha eterna de uma das caravelas de Vasco da Gama — pedir à marinha mercante o patacho Constância, com o fim de acudir a Timor. Há-de chegar a recorrer às faluas de Alcochete. E mais tarde, pela nossa pobreza progressiva, as comunicações com as colónias terão de ser feitas — de viva voz!

Quando houver um ofício que remeter para um governador de colónia, irá um amanuense da secretaria ao Cais do Tejo, e aí, voltando-se para o sul, bradará no espaço e nos ventos:

— Il.mo e Ex.mo Sr...

E as solidões do Oceano repetirão gemendo:

— Il.mo e Ex.mo Sr.!

E depois, sucede que nem todos os ministros dão igual importância à marinha. Se por exemplo os Srs. Latino e Rebelo pensavam que a organização da marinha garantia a prosperidade das colónias, aqui temos o Sr. Melo Gouveia que pensa de outro modo, ele!

Ele entende que a marinha serve — para manter bem presente nas colónias a ideia da Pátria, e sobretudo, (textual: discurso de S. Exª por ocasião da discussão do orçamento da marinha na legislatura passada) sobretudo «para certificar às colónias que elas são lembradas na Pátria com carinho e saudade».

E aí está! Nós a pensarmos que um navio ia vigiar o litoral, garantir a paz interior, impor o respeito ao estrangeiro, dar protecção ao comércio — e no fim o que o navio vai fazer é significar às colónias que a Pátria melancólica lhes manda muitos recados e os seus suspiros!

Ora neste caso a marinha pode ser dispensada. Para expressar o nosso sentimento basta que o Governo remeta às colónias, pelo vapor da carreira, um bilhete contendo uma saudade roxa, uma mecha dos seus cabelos, e estes dizeres meigos:

— «Colónia! lembro-me de ti com pungente mágoa, definho nos teus ardores...

Lembra-te de mim, meu bem... Olha de lá a Lua, que eu de cá também a olho com a alma em ti. Pensando nos teus encantos, dou largas ao salgado pranto. Até à morte o teu

Fiel amante, o ministro e secretário dos negócios da marinha e ultramar,

Gouveia e Melo.»

Ou, para não dar escândalo, pode o Governo de S. M. recorrer a um anúncio amoroso nos jornais.

COLÓNIAS PORTUGUESAS

FITA AZUL NO CHAPÉU

«Sigilo e sentimento. Recebi. Ralado de paixão. Confiemos no Céu. Quem te pudesse ver no Passeio Público à boquinha da noite! Unamos as nossas mentes na mesma prece. Teu, Gouveia.»

Enfim, o amor é muito engenhoso; e o Sr. Melo Gouveia achará, decerto, depois de extinta a marinha, um meio interessante para que o Governo possa manifestar às colónias — a sua chama!

Para que temos colónias? E ai de nós que as não teremos muito tempo! Bem cedo elas nos serão expropriadas por utilidade humana. A Europa pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da civilização; e que tirar as colónias à nossa inércia nacional, é conquistá-las para o progresso universal. Nós temo-las aferrolhadas no nosso cárcere privado de miséria. Não tardará que na Europa se pense em as libertar.

Para evitar esse dia de humilhação sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX — e vendamos as colónias.

Sim, sim! bem sabemos! a honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc.!

Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de um fidalgo (quando os havia) que deixasse em redor dele seus filhos na fome e na imundície — para não vender as salvas de prata que foram de seus avós? Todos diriam que era um imbecil canalha!

Pois bem, estes 4 milhões de portugueses são os filhos esfomeados do Estado, para quem as colónias estão como velhas salvas de família postas a um canto num armário. E hesitará o Estado em as vender? Sobretudo quando temos de as perder? Se o País se pudesse reorganizar — bem! As colónias seriam no futuro uma força. Mas assim! com esta decadência progressiva, irremissível...

E verdade que se as vendêssemos, o Governo deixaria o País no mesmo estado de miséria, e, como já não tinha colónias — compraria fragatas! Dilema pavoroso! Devemos vender as colónias, porque não temos Governo que as administre; mas não as podemos vender, porque não teríamos Governo que administrasse o produto! Miserere!

E depois se as vendêssemos, que dor para o Sr. Gouveia — que as ama! A quem daria ele então as esperanças da sua mocidade e o vico do seu peito? Não, colonias, sêde sempre fieis a Gouveia! Não espesinheis esse coração de vinte annos, cheio de crenças! Que a vossa divisa seja d’ora avante; Gouveia e cacau!

E prosperareis!


XIX

Samuel é nosso amigo, ama o nosso riso, e presta as suas mãos, que diz cansadas e velhas, para ajudar a tirar a verdade do fundo do nosso poço.

Samuel porém insinua que as Farpas mostram vaidade quando afirmam que são o bom senso — porque ninguém é o bom senso! Mas, injusto Samuel, atende bem! — As

Farpas não disseram que eram o bom senso absoluto, com a suprema plenitude da razão, a posse exclusiva da verdade, nenhum temperamento e muita roupa branca! O nosso prospecto não declarava — As Farpas são o espírito de Deus levado sobre as

águas.

Pobres Farpas! decerto que elas não são a coluna de log o, nem as doze tábuas da lei, nem a grande voz do deserto! — Enfeitadas e coloridas na sua porção de bandarilhas, aguçadas e incisivas na sua porção de ferro, ágeis e laboriosas como abelhas, elas são sobretudo e antes de tudo 96 páginas impressas na Tipografia Universal, sem grandes erros de gramática e sem grandes verdades de filosofia, estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa — e contentando-se com serem alegremente recebidas, pela manhã, à hora do correio e do almoço, por alguns espíritos simpáticos e por algumas brancas mãos. Diógenes decerto, por tão pouco, não apagaria a sua lanterna!

Samuel escreve-nos uma carta, que ele intitula Consciência, e em que discute opiniões, juízos, ditos, espalhados, ao flutuante acaso do humorismo, nas páginas rápidas destes volumes.

XX

Agosto 1871.

Bom, ou mau, o folheto foi lido, levemente discutido, totalmente comprado. Era anónimo.

Que há-de acontecer? o Governo proíbe-lhe a venda! Só aqui há um mundo revolto de pilhéria. O livro é publicado em Maio, esgotado em Junho, e proibido em

Julho! A única crítica é a gargalhada!

Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada.

Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel — a gargalhada!

Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime — nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça. Tu és filha de um dichote que casou com uma pirueta! Tu és clown! tu és Fajardo! Se viveres, rimos! A oração fúnebre que diremos sobre a tua campa será — Ah! ah! ah! — A nota que a teu respeito se lançará na história será — Ih! ih! 1h! A tua recordação entre os homens será — Uh! uh! uh! Oh poder executivo! oh Sandio Pança! oh pilhéria! Publicado num mês, esgotado no outro, proibido no seguinte! Oh Pátria! Oh cambalhota! oh Bertoldinho!

Mas corre que o Governo, além de proibir o folheto, vai processar o autor do folheto. Aí, alto! Recolhemos a gargalhada, tiramos do cesto o ferro em brasa.

Processado porquê?

Três coisas fazia o autor anónimo daquele opúsculo:

Explicava a situação e as ideias dos partidos em França; verberava os Srs. Thiers e

Jules Favre; defendia alguns actos da comuna e alguns dos seus homens.

Por qual destes três factos é ele processado? Qual determina o estado de criminalidade?

Explicar os partidos em França? Então são seus cúmplices e devem ser processados pelo Governo português:

Todos os jornais, de todas as cores, de todas as cidades;

Todos os deputados, de todas as câmaras, de todas as nações;

Todos os livros, de todas as políticas, de todos os continentes.

E preparar, para toda esta gente, quartos no Limoeiro! Ergue-te e abre, ó Manuel

Mendes Enxúndia!

É acusado o autor do folheto por ter verberado os Srs. Thiers e Favre? Que lei lho proíbe? Que regulamento, que portaria, que decreto me inibe, a mim, a ti, a ele, de gritar em cima das torres que o Sr. Thiers é um imbecil, o Sr. Favre um traidor, o imperador da Rússia um bebedor de champanhe?! Está o Sr. Thiers elevado à categoria de dogma?

E ele equiparado pelo Governo à religião do Estado? Temos o Sr. Thiers inviolável como Cristo?

Que façam um processo às Farpas, pois nós declaramos isto: — O Sr. Thiers é um sujeito astuto, aproveitável a um país que precise viver de expedientes, mas

Publicou-se, há tempo, na Imprensa da Universidade, em Coimbra, um folheto acerca da Comuna. perfeitamente inapto para uma nação que tenha de se organizar com ideias; é um político de pequenos meios que já foi polícia e parteiro.

O Sr. Favre é um bastardo de Robespierre, declamador de tribunal, violentador do poder em 4 de Setembro como radical, e em 18 de Março ministro conservador, personagem característico daquela farsa política que se chama — tira-te tu, para que vá eu!

E aqui estão estes Adolfo Thiers e Júlio Favre, iguais em inviolabilidade à

Sagrada Eucaristia, ou à Imaculada Conceição! E seremos processados, seremos degradados, se ousarmos vergastar com algumas frases de história as carnes antiquadas dos Srs. Adolfo e Júlio!

Mas é acusado o autor do folheto por ter defendido alguns actos da comuna e alguns dos seus homens? — Oh! indigna vergonha! Pois é proibido em Portugal ter opinião sobre um facto estrangeiro? Pois a comuna passou-se na nossa política? Foi a

Rua do Arco do Bandeira incendiada com petróleo? Foi o Sr. O. de Vasconcelos que mandou fuzilar o arcebispo de Paris? Pois não pertence a história ao puro domínio do pensamento? Pois a própria França não impede que se escrevam livros louvando a comuna, e o Governo português impede-o? Pois o Governo não proíbe que os jornais legitimistas exaltem o absolutismo que prendeu e matou, cortou a machado nossos pais, sequestrou as nossas casas, queimou as nossas searas, e proíbe que se discuta uma política cujos excessos se passaram a 100 léguas de nós, sem relação connosco, sem acção na nossa acção?! Pois há alguma lei que me obrigue a amar S. Francisco de Sales e a desprezar Tibério?! Pois a opinião impõe-se como as posturas da câmara municipal?! Pois haverá cartilha para as nossas apreciações históricas? Se o Governo proíbe que se exaltem os homens da Comuna, deve logicamente proibir que se exaltem os homens de 93, o Governo provisório de 48, e que admiremos o próprio Sr. Thiers, antigo redactor do Nacional, fautor da revolução de 30! E que vá mais longe então! que nos processe, porque nós admiramos os Gracos, Espártaco salvador de escravos, Moisés que libertou um povo, Cristo que remiu uma raça!

O Governo português pondo a sua tosca mão sobre o pensamento! — oh! pirueta, dá-lhe tu a recompensa!


Agosto 1871.

Bom, ou mau, o folheto foi lido, levemente discutido, totalmente comprado. Era anónimo.

Que há-de acontecer? o Governo proíbe-lhe a venda! Só aqui há um mundo revolto de pilhéria. O livro é publicado em Maio, esgotado em Junho, e proibido em

Julho! A única crítica é a gargalhada!

Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada.

Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel - a gargalhada!

Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime - nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça. Tu és filha de um dichote que casou com uma pirueta! Tu és clown! tu és Fajardo! Se viveres, rimos! A oração fúnebre que diremos sobre a tua campa será -Ah! ah! ah! -A nota que a teu respeito se lançará na história será - Ih! ih! 1h! A tua recordação entre os homens será - Uh! uh! uh! Oh poder executivo! oh Sandio Pança! oh pilhéria! Publicado num mês, esgotado no outro, proibido no seguinte! Oh Pátria! Oh cambalhota! oh Bertoldinho!

Mas corre que o Governo, além de proibir o folheto, vai processar o autor do folheto. Aí, alto! Recolhemos a gargalhada, tiramos do cesto o ferro em brasa.

Processado porquê?

Três coisas fazia o autor anónimo daquele opúsculo:

Explicava a situação e as ideias dos partidos em França; verberava os Srs. Thiers e

Jules Favre; defendia alguns actos da comuna e alguns dos seus homens.

Por qual destes três factos é ele processado? Qual determina o estado de criminalidade?

Explicar os partidos em França? Então são seus cúmplices e devem ser processados pelo Governo português:

Todos os jornais, de todas as cores, de todas as cidades;

Todos os deputados, de todas as câmaras, de todas as nações;

Todos os livros, de todas as políticas, de todos os continentes.

E preparar, para toda esta gente, quartos no Limoeiro! Ergue-te e abre, ó Manuel

Mendes Enxúndia!

É acusado o autor do folheto por ter verberado os Srs. Thiers e Favre? Que lei lho proíbe? Que regulamento, que portaria, que decreto me inibe, a mim, a ti, a ele, de gritar em cima das torres que o Sr. Thiers é um imbecil, o Sr. Favre um traidor, o imperador da Rússia um bebedor de champanhe?! Está o Sr. Thiers elevado à categoria de dogma?

E ele equiparado pelo Governo à religião do Estado? Temos o Sr. Thiers inviolável como Cristo?

Que façam um processo às Farpas, pois nós declaramos isto: - O Sr. Thiers é um sujeito astuto, aproveitável a um país que precise viver de expedientes, mas

Publicou-se, há tempo, na Imprensa da Universidade, em Coimbra, um folheto acerca da Comuna. perfeitamente inapto para uma nação que tenha de se organizar com ideias; é um político de pequenos meios que já foi polícia e parteiro.

O Sr. Favre é um bastardo de Robespierre, declamador de tribunal, violentador do poder em 4 de Setembro como radical, e em 18 de Março ministro conservador, personagem característico daquela farsa política que se chama - tira-te tu, para que vá eu!

E aqui estão estes Adolfo Thiers e Júlio Favre, iguais em inviolabilidade à

Sagrada Eucaristia, ou à Imaculada Conceição! E seremos processados, seremos degradados, se ousarmos vergastar com algumas frases de história as carnes antiquadas dos Srs. Adolfo e Júlio!

Mas é acusado o autor do folheto por ter defendido alguns actos da comuna e alguns dos seus homens? - Oh! indigna vergonha! Pois é proibido em Portugal ter opinião sobre um facto estrangeiro? Pois a comuna passou-se na nossa política? Foi a

Rua do Arco do Bandeira incendiada com petróleo? Foi o Sr. O. de Vasconcelos que mandou fuzilar o arcebispo de Paris? Pois não pertence a história ao puro domínio do pensamento? Pois a própria França não impede que se escrevam livros louvando a comuna, e o Governo português impede-o? Pois o Governo não proíbe que os jornais legitimistas exaltem o absolutismo que prendeu e matou, cortou a machado nossos pais, sequestrou as nossas casas, queimou as nossas searas, e proíbe que se discuta uma política cujos excessos se passaram a 100 léguas de nós, sem relação connosco, sem acção na nossa acção?! Pois há alguma lei que me obrigue a amar S. Francisco de Sales e a desprezar Tibério?! Pois a opinião impõe-se como as posturas da câmara municipal?! Pois haverá cartilha para as nossas apreciações históricas? Se o Governo proíbe que se exaltem os homens da Comuna, deve logicamente proibir que se exaltem os homens de 93, o Governo provisório de 48, e que admiremos o próprio Sr. Thiers, antigo redactor do Nacional, fautor da revolução de 30! E que vá mais longe então! que nos processe, porque nós admiramos os Gracos, Espártaco salvador de escravos, Moisés que libertou um povo, Cristo que remiu uma raça!

O Governo português pondo a sua tosca mão sobre o pensamento! - oh! pirueta, dá-lhe tu a recompensa!


XXI

 

Agosto 1871.

 

A camara conservadora defende-se! rejeita por 51 votos contra 23 a reforma da Carta! Mas como fôram extranhas as declarações de alguns dos 51 conservadores Porque (quem jamais o diria?) elles só votaram contra a reforma da Carta — por entenderem que a Carta deve ser reformada!

Somente entendem tambem que a reforma é inopportuna. Um homem é agarrado por dois ladrões, amarrado a uma arvore. De madrugada passam dois cavalleiros, e vêem ao longe, vagamente, na neblina, o vulto. Comprehende-se que discutam, no primeiro momento, se é ou não um homem que alli está em agonia: mas, desde que verificaram que é um homem, o que se dirá do seu bom senso se começarem a discutir — a opportunidade de o salvar?

A Carta contraria ou não as tendencias do espirito moderno, e a opinião? Sim ou não? Só isto sto se pode debater. Mas confessar publicamente que sim, e votar que não — é o mesmo que declarar:

— Nós entendemos que o País sofre com esta constituição, mas desejamos que ele continue a sofrer!

Ninguém dá crédito, porém, às vossas declamações, senhores! Vós o que não quereis é nenhuma reforma da Carta! O que tentais evitar é que intervenha na vossa política, a força da opinião popular! E sabeis porquê? Porque se a democracia, mesmo sob a forma monárquica, tivesse o seu advento — as vossas doces e rendosas sinecuras ficariam estateladas no chão! E vós quereis ouvir Bellini em S. Carlos, e tomar sorvetes no Verão com sossego! Eis aí!

Ah! vós dizeis que amais o progresso. Amais o progresso que vos inventa cadeiras mais cómodas; o progresso que vos monta operetas de Offenbach para acompanhar alegremente a digestão do jantar; o progresso que descobre melhores limas para cortardes os calos! Esse progresso decerto o amais! Mas o que não amais é o pro-gresso político, porque esse traria uma ordem de coisas que extinguiria os vossos ordenados, levantaria as vossas décimas sonegadas, transtornaria as vossas posições; — isto é, este progresso tirar-vos-ia os meios de poderdes gozar o outro. E aí está o que vós não quereis, amáveis bandidos!

Vinde no entanto para diante dos leitores das Farpas, com o extracto das vossas cómicas opiniões colado às costas. E já que não auxiliais o bem, ajudai a gargalhada!

O Sr. Barjona começou por dizer que o projecto da reforma lhe parecia indefinido e vago. Ora o projecto marcava muito explicitamente os títulos 3, 4, 5, 6 e 7. Pode chamar-se-lhe largo — mas indefinido... Santo Deus! se S. Exª chama à designação explícita de 5 capítulos uma coisa vaga — o que chamará então às nuvens do poente?

Chamar-lhes-á soma de 5 parcelas?

E acrescenta S. Exª que não é daqueles que Liga pouca importância às constituições políticas. Ainda bem! Mas que estranha revelação! Há pois políticos em

Portugal (e só em Portugal se é político), que não dêem importância às constituições políticas? O meu criado não dá com efeito muita atenção a essa espécie, mas porque dá todos os seus cuidados a escovar o meu fato. (E ainda assim não gosta do Sr. Carlos

Bento, mas é uma questão puramente pessoal). Que existam porém sujeitos que tendo profissão de ser só políticos (oh farsa!) não dêem atenção às constituições políticas — estranho parece, porque a verdade é que esses indivíduos não estão encarregados, como o Miguel, de escovar o meu fato.

A câmara conservadora defende-se! rejeita por 51 votos contra 23 a reforma da

Carta! Mas como foram estranhas as declarações de alguns dos 51 conservadores!

Porque (quem jamais o diria?) eles só votaram contra a reforma da Carta — por entenderem que a Carta deve ser reformada.

O Sr. Silveira da Mota é mais estranho ainda! Examina, com grande critério, todas as reformas que o País precisa — e termina por dizer que em vista daquela dolorosa ladainha, o País não precisa nenhuma. O que se traduz deste modo trágico: isto está tão arruinado que já agora deixá-lo ficar assim!

O Sr. Barros e Cunha declara que todo o seu sentimento (êxtase, melancolia, doçura, amor, etc.) são pela reforma da Carta: mas que a frieza da sua cabeça não lhe permite admitir essa reforma. Como homem frio, quando raciocina, o Sr. Barros e

Cunha é conservador: mas como homem de sentimento, quando cisma ao luar, quando segue o gemer da guitarra, quando escuta o rouxinol — ai! como ele então deseja a reforma da Carta!

O Sr. Adriano Machado não quer aquele projecto da reforma da Carta — porque pretende ele mesmo apresentar um. Isto entende-se. É um homem que tem ambições e a sede de um nome! Em lugar da Reforma Mendes, aspira a que os jornais da província celebrem no futuro a Reforma Adriano!

O Sr. Costa e Silva entende que a Carta é liberal e não precisa reformas; e, a tê-las, só em algum dos seus artigos, não muitos. Para este senhor a questão é de quantidade. Aí 5 ou 6 contentam-no: se fossem 3 e meio, tinha cãibras de prazer! Mas sobretudo o que ele apetece — é resolver a questão financeira! E espera que ela seja resolvida! Doce ingenuidade! Todo o mundo estava admirado de tanta inocência infantil; e perguntava-se com cuidado onde teria o Sr. Costa e Silva deixado o seu bibe!

O Sr. Peixoto (?),depois de se ter visto singularmente enredado em grandes frases, conseguiu desentalar-se e dizer, claramente, que antes de tudo a reforma urgente consistiria em escrever bons livros! Que não basta que haja escolas! que são sobretudo indispensáveis bons livros! Faz isto desconfiar que o Sr. Peixoto supõe que o único livro que se tem escrito, depois do Génesis, é o das Proezas de Rocambole! Mas o Sr. Peixoto pareceu sobretudo grande quando declarou que o povo não tem direito a mais liberdade! O Sr. Peixoto, que não é neto do conde Chambord, nem possui na África plantações de café, estava a fingir para a galeria que era da casa de França e grande senhor de engenhos! Pobre moço! E quando ele jurou que a verdadeira reforma, que incumbia ao parlamento, era dar ao povo livros que lhe ensinassem a natureza do seu

País e a sua própria índole? Muita gente compreendeu que esta frase difícil significava que a câmara, antes da questão da fazenda, da administração, etc., se devia ocupar — em escrever compêndios de geografia e tratados de moral.

E terminou assim: «Estas reformas reclamam todas as nossas forças e todo o nosso tempo; não fatiguemos aquelas, e não percamos este!» Abismemo-nos na contemplação deste período imortal, que, à parte a sua construção cómica — significa:

«Não nos levantemos tarde e não comamos coisas que nos façam mal ao estômago». Se acrescentarmos a isto os banhos do mar, há todo o motivo para supor que o País está salvo!

O Sr. Pinheiro Chagas vota contra a reforma da Carta, porque é pouco experiente.

Este moço justifica o seu voto — mostrando a sua pouca barba!

O Sr. Franco Frazão declara que a reforma da Carta não deve ser admitida à discussão, porque está muito calor! Este homem é grande! Este homem há-de ir longe — em havendo frio! Deixem vir Janeiro, e o País verá como o Sr. Franco reforma e organiza. Por ora, não. É este um grande princípio que passará para os repertórios, assim fixado: Janeiro, frio, geada; planta chicória e reforma a Carta!

Tal foi esta sessão, em que notáveis opiniões viram a luz do dia — e a luz do dia viu notáveis opiniões!

XXII

Agosto 1871.

O Sr. Barros e Cunha há dias tinha calor, e não se pôs em mangas de camisa! Via-se bem antes de ontem que o Sr. Arrobas estava apertado no seu colete, e no entanto não se desabotoou! Estranhas abstenções! Porque se coíbem, santo Deus? Porque se impõem a inexplicável privação de não beberem cerveja na sala? Que significa esta falsa compreensão das regalias constitucionais?

Porque não tiram, para maior comodidade de suas pessoas, a consequência lógica do seu procedimento? Se se desprenderam de todo o respeito, porque não se desembaraçam das suas gravatas? Se se atribuíram o direito de dizer injúrias, porque não se dão o direito de trazer chinelas? P orque conservam uma certa compostura de toilette — se têm desabotoado tanto a dignidade? Vamos, meus belos cavalheiros da injúria franca! Um último passo! Já aniquilaram o decoro, ponham de lado a polidez.

Nem mesmo se prendam com o asseio! Tirem os botins, e atirem por cima das carteiras,

à face do País, essas peúgas de alvura duvidosa! Desapertem esses coletes, e que a

Pátria veja nas pregas das camisas o suor dos seus eleitos! Venha cerveja! Saltem as primeiras rolhas! Caiam as últimas injúrias! Ferva a intriga e espumem os bocks! Ao tilintar dos copos misture-se o embate dos insultos! — É falso, mente! Mais cerveja! Isso

é uma bestialidade, fora! Cigarros! Rompam as disputas de café em atitudes de taberna! Ninguém se coíba! Que o fumo do tabaco faça uma nuvem às votações — e as nódoas de vinho um comentário aos projectos de lei! E praguejem, e assobiem, e escarrem! E viva a troça! Hip! hip! hip! Hurra! Salta um decilitro! Fora, patife! E lari-lo- lé, lo-lé! Para o pagode! Oh! legisladores! Oh! homens de Estado! Oh! feira das

Amoreiras!

Pois temos nós obrigação de respeitar a câmara, quando ela se não respeita? Pois ela vive nas assuadas indecorosas — e há-de exigir que nos curvemos como se ela vivesse nas ideias elevadas? Pois aquela senhora, que ali mora defronte, poderá estranhar que eu a repila brutalmente, em lugar de a saudar delicadamente — se em vez de passar na discreta compostura do pudor, ela me vier fazer esgares com a cuia à banda?

Porque vos havemos de respeitar, dizei? Pelo saber que não tendes? Pela dignidade que renegastes? Lêem-se os extractos de todas as câmaras do mundo, e em todas há seriedade e discussão inteligente; em todas se trabalha, se pensa, se organiza, se legisla. Entre nós vemos, durante um mês, arrastar-se uma discussão sobre perso-nalidades de regedores; e o que se debate é se se fez ou se não fez a estrada da Covilhã, e se o Governo comprou ou não comprou exemplares de um Elogio do Sr. Ávila! E todas as questões úteis e altas desprezadas, e uma perpétua ventania de insultos trocados, e o abandono de toda a ideia, o ódio de todo o trabalho, o esquecimento de toda a decência! E no entanto a Espanha mede, polegada por polegada, a porção da nossa liberdade que se vai enterrando no lodo!... Sois tão criminosos que nos fazeis perder o riso. E no entanto ele é a nossa vingança! E é indispensável que se mantenha sempre pronto, amargo, cruel, para que em nome da consciência ofendida vos vamos

A câmara dos deputados está tendo realmente uma compreensão muito estreita dos seus deveres parlamentares. Nota-se com espanto que os senhores deputados, ao entrar, não descalçam as suas botas! Ninguém explica esta reserva. expondo, querendo Deus, trémulos e grotescos, ao escárnio da multidão.

XXIII

Agosto 1871.

Não queremos que acusem as Farpas de parciais! Não se dirá que foi a nossa pena, exaltada pela fantasia e pela ironia, que desenhou os contornos de uma sessão memorável na Câmara! Tomaremos a exacta narração que o Sr. Melício, correspondente, deputado, homem noticioso e linfático, dá ao Comércio do Porto, excelente folha lúgubre!

O Sr. Barjona falava quando o motim rebentou. As provocações (diz o Sr.

Melício) eram acompanhadas de murros sobre as carteiras. Quadro esplêndido! Suas

Ex.as de cabelo em desalinho, gravata solta; as carteiras vergando, e, tanto quanto lhes permitia a sua qualidade de madeira, tomando biocos suplicantes; e Suas Ex.as , atirando-lhes murros, encontrões, pontapés, cachações, palmadas, estouros, todas as variedades sonoras de uma argume ntação eloquente! Isto já é grande! Isto já é prodigiosamente grande!

Mas maior é o último detalhe do motim, contado na correspondência do Sr.

Melício. Diz o Sr. Melício: as POSIÇÕES POUCO ACADÉMICAS E MENOS

PARLAMENTARES (???) de alguns srs. deputados levaram o sr. presidente a

MANDAR EVACUAR A GALERIA!

Pergunta a imaginação aterrada — que posições foram essas?

Não! isto é extremamente sério! Para que o presidente de uma Câmara mande evacuar as galerias com o motivo de elas não presenciarem as posições que os deputados estão tomando — é necessário que estes se tenham permitido atitudes verdadeiramente estranhas! Dado mesmo que alguns senhores se tivessem deitado ao comprido, ou tivessem dado cambalhotas — nada disto, ainda assim, justificaria a precaução pudica do Sr. António Aires. E note-se que as galerias resistiram. É que as magnetizava um espectáculo refinadamente excepcional...

Que se passou pois?

Teria o sr. visconde de Valmor rompido no excesso de se pôr de cócoras? Mas é tão natural isso — no parlamento!

Teria o Sr. Teles de Vasconcelos montado às cavaleiras no Sr. Barjona? Mas isso que importava — entre portugueses!

Teria o Sr. Jaime Moniz, para afirmar à Câmara e ao País a moderação dos seus princípios, mostrado o interior das suas flanelas? Teria o Sr. Arrobas cortado os seus calos? Teria o Sr. Barros e Cunha, num acesso de ira, botado a língua de fora? Não! Não podiam ser somente estes actos ligeiros!

Posições académicas e pouco parlamentares!

O Sr. António Aires, pondo o seu chapéu, não se cobriu apenas, vendou-se.

Enterrou o chapéu até o pescoço, e para que S. Exª se descobrisse à porta, diante do comandante da guarda, vieram médicos que lhe extraíram o chapéu a ferros.

Que seria?!

Santo Deus! Deus clemente, piedoso e justo!

É evidente que os srs. deputados — se puseram nus!

Não, senhores!


Agosto 1871.

O Sr. Barros e Cunha há dias tinha calor, e não se pôs em mangas de camisa! Via-se bem antes de ontem que o Sr. Arrobas estava apertado no seu colete, e no entanto não se desabotoou! Estranhas abstenções! Porque se coíbem, santo Deus? Porque se impõem a inexplicável privação de não beberem cerveja na sala? Que significa esta falsa compreensão das regalias constitucionais?

Porque não tiram, para maior comodidade de suas pessoas, a consequência lógica do seu procedimento? Se se desprenderam de todo o respeito, porque não se desembaraçam das suas gravatas? Se se atribuíram o direito de dizer injúrias, porque não se dão o direito de trazer chinelas? Porque conservam uma certa compostura de toilette - se têm desabotoado tanto a dignidade? Vamos, meus belos cavalheiros da injúria franca! Um último passo! Já aniquilaram o decoro, ponham de lado a polidez.

Nem mesmo se prendam com o asseio! Tirem os botins, e atirem por cima das carteiras, à face do País, essas peúgas de alvura duvidosa! Desapertem esses coletes, e que a

Pátria veja nas pregas das camisas o suor dos seus eleitos! Venha cerveja! Saltem as primeiras rolhas! Caiam as últimas injúrias! Ferva a intriga e espumem os bocks! Ao tilintar dos copos misture-se o embate dos insultos! - É falso, mente! Mais cerveja! Issoé uma bestialidade, fora! Cigarros! Rompam as disputas de café em atitudes de taberna! Ninguém se coíba! Que o fumo do tabaco faça uma nuvem às votações - e as nódoas de vinho um comentário aos projectos de lei! E praguejem, e assobiem, e escarrem! E viva a troça! Hip! hip! hip! Hurra! Salta um decilitro! Fora, patife! E lari-lo- lé, lo-lé! Para o pagode! Oh! legisladores! Oh! homens de Estado! Oh! feira das

Amoreiras!

Pois temos nós obrigação de respeitar a câmara, quando ela se não respeita? Pois ela vive nas assuadas indecorosas - e há-de exigir que nos curvemos como se ela vivesse nas ideias elevadas? Pois aquela senhora, que ali mora defronte, poderá estranhar que eu a repila brutalmente, em lugar de a saudar delicadamente - se em vez de passar na discreta compostura do pudor, ela me vier fazer esgares com a cuia à banda?

Porque vos havemos de respeitar, dizei? Pelo saber que não tendes? Pela dignidade que renegastes? Lêem-se os extractos de todas as câmaras do mundo, e em todas há seriedade e discussão inteligente; em todas se trabalha, se pensa, se organiza, se legisla. Entre nós vemos, durante um mês, arrastar-se uma discussão sobre perso-nalidades de regedores; e o que se debate é se se fez ou se não fez a estrada da Covilhã, e se o Governo comprou ou não comprou exemplares de um Elogio do Sr. Ávila! E todas as questões úteis e altas desprezadas, e uma perpétua ventania de insultos trocados, e o abandono de toda a ideia, o ódio de todo o trabalho, o esquecimento de toda a decência! E no entanto a Espanha mede, polegada por polegada, a porção da nossa liberdade que se vai enterrando no lodo!... Sois tão criminosos que nos fazeis perder o riso. E no entanto ele é a nossa vingança! E é indispensável que se mantenha sempre pronto, amargo, cruel, para que em nome da consciência ofendida vos vamos

A câmara dos deputados está tendo realmente uma compreensão muito estreita dos seus deveres parlamentares. Nota-se com espanto que os senhores deputados, ao entrar, não descalçam as suas botas! Ninguém explica esta reserva. expondo, querendo Deus, trémulos e grotescos, ao escárnio da multidão.


Agosto 1871.

Não queremos que acusem as Farpas de parciais! Não se dirá que foi a nossa pena, exaltada pela fantasia e pela ironia, que desenhou os contornos de uma sessão memorável na Câmara! Tomaremos a exacta narração que o Sr. Melício, correspondente, deputado, homem noticioso e linfático, dá ao Comércio do Porto, excelente folha lúgubre!

O Sr. Barjona falava quando o motim rebentou. As provocações (diz o Sr. Melício) eram acompanhadas de murros sobre as carteiras. Quadro esplêndido! Suas

Ex.as de cabelo em desalinho, gravata solta; as carteiras vergando, e, tanto quanto lhes permitia a sua qualidade de madeira, tomando biocos suplicantes; e Suas Ex.as , atirando-lhes murros, encontrões, pontapés, cachações, palmadas, estouros, todas as variedades sonoras de uma argumentação eloquente! Isto já é grande! Isto já é prodigiosamente grande!

Mas maior é o último detalhe do motim, contado na correspondência do Sr.

Melício. Diz o Sr. Melício: as POSIÇÕES POUCO ACADÉMICAS E MENOS

PARLAMENTARES (???) de alguns srs. deputados levaram o sr. presidente a

MANDAR EVACUAR A GALERIA!

Pergunta a imaginação aterrada - que posições foram essas?

Não! isto é extremamente sério! Para que o presidente de uma Câmara mande evacuar as galerias com o motivo de elas não presenciarem as posições que os deputados estão tomando - é necessário que estes se tenham permitido atitudes verdadeiramente estranhas! Dado mesmo que alguns senhores se tivessem deitado ao comprido, ou tivessem dado cambalhotas - nada disto, ainda assim, justificaria a precaução pudica do Sr. António Aires. E note-se que as galerias resistiram. É que as magnetizava um espectáculo refinadamente excepcional...

Que se passou pois?

Teria o sr. visconde de Valmor rompido no excesso de se pôr de cócoras? Mas é tão natural isso - no parlamento!

Teria o Sr. Teles de Vasconcelos montado às cavaleiras no Sr. Barjona? Mas isso que importava - entre portugueses!

Teria o Sr. Jaime Moniz, para afirmar à Câmara e ao País a moderação dos seus princípios, mostrado o interior das suas flanelas? Teria o Sr. Arrobas cortado os seus calos? Teria o Sr. Barros e Cunha, num acesso de ira, botado a língua de fora? Não! Não podiam ser somente estes actos ligeiros!

Posições académicas e pouco parlamentares!

O Sr. António Aires, pondo o seu chapéu, não se cobriu apenas, vendou-se.

Enterrou o chapéu até o pescoço, e para que S. Exª se descobrisse à porta, diante do comandante da guarda, vieram médicos que lhe extraíram o chapéu a ferros.

Que seria?!

Santo Deus! Deus clemente, piedoso e justo!

É evidente que os srs. deputados - se puseram nus!

Não, senhores!


XXIV

Agosto 1871.

O parlamento vive na edade de ouro. Vive nas edades innocentes em que se collocam as lendas do paraiso-quando o mal ainda não existia, quando Caim era um bom rapaz, quando os tigres passeavam dôcemente par a par com os cordeiros, quando ninguem tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calumnia! — e a palavra mente! não attrahia a bofetada!

Senão vejam! Todos os dias aqueles ilustres deputados se dizem uns aos outros: É falso! É mentira! E não se esbofeteiam, não se enviam duas balas! Piedosa inocência!

Cordura evangélica! É um parlamento educado por S. Francisco de Sales!

O ilustre deputado mente!

Ah, minto? Pois bem, apelo...

Cuidam que apela para o espalmado da sua mão direita ou para a elasticidade da sua bengala?

— Não, meus caros senhores, apela — para o Pa ís!

Quanta elevação cristã num diploma de deputado! Quando um homem leva em pleno peito, diante de duzentas pessoas que ouvem e de mil que lêem, este rude encontrão: É falso! — e diz com uma terna brandura: Pois bem, apelo para o País! — este homem é um santo! Não entrará decerto nunca no Jockey-Club, de onde a mansidão é excluída, mas entrará no reino do Céu, onde a humildade é glorificada.

É uma escola de humildade este parlamento! Nunca em parte nenhuma, como ali, o insulto foi recebido com tão curvada paciência, o desmentido acolhido com tão sentida resignação! Sublime curso de caridade cristã. E veremos os tempos em que um senhor deputado, esbofeteado em pleno e claro Chiado, dirá modestamente ao agressor, mostrando o seu diploma: — «Sou deputado da nação portuguesa! Apelo para o País!

Pode continuar a bater!»

E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o Sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qualificações — camaleão, sapo, elefante?! Que autoridade no dizer! que elevação no pensar!

Como é instrutivo, como é moral, o ver discursos assim concebidos:

— Não aprovo o projecto do ilustre presidente do Conselho, porque entendo na minha consciência, e digo-o à face do País, que S. Exª é uma verdadeira serpente:

— Mando para a mesa a seguinte moção:

A Câmara, compenetrada de que o sr. ministro da Fazenda é uma lontra, passa à ordem do dia!

Depois o modo carinhoso como a Câmara tomou conta da infeliz palavra insulto!

Aquela pobre palavra, tão comprometedora, que nunca aparecia outrora que não fosse o sinal de um duelo ou de uma policia correccional — o parlamento refez-lhe uma virgindade e um decoro, e ela agora vem, e ninguém se revolta, e o Sr. António Aires tem para ela um bom sorriso.

— O ilustre deputado há três dias não faz senão insultar-me (textual). Três dias!

— O ilustre deputado não me insulte!

— Vou responder a esses insultos!

— Menos insultos!

Ai! o mundo despoetiza-se! As coisas terríveis perdem o colorido da lenda. As

O Parlamento vive na idade de ouro. Vive nas idades inocentes em que se colocam as lendas do Paraíso — quando o mal ainda não existia, quando Caím era um bom rapaz, quando os tigres passeavam docemente par a par com os cordeiros, quando ninguém tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calúnia! — e a palavra mente! não atraía a bofetada! crianças riem do papão. O diabo já não é temido. O insulto já não é aviltante! Não é! A

Câmara dos Deputados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto, em perpétua ordem do dia — e engorda!

Mas o Sr. António Aires, esse, para que continua a dizer com a sua voz eloquente:

— Amanhã continua a mesma discussão?

A escrupulosa verdade — e S. Exª, sacerdote e católico, está adstrito a observar este regimento da consciência — pede que se declare:

— Amanhã continua a mesma assuada.

Assim o público ficava avisado — e os srs. deputados também! Porque nada deve custar mais a um ilustre deputado, que quer zelar os interesses do seu país, do que ver, numa discussão, exausta a sua colecção de injúrias, findos os seus apontamentos de berros!

Não é quem quer doutor em impropérios!

E assim, devidamente prevenido, cada deputado podia formar de véspera uma útil e séria lista de argumentos — consultando o dicionário, o seu aguadeiro, a porta da

Alfândega e os fadistas da Praça da Figueira.

XXV

Agosto 1871.

Era há dias, ao fim da tarde, na Foz. O céu, no alto, tinha a brancura de uma porcelana: já a decoração inflamada do poente se apagava, e grandes tons dourados desbotavam numa tinta roxa. O mar, de um azul duro, estava riscado de espumas. Entre as rochas, na praia, a maresia era violenta; e na linha da barra sucediam-se, uma após outra, largas ondas monótonas.

Vinha a entrar uma lancha à vela. As ondas tomavam a pequena embarcação pela popa; ela fugia à bolina, rijamente impelida. Uma vaga maior sacode-a furiosamente.

Pescadores, mulheres, no largo, ao pé do Castelo, rompem a gritar. Há ali perto uma barraca de saltimbancos. Dois palha ços, já vestidos, caiados, com guizos, vieram olhar, pasmados.

A lancha corria. Ergue-se sobre ela outro mar mais forte. — «Está livre! não está livre! Santo Deus! Jesus!» — A onda, quebrando, apanhou-a pela popa, ergueu-a, balouçou-a, e por um momento viu-se apenas, na espuma, a vela oscilar, com a lenta palpitação da asa de um pássaro que morre.

Na praia as mulheres gritavam, de bruços sobre o chão. Os palhaços empalideciam sob o alvaiade. A sombra da noite caía.

A lancha tinha escapado. Correram todos ao cais, vê-la atracar. Vinha cheia de

água, com a vela molhada até meia altura, os remos partidos. Estivera perdida. O patrão, um velho baixo, seco, de cabeça branca sob um barrete de pele de lontra, atirava para fora a corda da rede. Tinham trazido 10 ou 12 pescadas!

Cada pescada podia valer seis vinténs! E tinha estado perdida, a lancha! E era ao anoitecer, longe de socorro, na água impiedosa!

Ora sabem qual é o imposto que sobre este duro trabalho lança o fisco? — 40 réis por pescada! Não é o antigo dízimo absolutista — é o terço liberal! E assim acaba o romance!

Pode alguém estranhar que as Farpas não contenham nunca uma página dada ao romance, à imaginação. Pois bem — aqui está um conto, com paisagem, passado à beira-mar.

XXVI

Agosto 1871.

Não o devemos ocultar! Fala-se — nem letra de mais, nem letra de menos — numa r-e-v-o-l-u-ç-ã-o!

Mas qual? Três correntes de opinião, adversas ao constitucionalismo e ao parlamentarismo, atravessam o País. E a revolução variará, segundo for uma ou outra dessas três opiniões que consiga, pela força ou pela manha, empolgar o poder e as suas doçuras.

Seja qual for a que triunfe, terá logo, pelo mero facto de triunfar, aderentes inumeráveis, mesmo nas opiniões opostas. E para que cada cidadão possa devagar escolher a revolução que lhe convém, aqui apresentamos de antemão as notícias que, de cada uma delas, darão os jornais depois da vitória:

Revolução nº1.

— 19 de Fevereiro. — O Governo que feliz mente nos rege continua na sua obra de pacificação. A redacção da Nação mudou-se para o palácio dos srs. duques de Palmela, ao Calhariz. Foi preso o Sr. Oliveira Marreca, decano do partido republicano. S. M. El-Rei

Nosso Senhor visitou ontem o lausperene da Graça.

Parece que uma representação do clero exige o desterro do Sr. Alexandre

Herculano. — A emigração tem abrandado, vai renascendo a confiança. — Fala-se em grandes bailes dados pela coroa. — Mandaram-se fundir à Alemanha três carrilhões, no valor de 3 milhões cada um, para os Inglesinhos, S. Luís e Mártires. — Assistiu ontem uma inumerável multidão à execução do Sr. Osório de Vasconcelos, reformista. S. Exª caminhou para o suplício com grande valor. — Admiráveis em Braga as iluminações. —

Vai ser demolida a estátua de D. Pedro IV. — As autoridades e funcionários das secretarias são demitidos em massa. — Haverá grandes tributos para ocorrer as despesas da reconstituição da nobreza. — Foi ontem apupado na Rua da Alegria, o Sr. V, poeta erótico, na ocasião em que observava a chegada das andorinhas!

Revolução nº2

— 19 de Fevereiro. — O novo Governo provisório deu ontem um esplêndido jantar no Hotel Central.O Sr. Padre B... foi nomeado patriarca. S. Exª passeou ontem as ruas de dog-cart. — Foi preso o Sr. Batalha Reis, antigo conferente do Casino. — O sr. marquês de Ávila e Carlos Bento foram fuzilados. SS. Exª estavam ignobilmente abatidos. — Os membros do novo

Governo atribuíram-se ordenados anuais de 12 contos de réis. — O Sr. Antero de

Quental, a quem o comité da Rua da Bitesga fora oferecer a presidência, deu pontapés no comité. — Têm sido suspensos vários jornais. — Chegou a Paris o Sr. D. Luís de

Bragança. — Foi saqueada a casa do Sr. José Maria Eugénio. — Têm sido fechadas as igrejas. — Nas províncias do Norte é grande a miséria. — Bandos armados dão pilhagem

às províncias do Sul. — O Governo provisório lançou fogo aos arquivos da polícia. —

Foram suspensas as Farpas. — Foi ontem apupado no Rossio, o Sr. V, poeta erótico, que ia a correr atrás de uma borboleta!

Revolução nº3.

— 19 de Fevereiro. — Foi publicado o decreto licenciando o exército, e organizando uma guarda nacional. — Estão presos e vão responder a processo, os principais vultos dos últimos anos da política constitucional: diz-se que serão degredados. — Foi suprimida a câmara dos pares. — Corre que se vendem algumas das colónias. — Está decretada a instrução obrigatória e gratuita. — Vai ser feita a reforma administrativo-comunal.

— Teremos a liberdade de cultos. — E certa a reforma do imposto. — Estão nomeadas comissões para proceder à confecção do cadastro. — Fechou-se a

Universidade, e o ensino superior será reorganizado numa nova base. — Vão criar-se escolas industriais. — E concedida a plena liberdade de reunião e de coalizão. — Formam-se por toda a parte sociedades cooperativas. — As secretarias vão sofrer grande golpe. —

Cada membro do Governo provisório recebe anualmente 600$000 réis. — Ontem o Sr.

V, poeta erótico, foi apupado na Rua do Arco do Bandeira, onde estava a contemplar um lírio.

XXVII

Agosto 1871.

Pois bem! A Câmara Municipal do Porto, com uma nobre solicitude pelo peixe, para quem parece ser uma extremosa mãe, e receando, com um carinho assustado, que o peixe se constipasse, ou sofresse a indiscrição dos vizinhos, construiu-lhe uma praça fechada, com altas e fortes paredes, varandas, gabinetes interiores, corredores, alcovas, casa bem reparada, quase um palacete. E tudo de tal modo tranquilo, aconchegado, confortável, que a Câmara hesita se há-de pôr ali peixes, se livros — e se fará daquilo um mercado ou uma biblioteca!

A nós parece-nos, que, com mais alguma despesa, a Câmara daria ao País o exemplo de uma grande dedicação pelo peixe! — Era mandar tapetar a praça, colocar nos recantos sofás, e não esquecer um piano. O peixe deslizaria aí dias de grande doçura: os robalos estariam deitados em divãs de seda: o polvo teria livrarias para se instruir! O comprador seria introduzido por criados de libré. A peixeira conduzi-lo-ia a uma alcova, com as janelas cerradas, ergueria os cortinados de um leito, e mostraria inocentemente adormecidas, sob uma coberta de damasco — duas pescadinhas-marmotas.

O comprador tiraria o chapéu comovido. E a peixeira, com lindos modos:

— Suas Ex.as recolheram-se tarde... São a 80 réis cada uma!

Ah! A Câmara tem decerto grandes planos! Como estão bem feitas, rasgadas, esbeltas, as largas varandas de ferro da fachada da praça! Alguns malévolos riem. Mas nós sabemos que essas varandas na praça do peixe, tão amplas e cómodas, têm um destino que ninguém — a não ser inspirado pelas injustiças da inveja — poderá condenar.

Aquelas varandas são para que, aos domingos — o peixe venha tomar café para a janela!

A honrada Câmara Municipal do Porto quis dotar a cidade com uma praça de peixe. Nada mais higiénico, mais justo. De todo o tempo, nas grandes cidades, o peixe teve os seus aposentos definitivos, porque a vadiagem do peixe pelas ruas — fazendo concorrência à vadiagem dos filhos-famílias — é sobremodo insalubre! Mas uma praça de peixe não é um teatro nem uma casa de banhos — nem mesmo um quartel. Tem uma arquitectura própria, condições especiais de ar, de luz, de água, etc... Assim, em toda a parte, as praças de peixe são de uma construção ligeira, aberta e devassada pelos ventos, com leves colunatas de ferro sustentando um tecto de madeira ou de vidraça, lavadas por um perpétuo escorrer de água, cercadas de árvores... Enfim, um lugar são, fresco, higiénico, livre, desinfectado.

XXVIII

Setembro 1871.

Esta hesitação, entre o tombo e a cólica, mantém o espírito do viajante num estado delicioso de palpitação e vibração. E como quando se joga, numa última volta de roleta, a última placa de uma herança! Apaixona mais que ler Os Três Mosqueteiros! Suscita os tremores de perigo e de transe que só dá uma ascensão ao Monte Branco! Talvez estar para ser fuzilado não cause tanto alvoroço! E a intenção da Companhia é evidente.

As travessas podres, os rails gastos e desaparafusados, os túneis mal seguros, as pontes rachadas, os aterros que tendem a desabar, os desaterros que tendem a esboroar, as máquinas cansadas, o serviço desleixado, as refeições envenenadas, tudo, tudo, até as demoras, os atrasos, a confusão, tudo converge para o mesmo legítimo fim — comover fundamente o viajante, dar-lhe sensações supremas!

Parece-nos pois que alguns conselhos à companhia não podem deixar de ser por ela recebidos — não diremos de braços, mas de rails abertos. Assim, por exemplo, seria de todo o ponto dramático e excitante, espalhar pela estrada destacamentos de bandidos que espingardeassem o comboio. Outrossim, meter em cada carruagem um lobo esfomeado, parece-nos um meio eficaz de impedir que o viajante tenha ocasião de se enfastiar. E enfim, como meio de produzir a mais aguda impressão, devia ter a companhia em cada estação empregados, que, ao parar do comboio, se aproximassem do passageiro, e delicadamente, com todo o respeito — lhe cravassem uma navalha na ilharga! E a viagem ficaria deste modo marcada com indeléveis encantos e cicatrizes!

Jornadear nos caminhos-de-ferro portugueses de Norte e Leste, é. a todos os respeitos, uma aventura cheia de emoções. Correndo sobre os rails, há para nos interessar e excitar — a probabilidade do descarrilamento; parados, no bufete das estações, há, para nos estimular com uma sensação mais forte ainda — o envenenamento a 500 réis por estômago.


Agosto 1871.

Era há dias, ao fim da tarde, na Foz. O céu, no alto, tinha a brancura de uma porcelana: já a decoração inflamada do poente se apagava, e grandes tons dourados desbotavam numa tinta roxa. O mar, de um azul duro, estava riscado de espumas. Entre as rochas, na praia, a maresia era violenta; e na linha da barra sucediam-se, uma após outra, largas ondas monótonas.

Vinha a entrar uma lancha à vela. As ondas tomavam a pequena embarcação pela popa; ela fugia à bolina, rijamente impelida. Uma vaga maior sacode-a furiosamente.

Pescadores, mulheres, no largo, ao pé do Castelo, rompem a gritar. Há ali perto uma barraca de saltimbancos. Dois palhaços, já vestidos, caiados, com guizos, vieram olhar, pasmados.

A lancha corria. Ergue-se sobre ela outro mar mais forte. - «Está livre! não está livre! Santo Deus! Jesus!» - A onda, quebrando, apanhou-a pela popa, ergueu-a, balouçou-a, e por um momento viu-se apenas, na espuma, a vela oscilar, com a lenta palpitação da asa de um pássaro que morre.

Na praia as mulheres gritavam, de bruços sobre o chão. Os palhaços empalideciam sob o alvaiade. A sombra da noite caía.

A lancha tinha escapado. Correram todos ao cais, vê-la atracar. Vinha cheia de água, com a vela molhada até meia altura, os remos partidos. Estivera perdida. O patrão, um velho baixo, seco, de cabeça branca sob um barrete de pele de lontra, atirava para fora a corda da rede. Tinham trazido 10 ou 12 pescadas!

Cada pescada podia valer seis vinténs! E tinha estado perdida, a lancha! E era ao anoitecer, longe de socorro, na água impiedosa!

Ora sabem qual é o imposto que sobre este duro trabalho lança o fisco? - 40 réis por pescada! Não é o antigo dízimo absolutista - é o terço liberal! E assim acaba o romance!

Pode alguém estranhar que as Farpas não contenham nunca uma página dada ao romance, à imaginação. Pois bem - aqui está um conto, com paisagem, passado à beira-mar.


Agosto 1871.

Não o devemos ocultar! Fala-se - nem letra de mais, nem letra de menos - numa r-e-v-o-l-u-ç-ã-o!

Mas qual? Três correntes de opinião, adversas ao constitucionalismo e ao parlamentarismo, atravessam o País. E a revolução variará, segundo for uma ou outra dessas três opiniões que consiga, pela força ou pela manha, empolgar o poder e as suas doçuras.

Seja qual for a que triunfe, terá logo, pelo mero facto de triunfar, aderentes inumeráveis, mesmo nas opiniões opostas. E para que cada cidadão possa devagar escolher a revolução que lhe convém, aqui apresentamos de antemão as notícias que, de cada uma delas, darão os jornais depois da vitória:

Revolução nº1.

— 19 de Fevereiro. - O Governo que felizmente nos rege continua na sua obra de pacificação. A redacção da Nação mudou-se para o palácio dos srs. duques de Palmela, ao Calhariz. Foi preso o Sr. Oliveira Marreca, decano do partido republicano. S. M. El-Rei

Nosso Senhor visitou ontem o lausperene da Graça.

Parece que uma representação do clero exige o desterro do Sr. Alexandre

Herculano. - A emigração tem abrandado, vai renascendo a confiança. - Fala-se em grandes bailes dados pela coroa. - Mandaram-se fundir à Alemanha três carrilhões, no valor de 3 milhões cada um, para os Inglesinhos, S. Luís e Mártires. - Assistiu ontem uma inumerável multidão à execução do Sr. Osório de Vasconcelos, reformista. S. Exª caminhou para o suplício com grande valor. -Admiráveis em Braga as iluminações. -

Vai ser demolida a estátua de D. Pedro IV. - As autoridades e funcionários das secretarias são demitidos em massa. - Haverá grandes tributos para ocorrer as despesas da reconstituição da nobreza. - Foi ontem apupado na Rua da Alegria, o Sr. V, poeta erótico, na ocasião em que observava a chegada das andorinhas!

Revolução nº2

— 19 de Fevereiro. - O novo Governo provisório deu ontem um esplêndido jantar no Hotel Central. - O Sr. Padre B... foi nomeado patriarca. S. Exª passeou ontem as ruas de dog-cart. - Foi preso o Sr. Batalha Reis, antigo conferente do Casino. - O sr. marquês de Ávila e Carlos Bento foram fuzilados. SS. Exª estavam ignobilmente abatidos. - Os membros do novo

Governo atribuíram-se ordenados anuais de 12 contos de réis. - O Sr. Antero de

Quental, a quem o comité da Rua da Bitesga fora oferecer a presidência, deu pontapés no comité. - Têm sido suspensos vários jornais. - Chegou a Paris o Sr. D. Luís de

Bragança. - Foi saqueada a casa do Sr. José Maria Eugénio. - Têm sido fechadas as igrejas. - Nas províncias do Norte é grande a miséria. - Bandos armados dão pilhagem às províncias do Sul. - O Governo provisório lançou fogo aos arquivos da polícia. -

Foram suspensas as Farpas. - Foi ontem apupado no Rossio, o Sr. V, poeta erótico, que ia a correr atrás de uma borboleta!

Revolução nº3.

— 19 de Fevereiro. - Foi publicado o decreto licenciando o exército, e organizando uma guarda nacional. - Estão presos e vão responder a processo, os principais vultos dos últimos anos da política constitucional: diz-se que serão degredados. - Foi suprimida a câmara dos pares.-Corre que se vendem algumas das colónias. - Está decretada a instrução obrigatória e gratuita. -Vai ser feita a reforma administrativo-comunal.

— Teremos a liberdade de cultos. - E certa a reforma do imposto. - Estão nomeadas comissões para proceder à confecção do cadastro. - Fechou-se a

Universidade, e o ensino superior será reorganizado numa nova base. - Vão criar-se escolas industriais. - E concedida a plena liberdade de reunião e de coalizão. - Formam-se por toda a parte sociedades cooperativas. - As secretarias vão sofrer grande golpe. -

Cada membro do Governo provisório recebe anualmente 600$000 réis. - Ontem o Sr.

V, poeta erótico, foi apupado na Rua do Arco do Bandeira, onde estava a contemplar um lírio.

Agosto 1871.

A honrada Câmara Municipal do Porto quis dotar a cidade com uma praça de peixe. Nada mais higiénico, mais justo. De todo o tempo, nas grandes cidades, o peixe teve os seus aposentos definitivos, porque a vadiagem do peixe pelas ruas - fazendo concorrência à vadiagem dos filhos-famílias - é sobremodo insalubre! Mas uma praça de peixe não é um teatro nem uma casa de banhos - nem mesmo um quartel. Tem uma arquitectura própria, condições especiais de ar, de luz, de água, etc... Assim, em toda a parte, as praças de peixe são de uma construção ligeira, aberta e devassada pelos ventos, com leves colunatas de ferro sustentando um tecto de madeira ou de vidraça, lavadas por um perpétuo escorrer de água, cercadas de árvores... Enfim, um lugar são, fresco, higiénico, livre, desinfectado.

Pois bem! A Câmara Municipal do Porto, com uma nobre solicitude pelo peixe, para quem parece ser uma extremosa mãe, e receando, com um carinho assustado, que o peixe se constipasse, ou sofresse a indiscrição dos vizinhos, construiu-lhe uma praça fechada, com altas e fortes paredes, varandas, gabinetes interiores, corredores, alcovas, casa bem reparada, quase um palacete. E tudo de tal modo tranquilo, aconchegado, confortável, que a Câmara hesita se há-de pôr ali peixes, se livros - e se fará daquilo um mercado ou uma biblioteca!

A nós parece-nos, que, com mais alguma despesa, a Câmara daria ao País o exemplo de uma grande dedicação pelo peixe! - Era mandar tapetar a praça, colocar nos recantos sofás, e não esquecer um piano. O peixe deslizaria aí dias de grande doçura: os robalos estariam deitados em divãs de seda: o polvo teria livrarias para se instruir! O comprador seria introduzido por criados de libré. A peixeira conduzi-lo-ia a uma alcova, com as janelas cerradas, ergueria os cortinados de um leito, e mostraria inocentemente adormecidas, sob uma coberta de damasco - duas pescadinhas-marmotas.

O comprador tiraria o chapéu comovido. E a peixeira, com lindos modos:

— Suas Ex.as recolheram-se tarde... São a 80 réis cada uma!

Ah! A Câmara tem decerto grandes planos! Como estão bem feitas, rasgadas, esbeltas, as largas varandas de ferro da fachada da praça! Alguns malévolos riem. Mas nós sabemos que essas varandas na praça do peixe, tão amplas e cómodas, têm um destino que ninguém - a não ser inspirado pelas injustiças da inveja - poderá condenar.

Aquelas varandas são para que, aos domingos - o peixe venha tomar café para a janela!


Setembro 1871.

Esta hesitação, entre o tombo e a cólica, mantém o espírito do viajante num estado delicioso de palpitação e vibração. E como quando se joga, numa última volta de roleta, a última placa de uma herança! Apaixona mais que ler Os Três Mosqueteiros! Suscita os tremores de perigo e de transe que só dá uma ascensão ao Monte Branco! Talvez estar para ser fuzilado não cause tanto alvoroço! E a intenção da Companhia é evidente.

As travessas podres, os rails gastos e desaparafusados, os túneis mal seguros, as pontes rachadas, os aterros que tendem a desabar, os desaterros que tendem a esboroar, as máquinas cansadas, o serviço desleixado, as refeições envenenadas, tudo, tudo, até as demoras, os atrasos, a confusão, tudo converge para o mesmo legítimo fim - comover fundamente o viajante, dar-lhe sensações supremas!

Parece-nos pois que alguns conselhos à companhia não podem deixar de ser por ela recebidos - não diremos de braços, mas de rails abertos. Assim, por exemplo, seria de todo o ponto dramático e excitante, espalhar pela estrada destacamentos de bandidos que espingardeassem o comboio. Outrossim, meter em cada carruagem um lobo esfomeado, parece-nos um meio eficaz de impedir que o viajante tenha ocasião de se enfastiar. E enfim, como meio de produzir a mais aguda impressão, devia ter a companhia em cada estação empregados, que, ao parar do comboio, se aproximassem do passageiro, e delicadamente, com todo o respeito - lhe cravassem uma navalha na ilharga! E a viagem ficaria deste modo marcada com indeléveis encantos e cicatrizes!

Jornadear nos caminhos-de-ferro portugueses de Norte e Leste, é. a todos os respeitos, uma aventura cheia de emoções. Correndo sobre os rails, há para nos interessar e excitar - a probabilidade do descarrilamento; parados, no bufete das estações, há, para nos estimular com uma sensação mais forte ainda - o envenenamento a 500 réis por estômago.


XXIX

Setembro 1871.

Um dia o Centro promotor das classes laboriosas sentiu o impeto todo moderno de sahir da sua ob- scuridade veneravel e da sua modestia tradicional. Appeteceu as palpitações do perigo. Appeteceu a popularidade do telegramma. Appeteceu a prosa descriptiva do sr. Melicio, correspondente.

Para isso perorou, gritou, tomou resoluções!... Em seguida esperou. O seu desejo, o seu capricho, o seu filé, era atrair sobre si um golpe de Estado. E depois as belas atitudes de protesto, e a impressão que ainda fazem os mártires em Vila Nova de

Cerveira e em Mogofores!...

Ora justamente o sr. ministro do Reino teve a imprudência de chamar à secretaria o vice-presidente do Centro, e amigavelmente, tomando ambos o seu rapé, trocaram algumas falas. O sr. ministro pedia que o Centro não continuasse em discussões, que nem estavam na permissão dos estatuto sua dignidade de corporação. Escutando estas admoestações o vice-presidente do Centro tremia de jubilo. Alli o tinha inteiro, real, presente, completo-o estremecido, o appetecido golpe d’estado! E apenas o sr. ministro termina, eis o sr. vice-presidente que corre a sala do Centro, e brada, como se se tratasse de um codilho:

— Meus senhores! levamol-o!

— O golpe de estado? interroga o Centro ávido, esgaseando os olhos.

— O golpe de estado!


Então, tomando subitamente a sua carranca de solemnidade, o Centro deliberou. E, para fazer alguma cousa como a destruição da Bastilha, (porque é necessario conservar a tradição jacobina) o Centro subiu a um banco com um martello, despregou um retrato da parede da sala, espanejou-lhe o pó, pôl-o ao canto de um armario, e, serenado por esta decapitação moral, sacudiu as mãos, limpou os beiços, e de pé – jurou qualquer cousa!


Nós não sabemos, e ainda não se averiguou nitidamente que discussões agitavam o ar abafado da sala do Centro. Uns dizem que alli, a horas lobregas, se falava da internacional e das suas pompas, e se discutia a sanguinolenta questão do salario! Querem outros porém affirmar, com mais seguro criterio, que as discussões do Centro eram de ordem politica e intrigante, e que se esmiuçavam ministerios, camaras, reformistas e reforminhos, eleições, influencias, partidos, e outras especies torpes.

Estas duas informações alteram, completamente, o indefinido perfil da questão.

Se o Centro Promotor discutia nas suas reuniões a política que intriga e que grunhe em S. Bento, então a advertência do sr. ministro adquire uma alta feição de sensatez e de direito: não só está na legalidade, porque fez cumprir um estatuto — mas na verdade, porque afastou os que trabalham na penumbra dos que enredam.

Sim, o sr. ministro tem razão, amigos operários do Centro! O dever da vossa associação não é discutir combinações ministeriais ou personalidades estéreis. Que importa ao vosso bem-estar, às boas cores de vossos filhos e à substância do vosso caldo, que a farda pública esteja nas costas grossas do Sr. Ávila ou nas magras costelas do Sr. Braamcamp? Quereis dar à política a vossa colaboração? Vós? Tão desmoralizados estais que desejeis abandonar a vossa dignidade de trabalhadores, para vos virdes curvar entre a sabuja humilhação dos políticos? Vós, os produtores por excelência — porque só trabalhais, que tendes de comum com os improdutivos por excelência — porque só intrigam? Quereis trocar a altiva fadiga da oficina, pela

Um dia o Centro promotor das classes laboriosas sentiu o ímpeto, todo moderno, de sair da sua obscuridade venerável e da sua modéstia tradicional. Apeteceu as palpitações do perigo. Apeteceu a popularidade do telegrama. Apeteceu a prosa descritiva do Sr. Melício, correspondente. ociosidade mendicante do parlamento? Quereis trocar as vossas livres ferramentas, pela pena de pato das secretarias? Não é outro o vosso dever, outro o destino do vosso pensamento? Não tendes, para vos absorver, as altas questões de salários, de trabalho, de produção, de escola, de instrumentos, de associação? Elas erguem-se, as questões sociais, as vossas, de todos os pontos do horizonte, correndo, correndo à desfilada sobre o velho mundo que apodrece! Voltai aos vossos interesses e voltai às vossas casas!

Deixai o senhor A ser um político, ó riso! e o senhor B um homem de Estado, ó troça!

Ah! mas se porventura o Centro Promotor tratava apenas, nas suas sessões, a questão social e operária — o salário, o trabalho, a associação, a coalizão, a greve — então, bom Deus, a advertência do sr. ministro enche-nos de perturbação!

Parece realmente que se não deve estranhar que uma associação criada para promover o bem das classes laboriosas — trate as questões que mais vitalmente interessam as ditas classes laboriosas. Aqui à puridade, entre gentlemen, confessemos que imensa seria a nossa admiração — se operários reunidos, em lugar de falar do seu salário, discutissem a melhor maneira de servir o champanhe! E qualquer de nós ficaria pálido se visse, no Centro, um operário, para salvar os seus interesses de operário, levantar-se e dizer:

— «Pedi a palavra sobre a questão social: a minha opinião é esta:

La donna é mobile

Qual pluma al vento..

Decerto, seria interessante e proveitoso que o Centro Promotor se ocupasse em averiguar e experimentar o meio mais profícuo de pernear o cancã — porque convém que cada um saiba a maneira de se portar no meio das sociedades cultas. Mas também nos não pareceria inteiramente inútil que, visto acharem-se ali reunidos, esses operários, depois de terem dado uma parte da noite às questões sérias, (como, por exemplo, a maneira mais meiga de interpretar o final da Lúcia) dedicassem também uns minutos, como por demais, por prazer, para repousar o espírito, a fútil e folgazã questão do salário!

Entenda-se! as Farpas não querem de modo algum sustentar que as associações operárias sejam para discutir as questões operárias! Não! O operário, nas suas reuniões, deve exercitar-se em recitar Lamartine. Isto está estabelecido na prática de todas as nações e nos princípios de toda a economia... Mas convém que, de vez em quando, (e sem que isso perturbe os interesses de ordem literária, lírica, elegante e romântica, que lhes estão confiados) os operários, coitados, se entretenham a arranjar o melhor meio de não morrerem inteiramente de fome!

O Centro julgou-se tiranizado, e protestou. Como? Fazendo um arranjo na sua sala. O retrato do Sr. A. R. Sampaio, que estava na parede — está agora num armário. Oh grandes homens do Centro! Vós quisestes fazer uma alta justiça social. E o que fizestes?

Uma alteração na mobília! Pretendíeis significar por esse facto que éreis os homens da dignidade austera, e todo o mundo vê que sois simplesmente os admiradores das paredes lisas! Dizei cá! A advertência do Sr. Sampaio. ministro, foi ou não opressiva do vosso direito? Não? Então que homens sois vós que gratuitamente, caprichosamente, dais a desautorização a quem vos deu a associação? Foi opressiva? Então que homens sois vós que, por todo o desafogo do vosso direito violado, do vosso pensamento reprimido — não tendes mais iniciativa do que a de um criado tonto! A vossa justiça indigna-se — despregando pregos! Isto leva-nos a acreditar que o vosso carácter se afirma — jogando o pião! Criançolas! pequerruchos! grandes homens do Centro! oh traquinas!

Ah! a vossa maneira de protestar é cómoda para os homens — mas terrível para a mobília!

— «Está suspensa a sessão do Centro!» — declara um dia o Governo.

— Está? — grita o Centro. — Volte-se a mesa de pernas para o ar!

— «O Centro está dissolvido» — proclama noutro dia o Governo.

— Está? Rasguem-se as bambinelas!

E são terríveis! Que culpa tendes vós, mesa suja de tinta, portadas empenadas da janela, fechaduras, boas paredes de papel francês?

Ai! se o Centro se resolvesse um dia a conspirar deveras e o Governo a reprimir deveras — tremei, tremei, tremei, ó capachos da entrada!

XXX

Setembro 1871.

Os jornais deste mês travaram uma questão singular. Acusava-se este facto: a Srª

D. Eugénia de Montijo, condessa de Teba, ex-imperatriz dos Franceses (por um crime de seu marido) atravessara Lisboa para ir ver a Espanha os antigos paraísos da sua antiga mocidade; e o Governo expedira à Alfândega uma portaria galante, para que não fossem revistadas as bagagens de S. Exª! A isto respondiam algumas gazetas negando esta portaria — mas lembrando o utra pela qual são isentas das indiscrições fiscais as bagagens em trânsito, e afirmando que os baús ex-imperiais, com um desdém censurável pelas glórias de Lisboa, tinham passado rapidamente, sem curiosidade, da

Alfândega para a estação de Santa Apolónia. Os periódicos acusadores, porém, declaravam que conheciam de antiga data a portaria de excepção para as bagagens em trânsito — mas que tal não era o caso da loura e altiva inquilina das Tulherias. Por este tempo, porém, a índia penetrou nos artigos graves, e a questão das malas perdeu-se na esbatida penumbra das locais folgazãs. Nunca se averiguou se Madama Bonaparte tinha sido privilegiada delicadamente com uma portaria quase amorosa — ou se aproveitara as disposições de uma portaria qualquer, feita para mim, e para ti.

Se o privilégio se deu — atenda-se bem! — o privilégio não nos escandaliza. E, todavia, temos visto bastantes vezes, estendidas nos balcões da Alfândega, numa desordem impiedosa, toda a traparia obscura que habita as nossas malas! Mas como todo o privilégio pressupõe um mérito, nós queremos indagar qual é o mérito da Srª condessa de Teba: e procuraremos desde logo alcançá-lo para nós mesmos e para todos os nossos concidadãos — pondo assim a nossa roupa branca, e a roupa branca daqueles que amamos, ao abrigo das instituições!

Ora da Srª D. Eugénia de Montijo achamos que ela é casada com o assassino de 2 de Dezembro, com o deportador para Caiena e para Lambessa, com o destruidor da riqueza da França, com o comedor das substituições militares, com o esmagador de toda a liberdade, com o escravizador de todo o pensamento, com o bandido que, pelas estradas de Sedan, sacudia a cinza do seu cigarrinho histórico sobre o peito dilacerado da Pátria. Tudo isto destinge sobre a Srª condessa, tudo isto impõe à Srª condessa uma cumplicidade moral... Oh! sim, meus senhores, bem sabemos! «É uma infeliz, é uma dama, etc., etc.». Trégua às frases! E vamos direitos aos factos como uma bala justiceira. A pobre Catarina de Médicis era também uma infeliz, e era também uma dama! Lucrécia Bórgia gozava estas qualidades franzinas. M.me de Brinvilliers, feroz devota, não se julgava também feliz, e não era um homem!

A Srª condessa de Teba não se apresenta decerto tão especialmente nociva como estas três espécies: — mas no seu tempo deportavam-se para Caiena, para Lambessa e para a ilha do Fogo, homens cujo único crime era terem servido a república de 48, que

Luís Bonaparte tinha também servido! E esses homens eram mandados aos milhares no porão dos navios, esfomeados, vergastados, cobertos de vérmina, a trabalhar nos presídios! E as famílias ficavam dispersas, os filhos na miséria ou na casa de correcção, as viúvas nas lágrimas perpétuas. E que fazia, no entanto, a Srª condessa de Teba? A Srª condessa de Teba, esposa e mãe, dançava nas salas das Tulherias, entre o esvoaçar dos tules, aos compassos da rabeca de Strauss! Se essa devota Bénoiton, leitora simultânea dos manuscritos eróticos de Merimée e das efusões místicas de M.me Swetchine, crê em

Deus, nunca terá bastante vida para consumir em bastante penitência!

Tais são os méritos que encontramos na senhora D. Eugénia Montijo. Se foi a eles que S. Exª deveu a delicada vantagem de lhe não serem revistadas as suas bagagens, nada temos que estranhar. Somente pedimos que se declare explicitamente por uma portaria: — «que alguns crimes cometidos no estrangeiro isentam a bagagem de revista, quando se entra no reino!»

Assim, estamos todos prevenidos, e não custa nada, quando se chega à barra, matar dois ou três grumetes. Com este documento, o sujeito tem a alta vantagem de não ver amarrotada a goma das suas camisas. Antes de desembarcar, todo aquele que desejar ordem na sua roupa, aproxima-se de um marinheiro ou de outro passageiro, e murmura-lhe com doçura:

— O cavalheiro tenha paciência, mas eu não queria que na Alfândega me desarranjassem as minhas ceroulas, e há-de dar portanto licença que eu lhe crave esta navalha no fígado!

Não havendo esta precaução, é triste realmente que um homem, que não goze a vantagem de ter fuzilado o seu semelhante no boulevard ou de o ter mandado morrer de febres para Caiena, chegue à Alfândega, e por falta de três ou quatro crimes, veja o pudor das suas peúgas exposto à indiscrição pública! XXXI

Setembro 1871.

Os jornaes de Madrid contaram que S. A. R o principe Humberto todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reunem os italianos. Esta familiaridade, inteiramente contemporanea da Internacional, enchia de um jubilo espumante a imprensa monarchica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto — e esperava-se o principe Humberto, se não como um principe, ao menos como um consumidor! S. A. porém chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguem, e se tomou café não teve a inspiração de o tomar no Martinho! (Tanto a etiqueta cohibe os instinctos mais naturaes!)

A população de Lisboa, ficou desconfiada, sem saber se a abstenção de S. A. significava economia, se desdém. No primeiro caso queria propô-lo deputado reformista por Vouzela ou Palhares, ficando assim definitivamente acomodada na pení


Setembro 1871.

Os jornais deste mês travaram uma questão singular. Acusava-se este facto: a Srª

D. Eugénia de Montijo, condessa de Teba, ex-imperatriz dos Franceses (por um crime de seu marido) atravessara Lisboa para ir ver a Espanha os antigos paraísos da sua antiga mocidade; e o Governo expedira à Alfândega uma portaria galante, para que não fossem revistadas as bagagens de S. Exª! A isto respondiam algumas gazetas negando esta portaria - mas lembrando outra pela qual são isentas das indiscrições fiscais as bagagens em trânsito, e afirmando que os baús ex-imperiais, com um desdém censurável pelas glórias de Lisboa, tinham passado rapidamente, sem curiosidade, da

Alfândega para a estação de Santa Apolónia. Os periódicos acusadores, porém, declaravam que conheciam de antiga data a portaria de excepção para as bagagens em trânsito - mas que tal não era o caso da loura e altiva inquilina das Tulherias. Por este tempo, porém, a índia penetrou nos artigos graves, e a questão das malas perdeu-se na esbatida penumbra das locais folgazãs. Nunca se averiguou se Madama Bonaparte tinha sido privilegiada delicadamente com uma portaria quase amorosa - ou se aproveitara as disposições de uma portaria qualquer, feita para mim, e para ti.

Se o privilégio se deu - atenda-se bem! - o privilégio não nos escandaliza. E, todavia, temos visto bastantes vezes, estendidas nos balcões da Alfândega, numa desordem impiedosa, toda a traparia obscura que habita as nossas malas! Mas como todo o privilégio pressupõe um mérito, nós queremos indagar qual é o mérito da Srª condessa de Teba: e procuraremos desde logo alcançá-lo para nós mesmos e para todos os nossos concidadãos-pondo assim a nossa roupa branca, e a roupa branca daqueles que amamos, ao abrigo das instituições!

Ora da Srª D. Eugénia de Montijo achamos que ela é casada com o assassino de 2 de Dezembro, com o deportador para Caiena e para Lambessa, com o destruidor da riqueza da França, com o comedor das substituições militares, com o esmagador de toda a liberdade, com o escravizador de todo o pensamento, com o bandido que, pelas estradas de Sedan, sacudia a cinza do seu cigarrinho histórico sobre o peito dilacerado da Pátria. Tudo isto destinge sobre a Srª condessa, tudo isto impõe à Srª condessa uma cumplicidade moral... Oh! sim, meus senhores, bem sabemos! «É uma infeliz, é uma dama, etc., etc.». Trégua às frases! E vamos direitos aos factos como uma bala justiceira. A pobre Catarina de Médicis era também uma infeliz, e era também uma dama! Lucrécia Bórgia gozava estas qualidades franzinas. M.me de Brinvilliers, feroz devota, não se julgava também feliz, e não era um homem!

A Srª condessa de Teba não se apresenta decerto tão especialmente nociva como estas três espécies: - mas no seu tempo deportavam-se para Caiena, para Lambessa e para a ilha do Fogo, homens cujo único crime era terem servido a república de 48, que

Luís Bonaparte tinha também servido! E esses homens eram mandados aos milhares no porão dos navios, esfomeados, vergastados, cobertos de vérmina, a trabalhar nos presídios! E as famílias ficavam dispersas, os filhos na miséria ou na casa de correcção, as viúvas nas lágrimas perpétuas. E que fazia, no entanto, a Srª condessa de Teba? A Srª condessa de Teba, esposa e mãe, dançava nas salas das Tulherias, entre o esvoaçar dos tules, aos compassos da rabeca de Strauss! Se essa devota Bénoiton, leitora simultânea dos manuscritos eróticos de Merimée e das efusões místicas de M.me Swetchine, crê em

Deus, nunca terá bastante vida para consumir em bastante penitência!

Tais são os méritos que encontramos na senhora D. Eugénia Montijo. Se foi a eles que S. Exª deveu a delicada vantagem de lhe não serem revistadas as suas bagagens, nada temos que estranhar. Somente pedimos que se declare explicitamente por uma portaria: - «que alguns crimes cometidos no estrangeiro isentam a bagagem de revista, quando se entra no reino!»

Assim, estamos todos prevenidos, e não custa nada, quando se chega à barra, matar dois ou três grumetes. Com este documento, o sujeito tem a alta vantagem de não ver amarrotada a goma das suas camisas. Antes de desembarcar, todo aquele que desejar ordem na sua roupa, aproxima-se de um marinheiro ou de outro passageiro, e murmura-lhe com doçura:

— O cavalheiro tenha paciência, mas eu não queria que na Alfândega me desarranjassem as minhas ceroulas, e há-de dar portanto licença que eu lhe crave esta navalha no fígado!

Não havendo esta precaução, é triste realmente que um homem, que não goze a vantagem de ter fuzilado o seu semelhante no boulevard ou de o ter mandado morrer de febres para Caiena, chegue à Alfândega, e por falta de três ou quatro crimes, veja o pudor das suas peúgas exposto à indiscrição pública!


XXXI

Setembro 1871.

Os jornaes de Madrid contaram que S. A. R o principe Humberto todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reunem os italianos. Esta familiaridade, inteiramente contemporanea da Internacional, enchia de um jubilo espumante a imprensa monarchica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto — e esperava-se o principe Humberto, se não como um principe, ao menos como um consumidor! S. A. porém chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguem, e se tomou café não teve a inspiração de o tomar no Martinho! (Tanto a etiqueta cohibe os instinctos mais naturaes!)

A população de Lisboa, ficou desconfiada, sem saber se a abstenção de S. A. significava economia, se desdém. No primeiro caso queria propô-lo deputado reformista por Vouzela ou Palhares, ficando assim definitivamente acomodada na pení nsula a casa de Sabóia: no segundo desejaria simplesmente voltar-lhe umas costas democráticas, ficando assim exuberantemente vingado o café Martinho.

Calmai-vos, Portugueses, e escutai-nos! A abstenção de S. A. a respeito do café e de outros inefáveis encantos da Baixa — só significa timidez. Tantos tronos aluídos, tantos reis errantes, tantos palácios onde o musgo nasce, têm tornado a espécie timorata.

Um rei, um príncipe, não se afoita assim pelo meio das populações, com a despreocupação de um homem que entra na Deusa dos Mares. Os reis hoje passam de largo, cosidos com a parede, tiquetique, em passinho miúdo, colhendo a respiração, olho no povo, olho na porta — como quem passa por um cão de fila, que dorme ao pé de um muro de quinta, largamente envolto no sol.

O príncipe Humberto teve estas precauções delicadas: chegou devagarinho, esteve quietinho, partiu escondidinho. E aí está, Portugueses, porque S. A. não foi bater com a ponteira da sua bengala no mármore de uma mesa do Martinho — bradando «genebra a um!»

Que S. A. R. se tranquilizasse, porém! Nós vamos no nosso trigésimo primeiro rei, e ainda não devorámos nenhum. E decerto não iríamos experimentar o dente sobre um príncipe de outras terras! Tínhamos em nossa honra entregá-lo, escorreito e são, ao

único país legitimamente autorizado a devorá-lo — o belo país de Itália, Italia mater!

Tragar um príncipe alheio seria indelicadeza e esquecimento das boas relações internacionais. Os compêndios de civilidade, Alteza, ensinam-nos que se não mete a mão no prato do vizinho! Sabemos, Alteza, que, quando nos mostram um fruto raro, não

é da etiqueta abocanhá-lo, e quando nos mandam um gentil príncipe, não é polido engoli-lo de um bocado! Podia V. A. passar tranquilo no meio deste doce povo: podia

V. A. mesmo ter sido mais afável com os cavaleiros da tourada de Sintra, para quem, dizem os despeitados, V. A. não teve senão charutos abomináveis atirados com mão enfastiada. E creia V. A. que não seria estrancinhado! Portugal sabe respeitar o príncipe do seu próximo. Ser-nos-ia mais fácil, instados pela gula revolucionária, tomar o mesmo

Sr. Melício às colheres — o mesmo Sr. Vaz Preto às fatias! Mas cravar o queixal sôfrego num príncipe de Itália, nossa irmã... Nunca! Se tal fizésseis, o Sr. João Félix, lente de civilidade, jamais vo-lo perdoaria, ó Lusos!

Os jornais de Madrid contaram que S. A. R. o príncipe Humberto, todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reúnem os italianos.

Esta familiaridade, inteiramente contemporânea da Internacional, enchia de um júbilo espumante a imprensa monárquica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto — e esperava-se o príncipe Humberto, se não como um príncipe, ao menos como um consumidor! S. A., porém, chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguém, e se tomou café, não teve a inspiração de o tomar no Martinho!

(Tanto a etiqueta coíbe os instintos mais naturais!)

XXXII

Setembro 1871.

Treguas por um instante n'esta aspera fusilaria! N'uma pagina á parte, tranquilla e meiga, pomos a lembrança de Julio Diniz. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem n'elle, na sua obra gentil e facil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espirito ex- cellente não ficou popular: a nossa memoria, fugitiva como a agua, só retem aquelles que vivem ruidosa- mente, com um relêvo forte: Julio Diniz viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.

Um só livro seu, um romance, fez palpitar fortemente as curiosidades simpáticas —

As Pupilas do Sr. Reitor. Esse livro fresco, quase idílico, aberto sobre largos fundos de verdura, habitado por criações delicadas e vivas — surpreendeu. Era um livro real, aparecendo no meio de uma literatura artificial, com uma simplicidade verdadeira, como uma paisagem de Cláudio Loreno entre grossas telas mitoló gicas. Era um livro onde se ia respirar.

Júlio Dinis amava a realidade: é a feição viril e valiosa do seu espírito.

Nunca porém se desprendeu do seu idealismo e sentimentalismo nativo. A realidade tinha para ele uma crueza exterior que o assustava: de modo que a copiava de longe, com receio, adoçando os contornos exactos que a ele lhe pareciam rudes, espalhando uma aguada de sensibilidade sobre as cores verdadeiras que a ele lhe pareciam berrantes. As suas aldeias são verdadeiras, mas são poetizadas: parece que só as vê e as desenha quando a névoa outonal esfuma, azula, idealiza as perspectivas.

Nunca um sol sincero e largo bate a sua obra. Tudo nela é velado de névoa poética. Não

é que não ame, não persiga a verdade: somente quando a fixa na página traz já a pena toda molhada no ideal que o afoga.

Dizem que os seus livros são memórias, e que ele faz a aguarela suave das paisagens em que viveu, e que personaliza, em criações finamente tocadas, os sentimentos com que palpitou; daí decerto a realidade que os seus livros deixam entrever, fugitivamente. Mas parece que não fora feliz, e que só ao compassar dos soluços o coração lhe aprendera a bater: daí pois aquelas meias-tintas azuladas e melancólicas em que se move, num rumor brando, o povo romântico dos seus livros, e com que ele procura esbater e adoçar a crueza das realidades humanas que o fizeram sofrer.

Era sobretudo um paisagista. As suas figuras só servem para dar expressão e vida

à paisagem.

Os campos, as searas, os montes, as claras águas, os céus profundos, não são nos seus livros a decoração que cerca uma humanidade fortemente sentida: as suas camponesas romanescas, os seus galãs violentos e ternos, as meigas figuras de velhos, até as suas caricaturas — é que foram por ele colocadas assim para poder, em torno delas, erguer com cuidado, árvore por árvore e casal por casal, as aldeias que tanto amava. Há nos seus romances tal descampado, tal eira branca batida do sol, tal parreira onde os gatos se espreguiçam, que tem mais ideia, mais acção, mais vida, que as figuras vivas que em torno se movem.

Depois das Pupilas do Sr. Reitor as obras de Júlio Dinis passaram de leve, entre as atenções transviadas. Terá o seu dia de justiça e de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo desenha, escondidos no fundo dos vales sob o ramalhar dos castanheiros, os seus livros serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.

Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espírito excelente não ficou popular: a nossa memória, fugitiva como a água, só retém aqueles que vivem ruidosamente, com um relevo forte: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.

Foi simples, foi inteligente, foi puro. Trabalhou, criou, morreu. Mais feliz que nós, tem o seu destino afirmado, e para ele resolveu-se a questão.

Passemos pois... Já do outro lado, para além desta página serena, ouvimos, inumeráveis como abelhas vingadoras, as ironias aladas que, com um rumor impaciente, zumbem no ar!

XXXIII

Setembro 1871.

«A historia é a consciencia escripta da humani- dade», disse um homem, que teve, quando luctava, o segredo das palavras que ficam.

Nós podemos pois dizer, comezinhamente, que a historia dos Açores é a consciencia escripta dos Açores.


Ora sucede que entre o passado Governo de S. M. e o Sr. Sena Freitas se trocou este contrato:

O País daria ao Sr. Sena Freitas 600$000 réis por ano, bom metal: por outro lado o

Sr. Sena Freitas encarregar-se-ia de pôr em letra redonda, com boa ortografia, prosódia sã, e pontuação certa, a dita consciência dos Açores.

Mal o contrato foi assinado, estalou sobre toda a linha de gazetas uma argumentação indignada. Acusava-se o ministro, escarnecia-se o contrato, estranhava-se o historiador, condenava-se a história — e os mais rudemente batidos eram os 600$ 000 réis.

Como se diria na Bíblia, o escândalo veio pelos fariseus!

Pois bem, para este contrato, nós só temos bênçãos e flores. E a plebe irreflectida pode ladrar em vão!

Ouvi cá, homens de estreita fé! Se o Sr. Sena Freitas se tivesse decidido espontaneamente, gratuitamente, a escrever a história dos Açores, que garantia dava ele de fazer um trabalho de poderosa crítica? Que garantia dava de compor mesmo um livro minucioso, erudito, cheio de factos, beneditino? O Sr. Freitas dava apenas a garantia do seu espírito. Mas ai! o espírito dormita, sofre obscurecimentos, caduca — e aí ficava estragada a história dos nossos bem-amados Açores.

Ouvi mais! Se o Sr. Sena Freitas tivesse sido encarregado por este decreto:

«Manda el-Rei que o Sr. Sena Freitas seja um grande historiador...»que garantias dava o

Sr. Sena Freitas de que havia de criar uma obra original e profunda? O Sr. Freitas dava só a garantia da sua obediência ao seu Rei. Mas ai! ai! a obediência aos reis pode fazer concessões — ou piruetas. Que amanhã, quod Deus avertat, se proclamasse a República

— e vós ficaríeis sem história e sem Freitas, ó Açores.

E agora respondei! Preso por um contrato, ligado por uma escritura, não dá o Sr.

Sena Freitas a garantia suprema, a garantia da sua honra? Obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador, tem portanto toda a sua dignidade empenhada em ser — um grande historiador!

Podia S. Exª, por exemplo, não possuir outra aptidão senão escrever folhetins; podia não dispor de crítica, nem de método; podia não fazer ideia do que é a ciência histórica e a filosofia da história; podia não ter elevação de pensamento, nem estudos especiais; podia não ter estilo nem gramática — embora! Estamos descansados.

S. Exª obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador: S. Exª é um homem honrado: S. Exª será um historiador grande! Acreditamos em S. Exª.

Conhecemos S. Exª. Se S. Exª houvesse contratado com o Sr. Ávila que seria, a

600$000 réis por ano, um poeta maior que Vítor Hugo, S. Exª (temos a inteira certeza), trabalharia, lutaria, compraria um dicionário de rimas, consultaria o Sr. Vidal, mas seria um poeta maior que Vítor Hugo. Se S. Exª tivesse contratado ser um candeeiro do

Rossio, S. Exª cumpriria com valor o seu contrato — e seria um nobre candeeiro do

Rossio!

Sua Exª contratou! A fé jurídica não admite conciliações. Sempre queríamos ver agora qu e S. Exª se atrevesse a não ser um grande historiador! Em Portugal há tribunais.

Nós seguiremos o trabalho de S. Exª, página por página, e quando S. Exª não for admirável, como crítica, como ciência, como forma, requeremos à Boa Hora: — «Que, em virtude do contrato de tantos de tal, seja o Sr. Sena Freitas citado para, no prazo de vinte e quatro horas, ser sublime a páginas tantas da sua obra sobre os Açores!»

O contrato não foi escrito e registado para que os Açores tenham um historiador medíocre!

Sobre o Sr. Sena Freitas pesa desde hoje a responsabilidade de ser sublime. S. Exª

é um rapaz inteligente e espirituoso. Não basta, tem de ser um grande homem!

Contratou para isso, tem de o ser! Cara alegre e espírito desafogado! É para ali!

Ah! queria talvez ganhar 600$000 réis e não ter o trabalho de ser um historiador como Michelet! Há-de sê-lo! Já não lhe é permitida a obscuridade, nem a mediocridade!

Queira ou não, tem forçosamente de ser um génio! Nem uma só vez mais na vida lhe é concedido o doce desafogo de não ter gramática! Há-de ser maior que Guizot, arranje as coisas como quiser! E se recuar, se se eximir, se hesitar, a Boa Hora lá está que, de contrato em punho, e brandindo as contas do processo, o obrigará à força — a ser um homem imortal!

Em Portugal só assim se podem alcançar grandes homens! É obrigá-los por um contrato. Ah! se o Governo tivesse contratado com o senhor A que ele fosse, a tanto por mês, um dramaturgo maior que Shakespeare — não teria o País a vergonha de confessar que o Sr. A é um dramaturgo inferior a Guilbert de Pixerecourt! Se o Governo tivesse contratado com o senhor B, que ele fosse um homem de Estado como Pitt — não passava a Pátria pelo vexame de ver que o senhor B e, como político, ainda inferior a Sancho

Pança, rei de Baratária! Que significa, num país culto, abandonar assim os homens à sua iniciativa? Que intento é este de deixar a cada um a liberdade de ser medíocre? O

Português só poderá ser inteligente obrigado por um contrato, forçado pelos tremendos laços da lei, amarrado de pés e mãos!

Que o talento seja imposto como o serviço militar! Recrutem-se soldados para

Caçadores 5, mas recrutem-se também génios para Vila Nova de Gaia! Porque não temos um poeta épico? Que faz o Governo? Quer desleixar a epopeia, como desleixa a fazenda? A Pátria precisa de grandes homens — fulminem-se penas severíssimas a quem não for grande homem!

É forçoso confessá-lo! O País está embrutecido, mas a culpa vem dos poderes públicos. Que se decrete que todo o cidadão válido deve ao seu país, além da décima — um soneto! Que todo aquele que tenha de mostrar documentos, seja adstrito a apresentar, além da ressalva e da folha corrida — um artigo de almanaque! Haja o génio obrigatório! E o País florescerá, e poderemos definitivamente esperar que em Mato

Grosso comece enfim a fazer impressão — a grande civilização lusitana!

XXXIV

Setembro 1871.

Andavamos inteiramente esquecidos da’India! Uma clara manhá ella apparece violentamente no meio de nós, envôlta n’um telegramma do sr. visconde de S. Januario. Por essa occasião muito bom portuguez se admirou que a India ainda fosse nossa! Ella sahira, havia muito, das pompas solemnes do artigo de fundo. Quasi não apparecia nos orçamentos. Obscura, velha, arruinada, esteril, dobrada sobre si mesma, todos a suppunhamos unicamente occupada, nas brumas distantes, a comer o seu arroz! A noticia de que ella ainda tinha vitalidade bastante para se revoltar, —espantou! A certeza que ainda alli havia soldados, cidadãos, fortalezas, interesses, telegraphos, — quasi aterrou!

Uma vez que a gloriosa India ainda existia, era necessario que a respeito d’ella existisse o correspondente brio patriotico. Sacudiu-se o velho brio patriotico do pó e da caliça-e cada um envergou o velho brio patriótico!

Uma vez que a gloriosa índia ainda existia, era necessário que a respeito dela exis-tisse o correspondente brio patriótico. Sacudiu-se o velho brio patriótico do pó e da caliça — e cada um enve rgou o Começou então o movimento. A Baixa teve os seus alvitres heróicos. Os jornais perfilaram de novo, em parada, as frases solenes, de peruca e rabicho, que celebram num ritmo dormente o alto amor da Pátria. Meteu-se na mão do sr. infante D. Augusto uma espada — condicional. A própria Estefânia, comovida, venceu os nervos e a preguiça, e partiu, cheia de mobília e de brio, a salvar o mapa das possessões

Nós, entretanto, ríamos.

Oh, Santo Deus, não era cepticismo, não! Como outros quaisquer, mais que outros quaisquer, amamos este pobre e velho Portugal. Mas sabemos, meus dignos senhores, que uma revolta militar na índia é alguma coisa tão extremamente insignificante e efémera como um meeting civil no reino.

O grosso do exército da índia é composto de indígenas — mouros, canarins, banianos e gentios. Estes nomes melodiosos designam castas; e as castas na índia conservam ainda todo o seu velho e irreconciliável separatismo. As castas desprezam-se, guerreiam-se, e nunca absolutamente se fundem. Quase não se comunicam. Se um baniano toca a púcara de barro poroso de um canarim, o canarim espedaça num cunhal a púcara desventurada! Estas hostilidades, nada as dissipa: nem as promiscuidades inevitáveis da caserna, nem os rigores igualitários da disciplina. De sorte que o exército, formado destes elementos antipáticos, que se não unem, que se amaldiçoam, e onde apenas há o contacto material dos ombros na fileira — não tem unidade nem coesão.

Além disto, todas as castas têm hábitos fatais, horas impreteríveis. Está o soldado gentio de guarda: se chega a hora do seu arroz, e não lho trazem — ele pousa tranquilamente a espingarda, cruza as mãos atrás das costas, e vai ao quartel ladrar contra o rancheiro; se chega a hora da ablução, atira a arma para um canto, e corre, aos pulos, a acocorar-se à beira do mar! E não há severidades, não há castigos, que alterem estes hábitos orientalmente fatais.

A oficialidade deste exército compõe-se pela maior parte de portugueses nascidos na índia — mestiços, castiços ou descendentes. São os filhos de antigos degredados, de velhos bastardos da fidalguia indiana, de oficiais expedicionários, etc. Além destes oficiais nativos — há os oficiais europeus, mandados do continente, os expedicionários.

Estes, por altos motivos que só os grandes homens de Estado como o Sr. Barros e

Cunha podem saber, têm um soldo maior que os oficiais índios. Ora os oficiais índios, com um zelo pelas rupias extremamente compreensível, quereriam ter um soldo igual aos oficiais que vão de Portugal. Por consequência requerem. (Têm a ingenuidade

Andávamos inteiramente esquecidos da índia! Uma clara manhã ela aparece violentamente no meio de nós, envolta num telegrama do sr. visconde de S. Januário.

Por essa ocasião muito bom português se admirou que a índia ainda fosse nossa! Ela saíra, havia muito, das pompas solenes do artigo de fundo. Quase não aparecia nos orçamentos. Obscura, velha, arruinada, estéril, dobrada sobre si mesma, todos a supúnhamos unicamente ocupada, nas brumas distantes, a comer o seu arroz! A notícia de que ela ainda tinha vitalidade bastante para se revoltar — espantou! A certeza que ainda ali havia soldados, cidadãos, fortalezas, interesses, telégrafos — quase aterrou! asiática de requerer!) Mas quando desesperam dos despachos da Pátria, permitem-se, como uma variedade mais ruidosa, uma certa porção de revolta! Levam alguns bata-lhões para a rua e soltam o babadé. O babadé é um ah! ah! ah! prolongado, uivado — cortado pela mão espalmada que bate rapidamente sobre a boca. Tais são as revoltas da

índia, á concidadãos timoratos!

Para conter este elemento indígena, que meios tem o sr. governador-geral? Diz-se que o sr. governador-geral, para defesa dos grandes interesses portugueses, dispõe da guarda municipal.

Essa guarda foi de todo o tempo composta de soldados portugueses, que os índios chamam paquelós. Os portugueses que vão servir como funcionários são considerados aristocracia, e chamam-se fringuis. Na índia o Sr. Melício seria um fringui!

Esta guarda foi sempre segura, fiel e valente. Somente, hoje, tem a qualidade lamentável das legiões de Varo: — já não existe! A Pátria distraída esqueceu-se de renovar os paquelós: e a Morte, com um desdém pelas nossas possessões que nunca lhe censuraremos bastante, foi-os levando, e paqueló após paqueló, destruiu na índia todo o poder lusitano. Hoje duas ou três companhias de mouros compõem a guarda fiel: estes pobres mouros arrastam na vadiagem os sapatos rotos, e estimulam o seu entranhado patriotismo com aguardente de banana, bebida alucinadora que leva à caquexia! — O que hoje há, pois, nessa índia gloriosa e tradicional, para policiar e sustentar o poder português, é um bando de mouros sujos, idiotas, e bêbedos de aguardente!

Pois bem! ainda assim uma revolta na índia não tem seriedade. E o motivo é que os oficiais, que, para terem maior número de rupias no seu soldo, tentaram uma revolta, vêem-se, realizada ela, singularmente embaraçados. Vêem-se sós.

Em primeiro lugar os soldados não vão por um impulso próprio. Divididos em castas, fracos, ignorantes, odiando-se, sem terem interesse comum ou vontade comum — vão unicamente porque os seus oficiais, no primeiro momento, lhes mandaram que fossem. É mesmo assim — como eles dizem. Se contra eles, porém, se apontar uma espingarda fiel — como estão ali, não em virtude da revolta sua, mas por obediência à revolta alheia — dispersam.

E depois, os oficiais revoltados não têm rancho para lhes dar. O povo conserva-se indiferente, sem adesão, sem simpatia. Os que possuem alguma rupia, nesses dias enterram-na; os que têm arroz ensacado, escondem-no. Ninguém confia uma para a um oficial revoltado. Ao segundo dia de desordem, quando chega a hora do rancho, os oficiais só têm a dar aos soldados — palavras de entusiasmo! Os soldados (nunca podemos compreender por quê) preferem o arroz à retórica; e começam a debandar.

Além disso no exército índio não há pólvora, nem munições... Quase não há armas!

Por outro lado, à mais pequena insurreição, a disciplina, já famosamente diminuta, desaparece, sem pudor nenhum; e as diversas castas aproveitam os vagares da revolta — para se espancarem com fervor.

Acrescente-se que os oficiais da índia não têm instrução, nem táctica; não são capazes de ordenar uma marcha hábil, de formar um campo entrincheirado, de darem um apoio estratégico à revolta.

Ao fim de dois dias de gritos e de babadé — acham-se nesta situação triunfante: sem ponto de apoio, sem adesões, sem rancho, sem munições, sem dinheiro, sem disciplina. Se o governador-geral faz sair um bando que, ao som do tambor, propõe a amnistia, cada um solta um ah! de satisfação e de alívio, e volta para o seu quartel!

Ainda tendes medo, patriotas da Arcada?

E não se deve esquecer ainda esta circunstância: o índio das nossas possessões é de uma debilidade gelatinosa.

Anémico, miudinho, assustadiço, consumido pelo sol, mal sustentado de arroz, o

índio cai de bruços com uma carícia no rosto, e morre com uma palmada na espinha. E uma fraqueza comprometedora. As pessoas inexperientes e impacientes fazem um prodigioso consumo de índios. Um empurrão, e o índio tomba — na eternidade. Não há talvez desembargador algum em Goa que não tenha, com a sua mão grave e jurídica, assassinado um índio! Dá-se uma pancada leve no ombro do índio — - ele cambaleia, suspira, nesse dia come pouco, no outro estende-se ao sol a gemer, começa a beber muita água, e morre.

Depois, o soldado índio, mal ouve o nome de paqueló — treme. Aí vem o paqueló

— foge! Vê o paqueló — atira-se de bruços, já moribundo.

Há tempos, em Mapuçá, um regimento de 400 praças revoltou-se. Sai para a rua e vem fazer babadé para defronte da casa do comandante. O comandante, à janela, em chinelas, tomava café, e entre os goles, vagarosamente sorvidos, exclamava para o regimento insurgido:

— Ah! vocês revoltaram-se?

Depois para dentro, ao criado:

— Mais açúcar!

E continuava:

— Bem, eu já vos falo. — Uma colher! — Assim é que estais disciplinados, velhacos?

— Dá cá o cachimbo! — Ora deixai estar que os paquelós aí vêm! — lume!...

O regimento hesitava. Nisto aparece, numa pequena elevação, a distância, o tenente Bruno de Magalhães que vinha, com 20 paquelós, bater os 400 revoltosos. Os

400 revoltosos, só com ver ao longe os 20 paquelós, debandaram aos gritos. Nem mesmo se chegou nunca a saber por que se tinham revoltado!

Porém, á homens de Estado, podeis dizer-nos:

— Mas se a Inglaterra meter lenha para o forno?

A Inglaterra?! No dia, meus senhores, em que a Inglaterra mandasse um soldado à fronteira da índia Portuguesa — todo o território índio, mestiços, canarins, descendentes, todas as castas, todas as fraquezas se levantavam num ímpeto. Povo e tropa na índia tudo querem — menos o Inglês.

O povo não quer o Inglês — porque no nosso regime ele vive na ociosidade, no desleixo, na sua imundície querida, na sua bem-amada traficância; e se fosse inglês, o cipaio viria obrigá-lo, a golpes de curbach, a ser policiado e a ser trabalhador.

E o soldado índio detesta o Inglês — porque, sob o nosso regime, ele pode subir os postos até major; e sob o regime inglês não subiria nem a cabo!

Aí está a razão por que uma revolta na índia não tem valor, e por que foram tão supérfluos os vossos fervores patrióticos!

No entanto, é indispensável que estes sustos acabem! O País está débil e fraco, e estas comoções matam-no. Há pouco Macau, agora a índia! Que as colónias nos deixem respirar! Que se revoltem, sim, mas com intervalos, sem acumular. Que se abra mesmo um registo no ministério da Marinha. Em Setembro de 71 revoltou-se a índia? — Pois bem, só em Setembro de 1872 será permitido que Timor se subleve.

A índia não nos serve senão para nos dar desgostos.

E um pedaço de terra tão escasso que se anda a cavalo num dia. As pequenas povoações caem em ruína e em imundície; não há nelas movimento, nem iniciativa; a

única cultura é o arroz, que exportam a 5 para importar a 8; a única indústria, fazer olas, que são os encanastrados de palmeira com que se erguem os pacaris, alpendres coloridos e frescos que sombreiam as janelas; não existe nenhum comércio; os tributos esmagam; dois ou três homens ricos, Jossy e mais dois, que se vêem nos patins, descalços e encruzados, comendo o seu arroz com a mão, têm o dinheiro enterrado, e quando se lhes garante um forte juro, cavam e emprestam; as escolas são uma ficção grotesca; as estradas são a espessura do mato; a higiene é feita pelos cães que lambem as imundícies na rua; a polícia é feita por cada um com o seu bambu; uma intriga sórdida e rastejante agita indígenas e europeus; o deboche tem o ardor do clima; os soldados embebedam-se com aguardente; e no entanto velhos pardieiros, que se esboroam às mordeduras do sol, esconderijos de corvos, lembram as nossas glórias e alastram o chão de caliça. Tal é a índia Portuguesa.

Noutro número das Farpas lembrámos, a respeito das colónias, este grande melhoramento — vendê-las! Ocorre-nos outro ainda maior a respeito da índia — dá-la!

E quanto a glórias nacionais, contentemo-nos com o barítono Lisboa e com o Sr.

Arrobas — e é já glória bastante!

A única coisa por que conservamos a índia, é por ser uma glória do passado. Oh! meus senhores, também D. João I é uma glória, e nós não nos conservamos abraçados à sua sepultura, soluçando e gemendo.

O passado é belo e heróico — bem: quando o passado pretende antepor-se aos interesses do presente, o passado é caturra! Seria verdadeiramente impertinente que uma rosa murcha tivesse a pretensão de andar na boutonnière da nossa sobrecasaca: que uma pomada rançosa do ano passado ousasse querer anediar os nossos cabelos: e que o esqueleto da mulher amada tentasse ainda dar-nos beijos!

Se podemos vender a índia aos Ingleses, vendamos a índia, por Deus! E quanto às glórias de Dio e de Damão, se elas se querem conservar na história e na pompa da epopeia, quietinhas e caladinhas, terão a nossa consideração. Mas se, quando se tratar de negociar, elas se interpuserem com recordações importunas, dir-lhe-emos insolências, e desejaríamos dar-lhes coronhadas. Fora daqui, caturras! voltai para o sepulcro e para o pó das crónicas!

D. João de Castro, hoje, não serve senão para os rapazes de latinidade fazerem temas na província. Tem paciência, glorioso varão! Sobre as tuas soberbas façanhas, o nosso tempo científico, positivo e racionalista, não tem senão a dizer-te:

— «Cumpriste sublimemente, meu velho D. João, os deveres do teu tempo segundo as ideias do teu tempo. Dorme agora quieto o teu grande dormir; e deixa que nós, segundo as ideias do nosso tempo, cumpramos os deveres do nosso tempo!»

XXXV

Outubro 1871.

Sahiamos do Antony. Um pouco adeante de nós, subindo a rua Nova do Carmo, vinham conversando dois hispanhoes, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do Chiado, alguns fadistas, n’um grupo ruidoso, tocavam guitarra.

Sahiamos do Antony. Um pouco adeante de nós, subindo a rua Nova do Carmo, vinham conversando dois hispanhoes, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do Chiado, alguns fadistas, n’um grupo ruidoso, tocavam guitarra.

Quando os dois hispanhoes passavam, os fadistas rompem a chasquear e, para variar um pouco os seus prazeres, esbofeteiam um hispanhol. O outro então, surprehendido, ergue a mão, e, com um vigor castelhano, dá em redor algumas bofetadas sonoras e fulminantes que fizeram rolar na lama os magros tocadores de guitarra.

N’isto uma patrulha, que descia o Chiado, vem pé ante pé, faz um cêrco, e tomando as espingardas pela coronha começa por atirar ás costas do hispanhol uma pancada horrivel, que o deixa rendido, suffocado, a arquejar. A esse tempo já um fadista gania, escalavrado, sob outra coronhada

Respeitemos, submissos, este processo policial.

O redactor de um dos mais vivos jornais de Lisboa contava-nos pouco depois, na redacção, que vira na véspera alguns polícias, diante de um homem com um acidente, tratando de lhe fazer voltar os espíritos à força de pontapés na cabeça: o homem rebolava no chão; os polícias então davam-lhe pontapés no estômago. Talvez a Medi-cina não siga inteiramente este sistema de curar acidentes: no entanto a polícia tem essa opinião terapêutica, e nós não podemos contestar a ninguém o direito de divergir, em questões de ciência, da Escola Médico-Cirúrgica. O acidente tratado pelo espancamento

é uma teoria. E boa? É má?... Em todo o caso é respeitável.

Somente nos parece que, visto a polícia possuir este método específico, que ela decerto julga proveitoso porque o usa, não lhe poderia custar muito um pequeno trabalho a mais — e o Governo deveria encarregá-la de tratar os cidadãos enfermos.

Poupávamos assim a despesa com a Escola de Medicina. Quando alguém se sentisse doente, chamava da janela o polícia da esquina; e este benemérito, depois de tomar o pulso e reconhecer a autenticidade do mal, arregaçava a calça, mandava pôr o doente em posição, e escalavrava-o a pontapés!

Uma economia paralela nos ocorre a respeito da municipal. Coronhadas como as que vimos estalar, com um som baço e gemente, nas ilhargas de dois cidadãos, podem muito naturalmente matar um homem fraco, que sofra do peito, de uma lesão, de um aneurisma, de um vício de construção. Ora não queremos dizer que a patrulha não tenha a faculdade de matar, à coronhada, os cidadãos que destranquilizam as ruas! Seria esse mesmo o meio mais eficaz de estabelecer na cidade uma paz inalterável. O cidadão estendido morto, com a espinha partida ou o crânio aberto, aos pés do municipal, dá garantias superiores do seu sossego e da sua cordura. E decerto a melhor maneira de fazer entrar um cidadão na ordem — é fazê-lo entrar no cemitério.

Mas então (economia!) suprimamos os tribunais. Recolha-se definitivamente a magistratura ao seio das suas famílias e das suas torradas. Não é necessário que haja juiz para julgar os cidadãos — quando a municipal previamente se encarrega de desfazer esses cidadãos às coronhadas! O mais subtil magistrado ficaria pálido de embaraço se lhe apresentassem o corpo despedaçado de um desordeiro — para ele lhe fazer perguntas!

E como poderia um cadáver pagar a multa? Poupemos à justiça estas colisões vexatórias!

Saíamos do Antony Um pouco adiante de nós, subindo a Rua Nova do Carmo, vinham conversando dois espanhóis, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do

Chiado, alguns fadistas, num grupo ruidoso, tocavam guitarra.

XXXVI

Outubro 1871.

O Diario de Noticias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o habito das informações es- crupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso:

«Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fôra prêso, e condemnado...» Reparem bem! «E condemnado... a varrer as ruas de Gouveia!

De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de decepar suas mulheres. São miudezas domesticas em que não intervimos. Nunca se dirá

que as Farpas se arrojam indiscretamente sobre o seio das familias. Que os maridos, quando lhes con- venha, para melhor organisação do seu interior, partam suas mulheres aos pedaços — coisa é que nem nos escandaliza, nem nos jubila! Talvez não imitássemos esse exemplo: não por nos p arecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte estimada! E entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa — é mais simples ir à cozinha trinchar o rosbife, do que à alcova retalhar a esposa!

Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de Gouveia.

Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo, marca uma pena diversa, não prevendo esse castigo de varrer as ruas de Gouveia — de resto todo Local.

Mas quem sabe se não será uma tremenda penalidade — o limpar as ruas de Gouveia!

Talvez mesmo o juiz — por lhe parecer insuficiente o degredo perpétuo — rompesse no excesso arbitrário de entregar aquele facínora ao suplício imenso de limpar as ruas da sua vila! Bem pode ser que aquele marido esteja cumprindo uma sentença pavorosa, e que o devamos lastimar mais que os infelizes que S. M. Alexandre II da Rússia (que

Deus guarde e muitos anos conserve em prosperidade e glória) manda trabalhar, ao estalo do chicote, nas minas de Orilieff! A imundície da província tem mistérios.

Limpar as ruas de Gouveia será talvez a pena que de futuro adoptem, em substituição da pena de morte, os códigos da Europa. Que grande honra, meus amigos, para a sujidade nacional!

Mas uma coisa nos ocorre: — e é que, de ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um emprego municipal, e começa a considerar-se uma pena infamante. E pode acontecer que os srs. varredores de Lisboa — não querendo, por uma susceptibilidade exagerada, passar por terem assassinado suas esposas, deponham com gesto de desdém o cabo das suas vassouras nas mãos atarantadas da câmara municipal! Por outro lado, dada esta greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a suspeitassem de ter empregado o trinchante na pessoa da sua consorte. A única pessoa que afoitamente ousaria varrer as ruas seria aquela de quem se não pudesse suspeitar um crime, aquela que fosse pela lei do Reino declarada irresponsável. Ora há só uma neste caso. É o chefe do Estado. Esse é o único que poderia varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse de pensar que ele andava ali, às vassouradas, por sentença de um tribunal. Esse é irresponsável; não comete crimes, nem sofre penas. Mas seria realmente atroz que S. M. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas, melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho, adiante de si, em nu vens de poeira, a

O Diário de Notícias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso: imundície dos seus vassalos!

Que a justiça, pois, nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundície especial e pavorosa das ruas de

Gouveia torna realmente essa pena igual à de degredo: ou se o sr. juiz de Gouveia entende que matar a esposa é acto tão meritório, que merece um emprego remunerado pela câmara. Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos.

XXXVII

Outubro 1871.

Alguns jornaes contaram este mez, com uma indignação ingenua, que na devota cidade de Braga alguns missionarios vendiam aos fieis carlas ineditas da Virgem Maria. Estas cartas, segundo pare ce, eram dirigidas, umas a personagens dos tempos evangelicos — outras, mais particularmente, a cida. dãos de Braga. Corre que os editores d’esta correspondencia inesperada da Mãe de Jesus tiveram um ganho excellente.

O commercio da reliquia piedosa é a occupação usual dos srs. missionarios. Um sabio professor da universidade de Coimbra contava-nos, ha pouco, que presenceara em Traz-os-Montes uma singular agudeza:

Um missionario chegou alli com grande bagagem de rosarios, contas, sudarios, pedaços do santinho, fragmentos da tunica, etc. Mas o desleixado, o imprudente, não trazia caixeiro! De tal sorte que teve de se contentar com dois que lhe forneceu um negociante de pannos. Estes dois habeis vendedores a retalho, collocados á porta da egreja nas tardes de sermão, deante de taboleiros de feira, enfeitados de toalhas bordadas e cheios de reliquias, dirigiam activamente o seu negocio pio. Quem entrava na egre- ja comprava com devoção. E no entretanto o mis- sionario no pulpito trovejava. - Contar aqui o que elle declamava no seu vozeirão labrego não o po- demos - para que estas paginas não venham a ser consideradas tão picantes como as das memorias de Faublas.

No entanto uma inquietação atormentava este varão pio. Não sabia a conta exacta das relíquias que dera aos caixeiros, e punha neles uma confiança pouco evangélica! De modo que tomou este expediente triunfante. Ao fim de cada sermão, clamava:

— Agora vão-se benzer as relíquias! Quem tiver rosários de Nossa Senhora, erga-os ao ar!

Os fiéis que se tinham provido daquela espécie levantavam-na com fervor. O missionário então, como absorto em êxtase, contava com os olhos, rapidamente, a voo de pregador, os rosários. Depois abençoava-os. Passava em seguida, p elo mesmo processo extático, à contagem das outras relíquias. E quando saía da igreja conferia os seus apontamentos mentais do púlpito com os resultados monetários da porta. Os caixeiros eram honrados, e este homem fez um bom lucro. Que Deus o proteja, e a polícia o não incomode!

Nós achamos tudo isto extremamente regular. Somente desejamos saber:

Se os srs. missionários são exclusivamente negociantes, que, de passagem e por demais, também pregam sermões;

Ou se são sacerdotes, que, para se ocuparem em mais alguma coisa, também fazem negocio.

No primeiro caso, sendo negociantes que por demais pregam sermões, achamos perfeitamente inútil que, depois de terem feito o seu comércio, queiram mostrar a sua eloquência. Um negociante que, depois de nos vender uma peça de linho, nos recitasse uma ode da sua lavra, seria aleivosamente impertinente. Julgamos pois dispensável que os srs. missionários, tendo recolhido na praça o seu ganho, subam ao púlpito a exalar a sua retórica.

Que andam eles fazendo? Andam espalhando a palavra de Deus? — Mas então, se existem em Portugal vilas ou aldeias não convertidas ao cristianismo, em que pensa o

Governo que não manda as suas hostes rechaçar o infiel? Bajoica de Riba é moura?

Expulse-se de lá o adorador de Mafoma! Mas se Bajoica já é cristã e católica, que têm que fazer lá os missionários? Os antigos padres das missões, educados na tradição apostólica, iam à China, ao Japão e à índia, em viagens maravilhosas, ensinavam o Deus novo, e morriam nos tormentos. Estes senhores que vão fazer agora em diligência a

Tondela, ou em ónibus a Mafra? Não possui cada freguesia o seu pároco, as suas prédicas, as suas missas, o seu culto? Se os missionários não vão lá senão ensinar a religião que lá se prega, são evidentemente inúteis: se vão ensinar uma religião nova, que a polícia e o Estado os condene, porque não é permitido alterar a religião do reino.

Fugi a isto, doutores de teologia! E se os senhores bispos entendem que é necessário que os missionários fortaleçam a fé enfraquecida das freguesias — então que se dirá de SS. Ex.as Reverendíssimas? Por que consentem SS. Ex.as nas suas dioceses um clero colado tão incompetente que assim deixa enfraquecer a religião, e que torna necessário que, para a restabelecer, ande constantemente percorrendo o País um clero errante? — Parece-nos pois inútil que os srs. missionários, depois de terem feito o seu negócio, preguem os seus sermões.

Se porém, na hipótese do segundo caso, eles são sacerdotes que acumulam um pequeno negócio de relíquias, então uma coisa grave se apresenta:

Todo o negociante que atribui ao objecto que vende uma qualidade superior, para o fazer valer, usa de fraude, e está incurso nas penalidades da lei.

A lei, que não pode impedir a simplicidade e a credulidade, põe-na ao abrigo dos exploradores. Ainda há pouco um homem que vendia camisolas de malha vermelhas, declarando que elas tinham o privilégio de curar repentinamente o reumatismo mais rebelde, foi devidamente autuado e multado.

Por consequência todo o missionário pode descer do púlpito, e vir para a praça vender rosários, imagens, litografias de santos, etc. Está no seu pleno direito civil. Mas se, servindo-se da sua autoridade sacerdotal, esse homem afiança do púlpito, invocando

Deus e sob a garantia da sua missão religiosa, que essas relíquias lhe foram entregues por um anjo, e curam as doenças, fazem voltar ao amor os maridos distraídos, saram a esterilidade, livram de tentações, e que recai um castigo sobre quem as não compra — esse homem atribui ao seu ramo de comércio um valor sobrenatural, e vende como relíquia vinda do Céu uma quinquilharia de Braga. Cai pois, como negociante fraudulento, sob os rigores da polícia!

É lógico. Os jornais liberais dirão que esse homem lança a multidão num fanatismo animal; substitui o respeito de Deus pela adoração imbecil de emblemas; faz da absolvição divina uma especulação própria; conduz os homens à idolatria! Nós colocamo-nos no ponto puramente legal: — Esse homem, diremos, é um negociante fraudulento.

Todos aqueles que têm observado as missões e a venda de relíquias, sabem, além disso, que a certeza principal que se dá aos devotos — é que a relíquia comprada os absolve de antemão de todo o pecado.

De modo que o cidadão, depois de pagar e meter na algibeira a sua relíquia

(rosário, lasca de lenho santo, pedaço de sudário, bocado da túnica da Virgem) julga-se na graça de Deus e na permissão de toda a fantasia! Daí por diante pode altercar na taberna, espancar o vizinho, maltratar a mulher, roubar quem passa: não tem ele bem guardada no peito a relíquia que o absolve, que lhe salva a alma?

Assim, com um mesmo acto, o missionário que prega e vende — infringe a lei comercial e contraria a lei civil. E estes males são ainda bem menores que os que ele faz

à lei moral!

XXXVIII

Outubro 1871.

Cidadãos! Vejamos um pouco a nossa diplomacia.

Queixava-se há tempos o excelente Jornal da Noite que o Governo não publicasse os relatórios dos seus diplomatas, ministros, encarregados de negócios, secretários, etc.

Ingénuo Jornal da Noite! E o mesmo que censurar que se não fotografem os baixos-relevos

— de uma parede Lisa. Que quer o distinto redactor do Jornal da Noite que o

Governo publique? A diplomacia só tem a oferecer, como resultado dos seus trabalhos há vinte anos, o seu papel almaço — em branco. Se os nossos diplomatas quiserem um dia remeter para Portugal, em consciência, devidamente empacotados, os documentos do que nas suas missões criaram, organizaram, pensaram, trataram — a secretaria encontraria espantada, ao abrir o pacote:

Um montão de luvas gris-perle em m au uso!!

Se a esses cavalheiros que têm sido ministros e encarregados de negócios em

Londres, em Berlim, em Paris, em Madrid, em Bruxelas, em Estocolmo, em

Sampetersburgo, em Milão, em Roma, no Rio de Janeiro, em Viena de Áustria, em

Washington, com os seus secretários de embaixada, os seus adidos, os seus ordenados, despesas de representação, despesas de expediente, despesas secretas, etc., unia voz impertinente perguntasse: — «Como têm VV. Ex.as desempenhado as suas missões? Que tratados vantajosos têm alcançado para o nosso País? Que estabelecimentos portugueses têm lá favorecido? Que serviços internacionais têm regularizado? Que relações sólidas e protecções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios trabalhos as têm aconselhado para nosso progresso? Que conhecimento têm dado aos estrangeiros das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência! Etc.? Etc.?» — SS. Ex.as a tais interrogações ficariam pálidos de surpresa! Os nossos diplomatas inteiramente ignoram que estes sejam os seus encargos. Nenhum curso lhos ensinou, nenhuma lei lhos incumbiu. Eles seguem a velha tradição de que a diplomacia é uma ociosidade regalada, bem convivida, bem comida, bem dançada, bem gantée, bem voiturée, com bons ordenados e viagens pagas. Estão ali para serem diplomatas na gravata — e não para serem diplomatas no espírito: e achariam um abuso inclassificável que os tivessem nomeado para marcar o cotillon e no fim lhes exigissem relatórios. SS. Ex.as entendem que o País está bem representado desde o momento em que o seu colarinho é irrepreensível... E todavia SS. Ex.as estão representando uma nação — e não uma camisaria! Se SS. Ex.as vão unicamente encarregados de mostrar aos países estrangeiros a excelência dos nossos alfaiates — então o País não é o interessado, e o Sr. Keil que lhes pague! Se SS. Ex.as têm apenas por missão mostrar lá fora como o País dança bem, entendemos que SS. Ex.as prestam melhor serviço na sua pátria; e não ousando pedir ao

Governo que os faça recolher à secretaria, pedimos aos Srs. Valdez e Cossoul, empresários de S. Carlos, que os façam recolher ao corpo de baile!

O País conhece bem a nossa diplomacia: já a viu à luz da rampa, a um rumor de orquestra: já riu com ela, já lhe bateu as palmas: ela aparecia, esplendidamente real, na corte grotesca de S. A. a grã-duquesa de Gerolstein, poderosa princesa em três actos.

Era o barão Grog. O barão Grog, não se lembram? Somente a nossa diplomacia não usa rabicho, e curva-se com menos elegância. E o barão Grog conspirava! Os nossos nem sequer conspiram! Ele tinha graça, os nossos são lúgubres! Ele só nos custava um bilhete de plateia, os nossos custam-nos infinitos contos!

Evidentemente na organização da nossa diplomacia vamos seguindo um caminho imprevidente.

As habilitações que se exigem de um cidadão devem estar em harmonia com os serviços que se esperam dele. Não se requer, dos que pretendem ser lentes do Curso

Superior de Letras, que apresentem certidão de saber dançar dignamente o cancã. Ora se a missão de um diplomata é comer bem, dançar bem, vestir bem, parece-nos inútil que se lhe peçam provas de que conhece o direito internacional e a história diplomática! O mais trivial bom senso ordena que ele seja examinado simplesmente em pontos como estes:

Maneira mais própria de pôr a gravata branca, e suas divisões;

Método mais fino de comer a ostra; princípios gerais; aplicações;

Da valsa: teorias; questões principais; exemplos; etc.

Assim suponhamos que algum dos nossos mais nobres «vultos políticos», o Sr.

Braamcamp, por exemplo, pretende uma embaixada. Autorizam-no a isso a sua experiência e o seu critério. Que se lhe dê! Mas que antecipadamente S. Exª seja examinado na secretaria dos estrangeiros por um júri competente e recto:

Tenha V. Exª, Sr. Braamcamp (dirá o júri), a bondade de se sentar àquela mesa e comer aquele linguado frito, para nos provar que não lhe é estranho esse ponto da ciência diplomática...

E S. Exª tomando delicadamente o garfo, e na extremidade de dois dedos uma côdea fina de pão, com os braços unidos, a cabeça direita, os olhos baixos, provará a sua imensa competência naquela questão difícil.

— Tenha agora V. Exª, Sr. Braamcamp, a bondade de valsar um momento pela casa, com donaire...

E S. Exª arqueando molemente os braços, despedido em giros graciosos por entre as mesas da secretaria, com a cabeça meigamente reclinada, o olhar amoroso, a cintura mórbida, provará vitoriosamente que tem compulsado com mão diurna e nocturna todos

Os expositores daquela ilustre matéria.

(N. B. — Para que o concorrente não valse só, poderá utilizar-se como dama o contínuo da secretaria, que o examinando tomará nos braços com requebro meigo).

E aprovado que tosse o Sr. Braamcamp, ou outro cavalheiro, nos pontos sujeitos, o País podia entregar-lhe confiadamente uma missão numa corte estrangeira, certo que os seus interesses seriam ali dignamente — comidos e dançados!

Também nos ocorre que consistindo uma das principais funções dos secretários de embaixada e adidos em dançar nos bailes do Paço, a melhor maneira de alcançar um pessoal diplomático verdadeiramente superior seria escolhê-lo — no corpo de baile!

Ninguém teria então, entre a diplomacia europeia, mais graça, harmonia e ligeireza nos movimentos. E seria honroso para todos que os jornais estrangeiros pudessem noticiar:

«Chegou hoje a Srª Pinchiara, antiga primeira bailarina de S. Carlos, hoje secretário da embaixada portuguesa...

E mais tarde registassem para vaidade eterna da nossa Pátria:

«Ontem a maravilha no baile da corte foi a maneira adorável por que dançou a Srª

Pinchiara, secretário da legação portuguesa. Parecia um silfo, com os seus vestidos de gaze. Notou-se apenas que o sr. secretário da legação estava um pouco decotado de mais. É admirável a brancura do seu colo!...»

Igualmente nos parece vantajoso que o concurso para adido de legação verse, não sobre a ciência dos concorrentes — mas sobre a sua roupa branca. Se o dever essencial de um adido é a exposição solene dos colarinhos que se alteiam sob a suíça, dos Largos peitos de camisa que se arqueiam como couraças, e dos punhos que espirram para fora da manga com uma rijeza de aço — deve o Governo de S. M. utilizar para o serviço diplomático aqueles que, pela beleza e solidez dos seus engomados, melhor acreditarem lá fora as nossas instituições. E a diplomacia começará a dar garantias da sua eficácia, quando o Sr. X tiver conquistado os sufrágios do júri pelo brilho das suas camisas inglesas e pelo valor das suas peúgas — e o Sr. Y for plenamente reprovado por ter apresentado, por toda a ciência e experiência dos negócios, um reles colarinho à mamã!

Com entranhada mágoa o dizemos: os senhores diplomatas portugueses vestem-se de um modo a que só falta para ser distinto — ser inteiramente diverso do que é. SS. EXª ou se ajeitam pelo feitio nacional que tanto domina na Rua dos Fanqueiros, ou então adoptam o velho chique de boulevard, ainda do tempo do ministério Rouher, hoje unicamente usado pelos pollos de Madrid! Não seria pois fora de propósito que existissem na secretaria dos estrangeiros figurinos-modelos, com comentários e notas, que os senhores adidos deveriam estudar antes de encomendar as suas farpelas.

Outrossim se nos afigura imprudente que os srs. diplomatas possam fazer um fraque sem previamente levarem o corte e talhe à aprovação da comissão diplomática.

Igualmente pedimos ao Governo, em nome do País, que não deixe sair nenhum senhor diplomata sem previamente lhe ter examinado:

As unhas e a caspa do cabelo!

Uma das coisas que prejudica a nossa diplomacia é ela não possuir espírito. Ser espirituoso é metade de ser diplomata. A tradição clássica mostra-nos Talleyrand governando a intriga europeia com as finas decisões dos seus bons ditos: modernamente, desde Morny até ao sombrio Sr. de Bismarck, a diplomacia tem feito do espírito quase um método. O espírito move tudo e não responde por coisa alguma: ele é a. eloquência da alegria, e o entrincheiramento das situações difíceis: salva uma crise fazendo sorrir: condensa em duas palavras a crítica de uma instituição: disfarça às vezes a fraqueza de uma opinião, acentua outras vezes a força de uma ideia: é a mais fina salvaguarda dos que não querem definir-se francamente: tira a intransigência às convicções, fazendo-lhes cócegas: substitui a razão quando não substitui a ciência, dá uma posição no mundo, e, adoptado como um sistema, derruba um império. E, sobre-tudo pelo indefinido que dá à conversação, ele é a arma verdadeira da diplomacia. Ora, com compunção o dizemos, a nossa diplomacia não tem espírito. Seria por isso bem útil que o ministério dos estrangeiros examinasse os seus diplomatas, antes de os nomear, em pontos assim concebidos:

— Estando o senhor adido numa sala, e começando na rua a chover, que pilhéria deverá o senhor dizer?

— Num camarote de ópera, quais são as facécias que deve lançar um secretário de legação sobre o corpo de baile?

E seria conveniente que a secretaria possuísse uma lista de jocosidades, para todos os usos da vida, que os senhores diplomatas deveriam decorar:

Pilhérias para baile;

Ditas para almoço;

Ditas para cerimónias religiosas;

Ditas para recepções no Paço;

Ditas para entreter personagens célebres;

Ditas para enterro de pessoas reais, etc.

Concorre muito para que a nossa diplomacia não seja brilhante, o horror que o

País tem a ser representado por homens inteligentes. Não se pode dizer que isto proceda do amor de os possuir no seu seio: antes parece que o domina o terror de que eles vão destruir a reputação de embrutecimento que o País goza lá fora. A verdade é que, quando algum homem inteligente vai em missão diplomática, os jornais bravejam, e a opinião pública apita!

Se alguém ousasse, por arrojo absurdo, mandar em embaixada o Sr. Alexandre

Herculano, a Nação, de raiva, abria as veias! Por sua vontade o País enviaria às cortes estrangeiras, para ser representado dignamente — bacorinhos do Alentejo. Não o faz, porque, corno ao mesmo tempo é avaro e desconfiado, receia que as cortes estrangeiras, não podendo arrancar a tais diplomatas segredos políticos, lhes arrancassem — presuntos! Por isso manda homens. E só por isso!

Ao mesmo tempo o País gosta de pagar barato à sua diplomacia. E neste ponto abusa. Quer uma diplomacia bem fardada, bem bordada: e no fim se se lhe apresenta, por ter uma diplomacia, uma conta um pouco maior do que por ter um carroção — escandaliza-se e grita pelo sr. bispo de Viseu, D. António. De modo que um ministro plenipotenciário vê-se mais embaraçado com o rol das compras, que com o manejo das políticas!

Os diplomatas portugueses passam por agra. dar no estrangeiro pela sua palidez!

Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza de raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País — é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem:

«Ontem, na Rua de... caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado.

Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade — era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.»

Que o País atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País, no número do pessoal diplomático — diminua os adidos e aumente os bois.

Que a nossa diplomacia, aliás meritória e simpática, se não agaste com estes traços ligeiros! Quisemos apenas rire un brin. E nesta nossa triste terra, quando a gente se quer alegrar e folgar um pouco, tem de recorrer às instituições, que são entre nós — pilhérias organizadas funcionando publicamente.

XXXIX

Outubro 1871.

Jesus, quando não soffria ainda aquella aspera me. lancholia que lhe deu mais tarde a presença de Je. rusalem branca e dura, era um meigo rabbi, que percorria perpetuamente, no infinito enlêvo do seu sonho, a sua tranquilla e humana Galiléa, ora a pé, ora n’um d’esses pequenos burros que teem os olhos tão grandes e tão dôces e que veem da alta Syria. Entrava nas synagogas; e, commentando os velhos papyros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casaes, sentava-se as portas, sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sycomoros. As mulheres davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: «fala, rabbi, fala! » As creanças tomavam-lhe as mãos, ou puxando lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por uma corda da pelle de camêlo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discipulos afastavam as creanças. Mas o Mestre murmurava sorrindo:

— Deixai vir ter comigo as crianças, abençoadas são elas! elas sabem muitos segredos que os sábios ignoram.

Parece que ultimamente o clero não tem esta consoladora ideia de Jesus. O Sr.

Encomendado de Santos-o-Velho, no dia de Finados, depois da missa conventual, paramentado, sobre o degrau do altar, voltou-se para o povo, e repreendeu as mães que levavam consigo as crianças à missa! E aí estão enfim as crianças expulsas da Igreja, não podendo ao menos ir uma vez por semana erguer as suas pequeninas mãos para

Aquele que foi outrora, nas sombras da Galileia, o seu amigo imortal!

Respeitamos profundamente esta opinião católica do Sr. Encomendado de Santos-o-

Velho. sem dúvida mais moral que as mães levem seus filhos à taberna, e lhes ensinem cuidadosamente — mostrando-lhes, em lugar de uma cruz, uma navalha de ponta — esta máxima salutar: esfaquiai-vos uns aos outros! Assim se formam os justos. E seria mesmo conveniente que a opinião do Sr. Encomendado tivesse uma realização prática: que houvesse na Igreja, para as crianças, a mesma polícia que há para os cães: e que, ao lado do respeitável funcionário enxota-cães, se perfilasse do outro lado da porta o meritório empregado enxota-crianças. E o culto alcançaria, definitivamente limpo do ladrar dos cães e do chorar das crianças — o mais alto grau de pureza.

Realmente as crianças que choram à missa cometem um desacato. Segundo afirma a teologia casuística, os manuais de inquisidores, as dissertações dos dominicanos,

(Chicotes, Lanternas, Fustigações, são os títulos destes livros pios) e ainda segundo as profundas obras de Nieder, Sprenger, Spina e Bodin, o ilustre legista de Angers, as crianças trazem dentro de si o demónio, e quando choram nas igrejas é porque Satanás pretende insultar o culto e o sacerdote. De sorte que o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho ainda nos parece tolerante; porque deveria talvez, com a sua autoridade de sacerdote e de teólogo, ordenar às mães que quando à missa as criancinhas lhes chorem ao peito — imediatamente lhes esmaguem as cabeças no lajedo, para abafar a voz do

Maligno!

O Sr. Encomendado referia-se apenas às crianças pobres. Às crianças ricas não imporia ele, sacerdote de Jesus, esse aristocrático mestre, uma exclusão irrespeitosa. — E essas mães pobres podem talvez d izer-nos:

Que são pobres; que não têm quem lhes fique em casa a tomar conta dos filhos;

Jesus, quando não sofria ainda aquela áspera melancolia que lhe deu mais tarde a presença de Jerusalém branca e dura, era um meigo rabi, que percorria perpetuamente, no infinito enlevo do seu sonho, a sua tranquila e humana Galileia, ora a pé, ora num desses pequenos burros que têm os olhos tão grandes e tão doces e que vêm da alta

Síria. Entrava nas sinagogas; e, comentando os velhos papiros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casais, sentava-se às portas, sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sicômoros. As mulheres davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: — «fala, rabi, fala!» As crianças tomavam-lhe as mãos, ou puxando-lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por uma corda da pele de camelo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discípulos afastavam as crianças. Mas o Mestre murmurava sorrindo: que os não querem deixar sós no berço, chorando no isolamento, ou, se são mais crescidos, ao pé do lume, arriscados ainda a caírem, a ferirem-se, a virem para a rua, a serem atropelados; que enfim não se querem separar deles, e que, como são pobres, sem pão farto, desgraçadas neste mundo, só lhes resta na Igreja o sonho consolador de um

Céu que repara! Isto é talvez assim (ainda que se percebe que estas razões são inspiradas por Satanás). — Mas também é verdade que os Srs. Encomendados não podem ser interrompidos na sua missa pelas crianças que rabujam, e que se torna de toda a justiça que sejam excluídas da Igreja, como perturbadoras da ordem, da decência e do respeito — as mães que ousem vir rezar com o seu filho ao colo!

Pobres pequenos! consolai-vos! Jesus, o vosso amigo, também não é mais feliz: há muitos séculos que ele procura erguer a pedra do seu túmulo — e há muitos séculos que o seu clero carrega na pedra para baixo!

XL

Outubro 1871.

A companhia dos caminhos de ferro, com intenções amáveis e civilizadoras, coloca-nos em embaraços terríveis. Digamo-lo rudemente: nós não estamos em estado de receber visitas! Vivemos aqui ao nosso canto, sem cerimónia, em chinelas — e não gostamos que gente culta venha ter a revelação da nossa mobília pobre e da nossa conversação simplória.

E tanto que pedimos claramente ao Governo, em nome do País envergonhado e com a barba por fazer, que proíba, sob as penas mais severas, à companhia dos caminhos de ferro, o facilitar assim por preços baratos, a essa aparatosa Espanha, viagens de recreio através da nossa miséria!

O País não pode em sua honra consentir que os Espanhóis o venham ver. O País está atrasado, embrutecido, remendado, sujo, insípido. O País precisa fechar-se por dentro e correr as cortinas. E é uma impertinência introduzir no meio do nosso total desarranjo, hóspedes curiosos, interessados, de luneta sarcástica!

Imaginemos que amanhã chega aí, ao largo arquejar da máquina, num desses comboios impudentes, uma coorte espanhola, descaradamente ilustre — estadistas, oradores, generais, literatos, pintores, professores, arquitectos, jornalistas... Que vergonha, meus senhores, que vergonha!

Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares,

Sagasta, Martos, Py y Margal, Zorrilla, Rivero, Castelar, Canovas, conservadores e revolucionários, ministros e tribunos, filósofos e dialécticos, se vão sentar, num dia de sessão, na galeria desbotada de S. Bento, e que vêem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a relice da palavra, o abandono de todo o decoro, os insultos e os desmentidos, a compostura plebeia e grossa, a ciência que lá falta, a intriga que lá abunda, a horrível baixeza daquela pocilga constitucional!

Imaginemos que esses estadistas conversam com esses que são entre nós os estadistas — e vêem, vergonha eterna! que eles ignoram a administração, a economia, a história, as questões do tempo, toda a ideia, todo o facto, e que por única verve e por

única profundidade sabem afirmar que o regedor de Cabanelas é amigo do ferrador da

Cortegaça e que este compadrio aldeão dá cinquenta votos combinados ao Governo de

S. M. F.!

Imaginemos que esses generais, que venceram em África e que venceram em

Espanha, estudam o nosso exército, visitam os nossos quartéis, examinam o nosso armamento, conversam com os nossos generais!

Oh por piedade! consideremos que esses professores podem entrar na obscura vergonha das nossas escolas! Que esses jurisconsultos podem querer ver os nossos tribunais! Que esses arquitectos podem deitar a luneta às nossas construções! Que esses pintores podem perguntar pelas nossas galerias! Que esses homens do mundo podem tratar com os nossos dândis, ou mirar-lhes a toilette! Que vergonhas! que vergonhas!

A companhia dos caminhos de ferro está abusando um pouco da amizade impaciente que (no seu entender) nós e a Espanha nutrimos reciprocamente. A cada momento nos facilita entrevistas baratas e ternas. Sim, decerto, nós e os Espanhóis meigamente nos amamos! Mas não sentimos a necessidade urgente e ávida de nos pre-cipitarmos, assim, todos os oito dias, nos braços uns dos outros!

Ah! meus senhores, não consintamos que essa cruel Espanha, que se levanta, que se organiza, que se engrandece — venha, de luneta no olho e gargalhada na boca, fazer o inventário jocoso do nosso abaixamento! Não consintamos que nos vejam!

Aferrolhemo-nos! Os Chins, outrora, não permitiam que os europeus vissem o seu esplendor. Sejamos a China da miséria!

E se por acaso a companhia dos caminhos de ferro, para fingir que tem passageiros e movimento, precisa impreterivelmente fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos — então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões àqueles de quem nós não tenhamos vergonha, e com cujas civilizações possamos competir: —

Cafres, Patagónios, Lapónios, Abexins, Etiópios, Tártaros, e Hotentotes! E estaremos então em família.

A Espanha, porém, a garrida Espanha, é que parece desejar profundamente que nós os Portugueses examinemos de perto o seu salero político, económico, artístico, religioso e teatral: porque, com uma originalidade cómica, que excede tudo quanto contaram os romances picarescos do século XVII, a Espanha condecora todos os por-tugueses que cometam o arrojado feito de ir a Madrid! Sem distinção, sem escolha! O viajante português chega, o dono da Fonda traz-lhe chocolate — e um contínuo do Paço

Real traz-lhe a comenda. Ou porque a Espanha queira compensar os incómodos e os tédios de lhe ir ver a capital: ou porque o rei Amadeu, que nunca foi visitado pela aristocracia espanhola, se comova até à lágrima e até à condecoração quando se digna ir vê-lo a burguesia lusitana — o português que chega recebe em pleno peito, sem pre-venção, sem água vai, uma comenda e um diploma enrolado!

Já se sabe de antemão aquela graça. Pode-se até telegrafar assim para Madrid: —

Hotel de los Embajadores, calle S. Jeronimo: Ao Sr. Moreto, proprietário.Chego amanhã, prepare-me quartos e a comenda de Carlos III.

Podia, até, para maior franqueza, ser a condecoração indicada na lista dos hotéis:

Gravanzos ............................................................................. 1 duro

Grã-cruz de Isabel a Católica ................................................. grátis

Dizem que o Governo espanhol resolveu condecorar assim os que tomam bilhetes de 1ª a ou 2ª classe para Madrid, com o fim único de favorecer a companhia dos caminhos de ferro.

Em tal caso era mais cómodo entregar logo a condecoração em Santa Apolónia.

— Um bilhete de 2ª classe, e a condecoração! — gritaria o viajante ao postigo do vendedor de bilhetes.

E a companhia pregava-lhe a marca no bojo do saco de noite — e a comenda no peito do fraque. E o sr. comendador entrava para o seu vagão!

Há, evidentemente, duas intenções delicadas naquele derramar de condecorações:

A primeira é compensar as contas dos hotéis. Depois da guerra de Marrocos, aqueles que podiam mostrar uma cicatriz apresentavam-se na Secretaria da Guerra e recebiam a Medalha de África. Agora parece que, depois de alguns dias de Madrid, aqueles que puderem mostrar, não uma cicatriz mas uma conta de hotel, recebem na

Secretaria da Gobernacion a comenda de Carlos III! Nesse caso aqui estamos! Temos uma conta da Fonda de Madrid, em Cádis, Plaza Santo António, inumerável em gravanzos — e em duros inumerável! Em boa lógica não pode deixar de nos ser dada uma capitania geral! E ainda perdemos!

A segunda intenção é premiar os que viajam. Mas então que honras se reservam

àqueles que vão ainda além de Madrid? Que grã-cruzes se dão a quem vai a Barcelona?

Que títulos de nobreza esperam aqueles que chegam às Vascongadas?

Porque enfim se um de nós se perfilasse diante de S. M. Amadeu, e lhe falasse destarte:

— Real senhor! o vosso humilde servidor já foi a Espanha, daí a Malta, depois ao

Egipto, depois à Arábia, depois à Palestina, e a Jerusalém; atravessou os montes da

Judeia, peregrinou até o Jordão, subiu à Síria, visitou o Líbano...

...S. M. Amadeu não podia deixar de descer os degraus do trono, e gritar comovido:

— Viajante dessa ordem, reina sobre os Espanhóis!

Gloriosa Espanha, faceta Espanha! — A Cristóvão Colombo, que fez a viagem maravilhosa e chegou ao Novo Mundo, deste umas poucas de palhas para ele morrer num cárcere: — a quem empreende a viagem de Madrid e chega à Calle Reale, dás uma comenda de prata, gloriosa Espanha, faceta Espanha!

Andávamos bem enganados com os méritos humanos. O nosso espirituoso amigo

Pinheiro Chagas tem sido, desde a mais distante mocidade, um trabalhador. Jornalista, poeta, romancista, historiador, dramaturgo, crítico, sempre à sua mesa de trabalho com o valor de quem está numa trincheira, tem belamente despertado com a sua pena vigorosa a nossa curiosidade indolente. Nenhum governo lhe pôs nada ao peito, nem um botão de rosa no casaco. A Espanha nunca pensara em lhe dar os bons-dias! Pinheiro

Chagas lembra-se um dia de se meter num vagão do caminho de ferro. O Governo espanhol acorda, fita-lhe o peito, e, com um grito de amor, crava-lhe a placa de Carlos

III!

Qual é a ilação? Que, aos olhos do Governo espanhol, o maior feito que pode cometer um varão contemporâneo não é fazer um grande livro, ganhar uma grande batalha, descobrir uma grande máquina — mas ter a sobre-humana coragem de ir a

Madrid. Haverá nada mais humilhante para Madrid? E fazer uma pavorosa ideia de uma capital o considerar como um acto de coragem — ir lá! O Dr. Levingstone, que tem viajado os desertos desconhecidos, os ásperos sertões, os rios bárbaros, as tribos antropófagas — é grande; mas falta-lhe a façanha suprema — ir, ao meio-dia, à Rua de

Alcalá!

E nós Portugueses, levando nossos filhos pela mão, quando encontrarmos mais tarde algum dos heróicos viajantes de Madrid, diremos a nossos filhos:

— Vês, meu filho, aquele senhor condecorado, meneando a sua bengala?

— Sim, papá.

— Admira-o, menino, e imita-o! Aquele homem sublime, num momento de coragem, contando em nada a vida, cheio só da fé em Deus e do amor da humanidade, teve um dia o valor febril, a audácia estonteada, de tomar o comboio de recreio e de ir a

Madrid!

E quereis saber, amigos, como começará o novo poema que mais tarde ou mais cedo tem de ser feito sobre os Novos Lusíadas? Começará assim:

Eu celebro os varões assinalados

Que da ocidental praia, heróicos, sós,

Em vagões nunca dantes franqueados

Passaram ainda além de Badajoz.

XLI

Outubro 1871.

Reappareceu ou continuou (não sabemos), no theatro de S. Carlos, um antigo costume de todo o ponto prejudicial aos interesses da monarchia. Consiste elle em que, nos dias de gala, quando S. M. está na tribuna, no apparato de côrte, os es- pectadores não podem applaudir, nem patear, nem mostrar opinião.

Consiste ele em que, nos dias de gala, quando S . M. está na tribuna, no aparato de corte, os espectadores não podem aplaudir, nem patear, nem mostrar opinião.

Este costume — vindo dos antigos tempos em que na presença do seu rei o vassalo devia estar sem ideia, sem gesto, perfilado e nulo — é belo. Mas autoriza uma certa lógica:

Podendo o espectador aplaudir ou desaprovar quando S. M. ocupa o seu pequenino camarote de veludo cor de cereja, e não podendo fazer ruído quando S. M. se apresenta na tribuna, sob o esplendor dos lustres — segue-se que o rei só é respeitável e só se respeita quando está de gala!

Portanto, à maneira que S. M. vai saindo do cerimonial da gala, vai diminuindo o nosso respeito para com ele!

Quando S. M. se mostra na tribuna, estamos humildes e tácitos:

Quando S. M., nos dias simples, vem para o seu camarote, perdemos um pouco o respeito, e começamos a fazer barulho:

(E esta lógica não pára nas suas conclusões!):

Quando S. M. sair do seu camarote, e for humanamente meter-se na sua carruagem, como a gala diminuiu ainda mais, o nosso respeito diminui também — e passamos, numa liberdade crescente, a dirigir-lhe chulas:

Quando S. M., dentro do seu cupé, acender o seu charuto, como o cerimonial é menor do que no momento retro, o respeito é menor ainda — e rompamos logo, numa intimidade já irreprimível, a atirar-lhe cebolas;

Se víssemos S. M. a comer bifes, o nosso respeito estava no fio, e principiávamos a dar-lhe piparotes na orelha.

Se o víssemos de robe de chambre o respeito ficaria extinto, e saltaríamos para os seus reais ombros, esporeando as suas reais ilhargas.

Ora isto, realmente, não convém à Monarquia!

Porque enfim, por este modo, S. M. não tem remédio para se fazer respeitar cabalmente — senão ficar eternamente na tribuna.

E seria cruel obrigar S. M. a dormir na tribuna, tomar banho na tribuna, passear a cavalo na tribuna, caçar a lebre na tribuna, e viajar pelas províncias — na tribuna.

Não, Portugueses, não o consintais!

Que os poderes públicos pois sejam generosos, e se permita à plateia de S. Carlos, mesmo em dias de gala, ter opinião! Não aplaudir, estar sério, sorumbático, soturno — é talvez o respeito: mas pode confundir-se também com o desgosto, com o tédio.

E seria triste que perguntando um estrangeiro:

— Porque está esta plateia tão amuada?

Se lhe devesse responder:

— Porque faz anos o seu rei.

Reapareceu ou continuou (não sabemos), no teatro de S. Carlos, um antigo costume de todo o ponto prejudicial aos interesses da monarquia.

XLII

Outubro 1871.

Na Foz foram presos vinte pescadores por usarem redes de arrastar.

O sr. juiz respectivo levou os pescadores para o cárcere, com as famílias atrás a chorar: os barcos ficaram em estado de arresto: o peixe apreendido foi vendido em leilão: o dinheiro cuidadosamente guardado no depósito judicial.

No Egipto, no tempo de Mehemet-Ali, ainda depois de 1820, os cádis

(autoridades locais) que, ou por violência de temperamento, ou por imbecilidade, ou por exploração, vexavam o trabalhador, o fellah, eram pregados a uma porta pelas orelhas, como morcegos, e ali ficavam dois dias, pendurados, gotejando sangue. Não estão sen-tindo uma forte saudade por este exemplar Mehemet-Ali, o astuto tirano que foi pastor?

Ah! realmente uma autoridade dá muitas garantias quando está suje ita a ver as suas orelhas pregadas por dois pregos de cabeça amarela, no travejamento de uma porta!

Raciocinemos! As redes de arrastar prejudicam a pesca; o peixe desaparecia das nossas costas se se fizesse de tais redes um uso imoderado. Uma lei proibiu as redes de arrastar: mas até 1867 nunca foi posta em prática. Começa, por uma portaria, a vigorar em 1867. No ministério seguinte a portaria cai em desleixo, e as redes de arrastar varrem livremente as costas. Vem o sr. bispo de Viseu, e proíbe de novo as redes. Surge o Sr. Dias Ferreira e dá ampla liberdade às redes. No ministério seguinte nova proibição. Outra vez esta proibição se relaxa. E uma derradeira portaria, enfim, impõe vigilância escrupulosa.

Como vêem, temos aqui uma legislação complicada e flutuante. E necessário seguir com cuidado o Diário do Governo para conhecer com precisão quando as redes são legítimas e quando as redes são criminosas. O acto varia de perfil, ora meritório ora culpado, conforme o temperamento do ministro e o seu amor pela pesca. Um advogado, consultado, teria de folhear a colecção de leis: o Sr. Governador Civil do Porto, certa-mente, não conhece de cor esta legislação confusa: os srs. Administradores não poderiam diferençar com exactidão as épocas tolerantes e as épocas proibitivas: os Srs.

Regedores são totalmente alheios a esta parte da jurisprudência.

Pois bem, foi justamente por não saberem corno rábulas estas portarias sucessivas, que os vinte pescadores da Foz foram encarcerados na Relação!

Um pobre homem passa o seu dia remando, quebrado pela luta com o mar, para comer à noite, na promiscuidade da mesma gamela, com uns poucos de filhos, uma pouca de sardinha. Levou para isso a sua rede de arrastar com que trabalha há muito, que ele vê no barco do seu amigo, do seu vizinho, do seu patrão. Desembarca ao pôr do

Sol, esfomeado, encharcado de agua — e encontra pela frente o Sr. Regedor! — E como existe a portaria de tantos de tal, revogada por uma portaria posterior, posta em vigor por outra, caída depois em desleixo, novamente revogada, alterada por uma diferente legislação, ultimamente anulada, e agora rediviva e activa — ele, por ignorar inteiramente esta jurisprudência trapalhona, vai ser levado por aqueles soldados ao

Porto e aferrolhado numa enxovia!

O crime deste homem, portanto, é não ler o Diário do Governo! Esse homem está preso por não ser um jurisconsulto! Esse homem será condenado por ousar ser pescador

— antes de ser bacharel formado!

Foram presos vinte. Vinham em dois barcos, eram duas companhas. O arrais é dono do barco e mestre da companha. É ele quem dirige a pesca, quem vai ao leme. Pela manhã manda-os embarcar. As redes estão no barco! mãos aos remos! vela ao largo!

Partem; e se o mar tem a condescendência de os não esmagar na negra rocha de Leixões ou de Felgueiras, é realmente singular que à volta, com os barcos mal cheios de peixe, doze horas de remos, e todos molhados das voltas do mar — vão dali do cais, em chusma, presos por não terem ido consultar um advogado, antes de obedecerem ao seu arrais!

— «Mas tinham-se afixado editais!» Lêem eles editais? sabem eles ler? Trabalham.

O barco tem as redes, o vento refresca, o mar aplaina, o arrais diz: larga! Largam.

E, se algum arrais leu o edital, quantos editais não têm visto na esquina! Quantas vezes pregados, quantas vezes arrancados! Quantas vezes pescou com as redes, claramente, diante do regedor! Quantas vezes elas têm sido proibidas e quantas vezes toleradas? Vê o mar bom, o céu limpo, o vento mudo, e naturalmente não manda este telegrama à secretaria: «Cá vou à pesca, há aí alguma lei nova que o proíba?»

Porque então torna-se difícil ser pescador; serão necessários para arrais, grandes estudos de legislação; e o único homem que pode, com a consciência tranquila, sem receio de desacatar alguma portaria, pescar a sardinha — é o Sr. Martens Ferrão, procurador-geral da Coroa!

E além disso foram presas três crianças de 10 anos! Ah! estes criminosos vão decerto ser tratados com as penas mais severas! Lá estão na enxovia, as mães choram às grades! É justo! estes indignos entezinhos também pescavam! Aos 10 anos, quando todas as crianças brincam, até as dos lavradores miseráveis, que guiam os bois, trepam aos ninhos, se rolam rias altas ervas — estes bandidos que já trabalham, que já vão ao mar, que já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver, que já ajudam os pais, que já são um braço ao remo, uma mão à escota, às vezes uma criança ao mar, estes celerados tinham ido nos barcos com as redes, ganhar o seu pedaço de pão, enquanto as mães, inquietas, esperavam na praia, ousando também eles, os facínoras, ignorar as portarias do sr. ministro do Reino! Por isso agora choram na cadeia!

E são vinte pescadores! Vinte famílias, dez pelo menos, sem pão, sem lume! Os pais, os maridos, os irmãos presos, têm ao menos o rancho da cadeia: as mulheres pedem pelas esquinas! E estamos em pleno Inverno, e vêm os temporais, e começa aquele mar violento, varrido dos ventos, que as pobres mães olham dias e dias da praia, com os seus mantéus pela cabeça, sem o verem jamais condescendente, sem o verem jamais piedoso!

E no entanto o peixe apreendido é vendido em leilão, o dinheiro guardado no depósito. É justo: os homens na cadeias as mulheres na miséria, o dinheiro na algibeira do Governo.

Não sentem unia imensa saudade de Mehemet-Ali, o velho tirano que pedira esmola aos piratas do Arquipélago nas praias de Cavala? Bom Mehemet-Ali! Excelente

Mehemet-Ali! Cismemos! Um cádi, pendurado pelas orelhas, e elas repuxadas, arroxeadas, ensanguentadas, laceradas! Bom Mehemet-Ali! Evidentemente eras um justo! Dois bons pregos! uma trave segura! e as duas orelhas de um regedor da Foz!

XLIII

Outubro 1871.

O Clamor do Povo pensa dignamente que é menos delicado envolver em ironias vingativas uma mulher desgraçada. — A verdade, porém, é que a sr. condessa de Teba é apenas uma imperatriz despedida. A Srª condessa não foi uma esposa obscura e desinteressada do Governo, no fundo retiro dos seus quartos. S. Exª foi duas vezes regente; assinou proclamações, decretos, sentenças; constituiu ministérios; interveio na política do seu tempo, fomentou a reacção religiosa, presidiu, ao lado de seu marido, a conselhos de Estado. Estes factos colocam-na sob a crítica e sob a história. Se a Srª condessa de Teba, durante o governo amável de seu e sposo, não se tivesse separado do seu cesto de costura, do berço de seu filho e das chaves da sua despensa, como fazem

SS. MM. as imperatrizes da Alemanha e da Rússia, ela teria sido simplesmente uma esposa e uma mãe inviolável, indiscutível, inatacável. Mas se S. Exª se manifestou na vida pública do seu País, como uma força política, gerente e reinante — cai logicamente sob o domínio da história, glorificada ou condenada. Se a história não pode falar das mulheres, porque são mulheres, com que direito então os livros sagrados amaldiçoam

Jesabel? Com que direito condena o Evangelho Herodíade, que matou João Baptista?

Levar para a história as preocupações de uma sala seria chique mas bacoco. Se devemos calar e chorar quando passa uma imperatriz destronada, que silêncio e que lágrimas devemos reservar quando no Evangelho passa Maria, mãe de Jesus, à volta do Calvário?

Os políticos não têm sexo: têm o sexo dos seus actos. Não podemos em boa verdade escrever histórias — unicamente masculinas. Seria privar-nos de saber o que pensaram tantas lindas cabeças, o que cometeram tantas lindas mãos, desde a nossa mãe Eva, a loura e bárbara curiosa! Se um historiador, sob o pretexto que Isabel II de Espanha é uma mulher, calar no futuro o seu reinado, o Clamor do Povo dirá que ele é um gentleman, e nós que é um grotesco. E se o século XX aprofundar esta questão, dirá que o Clamor do Povo é um romântico de xácara — e as Farpas umas burguesas de senso.

O Clamor do Povo diz que mais generoso que nós foi Vítor Hugo que, nos

Châtiments, deixa no silêncio a mulher de Luís Bonaparte. Mas, nesse tempo, o Clamor sabe que a Srª condessa de Teba ainda não era casada; era apenas uma loura amorosa, dançando nas Tulherias uma valsa desinteressada com o galante de Failly, coronel de guias! Hugo não podia prever na noiva de Saint-Cloud a regente de França. Por este lado ainda mais generoso que Hugo, creia o Clamor — foi Tito Lívio!

Diz o Clamor do Povo que não devíamos acusar a Srª D. Eugénia porque nunca recebemos ofensas de Napoleão III. Mais pasmado ficará o excelente jornal quando lhe afirmarmos que Nero foi um celerado — e todavia, pela nossa honra o juramos, nunca, nunca recebemos de Nero a mais ligeira descortesia! E por esse lado Michelet, Guizot,

Martin, só poderiam escrever a história de França se tivessem sido esbofeteados no boulevard — por Carlos Magno ou Pepino o Breve!

O Clamor do Povo pinta, com grande sensibilidade, a Srª condessa de Teba usando, depois de destronada, uma coroa de espinhos. Não vimos.

S. Exª, quando passou em Lisboa, levava apenas um elegante chapéu branco, evidentemente saído dos ateliers de madama Julie, em Bond-Street.

O Clamor do Povo, num artigo traçado com uma generosidade apaixonada e poética, censura às Farpas algumas páginas irónicas sobrea Srª condessa de Teba, imperatriz que foi dos Franceses da decadência.

Diz o Clamor que se não deve motejar uma senhora que não tem quem a defenda.

Oh! meu Deus, os jornais franceses dizem justamente o contrário — queixam-se de que a

Srª condessa de Teba tem quem a defenda de mais! A França, ao que parece, ferve em partidários bonapartistas. E de resto não tem ela seu marido? Não nos eximiremos a trocar com Luís Bonaparte uma estocada ou uma bala no alto de Alcolena, ou no Poço do Bispo, ao alvorecer do dia! O perigo está em que esse homem, pelo hábito, capitule.

O Clamor do Povo fez, de resto, um artigo eloquente, cheio dos mais cavalheirescos sentimentos, das imagens mais floridas, bela página poética, que tem apenas o defeito de que um trovador a poderia assinar.

N. B. — O Clamor do Povo alude às relações dos redactores das Farpas com o segundo império francês. Esclareçamos:

Um dos redactores das Farpas, achando-se em Paris, e almoçando em casa de

Véfour com o seu amigo II. James Mortimer, o mesmo que em Londres está redigindo hoje uma folha bonapartista, teve ocasião de oferecer ao imperador, por intermédio deste amigo comum, uma garrafa do mesmo vinho do Porto que o jornalista americano e o jornalista português tinham bebido juntos. O vinho foi achado delicioso nas

Tulherias: e, passados dias, aquele que devia ser depois o prisioneiro de Wilhelmshöe, fez entregar por M. de Conti, écuyer, um bilhete de visita ao que é agora redactor das

Farpas. Uma garrafa dada, um bilhete agradecendo. O redactor das Farpas julga-se quite com o segundo império.

O outro redactor desta crónica, estando no Egipto, teve ocasião de esperar a que era então S. M. a imperatriz dos Franceses, durante duas horas, no cais de Porto Said, sob um sol candente, até que S. M., desembarcando toda vestida de linho branco, com a sombra azulada da sua ombrelle chinesa ondeando-lhe sobre o colo, tomasse com aquele firme andar que fazia lembrar Diana, em Homero, a dianteira de um cortejo em que o redactor das Farpas se achava obscuramente incorporado.

Duas horas de sol, num areal do Egipto! Em redor, apertados no estreito cais de madeira, suavam e abanavam-se com os seus lenços de baptiste os Srs. de Beust, o duque de Aosta, o príncipe Frederico da Prússia, Abd-el-Kader, o príncipe da Holanda, e S. M. o imperador da Áustria.

Vinte dias depois, o mesmo redactor das Farpas passava no deserto do Sara sob um sol cruel. Era na areia fulva, a perder de vista. Pouca água, uma fadiga terrível.

Havia a distância um khan, espécie de casebre de pau, onde se podia ter abrigo e o repouso de um bom sono. O redactor das Farpas ia abrigar-se lá, quando teve de sair à pressa pela razão que estava chegando e se ia lá abrigar S. M. a imperatriz. O redactor das Farpas continuou sob o sol. Mas, confessa-o, nesse momento, lembrando-se também das duas horas de Porto Said, pediu mentalmente ao Deus justo que castigasse o segundo império — que lhe fazia apanhar tanto sol. A Prússia encarregou-se de vingar o redactor das Farpas. Ele julga-se igualmente quite com a família Bonaparte — e aproveita esta ocasião solene de agradecer publicamente à Prússia.

XLIV

Dezembro 1871.

A camara municipal de. Lisboa, segundo se affirma, compenetrada da necessidade inilludivel de melhorar as condições da cidade, trata com toda a solicitude de fazer a acquisição de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar, para completar a obra da regeneração municipal, araras do Brazil.

Respeitamos a câmara. Todavia parece-nos discutível esta maneira zoológica de pôr alguma ordem na confusão do município. Nem se nos afigura lógico que a 300 000 habitantes que pedem higiene, limpeza, polícia, iluminação, passeios, a câmara responda, no seu zeloso cuidado — com um bicho dentro de uma jaula!

A cidade, realmente, não oferece um aspecto próspero.

A iluminação é sepulcral. O gás mostra-se inferior em seus serviços à antiga candeia de lata. Nas principais ruas, parte dos candeeiros repousam, apagados; os que velam bocejam, num dormente bocejo de luzinha mortal; outros nunca se estrearam, e nem sabem que são candeeiros.

Monturos de caliça e de pedregulho tomam nas ruas um espaço abusivo. O entulho tem um certo direito a estar parado nos passeios, vendo as senhoras que passam, mas não deve pelo menos privar de igual regalia os habitantes que pagam décima.

As ruas, pela sua limpeza, mereceram de nós a designação que lhes ficou — canos do avesso. As que são calçadas tomam com a chuva o aspecto gentil de uma missanga de charcos. As macadamizadas, essas, depois de se terem desfeito no Verão numa atmosfera de pó fétido, apressam-se no Inverno a reabilitar-se mostrando que são, como outra qualquer vereda, capazes de saber exercer a profissão de lameiro.

A glória da capital, a maravilha, o Aterro, é ladeado em todo o seu comprimento por duas suaves circunstâncias — o cheiro da imundície dos canos, e o pó de carvão das fábricas; oferecendo assim o caso de uma sociedade rica e dândi que passeia no brilho da riqueza e nos vagares do luxo — com a palma da mão sobre a boca e o lenço sobre o nariz!

As obras que a câmara constrói são talvez excelentes: mas ela vai-as erguendo tanto em segredo, tão longe das curiosidades imprudentes, que muita gente supõe que a câmara abre as suas ruas, planta as suas árvores, alarga os seus passeios — na sala do conselho, debaixo da mesa, em sessão secreta!

A canalização merece da parte da câmara o respeito — de relíquia. Não se lhe toca, nem de leve. A ilustre câmara pratica com os canos a mesma delicada reserva que os escravos dos haréns com os perfumes preciosos e evaporáveis. A cidade por baixo está podre: aí habitam na sentina as epidemias, os tifos, a cólera, a anemia, a deterioração da raça: através da delgada película das calçadas, Lisboa sua a morte. Nós vivemos sobre um furúnculo: onde quer que se pique, isto é, que se escave, sai uma vaporização torpe, que perturba. Há dias assim foi, ao pé da Casa Havanesa. E, no entanto, a câmara mantém ao domicílio da imundície a inviolabilidade que a Carta só garante ao cidadão.

Os bairros pobres são por si uma acusação cruel. As vielas negras e sujas; os casebres imundos e caducos; os destroços de vitualhas e de farrapagens; a vadiagem dos cais; a exalação das sarjetas; a humidade infecta, tudo faz daqueles lugares — uma espécie de depósito da miséria pública. Como para o vão da escada se atiram nas casas os restos de trapos, de louças, de chinelos velhos — para aqueles bairros se atira

A Câmara Municipal de Lisboa, segundo se afirma, compenetrada da necessidade iniludível de melhorar as condições da cidade, trata com toda a solicitude de fazer a aquisição de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar, para completar a obra da regeneração municipal, araras do Brasil. desapiedadamente com os restos da plebe!

Lisboa é a cidade mais suja da Europa. A própria Constantinopla, com o torpe desleixo turco, a própria Atenas, com a indolente miséria grega — são mais limpas. E se não fosse o Tejo que lhe faz uma certa toilette, e este sol maravilhoso que tudo alegra e doura — Lisboa, aqui ao canto, junto do mar, como um cano, seria a sentina da Europa.

E perante esta situação, o município, penetrado da sua responsabilidade, e resolvido a dotar a cidade de condições habitáveis — o que lhe dá?

Um leopardo.

É talvez interessante, mas não excessivamente prático, este facto: a fera em substituição da obra pública.

Porque a verdade é que, quando se expuser convincentemente à câmara que a cidade de noite está escura, a câmara não pode em sua honra — em vez de mais gás, adquirir mais leões.

Não queremos mal às feras: e quanto mais conhecemos os homens mansos, mais estimamos os bichos bravos... Mas entendemos que as feras se portam mal, entram no domínio do ilícito, mostram uma ambição indesculpável, excedem as suas atribuições de fera — querendo acumular a qualidade de melhoramentos municipais. Um crocodilo é decerto estimável: mas ver-se-ia superiormente embaraçado quando a câmara, no seu zelo febril, o encarregasse de substituir um passeio público. E por seu lado o habitante não se daria por extremamente satisfeito, no dia em que nos passeios, para fazer as vezes de árvores, se enfileirassem lobos!

A câmara, na sua inteligência, deve compreender que o bicho não é inteiramente o equivalente do edifício.

Nunca a câmara viu, por exemplo, S. M. El-Rei passear as ruas a cavalo no

Arsenal. Portanto não é justo que nas praças, em lugar de dar ao habitante fatigado um banco de madeira — ela lhe ofereça o dorso de um rinoceronte.

Deste modo toda a cidade corria o risco de ser em breve mordida pelos melhoramentos municipais. E seria desagradável que os jornais noticiassem: «Ontem, a

última obra em construção devorou na Rua Nova da Palma uma criança de cinco anos, ficando depois a lamber os beiços, de regalada...

Que a câmara medite (porque a sua inteligência é para muito), que se ela der o exemplo funesto de substituir as construções pelos animais — pode levar o habitante a substituir os animais pelas instituições. E no dia seguinte àquele em que a câmara, para mandar abrir um chafariz, comprar, em substituição, um elefante — qualquer sujeito, em vez de dizer ao criado: — «O António, põe o selim no ruço... — pode esquecer-se a ponto de gritar:

— O António, aparelha a câmara!

O que prejudicaria fortemente os interesses constitucionais!

XLV

Dezembro 1871.

S. M. a Rainha passeava no Aterro. Um mendigo vem junto dela e pede-lhe esmola. Um polícia corre e prende o mendigo. O desgraçado, retido todo o dia na esquadra policial, com frio e com fome, tem unia dor. Foi necessário mandá-lo numa maca para o hospital. Não se sabe ainda se o fuzilarão. O dia estava nublado, mas seco.

S. M., cujo vestido de veludo orlado de peles era perfeito, continuou serenamente na serenidade da tarde.

Sempre que um pobre se aproxima com a mão estendida de S. M. o Rei, de S. M. a Rainha, de SS. AA. os Infantes — é preso.

Aprovamos. E como este mendigo vai para a cadeia, iremos a seu lado para exprobrar a esse homem pervertido os fundos abismos da sua negra acção! Dir-lhe-emos:

— «É bem feito! Bem te conhecemos, desgraçado... Vós sois muitos, e a cidade está cheia da vossa multidão, que erra por e ssas esquinas, esfomeada e amarela, de caridade em caridade! Bem vos conhecemos: os velhos com os seus chapéus altos, o peito sumido para dentro, apoiados tremulamente a uma bengala, pedindo com uma voz exausta e meio morta; as mulheres, de rostos macilentos, com uma saia curta, umas velhas botas esfarrapadas, aconchegando no xale traçado uma pobre criancinha que se encolhe entre os farrapos, coçando as chagas da cabeça com a sua pobre mãozinha regela da; os desgraçados pequenitos, que gemem, enrolados numa velha e larga jaqueta de cotim, no degrau de uma porta fechada; os que não têm trabalho, e que à noite, sem camisa, com a gola do casaco remendado erguida para cima, fazendo bater na laje da rua as solas despegadas, pedem, explicando a sua fome; os que suplicam baixo, timi-damente, com o terror da recusa; os que são insistentes, e apelam com o desespero de um náufrago que se agarra a uma última tábua; os que querem beijar a mão de agradecimento; os que ficam a rezar, sufocados, com as lágrimas nos olhos... Vivem em buracos ignorados, dormem pelos bancos, escondidos nas sombras dos entulhos, acolhidos pelos cocheiros na palha das cavalariças; comem de vez em quando; têm todas as dores que dá o frio, todas as agonias que dá a fome; andam sob o terror da polícia; desejam o hospital como um refúgio, e um dia, embrulhados numa serapilheira, são deitados à vala!...

«Miserável, tu foste impudente! Viste aquela senhora, descendo de uma caleche, com batedores; julgaste que ela, rainha, rica, bem agasalhada, podia dar-te a ti, pobre diabo, uma moeda de vintém, o custo de um caldo quente numa taberna!... Porque enfim, velhaco, bem se vê que vais precisando de comer por este frio áspero...

Imaginaste que a tua audácia te podia render um vintém! Bem vês, rendeu-te a cadeia.

Aprende! Um mendigo como tu, esfarrapado e nojento, não se aproxima assim de uma princesa nova, na frescura aveludada da sua toilette! Pois ousaste ir pedir uma esmola sem levares uma farda de moço fidalgo? O teu hálito de fome podia incomodar aquela gentil senhora. Imagina que ela manchava a ponta da sua luva gris pene, se te tocasse na mão, nessa mão sempre estendida e cortada do leste... Que desgraça! a sua luva perfumada com «marechala»! Pois a policia podia lá consentir tal desastre! Tu és um animal! Vejam lá! Sob pretexto de que o Inverno é terrível, de que não tens pão, nem lume, nem uma manta, que tiritas, que sentes dores, que és velho, vais assim pôr-te diante de uma princesa, em toda a crua realidade dos teus andrajos, e pedes-lhe 10 réis!

10 réis! Assim se pedem 10 réis! Ah! imbecil, tu cuidas que os vestidos de cetim e de veludo, as peles, as jóias, as caxemiras, os perfumes, vêm do ar e de graça, como esse frio que te traspassa? Que desplante! «dê cá 10 réis!» E onde os havia ela de ir buscar, os 10 réis? Tu imaginas que todo o mundo é rico como o bom Deus que atira tudo às mãos cheias, estrelas, sóis, nuvens, maravilhas, e aquele pavilhão azul do Céu que lhe devia ter custado milhões? És tonto! Supões que uma rainha desce assim, como uma burguesa, a ter pena de um pobre? Tu não lês os jornais, bem se vê! Ouviste talvez dizer que um, que se chamava Napoleão III, parava nos passeios a cada momento o seu breack para encher de sous os chapéus dos pobres? Talvez te contassem que uma, a quem chamam a imperatriz da Alemanha, distribui por sua mão, de manhã, com os cabelos caídos sobre um penteador, dinheiro aos mendigos! Mas essa gente — é gente exagerada! Talvez também ouvisses dizer de um chamado Jesus, que abraçava os pobres e lhes enxugava o sangue das feridas! Esse era um poeta! Tu és ignorante, velho!

Decerto não lês o Figaro. Tens ouvido que a mais bela, a única missão das rainhas é a caridade... Ora aprende! Medita na Cadeia a caridade das rainhas! Bem feito. Ah! tens frio? tens fome? Pois a enxovia te dará o pago de teres fome e teres frio. Pede outra vez, anda! pede! Muito feliz foste ainda em não te correrem a chicote!»

Assim falaríamos a este indigno mendigo vil e torpe, e pediríamos a S. M. a

Rainha que insistisse em que esse grande criminoso fosse rapidamente enforcado — se na realidade S. M. a Rainha tivesse culpa ou responsabilidade deste facto intolerável e grotesco.

Não foi S. M. que prendeu o pobre — foi a polícia. E estamos certos que, se alguém se afligiu seriamente, não foi o pobre — foi S. M.

Ora pedimos, para honra e sossego de todos, que não seja permitido a qualquer sr. polícia chegar-se ao pé de S. M. a Rainha, e fazer-lhe insulto mais brutal e mais vil — que é prender os desgraçados que lhe pedem esmola!


Setembro 1871.

Um só livro seu, um romance, fez palpitar fortemente as curiosidades simpáticas -

As Pupilas do Sr. Reitor. Esse livro fresco, quase idílico, aberto sobre largos fundos de verdura, habitado por criações delicadas e vivas - surpreendeu. Era um livro real, aparecendo no meio de uma literatura artificial, com uma simplicidade verdadeira, como uma paisagem de Cláudio Loreno entre grossas telas mitológicas. Era um livro onde se ia respirar.

Júlio Dinis amava a realidade: é a feição viril e valiosa do seu espírito.

Nunca porém se desprendeu do seu idealismo e sentimentalismo nativo. A realidade tinha para ele uma crueza exterior que o assustava: de modo que a copiava de longe, com receio, adoçando os contornos exactos que a ele lhe pareciam rudes, espalhando uma aguada de sensibilidade sobre as cores verdadeiras que a ele lhe pareciam berrantes. As suas aldeias são verdadeiras, mas são poetizadas: parece que só as vê e as desenha quando a névoa outonal esfuma, azula, idealiza as perspectivas.

Nunca um sol sincero e largo bate a sua obra. Tudo nela é velado de névoa poética. Nãoé que não ame, não persiga a verdade: somente quando a fixa na página traz já a pena toda molhada no ideal que o afoga.

Dizem que os seus livros são memórias, e que ele faz a aguarela suave das paisagens em que viveu, e que personaliza, em criações finamente tocadas, os sentimentos com que palpitou; daí decerto a realidade que os seus livros deixam entrever, fugitivamente. Mas parece que não fora feliz, e que só ao compassar dos soluços o coração lhe aprendera a bater: daí pois aquelas meias-tintas azuladas e melancólicas em que se move, num rumor brando, o povo romântico dos seus livros, e com que ele procura esbater e adoçar a crueza das realidades humanas que o fizeram sofrer.

Era sobretudo um paisagista. As suas figuras só servem para dar expressão e vida à paisagem.

Os campos, as searas, os montes, as claras águas, os céus profundos, não são nos seus livros a decoração que cerca uma humanidade fortemente sentida: as suas camponesas romanescas, os seus galãs violentos e ternos, as meigas figuras de velhos, até as suas caricaturas - é que foram por ele colocadas assim para poder, em torno delas, erguer com cuidado, árvore por árvore e casal por casal, as aldeias que tanto amava. Há nos seus romances tal descampado, tal eira branca batida do sol, tal parreira onde os gatos se espreguiçam, que tem mais ideia, mais acção, mais vida, que as figuras vivas que em torno se movem.

Depois das Pupilas do Sr. Reitor as obras de Júlio Dinis passaram de leve, entre as atenções transviadas. Terá o seu dia de justiça e de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo desenha, escondidos no fundo dos vales sob o ramalhar dos castanheiros, os seus livros serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.

Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espírito excelente não ficou popular: a nossa memória, fugitiva como a água, só retém aqueles que vivem ruidosamente, com um relevo forte: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.

Foi simples, foi inteligente, foi puro. Trabalhou, criou, morreu. Mais feliz que nós, tem o seu destino afirmado, e para ele resolveu-se a questão.

Passemos pois... Já do outro lado, para além desta página serena, ouvimos, inumeráveis como abelhas vingadoras, as ironias aladas que, com um rumor impaciente, zumbem no ar!


Setembro 1871.

História é a consciência escrita da humanidade», disse um homem, que teve, quando lutava, o segredo das palavras que ficam.

Nós podemos pois dizer, comezinhamente, que a história dos Açores é a consciência escrita dos Açores.

Ora sucede que entre o passado Governo de S. M. e o Sr. Sena Freitas se trocou este contrato:

O País daria ao Sr. Sena Freitas 600$000 réis por ano, bom metal: por outro lado o

Sr. Sena Freitas encarregar-se-ia de pôr em letra redonda, com boa ortografia, prosódia sã, e pontuação certa, a dita consciência dos Açores.

Mal o contrato foi assinado, estalou sobre toda a linha de gazetas uma argumentação indignada. Acusava-se o ministro, escarnecia-se o contrato, estranhava-se o historiador, condenava-se a história - e os mais rudemente batidos eram os 600$000 réis.

Como se diria na Bíblia, o escândalo veio pelos fariseus!

Pois bem, para este contrato, nós só temos bênçãos e flores. E a plebe irreflectida pode ladrar em vão!

Ouvi cá, homens de estreita fé! Se o Sr. Sena Freitas se tivesse decidido espontaneamente, gratuitamente, a escrever a história dos Açores, que garantia dava ele de fazer um trabalho de poderosa crítica? Que garantia dava de compor mesmo um livro minucioso, erudito, cheio de factos, beneditino? O Sr. Freitas dava apenas a garantia do seu espírito. Mas ai! o espírito dormita, sofre obscurecimentos, caduca - e aí ficava estragada a história dos nossos bem-amados Açores.

Ouvi mais! Se o Sr. Sena Freitas tivesse sido encarregado por este decreto:

«Manda el-Rei que o Sr. Sena Freitas seja um grande historiador...»que garantias dava o

Sr. Sena Freitas de que havia de criar uma obra original e profunda? O Sr. Freitas dava só a garantia da sua obediência ao seu Rei. Mas ai! ai! a obediência aos reis pode fazer concessões - ou piruetas. Que amanhã, quod Deus avertat, se proclamasse a República

— e vós ficaríeis sem história e sem Freitas, ó Açores.

E agora respondei! Preso por um contrato, ligado por uma escritura, não dá o Sr.

Sena Freitas a garantia suprema, a garantia da sua honra? Obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador, tem portanto toda a sua dignidade empenhada em ser - um grande historiador!

Podia S. Exª, por exemplo, não possuir outra aptidão senão escrever folhetins; podia não dispor de crítica, nem de método; podia não fazer ideia do que é a ciência histórica e a filosofia da história; podia não ter elevação de pensamento, nem estudos especiais; podia não ter estilo nem gramática - embora! Estamos descansados.

S. Exª obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador: S. Exª é um homem honrado: S. Exª será um historiador grande! Acreditamos em S. Exª.

Conhecemos S. Exª. Se S. Exª houvesse contratado com o Sr. Ávila que seria, a 600$000 réis por ano, um poeta maior que Vítor Hugo, S. Exª (temos a inteira certeza), trabalharia, lutaria, compraria um dicionário de rimas, consultaria o Sr. Vidal, mas seria um poeta maior que Vítor Hugo. Se S. Exª tivesse contratado ser um candeeiro do

Rossio, S. Exª cumpriria com valor o seu contrato - e seria um nobre candeeiro do

Rossio!

Sua Exª contratou! A fé jurídica não admite conciliações. Sempre queríamos ver agora que S. Exª se atrevesse a não ser um grande historiador! Em Portugal há tribunais.

Nós seguiremos o trabalho de S. Exª, página por página, e quando S. Exª não for admirável, como crítica, como ciência, como forma, requeremos à Boa Hora: - «Que, em virtude do contrato de tantos de tal, seja o Sr. Sena Freitas citado para, no prazo de vinte e quatro horas, ser sublime a páginas tantas da sua obra sobre os Açores!»

O contrato não foi escrito e registado para que os Açores tenham um historiador medíocre!

Sobre o Sr. Sena Freitas pesa desde hoje a responsabilidade de ser sublime. S. Exªé um rapaz inteligente e espirituoso. Não basta, tem de ser um grande homem!

Contratou para isso, tem de o ser! Cara alegre e espírito desafogado! É para ali!

Ah! queria talvez ganhar 600$000 réis e não ter o trabalho de ser um historiador como Michelet! Há-de sê-lo! Já não lhe é permitida a obscuridade, nem a mediocridade!

Queira ou não, tem forçosamente de ser um génio! Nem uma só vez mais na vida lhe é concedido o doce desafogo de não ter gramática! Há-de ser maior que Guizot, arranje as coisas como quiser! E se recuar, se se eximir, se hesitar, a Boa Hora lá está que, de contrato em punho, e brandindo as contas do processo, o obrigará à força - a ser um homem imortal!

Em Portugal só assim se podem alcançar grandes homens! É obrigá-los por um contrato. Ah! se o Governo tivesse contratado com o senhor A que ele fosse, a tanto por mês, um dramaturgo maior que Shakespeare - não teria o País a vergonha de confessar que o Sr. A é um dramaturgo inferior a Guilbert de Pixerecourt! Se o Governo tivesse contratado com o senhor B, que ele fosse um homem de Estado como Pitt - não passava a Pátria pelo vexame de ver que o senhor B e, como político, ainda inferior a Sancho

Pança, rei de Baratária! Que significa, num país culto, abandonar assim os homens à sua iniciativa? Que intento é este de deixar a cada um a liberdade de ser medíocre? O

Português só poderá ser inteligente obrigado por um contrato, forçado pelos tremendos laços da lei, amarrado de pés e mãos!

Que o talento seja imposto como o serviço militar! Recrutem-se soldados para

Caçadores 5, mas recrutem-se também génios para Vila Nova de Gaia! Porque não temos um poeta épico? Que faz o Governo? Quer desleixar a epopeia, como desleixa a fazenda? A Pátria precisa de grandes homens - fulminem-se penas severíssimas a quem não for grande homem!

É forçoso confessá-lo! O País está embrutecido, mas a culpa vem dos poderes públicos. Que se decrete que todo o cidadão válido deve ao seu país, além da décima - um soneto! Que todo aquele que tenha de mostrar documentos, seja adstrito a apresentar, além da ressalva e da folha corrida - um artigo de almanaque! Haja o génio obrigatório! E o País florescerá, e poderemos definitivamente esperar que em Mato

Grosso comece enfim a fazer impressão - a grande civilização lusitana!


Setembro 1871.

Uma vez que a gloriosa índia ainda existia, era necessário que a respeito dela exis-tisse o correspondente brio patriótico. Sacudiu-se o velho brio patriótico do pó e da caliça - e cada um envergou o velho brio patriótico!

Começou então o movimento. A Baixa teve os seus alvitres heróicos. Os jornais perfilaram de novo, em parada, as frases solenes, de peruca e rabicho, que celebram num ritmo dormente o alto amor da Pátria. Meteu-se na mão do sr. infante D. Augusto uma espada - condicional. A própria Estefânia, comovida, venceu os nervos e a preguiça, e partiu, cheia de mobília e de brio, a salvar o mapa das possessões

Nós, entretanto, ríamos.

Oh, Santo Deus, não era cepticismo, não! Como outros quaisquer, mais que outros quaisquer, amamos este pobre e velho Portugal. Mas sabemos, meus dignos senhores, que uma revolta militar na índia é alguma coisa tão extremamente insignificante e efémera como um meeting civil no reino.

O grosso do exército da índia é composto de indígenas - mouros, canarins, banianos e gentios. Estes nomes melodiosos designam castas; e as castas na índia conservam ainda todo o seu velho e irreconciliável separatismo. As castas desprezam-se, guerreiam-se, e nunca absolutamente se fundem. Quase não se comunicam. Se um baniano toca a púcara de barro poroso de um canarim, o canarim espedaça num cunhal a púcara desventurada! Estas hostilidades, nada as dissipa: nem as promiscuidades inevitáveis da caserna, nem os rigores igualitários da disciplina. De sorte que o exército, formado destes elementos antipáticos, que se não unem, que se amaldiçoam, e onde apenas há o contacto material dos ombros na fileira - não tem unidade nem coesão.

Além disto, todas as castas têm hábitos fatais, horas impreteríveis. Está o soldado gentio de guarda: se chega a hora do seu arroz, e não lho trazem - ele pousa tranquilamente a espingarda, cruza as mãos atrás das costas, e vai ao quartel ladrar contra o rancheiro; se chega a hora da ablução, atira a arma para um canto, e corre, aos pulos, a acocorar-se à beira do mar! E não há severidades, não há castigos, que alterem estes hábitos orientalmente fatais.

A oficialidade deste exército compõe-se pela maior parte de portugueses nascidos na índia -mestiços, castiços ou descendentes. São os filhos de antigos degredados, de velhos bastardos da fidalguia indiana, de oficiais expedicionários, etc. Além destes oficiais nativos - há os oficiais europeus, mandados do continente, os expedicionários.

Estes, por altos motivos que só os grandes homens de Estado como o Sr. Barros e

Cunha podem saber, têm um soldo maior que os oficiais índios. Ora os oficiais índios, com um zelo pelas rupias extremamente compreensível, quereriam ter um soldo igual aos oficiais que vão de Portugal. Por consequência requerem. (Têm a ingenuidade

Andávamos inteiramente esquecidos da índia! Uma clara manhã ela aparece violentamente no meio de nós, envolta num telegrama do sr. visconde de S. Januário.

Por essa ocasião muito bom português se admirou que a índia ainda fosse nossa! Ela saíra, havia muito, das pompas solenes do artigo de fundo. Quase não aparecia nos orçamentos. Obscura, velha, arruinada, estéril, dobrada sobre si mesma, todos a supúnhamos unicamente ocupada, nas brumas distantes, a comer o seu arroz! A notícia de que ela ainda tinha vitalidade bastante para se revoltar - espantou! A certeza que ainda ali havia soldados, cidadãos, fortalezas, interesses, telégrafos - quase aterrou! asiática de requerer!) Mas quando desesperam dos despachos da Pátria, permitem-se, como uma variedade mais ruidosa, uma certa porção de revolta! Levam alguns bata-lhões para a rua e soltam o babadé. O babadé é um ah! ah! ah! prolongado, uivado - cortado pela mão espalmada que bate rapidamente sobre a boca. Tais são as revoltas da índia, á concidadãos timoratos!

Para conter este elemento indígena, que meios tem o sr. governador-geral? Diz-se que o sr. governador-geral, para defesa dos grandes interesses portugueses, dispõe da guarda municipal.

Essa guarda foi de todo o tempo composta de soldados portugueses, que os índios chamam paquelós. Os portugueses que vão servir como funcionários são considerados aristocracia, e chamam-se fringuis. Na índia o Sr. Melício seria um fringui!

Esta guarda foi sempre segura, fiel e valente. Somente, hoje, tem a qualidade lamentável das legiões de Varo: - já não existe! A Pátria distraída esqueceu-se de renovar os paquelós: e a Morte, com um desdém pelas nossas possessões que nunca lhe censuraremos bastante, foi-os levando, e paqueló após paqueló, destruiu na índia todo o poder lusitano. Hoje duas ou três companhias de mouros compõem a guarda fiel: estes pobres mouros arrastam na vadiagem os sapatos rotos, e estimulam o seu entranhado patriotismo com aguardente de banana, bebida alucinadora que leva à caquexia! - O que hoje há, pois, nessa índia gloriosa e tradicional, para policiar e sustentar o poder português, é um bando de mouros sujos, idiotas, e bêbedos de aguardente!

Pois bem! ainda assim uma revolta na índia não tem seriedade. E o motivo é que os oficiais, que, para terem maior número de rupias no seu soldo, tentaram uma revolta, vêem-se, realizada ela, singularmente embaraçados. Vêem-se sós.

Em primeiro lugar os soldados não vão por um impulso próprio. Divididos em castas, fracos, ignorantes, odiando-se, sem terem interesse comum ou vontade comum - vão unicamente porque os seus oficiais, no primeiro momento, lhes mandaram que fossem. É mesmo assim - como eles dizem. Se contra eles, porém, se apontar uma espingarda fiel - como estão ali, não em virtude da revolta sua, mas por obediência à revolta alheia - dispersam.

E depois, os oficiais revoltados não têm rancho para lhes dar. O povo conserva-se indiferente, sem adesão, sem simpatia. Os que possuem alguma rupia, nesses dias enterram-na; os que têm arroz ensacado, escondem-no. Ninguém confia uma para a um oficial revoltado. Ao segundo dia de desordem, quando chega a hora do rancho, os oficiais só têm a dar aos soldados-palavras de entusiasmo! Os soldados (nunca podemos compreender por quê) preferem o arroz à retórica; e começam a debandar.

Além disso no exército índio não há pólvora, nem munições... Quase não há armas!

Por outro lado, à mais pequena insurreição, a disciplina, já famosamente diminuta, desaparece, sem pudor nenhum; e as diversas castas aproveitam os vagares da revolta - para se espancarem com fervor.

Acrescente-se que os oficiais da índia não têm instrução, nem táctica; não são capazes de ordenar uma marcha hábil, de formar um campo entrincheirado, de darem um apoio estratégico à revolta.

Ao fim de dois dias de gritos e de babadé - acham-se nesta situação triunfante: sem ponto de apoio, sem adesões, sem rancho, sem munições, sem dinheiro, sem disciplina. Se o governador-geral faz sair um bando que, ao som do tambor, propõe a amnistia, cada um solta um ah! de satisfação e de alívio, e volta para o seu quartel!

Ainda tendes medo, patriotas da Arcada?

E não se deve esquecer ainda esta circunstância: o índio das nossas possessões é de uma debilidade gelatinosa.

Anémico, miudinho, assustadiço, consumido pelo sol, mal sustentado de arroz, o índio cai de bruços com uma carícia no rosto, e morre com uma palmada na espinha. E uma fraqueza comprometedora. As pessoas inexperientes e impacientes fazem um prodigioso consumo de índios. Um empurrão, e o índio tomba - na eternidade. Não há talvez desembargador algum em Goa que não tenha, com a sua mão grave e jurídica, assassinado um índio! Dá-se uma pancada leve no ombro do índio -- ele cambaleia, suspira, nesse dia come pouco, no outro estende-se ao sol a gemer, começa a beber muita água, e morre.

Depois, o soldado índio, mal ouve o nome de paqueló - treme. Aí vem o paqueló

— foge! Vê o paqueló - atira-se de bruços, já moribundo.

Há tempos, em Mapuçá, um regimento de 400 praças revoltou-se. Sai para a rua e vem fazer babadé para defronte da casa do comandante. O comandante, à janela, em chinelas, tomava café, e entre os goles, vagarosamente sorvidos, exclamava para o regimento insurgido:

— Ah! vocês revoltaram-se?

Depois para dentro, ao criado:

— Mais açúcar!

E continuava:

— Bem, eu já vos falo. - Uma colher! -Assim é que estais disciplinados, velhacos?

— Dá cá o cachimbo! - Ora deixai estar que os paquelós aí vêm! -lume!...

O regimento hesitava. Nisto aparece, numa pequena elevação, a distância, o tenente Bruno de Magalhães que vinha, com 20 paquelós, bater os 400 revoltosos. Os

400 revoltosos, só com ver ao longe os 20 paquelós, debandaram aos gritos. Nem mesmo se chegou nunca a saber por que se tinham revoltado!

Porém, á homens de Estado, podeis dizer-nos:

— Mas se a Inglaterra meter lenha para o forno?

A Inglaterra?! No dia, meus senhores, em que a Inglaterra mandasse um soldado à fronteira da índia Portuguesa - todo o território índio, mestiços, canarins, descendentes, todas as castas, todas as fraquezas se levantavam num ímpeto. Povo e tropa na índia tudo querem - menos o Inglês.

O povo não quer o Inglês - porque no nosso regime ele vive na ociosidade, no desleixo, na sua imundície querida, na sua bem-amada traficância; e se fosse inglês, o cipaio viria obrigá-lo, a golpes de curbach, a ser policiado e a ser trabalhador.

E o soldado índio detesta o Inglês - porque, sob o nosso regime, ele pode subir os postos até major; e sob o regime inglês não subiria nem a cabo!

Aí está a razão por que uma revolta na índia não tem valor, e por que foram tão supérfluos os vossos fervores patrióticos!

No entanto, é indispensável que estes sustos acabem! O País está débil e fraco, e estas comoções matam-no. Há pouco Macau, agora a índia! Que as colónias nos deixem respirar! Que se revoltem, sim, mas com intervalos, sem acumular. Que se abra mesmo um registo no ministério da Marinha. Em Setembro de 71 revoltou-se a índia? - Pois bem, só em Setembro de 1872 será permitido que Timor se subleve.

A índia não nos serve senão para nos dar desgostos.

E um pedaço de terra tão escasso que se anda a cavalo num dia. As pequenas povoações caem em ruína e em imundície; não há nelas movimento, nem iniciativa; a única cultura é o arroz, que exportam a 5 para importar a 8; a única indústria, fazer olas, que são os encanastrados de palmeira com que se erguem os pacaris, alpendres coloridos e frescos que sombreiam as janelas; não existe nenhum comércio; os tributos esmagam; dois ou três homens ricos, Jossy e mais dois, que se vêem nos patins, descalços e encruzados, comendo o seu arroz com a mão, têm o dinheiro enterrado, e quando se lhes garante um forte juro, cavam e emprestam; as escolas são uma ficção grotesca; as estradas são a espessura do mato; a higiene é feita pelos cães que lambem as imundícies na rua; a polícia é feita por cada um com o seu bambu; uma intriga sórdida e rastejante agita indígenas e europeus; o deboche tem o ardor do clima; os soldados embebedam-se com aguardente; e no entanto velhos pardieiros, que se esboroam às mordeduras do sol, esconderijos de corvos, lembram as nossas glórias e alastram o chão de caliça. Tal é a índia Portuguesa.

Noutro número das Farpas lembrámos, a respeito das colónias, este grande melhoramento - vendê-las! Ocorre-nos outro ainda maior a respeito da índia - dá-la!

E quanto a glórias nacionais, contentemo-nos com o barítono Lisboa e com o Sr.

Arrobas - e é já glória bastante!

A única coisa por que conservamos a índia, é por ser uma glória do passado. Oh! meus senhores, também D. João I é uma glória, e nós não nos conservamos abraçados à sua sepultura, soluçando e gemendo.

O passado é belo e heróico - bem: quando o passado pretende antepor-se aos interesses do presente, o passado é caturra! Seria verdadeiramente impertinente que uma rosa murcha tivesse a pretensão de andar na boutonnière da nossa sobrecasaca: que uma pomada rançosa do ano passado ousasse querer anediar os nossos cabelos: e que o esqueleto da mulher amada tentasse ainda dar-nos beijos!

Se podemos vender a índia aos Ingleses, vendamos a índia, por Deus! E quanto às glórias de Dio e de Damão, se elas se querem conservar na história e na pompa da epopeia, quietinhas e caladinhas, terão a nossa consideração. Mas se, quando se tratar de negociar, elas se interpuserem com recordações importunas, dir-lhe-emos insolências, e desejaríamos dar-lhes coronhadas. Fora daqui, caturras! voltai para o sepulcro e para o pó das crónicas!

D. João de Castro, hoje, não serve senão para os rapazes de latinidade fazerem temas na província. Tem paciência, glorioso varão! Sobre as tuas soberbas façanhas, o nosso tempo científico, positivo e racionalista, não tem senão a dizer-te:

— «Cumpriste sublimemente, meu velho D. João, os deveres do teu tempo segundo as ideias do teu tempo. Dorme agora quieto o teu grande dormir; e deixa que nós, segundo as ideias do nosso tempo, cumpramos os deveres do nosso tempo!»


Outubro 1871.

Quando os dois espanhóis passavam, os fadistas rompem a chasquear e, para variar um pouco os seus prazeres, esbofeteiam um espanhol. O outro então, surpreendido, ergue a mão, e, com um vigor castelhano, dá em redor algumas bofetadas sonoras e fulminantes que fizeram rolar na lama os magros tocadores de guitarra.

Nisto uma patrulha, que descia o Chiado, vem pé ante pé, faz um cerco, e tomando as espingardas pela coronha, começa por atirar às costas do espanhol uma pancada horrível, que o deixa rendido, sufocado, a arquejar. A esse tempo já Um fadista gania, escalavrado, sob outra coronhada municipal. Ninguém foi preso. Um dos solda-dos, depois, queixava-se de ter escangalhado a arma!

Respeitemos, submissos, este processo policial.

O redactor de um dos mais vivos jornais de Lisboa contava-nos pouco depois, na redacção, que vira na véspera alguns polícias, diante de um homem com um acidente, tratando de lhe fazer voltar os espíritos à força de pontapés na cabeça: o homem rebolava no chão; os polícias então davam-lhe pontapés no estômago. Talvez a Medi-cina não siga inteiramente este sistema de curar acidentes: no entanto a polícia tem essa opinião terapêutica, e nós não podemos contestar a ninguém o direito de divergir, em questões de ciência, da Escola Médico-Cirúrgica. O acidente tratado pelo espancamentoé uma teoria. E boa? É má?... Em todo o caso é respeitável.

Somente nos parece que, visto a polícia possuir este método específico, que ela decerto julga proveitoso porque o usa, não lhe poderia custar muito um pequeno trabalho a mais - e o Governo deveria encarregá-la de tratar os cidadãos enfermos.

Poupávamos assim a despesa com a Escola de Medicina. Quando alguém se sentisse doente, chamava da janela o polícia da esquina; e este benemérito, depois de tomar o pulso e reconhecer a autenticidade do mal, arregaçava a calça, mandava pôr o doente em posição, e escalavrava-o a pontapés!

Uma economia paralela nos ocorre a respeito da municipal. Coronhadas como as que vimos estalar, com um som baço e gemente, nas ilhargas de dois cidadãos, podem muito naturalmente matar um homem fraco, que sofra do peito, de uma lesão, de um aneurisma, de um vício de construção. Ora não queremos dizer que a patrulha não tenha a faculdade de matar, à coronhada, os cidadãos que destranquilizam as ruas! Seria esse mesmo o meio mais eficaz de estabelecer na cidade uma paz inalterável. O cidadão estendido morto, com a espinha partida ou o crânio aberto, aos pés do municipal, dá garantias superiores do seu sossego e da sua cordura. E decerto a melhor maneira de fazer entrar um cidadão na ordem -é fazê-lo entrar no cemitério.

Mas então (economia!) suprimamos os tribunais. Recolha-se definitivamente a magistratura ao seio das suas famílias e das suas torradas. Não é necessário que haja juiz para julgar os cidadãos - quando a municipal previamente se encarrega de desfazer esses cidadãos às coronhadas! O mais subtil magistrado ficaria pálido de embaraço se lhe apresentassem o corpo despedaçado de um desordeiro - para ele lhe fazer perguntas!

E como poderia um cadáver pagar a multa? Poupemos à justiça estas colisões vexatórias!

Saíamos do Antony Um pouco adiante de nós, subindo a Rua Nova do Carmo, vinham conversando dois espanhóis, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do

Chiado, alguns fadistas, num grupo ruidoso, tocavam guitarra.


Outubro 1871.

«Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fora preso, e condenado...

Reparem bem! «E condenado... a varrer as ruas de Gouveia!»

De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de decepar suas mulheres. São miudezas domésticas em que não intervimos. Nunca se dirá que as

Farpas se arrojam indiscretamente sobre o seio das famílias. Que os maridos, quando lhes convenha, para melhor organização do seu interior, partam suas mulheres aos peda-ços

— coisa é que nem nos escandaliza, nem nos jubila! Talvez não imitássemos esse exemplo: não por nos parecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte estimada! E entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa - é mais simples ir à cozinha trinchar o rosbife, do que à alcova retalhar a esposa!

Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de Gouveia.

Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo, marca uma pena diversa, não prevendo esse castigo de varrer as ruas de Gouveia - de resto todo Local.

Mas quem sabe se não será uma tremenda penalidade - o limpar as ruas de Gouveia!

Talvez mesmo o juiz - por lhe parecer insuficiente o degredo perpétuo - rompesse no excesso arbitrário de entregar aquele facínora ao suplício imenso de limpar as ruas da sua vila! Bem pode ser que aquele marido esteja cumprindo uma sentença pavorosa, e que o devamos lastimar mais que os infelizes que S. M. Alexandre II da Rússia (que

Deus guarde e muitos anos conserve em prosperidade e glória) manda trabalhar, ao estalo do chicote, nas minas de Orilieff! A imundície da província tem mistérios.

Limpar as ruas de Gouveia será talvez a pena que de futuro adoptem, em substituição da pena de morte, os códigos da Europa. Que grande honra, meus amigos, para a sujidade nacional!

Mas uma coisa nos ocorre: - e é que, de ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um emprego municipal, e começa a considerar-se uma pena infamante. E pode acontecer que os srs. varredores de Lisboa - não querendo, por uma susceptibilidade exagerada, passar por terem assassinado suas esposas, deponham com gesto de desdém o cabo das suas vassouras nas mãos atarantadas da câmara municipal! Por outro lado, dada esta greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a suspeitassem de ter empregado o trinchante na pessoa da sua consorte. A única pessoa que afoitamente ousaria varrer as ruas seria aquela de quem se não pudesse suspeitar um crime, aquela que fosse pela lei do Reino declarada irresponsável. Ora há só uma neste caso. É o chefe do Estado. Esse é o único que poderia varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse de pensar que ele andava ali, às vassouradas, por sentença de um tribunal. Esse é irresponsável; não comete crimes, nem sofre penas. Mas seria realmente atroz que S. M. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas, melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho, adiante de si, em nu vens de poeira, a

O Diário de Notícias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso: imundície dos seus vassalos!

Que a justiça, pois, nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundície especial e pavorosa das ruas de

Gouveia torna realmente essa pena igual à de degredo: ou se o sr. juiz de Gouveia entende que matar a esposa é acto tão meritório, que merece um emprego remunerado pela câmara. Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos.


Outubro 1871.

Alguns jornais contaram este mês, com uma indignação ingénua, que na devota cidade de Braga alguns missionários vendiam aos fiéis cartas inéditas da Virgem

Maria. Estas cartas, segundo parece, eram dirigidas, umas a personagens dos tempos evangélicos - outras, mais particularmente, a cidadãos de Braga. Corre que os editores desta correspondência inesperada da Mãe de Jesus tiveram um ganho excelente.

O comércio da relíquia piedosa é a ocupação usual dos srs. missionários. Um sábio professor da Universidade de Coimbra contava-nos, há pouco, que presenciara em

Trás-os-Montes uma singular agudeza:

Um missionário chegou ali com grande bagagem de rosários, contas, sudários, pedaços do santo lenho, fragmentos da túnica, etc. Mas o desleixado, o imprudente, não trazia caixeiro! De tal sorte que teve de se contentar com dois que lhe forneceu um negociante de panos. Estes dois hábeis vendedores a retalho, colocados à porta da igreja nas tardes de sermão, diante de tabuleiros de feira, enfeitados de toalhas bordadas e cheios de relíquias, dirigiam activamente o seu negócio pio. Quem entrava na igreja comprava com devoção. E no entretanto o missionário no púlpito trovejava. - Contar aqui o que ele declamava no seu vozeirão labrego não o podemos - para que estas páginas não venham a ser consideradas tão picantes como as das memórias de Faublas.

No entanto uma inquietação atormentava este varão pio. Não sabia a conta exacta das relíquias que dera aos caixeiros, e punha neles uma confiança pouco evangélica! De modo que tomou este expediente triunfante. Ao fim de cada sermão, clamava:

— Agora vão-se benzer as relíquias! Quem tiver rosários de Nossa Senhora, erga-os ao ar!

Os fiéis que se tinham provido daquela espécie levantavam-na com fervor. O missionário então, como absorto em êxtase, contava com os olhos, rapidamente, a voo de pregador, os rosários. Depois abençoava-os. Passava em seguida, pelo mesmo processo extático, à contagem das outras relíquias. E quando saía da igreja conferia os seus apontamentos mentais do púlpito com os resultados monetários da porta. Os caixeiros eram honrados, e este homem fez um bom lucro. Que Deus o proteja, e a polícia o não incomode!

Nós achamos tudo isto extremamente regular. Somente desejamos saber:

Se os srs. missionários são exclusivamente negociantes, que, de passagem e por demais, também pregam sermões;

Ou se são sacerdotes, que, para se ocuparem em mais alguma coisa, também fazem negocio.

No primeiro caso, sendo negociantes que por demais pregam sermões, achamos perfeitamente inútil que, depois de terem feito o seu comércio, queiram mostrar a sua eloquência. Um negociante que, depois de nos vender uma peça de linho, nos recitasse uma ode da sua lavra, seria aleivosamente impertinente. Julgamos pois dispensável que os srs. missionários, tendo recolhido na praça o seu ganho, subam ao púlpito a exalar a sua retórica.

Que andam eles fazendo? Andam espalhando a palavra de Deus? - Mas então, se existem em Portugal vilas ou aldeias não convertidas ao cristianismo, em que pensa o

Governo que não manda as suas hostes rechaçar o infiel? Bajoica de Riba é moura?

Expulse-se de lá o adorador de Mafoma! Mas se Bajoica já é cristã e católica, que têm que fazer lá os missionários? Os antigos padres das missões, educados na tradição apostólica, iam à China, ao Japão e à índia, em viagens maravilhosas, ensinavam o Deus novo, e morriam nos tormentos. Estes senhores que vão fazer agora em diligência a

Tondela, ou em ónibus a Mafra? Não possui cada freguesia o seu pároco, as suas prédicas, as suas missas, o seu culto? Se os missionários não vão lá senão ensinar a religião que lá se prega, são evidentemente inúteis: se vão ensinar uma religião nova, que a polícia e o Estado os condene, porque não é permitido alterar a religião do reino.

Fugi a isto, doutores de teologia! E se os senhores bispos entendem que é necessário que os missionários fortaleçam a fé enfraquecida das freguesias - então que se dirá de SS. Ex.as Reverendíssimas? Por que consentem SS. Ex.as nas suas dioceses um clero colado tão incompetente que assim deixa enfraquecer a religião, e que torna necessário que, para a restabelecer, ande constantemente percorrendo o País um clero errante? - Parece-nos pois inútil que os srs. missionários, depois de terem feito o seu negócio, preguem os seus sermões.

Se porém, na hipótese do segundo caso, eles são sacerdotes que acumulam um pequeno negócio de relíquias, então uma coisa grave se apresenta:

Todo o negociante que atribui ao objecto que vende uma qualidade superior, para o fazer valer, usa de fraude, e está incurso nas penalidades da lei.

A lei, que não pode impedir a simplicidade e a credulidade, põe-na ao abrigo dos exploradores. Ainda há pouco um homem que vendia camisolas de malha vermelhas, declarando que elas tinham o privilégio de curar repentinamente o reumatismo mais rebelde, foi devidamente autuado e multado.

Por consequência todo o missionário pode descer do púlpito, e vir para a praça vender rosários, imagens, litografias de santos, etc. Está no seu pleno direito civil. Mas se, servindo-se da sua autoridade sacerdotal, esse homem afiança do púlpito, invocando

Deus e sob a garantia da sua missão religiosa, que essas relíquias lhe foram entregues por um anjo, e curam as doenças, fazem voltar ao amor os maridos distraídos, saram a esterilidade, livram de tentações, e que recai um castigo sobre quem as não compra - esse homem atribui ao seu ramo de comércio um valor sobrenatural, e vende como relíquia vinda do Céu uma quinquilharia de Braga. Cai pois, como negociante fraudulento, sob os rigores da polícia!

É lógico. Os jornais liberais dirão que esse homem lança a multidão num fanatismo animal; substitui o respeito de Deus pela adoração imbecil de emblemas; faz da absolvição divina uma especulação própria; conduz os homens à idolatria! Nós colocamo-nos no ponto puramente legal: - Esse homem, diremos, é um negociante fraudulento.

Todos aqueles que têm observado as missões e a venda de relíquias, sabem, além disso, que a certeza principal que se dá aos devotos - é que a relíquia comprada os absolve de antemão de todo o pecado.

De modo que o cidadão, depois de pagar e meter na algibeira a sua relíquia

(rosário, lasca de lenho santo, pedaço de sudário, bocado da túnica da Virgem) julga-se na graça de Deus e na permissão de toda a fantasia! Daí por diante pode altercar na taberna, espancar o vizinho, maltratar a mulher, roubar quem passa: não tem ele bem guardada no peito a relíquia que o absolve, que lhe salva a alma?

Assim, com um mesmo acto, o missionário que prega e vende - infringe a lei comercial e contraria a lei civil. E estes males são ainda bem menores que os que ele faz à lei moral!


Outubro 1871.

Cidadãos! Vejamos um pouco a nossa diplomacia.

Queixava-se há tempos o excelente Jornal da Noite que o Governo não publicasse os relatórios dos seus diplomatas, ministros, encarregados de negócios, secretários, etc.

Ingénuo Jornal da Noite! E o mesmo que censurar que se não fotografem os baixos-relevos

— de uma parede Lisa. Que quer o distinto redactor do Jornal da Noite que o

Governo publique? A diplomacia só tem a oferecer, como resultado dos seus trabalhos há vinte anos, o seu papel almaço - em branco. Se os nossos diplomatas quiserem um dia remeter para Portugal, em consciência, devidamente empacotados, os documentos do que nas suas missões criaram, organizaram, pensaram, trataram - a secretaria encontraria espantada, ao abrir o pacote:

Um montão de luvas gris-perle em mau uso!!

Se a esses cavalheiros que têm sido ministros e encarregados de negócios em

Londres, em Berlim, em Paris, em Madrid, em Bruxelas, em Estocolmo, em

Sampetersburgo, em Milão, em Roma, no Rio de Janeiro, em Viena de Áustria, em

Washington, com os seus secretários de embaixada, os seus adidos, os seus ordenados, despesas de representação, despesas de expediente, despesas secretas, etc., unia voz impertinente perguntasse: - «Como têm VV. Ex.as desempenhado as suas missões? Que tratados vantajosos têm alcançado para o nosso País? Que estabelecimentos portugueses têm lá favorecido? Que serviços internacionais têm regularizado? Que relações sólidas e protecções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios trabalhos as têm aconselhado para nosso progresso? Que conhecimento têm dado aos estrangeiros das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência! Etc.? Etc.?» - SS. Ex.as a tais interrogações ficariam pálidos de surpresa! Os nossos diplomatas inteiramente ignoram que estes sejam os seus encargos. Nenhum curso lhos ensinou, nenhuma lei lhos incumbiu. Eles seguem a velha tradição de que a diplomacia é uma ociosidade regalada, bem convivida, bem comida, bem dançada, bem gantée, bem voiturée, com bons ordenados e viagens pagas. Estão ali para serem diplomatas na gravata - e não para serem diplomatas no espírito: e achariam um abuso inclassificável que os tivessem nomeado para marcar o cotillon e no fim lhes exigissem relatórios. SS. Ex.as entendem que o País está bem representado desde o momento em que o seu colarinho é irrepreensível... E todavia SS. Ex.as estão representando uma nação - e não uma camisaria! Se SS. Ex.as vão unicamente encarregados de mostrar aos países estrangeiros a excelência dos nossos alfaiates - então o País não é o interessado, e o Sr. Keil que lhes pague! Se SS. Ex.as têm apenas por missão mostrar lá fora como o País dança bem, entendemos que SS. Ex.as prestam melhor serviço na sua pátria; e não ousando pedir ao

Governo que os faça recolher à secretaria, pedimos aos Srs. Valdez e Cossoul, empresários de S. Carlos, que os façam recolher ao corpo de baile!

O País conhece bem a nossa diplomacia: já a viu à luz da rampa, a um rumor de orquestra: já riu com ela, já lhe bateu as palmas: ela aparecia, esplendidamente real, na corte grotesca de S. A. a grã-duquesa de Gerolstein, poderosa princesa em três actos.

Era o barão Grog. O barão Grog, não se lembram? Somente a nossa diplomacia não usa rabicho, e curva-se com menos elegância. E o barão Grog conspirava! Os nossos nem sequer conspiram! Ele tinha graça, os nossos são lúgubres! Ele só nos custava um bilhete de plateia, os nossos custam-nos infinitos contos!

Evidentemente na organização da nossa diplomacia vamos seguindo um caminho imprevidente.

As habilitações que se exigem de um cidadão devem estar em harmonia com os serviços que se esperam dele. Não se requer, dos que pretendem ser lentes do Curso

Superior de Letras, que apresentem certidão de saber dançar dignamente o cancã. Ora se a missão de um diplomata é comer bem, dançar bem, vestir bem, parece-nos inútil que se lhe peçam provas de que conhece o direito internacional e a história diplomática! O mais trivial bom senso ordena que ele seja examinado simplesmente em pontos como estes:

Maneira mais própria de pôr a gravata branca, e suas divisões;

Método mais fino de comer a ostra; princípios gerais; aplicações;

Da valsa: teorias; questões principais; exemplos; etc.

Assim suponhamos que algum dos nossos mais nobres «vultos políticos», o Sr.

Braamcamp, por exemplo, pretende uma embaixada. Autorizam-no a isso a sua experiência e o seu critério. Que se lhe dê! Mas que antecipadamente S. Exª seja examinado na secretaria dos estrangeiros por um júri competente e recto:

Tenha V. Exª, Sr. Braamcamp (dirá o júri), a bondade de se sentar àquela mesa e comer aquele linguado frito, para nos provar que não lhe é estranho esse ponto da ciência diplomática...

E S. Exª tomando delicadamente o garfo, e na extremidade de dois dedos uma côdea fina de pão, com os braços unidos, a cabeça direita, os olhos baixos, provará a sua imensa competência naquela questão difícil.

— Tenha agora V. Exª, Sr. Braamcamp, a bondade de valsar um momento pela casa, com donaire...

E S. Exª arqueando molemente os braços, despedido em giros graciosos por entre as mesas da secretaria, com a cabeça meigamente reclinada, o olhar amoroso, a cintura mórbida, provará vitoriosamente que tem compulsado com mão diurna e nocturna todos

Os expositores daquela ilustre matéria.

(N. B. - Para que o concorrente não valse só, poderá utilizar-se como dama o contínuo da secretaria, que o examinando tomará nos braços com requebro meigo).

E aprovado que tosse o Sr. Braamcamp, ou outro cavalheiro, nos pontos sujeitos, o País podia entregar-lhe confiadamente uma missão numa corte estrangeira, certo que os seus interesses seriam ali dignamente - comidos e dançados!

Também nos ocorre que consistindo uma das principais funções dos secretários de embaixada e adidos em dançar nos bailes do Paço, a melhor maneira de alcançar um pessoal diplomático verdadeiramente superior seria escolhê-lo-no corpo de baile!

Ninguém teria então, entre a diplomacia europeia, mais graça, harmonia e ligeireza nos movimentos. E seria honroso para todos que os jornais estrangeiros pudessem noticiar:

«Chegou hoje a Srª Pinchiara, antiga primeira bailarina de S. Carlos, hoje secretário da embaixada portuguesa...

E mais tarde registassem para vaidade eterna da nossa Pátria:

«Ontem a maravilha no baile da corte foi a maneira adorável por que dançou a Srª

Pinchiara, secretário da legação portuguesa. Parecia um silfo, com os seus vestidos de gaze. Notou-se apenas que o sr. secretário da legação estava um pouco decotado de mais. É admirável a brancura do seu colo!...»

Igualmente nos parece vantajoso que o concurso para adido de legação verse, não sobre a ciência dos concorrentes-mas sobre a sua roupa branca. Se o dever essencial de um adido é a exposição solene dos colarinhos que se alteiam sob a suíça, dos Largos peitos de camisa que se arqueiam como couraças, e dos punhos que espirram para fora da manga com uma rijeza de aço - deve o Governo de S. M. utilizar para o serviço diplomático aqueles que, pela beleza e solidez dos seus engomados, melhor acreditarem lá fora as nossas instituições. E a diplomacia começará a dar garantias da sua eficácia, quando o Sr. X tiver conquistado os sufrágios do júri pelo brilho das suas camisas inglesas e pelo valor das suas peúgas - e o Sr. Y for plenamente reprovado por ter apresentado, por toda a ciência e experiência dos negócios, um reles colarinho à mamã!

Com entranhada mágoa o dizemos: os senhores diplomatas portugueses vestem-se de um modo a que só falta para ser distinto - ser inteiramente diverso do que é. SS. EXª ou se ajeitam pelo feitio nacional que tanto domina na Rua dos Fanqueiros, ou então adoptam o velho chique de boulevard, ainda do tempo do ministério Rouher, hoje unicamente usado pelos pollos de Madrid! Não seria pois fora de propósito que existissem na secretaria dos estrangeiros figurinos-modelos, com comentários e notas, que os senhores adidos deveriam estudar antes de encomendar as suas farpelas.

Outrossim se nos afigura imprudente que os srs. diplomatas possam fazer um fraque sem previamente levarem o corte e talhe à aprovação da comissão diplomática.

Igualmente pedimos ao Governo, em nome do País, que não deixe sair nenhum senhor diplomata sem previamente lhe ter examinado:

As unhas e a caspa do cabelo!

Uma das coisas que prejudica a nossa diplomacia é ela não possuir espírito. Ser espirituoso é metade de ser diplomata. A tradição clássica mostra-nos Talleyrand governando a intriga europeia com as finas decisões dos seus bons ditos: modernamente, desde Morny até ao sombrio Sr. de Bismarck, a diplomacia tem feito do espírito quase um método. O espírito move tudo e não responde por coisa alguma: ele é a. eloquência da alegria, e o entrincheiramento das situações difíceis: salva uma crise fazendo sorrir: condensa em duas palavras a crítica de uma instituição: disfarça às vezes a fraqueza de uma opinião, acentua outras vezes a força de uma ideia: é a mais fina salvaguarda dos que não querem definir-se francamente: tira a intransigência às convicções, fazendo-lhes cócegas: substitui a razão quando não substitui a ciência, dá uma posição no mundo, e, adoptado como um sistema, derruba um império. E, sobre-tudo pelo indefinido que dá à conversação, ele é a arma verdadeira da diplomacia. Ora, com compunção o dizemos, a nossa diplomacia não tem espírito. Seria por isso bem útil que o ministério dos estrangeiros examinasse os seus diplomatas, antes de os nomear, em pontos assim concebidos:

— Estando o senhor adido numa sala, e começando na rua a chover, que pilhéria deverá o senhor dizer?

— Num camarote de ópera, quais são as facécias que deve lançar um secretário de legação sobre o corpo de baile?

E seria conveniente que a secretaria possuísse uma lista de jocosidades, para todos os usos da vida, que os senhores diplomatas deveriam decorar:

Pilhérias para baile;

Ditas para almoço;

Ditas para cerimónias religiosas;

Ditas para recepções no Paço;

Ditas para entreter personagens célebres;

Ditas para enterro de pessoas reais, etc.

Concorre muito para que a nossa diplomacia não seja brilhante, o horror que o

País tem a ser representado por homens inteligentes. Não se pode dizer que isto proceda do amor de os possuir no seu seio: antes parece que o domina o terror de que eles vão destruir a reputação de embrutecimento que o País goza lá fora. A verdade é que, quando algum homem inteligente vai em missão diplomática, os jornais bravejam, e a opinião pública apita!

Se alguém ousasse, por arrojo absurdo, mandar em embaixada o Sr. Alexandre

Herculano, a Nação, de raiva, abria as veias! Por sua vontade o País enviaria às cortes estrangeiras, para ser representado dignamente - bacorinhos do Alentejo. Não o faz, porque, corno ao mesmo tempo é avaro e desconfiado, receia que as cortes estrangeiras, não podendo arrancar a tais diplomatas segredos políticos, lhes arrancassem - presuntos! Por isso manda homens. E só por isso!

Ao mesmo tempo o País gosta de pagar barato à sua diplomacia. E neste ponto abusa. Quer uma diplomacia bem fardada, bem bordada: e no fim se se lhe apresenta, por ter uma diplomacia, uma conta um pouco maior do que por ter um carroção - escandaliza-se e grita pelo sr. bispo de Viseu, D. António. De modo que um ministro plenipotenciário vê-se mais embaraçado com o rol das compras, que com o manejo das políticas!

Os diplomatas portugueses passam por agra. dar no estrangeiro pela sua palidez!

Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza de raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País - é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem:

«Ontem, na Rua de... caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado.

Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade - era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.»

Que o País atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País, no número do pessoal diplomático - diminua os adidos e aumente os bois.

Que a nossa diplomacia, aliás meritória e simpática, se não agaste com estes traços ligeiros! Quisemos apenas rire un brin. E nesta nossa triste terra, quando a gente se quer alegrar e folgar um pouco, tem de recorrer às instituições, que são entre nós - pilhérias organizadas funcionando publicamente.


Outubro 1871.

— Deixai vir ter comigo as crianças, abençoadas são elas! elas sabem muitos segredos que os sábios ignoram.

Parece que ultimamente o clero não tem esta consoladora ideia de Jesus. O Sr.

Encomendado de Santos-o-Velho, no dia de Finados, depois da missa conventual, paramentado, sobre o degrau do altar, voltou-se para o povo, e repreendeu as mães que levavam consigo as crianças à missa! E aí estão enfim as crianças expulsas da Igreja, não podendo ao menos ir uma vez por semana erguer as suas pequeninas mãos para

Aquele que foi outrora, nas sombras da Galileia, o seu amigo imortal!

Respeitamos profundamente esta opinião católica do Sr. Encomendado de Santos-o-

Velho. sem dúvida mais moral que as mães levem seus filhos à taberna, e lhes ensinem cuidadosamente - mostrando-lhes, em lugar de uma cruz, uma navalha de ponta - esta máxima salutar: esfaquiai-vos uns aos outros! Assim se formam os justos. E seria mesmo conveniente que a opinião do Sr. Encomendado tivesse uma realização prática: que houvesse na Igreja, para as crianças, a mesma polícia que há para os cães: e que, ao lado do respeitável funcionário enxota-cães, se perfilasse do outro lado da porta o meritório empregado enxota-crianças. E o culto alcançaria, definitivamente limpo do ladrar dos cães e do chorar das crianças - o mais alto grau de pureza.

Realmente as crianças que choram à missa cometem um desacato. Segundo afirma a teologia casuística, os manuais de inquisidores, as dissertações dos dominicanos,

(Chicotes, Lanternas, Fustigações, são os títulos destes livros pios) e ainda segundo as profundas obras de Nieder, Sprenger, Spina e Bodin, o ilustre legista de Angers, as crianças trazem dentro de si o demónio, e quando choram nas igrejas é porque Satanás pretende insultar o culto e o sacerdote. De sorte que o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho ainda nos parece tolerante; porque deveria talvez, com a sua autoridade de sacerdote e de teólogo, ordenar às mães que quando à missa as criancinhas lhes chorem ao peito - imediatamente lhes esmaguem as cabeças no lajedo, para abafar a voz do

Maligno!

O Sr. Encomendado referia-se apenas às crianças pobres. Às crianças ricas não imporia ele, sacerdote de Jesus, esse aristocrático mestre, uma exclusão irrespeitosa. - E essas mães pobres podem talvez dizer-nos:

Que são pobres; que não têm quem lhes fique em casa a tomar conta dos filhos;

Jesus, quando não sofria ainda aquela áspera melancolia que lhe deu mais tarde a presença de Jerusalém branca e dura, era um meigo rabi, que percorria perpetuamente, no infinito enlevo do seu sonho, a sua tranquila e humana Galileia, ora a pé, ora num desses pequenos burros que têm os olhos tão grandes e tão doces e que vêm da alta

Síria. Entrava nas sinagogas; e, comentando os velhos papiros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casais, sentava-se às portas, sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sicômoros. As mulheres davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: - «fala, rabi, fala!» As crianças tomavam-lhe as mãos, ou puxando-lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por uma corda da pele de camelo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discípulos afastavam as crianças. Mas o Mestre murmurava sorrindo: que os não querem deixar sós no berço, chorando no isolamento, ou, se são mais crescidos, ao pé do lume, arriscados ainda a caírem, a ferirem-se, a virem para a rua, a serem atropelados; que enfim não se querem separar deles, e que, como são pobres, sem pão farto, desgraçadas neste mundo, só lhes resta na Igreja o sonho consolador de um

Céu que repara! Isto é talvez assim (ainda que se percebe que estas razões são inspiradas por Satanás). - Mas também é verdade que os Srs. Encomendados não podem ser interrompidos na sua missa pelas crianças que rabujam, e que se torna de toda a justiça que sejam excluídas da Igreja, como perturbadoras da ordem, da decência e do respeito - as mães que ousem vir rezar com o seu filho ao colo!

Pobres pequenos! consolai-vos! Jesus, o vosso amigo, também não é mais feliz: há muitos séculos que ele procura erguer a pedra do seu túmulo - e há muitos séculos que o seu clero carrega na pedra para baixo!


Outubro 1871.

A companhia dos caminhos de ferro, com intenções amáveis e civilizadoras, coloca-nos em embaraços terríveis. Digamo-lo rudemente: nós não estamos em estado de receber visitas! Vivemos aqui ao nosso canto, sem cerimónia, em chinelas - e não gostamos que gente culta venha ter a revelação da nossa mobília pobre e da nossa conversação simplória.

E tanto que pedimos claramente ao Governo, em nome do País envergonhado e com a barba por fazer, que proíba, sob as penas mais severas, à companhia dos caminhos de ferro, o facilitar assim por preços baratos, a essa aparatosa Espanha, viagens de recreio através da nossa miséria!

O País não pode em sua honra consentir que os Espanhóis o venham ver. O País está atrasado, embrutecido, remendado, sujo, insípido. O País precisa fechar-se por dentro e correr as cortinas. E é uma impertinência introduzir no meio do nosso total desarranjo, hóspedes curiosos, interessados, de luneta sarcástica!

Imaginemos que amanhã chega aí, ao largo arquejar da máquina, num desses comboios impudentes, uma coorte espanhola, descaradamente ilustre - estadistas, oradores, generais, literatos, pintores, professores, arquitectos, jornalistas... Que vergonha, meus senhores, que vergonha!

Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares,

Sagasta, Martos, Py y Margal, Zorrilla, Rivero, Castelar, Canovas, conservadores e revolucionários, ministros e tribunos, filósofos e dialécticos, se vão sentar, num dia de sessão, na galeria desbotada de S. Bento, e que vêem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a relice da palavra, o abandono de todo o decoro, os insultos e os desmentidos, a compostura plebeia e grossa, a ciência que lá falta, a intriga que lá abunda, a horrível baixeza daquela pocilga constitucional!

Imaginemos que esses estadistas conversam com esses que são entre nós os estadistas - e vêem, vergonha eterna! que eles ignoram a administração, a economia, a história, as questões do tempo, toda a ideia, todo o facto, e que por única verve e por única profundidade sabem afirmar que o regedor de Cabanelas é amigo do ferrador da

Cortegaça e que este compadrio aldeão dá cinquenta votos combinados ao Governo de

S. M. F.!

Imaginemos que esses generais, que venceram em África e que venceram em

Espanha, estudam o nosso exército, visitam os nossos quartéis, examinam o nosso armamento, conversam com os nossos generais!

Oh por piedade! consideremos que esses professores podem entrar na obscura vergonha das nossas escolas! Que esses jurisconsultos podem querer ver os nossos tribunais! Que esses arquitectos podem deitar a luneta às nossas construções! Que esses pintores podem perguntar pelas nossas galerias! Que esses homens do mundo podem tratar com os nossos dândis, ou mirar-lhes a toilette! Que vergonhas! que vergonhas!

A companhia dos caminhos de ferro está abusando um pouco da amizade impaciente que (no seu entender) nós e a Espanha nutrimos reciprocamente. A cada momento nos facilita entrevistas baratas e ternas. Sim, decerto, nós e os Espanhóis meigamente nos amamos! Mas não sentimos a necessidade urgente e ávida de nos pre-cipitarmos, assim, todos os oito dias, nos braços uns dos outros!

Ah! meus senhores, não consintamos que essa cruel Espanha, que se levanta, que se organiza, que se engrandece - venha, de luneta no olho e gargalhada na boca, fazer o inventário jocoso do nosso abaixamento! Não consintamos que nos vejam!

Aferrolhemo-nos! Os Chins, outrora, não permitiam que os europeus vissem o seu esplendor. Sejamos a China da miséria!

E se por acaso a companhia dos caminhos de ferro, para fingir que tem passageiros e movimento, precisa impreterivelmente fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos - então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões àqueles de quem nós não tenhamos vergonha, e com cujas civilizações possamos competir: -

Cafres, Patagónios, Lapónios, Abexins, Etiópios, Tártaros, e Hotentotes! E estaremos então em família.

A Espanha, porém, a garrida Espanha, é que parece desejar profundamente que nós os Portugueses examinemos de perto o seu salero político, económico, artístico, religioso e teatral: porque, com uma originalidade cómica, que excede tudo quanto contaram os romances picarescos do século XVII, a Espanha condecora todos os por-tugueses que cometam o arrojado feito de ir a Madrid! Sem distinção, sem escolha! O viajante português chega, o dono da Fonda traz-lhe chocolate - e um contínuo do Paço

Real traz-lhe a comenda. Ou porque a Espanha queira compensar os incómodos e os tédios de lhe ir ver a capital: ou porque o rei Amadeu, que nunca foi visitado pela aristocracia espanhola, se comova até à lágrima e até à condecoração quando se digna ir vê-lo a burguesia lusitana - o português que chega recebe em pleno peito, sem pre-venção, sem água vai, uma comenda e um diploma enrolado!

Já se sabe de antemão aquela graça. Pode-se até telegrafar assim para Madrid: -

Hotel de los Embajadores, calle S. Jeronimo: Ao Sr. Moreto, proprietário. - Chego amanhã, prepare-me quartos e a comenda de Carlos III.

Podia, até, para maior franqueza, ser a condecoração indicada na lista dos hotéis:

Gravanzos ............................................................................. 1 duro

Grã-cruz de Isabel a Católica ................................................. grátis

Dizem que o Governo espanhol resolveu condecorar assim os que tomam bilhetes de 1ª a ou 2ª classe para Madrid, com o fim único de favorecer a companhia dos caminhos de ferro.

Em tal caso era mais cómodo entregar logo a condecoração em Santa Apolónia.

— Um bilhete de 2ª classe, e a condecoração! - gritaria o viajante ao postigo do vendedor de bilhetes.

E a companhia pregava-lhe a marca no bojo do saco de noite - e a comenda no peito do fraque. E o sr. comendador entrava para o seu vagão!

Há, evidentemente, duas intenções delicadas naquele derramar de condecorações:

A primeira é compensar as contas dos hotéis. Depois da guerra de Marrocos, aqueles que podiam mostrar uma cicatriz apresentavam-se na Secretaria da Guerra e recebiam a Medalha de África. Agora parece que, depois de alguns dias de Madrid, aqueles que puderem mostrar, não uma cicatriz mas uma conta de hotel, recebem na

Secretaria da Gobernacion a comenda de Carlos III! Nesse caso aqui estamos! Temos uma conta da Fonda de Madrid, em Cádis, Plaza Santo António, inumerável em gravanzos - e em duros inumerável! Em boa lógica não pode deixar de nos ser dada uma capitania geral! E ainda perdemos!

A segunda intenção é premiar os que viajam. Mas então que honras se reservam àqueles que vão ainda além de Madrid? Que grã-cruzes se dão a quem vai a Barcelona?

Que títulos de nobreza esperam aqueles que chegam às Vascongadas?

Porque enfim se um de nós se perfilasse diante de S. M. Amadeu, e lhe falasse destarte:

— Real senhor! o vosso humilde servidor já foi a Espanha, daí a Malta, depois ao

Egipto, depois à Arábia, depois à Palestina, e a Jerusalém; atravessou os montes da

Judeia, peregrinou até o Jordão, subiu à Síria, visitou o Líbano...

...S. M. Amadeu não podia deixar de descer os degraus do trono, e gritar comovido:

— Viajante dessa ordem, reina sobre os Espanhóis!

Gloriosa Espanha, faceta Espanha! - A Cristóvão Colombo, que fez a viagem maravilhosa e chegou ao Novo Mundo, deste umas poucas de palhas para ele morrer num cárcere: - a quem empreende a viagem de Madrid e chega à Calle Reale, dás uma comenda de prata, gloriosa Espanha, faceta Espanha!

Andávamos bem enganados com os méritos humanos. O nosso espirituoso amigo

Pinheiro Chagas tem sido, desde a mais distante mocidade, um trabalhador. Jornalista, poeta, romancista, historiador, dramaturgo, crítico, sempre à sua mesa de trabalho com o valor de quem está numa trincheira, tem belamente despertado com a sua pena vigorosa a nossa curiosidade indolente. Nenhum governo lhe pôs nada ao peito, nem um botão de rosa no casaco. A Espanha nunca pensara em lhe dar os bons-dias! Pinheiro

Chagas lembra-se um dia de se meter num vagão do caminho de ferro. O Governo espanhol acorda, fita-lhe o peito, e, com um grito de amor, crava-lhe a placa de Carlos

III!

Qual é a ilação? Que, aos olhos do Governo espanhol, o maior feito que pode cometer um varão contemporâneo não é fazer um grande livro, ganhar uma grande batalha, descobrir uma grande máquina - mas ter a sobre-humana coragem de ir a

Madrid. Haverá nada mais humilhante para Madrid? E fazer uma pavorosa ideia de uma capital o considerar como um acto de coragem - ir lá! O Dr. Levingstone, que tem viajado os desertos desconhecidos, os ásperos sertões, os rios bárbaros, as tribos antropófagas - é grande; mas falta-lhe a façanha suprema - ir, ao meio-dia, à Rua de

Alcalá!

E nós Portugueses, levando nossos filhos pela mão, quando encontrarmos mais tarde algum dos heróicos viajantes de Madrid, diremos a nossos filhos:

— Vês, meu filho, aquele senhor condecorado, meneando a sua bengala?

— Sim, papá.

— Admira-o, menino, e imita-o! Aquele homem sublime, num momento de coragem, contando em nada a vida, cheio só da fé em Deus e do amor da humanidade, teve um dia o valor febril, a audácia estonteada, de tomar o comboio de recreio e de ir a

Madrid!

E quereis saber, amigos, como começará o novo poema que mais tarde ou mais cedo tem de ser feito sobre os Novos Lusíadas? Começará assim:

Eu celebro os varões assinalados

Que da ocidental praia, heróicos, sós,

Em vagões nunca dantes franqueados

Passaram ainda além de Badajoz.


Outubro 1871.

Consiste ele em que, nos dias de gala, quando S. M. está na tribuna, no aparato de corte, os espectadores não podem aplaudir, nem patear, nem mostrar opinião.

Este costume - vindo dos antigos tempos em que na presença do seu rei o vassalo devia estar sem ideia, sem gesto, perfilado e nulo - é belo. Mas autoriza uma certa lógica:

Podendo o espectador aplaudir ou desaprovar quando S. M. ocupa o seu pequenino camarote de veludo cor de cereja, e não podendo fazer ruído quando S. M. se apresenta na tribuna, sob o esplendor dos lustres - segue-se que o rei só é respeitável e só se respeita quando está de gala!

Portanto, à maneira que S. M. vai saindo do cerimonial da gala, vai diminuindo o nosso respeito para com ele!

Quando S. M. se mostra na tribuna, estamos humildes e tácitos:

Quando S. M., nos dias simples, vem para o seu camarote, perdemos um pouco o respeito, e começamos a fazer barulho:

(E esta lógica não pára nas suas conclusões!):

Quando S. M. sair do seu camarote, e for humanamente meter-se na sua carruagem, como a gala diminuiu ainda mais, o nosso respeito diminui também - e passamos, numa liberdade crescente, a dirigir-lhe chulas:

Quando S. M., dentro do seu cupé, acender o seu charuto, como o cerimonial é menor do que no momento retro, o respeito é menor ainda - e rompamos logo, numa intimidade já irreprimível, a atirar-lhe cebolas;

Se víssemos S. M. a comer bifes, o nosso respeito estava no fio, e principiávamos a dar-lhe piparotes na orelha.

Se o víssemos de robe de chambre o respeito ficaria extinto, e saltaríamos para os seus reais ombros, esporeando as suas reais ilhargas.

Ora isto, realmente, não convém à Monarquia!

Porque enfim, por este modo, S. M. não tem remédio para se fazer respeitar cabalmente - senão ficar eternamente na tribuna.

E seria cruel obrigar S. M. a dormir na tribuna, tomar banho na tribuna, passear a cavalo na tribuna, caçar a lebre na tribuna, e viajar pelas províncias - na tribuna.

Não, Portugueses, não o consintais!

Que os poderes públicos pois sejam generosos, e se permita à plateia de S. Carlos, mesmo em dias de gala, ter opinião! Não aplaudir, estar sério, sorumbático, soturno - é talvez o respeito: mas pode confundir-se também com o desgosto, com o tédio.

E seria triste que perguntando um estrangeiro:

— Porque está esta plateia tão amuada?

Se lhe devesse responder:

— Porque faz anos o seu rei.

Reapareceu ou continuou (não sabemos), no teatro de S. Carlos, um antigo costume de todo o ponto prejudicial aos interesses da monarquia.


Outubro 1871.

Na Foz foram presos vinte pescadores por usarem redes de arrastar.

O sr. juiz respectivo levou os pescadores para o cárcere, com as famílias atrás a chorar: os barcos ficaram em estado de arresto: o peixe apreendido foi vendido em leilão: o dinheiro cuidadosamente guardado no depósito judicial.

No Egipto, no tempo de Mehemet-Ali, ainda depois de 1820, os cádis (autoridades locais) que, ou por violência de temperamento, ou por imbecilidade, ou por exploração, vexavam o trabalhador, o fellah, eram pregados a uma porta pelas orelhas, como morcegos, e ali ficavam dois dias, pendurados, gotejando sangue. Não estão sen-tindo uma forte saudade por este exemplar Mehemet-Ali, o astuto tirano que foi pastor?

Ah! realmente uma autoridade dá muitas garantias quando está sujeita a ver as suas orelhas pregadas por dois pregos de cabeça amarela, no travejamento de uma porta!

Raciocinemos! As redes de arrastar prejudicam a pesca; o peixe desaparecia das nossas costas se se fizesse de tais redes um uso imoderado. Uma lei proibiu as redes de arrastar: mas até 1867 nunca foi posta em prática. Começa, por uma portaria, a vigorar em 1867. No ministério seguinte a portaria cai em desleixo, e as redes de arrastar varrem livremente as costas. Vem o sr. bispo de Viseu, e proíbe de novo as redes. Surge o Sr. Dias Ferreira e dá ampla liberdade às redes. No ministério seguinte nova proibição. Outra vez esta proibição se relaxa. E uma derradeira portaria, enfim, impõe vigilância escrupulosa.

Como vêem, temos aqui uma legislação complicada e flutuante. E necessário seguir com cuidado o Diário do Governo para conhecer com precisão quando as redes são legítimas e quando as redes são criminosas. O acto varia de perfil, ora meritório ora culpado, conforme o temperamento do ministro e o seu amor pela pesca. Um advogado, consultado, teria de folhear a colecção de leis: o Sr. Governador Civil do Porto, certa-mente, não conhece de cor esta legislação confusa: os srs. Administradores não poderiam diferençar com exactidão as épocas tolerantes e as épocas proibitivas: os Srs.

Regedores são totalmente alheios a esta parte da jurisprudência.

Pois bem, foi justamente por não saberem corno rábulas estas portarias sucessivas, que os vinte pescadores da Foz foram encarcerados na Relação!

Um pobre homem passa o seu dia remando, quebrado pela luta com o mar, para comer à noite, na promiscuidade da mesma gamela, com uns poucos de filhos, uma pouca de sardinha. Levou para isso a sua rede de arrastar com que trabalha há muito, que ele vê no barco do seu amigo, do seu vizinho, do seu patrão. Desembarca ao pôr do

Sol, esfomeado, encharcado de agua - e encontra pela frente o Sr. Regedor! - E como existe a portaria de tantos de tal, revogada por uma portaria posterior, posta em vigor por outra, caída depois em desleixo, novamente revogada, alterada por uma diferente legislação, ultimamente anulada, e agora rediviva e activa - ele, por ignorar inteiramente esta jurisprudência trapalhona, vai ser levado por aqueles soldados ao

Porto e aferrolhado numa enxovia!

O crime deste homem, portanto, é não ler o Diário do Governo! Esse homem está preso por não ser um jurisconsulto! Esse homem será condenado por ousar ser pescador

— antes de ser bacharel formado!

Foram presos vinte. Vinham em dois barcos, eram duas companhas. O arrais é dono do barco e mestre da companha. É ele quem dirige a pesca, quem vai ao leme. Pela manhã manda-os embarcar. As redes estão no barco! mãos aos remos! vela ao largo!

Partem; e se o mar tem a condescendência de os não esmagar na negra rocha de Leixões ou de Felgueiras, é realmente singular que à volta, com os barcos mal cheios de peixe, doze horas de remos, e todos molhados das voltas do mar - vão dali do cais, em chusma, presos por não terem ido consultar um advogado, antes de obedecerem ao seu arrais!

— «Mas tinham-se afixado editais!» Lêem eles editais? sabem eles ler? Trabalham.

O barco tem as redes, o vento refresca, o mar aplaina, o arrais diz: larga! Largam.

E, se algum arrais leu o edital, quantos editais não têm visto na esquina! Quantas vezes pregados, quantas vezes arrancados! Quantas vezes pescou com as redes, claramente, diante do regedor! Quantas vezes elas têm sido proibidas e quantas vezes toleradas? Vê o mar bom, o céu limpo, o vento mudo, e naturalmente não manda este telegrama à secretaria: «Cá vou à pesca, há aí alguma lei nova que o proíba?»

Porque então torna-se difícil ser pescador; serão necessários para arrais, grandes estudos de legislação; e o único homem que pode, com a consciência tranquila, sem receio de desacatar alguma portaria, pescar a sardinha - é o Sr. Martens Ferrão, procurador-geral da Coroa!

E além disso foram presas três crianças de 10 anos! Ah! estes criminosos vão decerto ser tratados com as penas mais severas! Lá estão na enxovia, as mães choram às grades! É justo! estes indignos entezinhos também pescavam! Aos 10 anos, quando todas as crianças brincam, até as dos lavradores miseráveis, que guiam os bois, trepam aos ninhos, se rolam rias altas ervas - estes bandidos que já trabalham, que já vão ao mar, que já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver, que já ajudam os pais, que já são um braço ao remo, uma mão à escota, às vezes uma criança ao mar, estes celerados tinham ido nos barcos com as redes, ganhar o seu pedaço de pão, enquanto as mães, inquietas, esperavam na praia, ousando também eles, os facínoras, ignorar as portarias do sr. ministro do Reino! Por isso agora choram na cadeia!

E são vinte pescadores! Vinte famílias, dez pelo menos, sem pão, sem lume! Os pais, os maridos, os irmãos presos, têm ao menos o rancho da cadeia: as mulheres pedem pelas esquinas! E estamos em pleno Inverno, e vêm os temporais, e começa aquele mar violento, varrido dos ventos, que as pobres mães olham dias e dias da praia, com os seus mantéus pela cabeça, sem o verem jamais condescendente, sem o verem jamais piedoso!

E no entanto o peixe apreendido é vendido em leilão, o dinheiro guardado no depósito. É justo: os homens na cadeias as mulheres na miséria, o dinheiro na algibeira do Governo.

Não sentem unia imensa saudade de Mehemet-Ali, o velho tirano que pedira esmola aos piratas do Arquipélago nas praias de Cavala? Bom Mehemet-Ali! Excelente

Mehemet-Ali! Cismemos! Um cádi, pendurado pelas orelhas, e elas repuxadas, arroxeadas, ensanguentadas, laceradas! Bom Mehemet-Ali! Evidentemente eras um justo! Dois bons pregos! uma trave segura! e as duas orelhas de um regedor da Foz!


Outubro 1871.

O Clamor do Povo pensa dignamente que é menos delicado envolver em ironias vingativas uma mulher desgraçada. - A verdade, porém, é que a sr. condessa de Teba é apenas uma imperatriz despedida. A Srª condessa não foi uma esposa obscura e desinteressada do Governo, no fundo retiro dos seus quartos. S. Exª foi duas vezes regente; assinou proclamações, decretos, sentenças; constituiu ministérios; interveio na política do seu tempo, fomentou a reacção religiosa, presidiu, ao lado de seu marido, a conselhos de Estado. Estes factos colocam-na sob a crítica e sob a história. Se a Srª condessa de Teba, durante o governo amável de seu esposo, não se tivesse separado do seu cesto de costura, do berço de seu filho e das chaves da sua despensa, como fazem

SS. MM. as imperatrizes da Alemanha e da Rússia, ela teria sido simplesmente uma esposa e uma mãe inviolável, indiscutível, inatacável. Mas se S. Exª se manifestou na vida pública do seu País, como uma força política, gerente e reinante - cai logicamente sob o domínio da história, glorificada ou condenada. Se a história não pode falar das mulheres, porque são mulheres, com que direito então os livros sagrados amaldiçoam

Jesabel? Com que direito condena o Evangelho Herodíade, que matou João Baptista?

Levar para a história as preocupações de uma sala seria chique mas bacoco. Se devemos calar e chorar quando passa uma imperatriz destronada, que silêncio e que lágrimas devemos reservar quando no Evangelho passa Maria, mãe de Jesus, à volta do Calvário?

Os políticos não têm sexo: têm o sexo dos seus actos. Não podemos em boa verdade escrever histórias - unicamente masculinas. Seria privar-nos de saber o que pensaram tantas lindas cabeças, o que cometeram tantas lindas mãos, desde a nossa mãe Eva, a loura e bárbara curiosa! Se um historiador, sob o pretexto que Isabel II de Espanha é uma mulher, calar no futuro o seu reinado, o Clamor do Povo dirá que ele é um gentleman, e nós que é um grotesco. E se o século XX aprofundar esta questão, dirá que o Clamor do Povo é um romântico de xácara - e as Farpas umas burguesas de senso.

O Clamor do Povo diz que mais generoso que nós foi Vítor Hugo que, nos

Châtiments, deixa no silêncio a mulher de Luís Bonaparte. Mas, nesse tempo, o Clamor sabe que a Srª condessa de Teba ainda não era casada; era apenas uma loura amorosa, dançando nas Tulherias uma valsa desinteressada com o galante de Failly, coronel de guias! Hugo não podia prever na noiva de Saint-Cloud a regente de França. Por este lado ainda mais generoso que Hugo, creia o Clamor - foi Tito Lívio!

Diz o Clamor do Povo que não devíamos acusar a Srª D. Eugénia porque nunca recebemos ofensas de Napoleão III. Mais pasmado ficará o excelente jornal quando lhe afirmarmos que Nero foi um celerado - e todavia, pela nossa honra o juramos, nunca, nunca recebemos de Nero a mais ligeira descortesia! E por esse lado Michelet, Guizot,

Martin, só poderiam escrever a história de França se tivessem sido esbofeteados no boulevard - por Carlos Magno ou Pepino o Breve!

O Clamor do Povo pinta, com grande sensibilidade, a Srª condessa de Teba usando, depois de destronada, uma coroa de espinhos. Não vimos.

S. Exª, quando passou em Lisboa, levava apenas um elegante chapéu branco, evidentemente saído dos ateliers de madama Julie, em Bond-Street.

O Clamor do Povo, num artigo traçado com uma generosidade apaixonada e poética, censura às Farpas algumas páginas irónicas sobrea Srª condessa de Teba, imperatriz que foi dos Franceses da decadência.

Diz o Clamor que se não deve motejar uma senhora que não tem quem a defenda.

Oh! meu Deus, os jornais franceses dizem justamente o contrário - queixam-se de que a

Srª condessa de Teba tem quem a defenda de mais! A França, ao que parece, ferve em partidários bonapartistas. E de resto não tem ela seu marido? Não nos eximiremos a trocar com Luís Bonaparte uma estocada ou uma bala no alto de Alcolena, ou no Poço do Bispo, ao alvorecer do dia! O perigo está em que esse homem, pelo hábito, capitule.

O Clamor do Povo fez, de resto, um artigo eloquente, cheio dos mais cavalheirescos sentimentos, das imagens mais floridas, bela página poética, que tem apenas o defeito de que um trovador a poderia assinar.

N. B. - O Clamor do Povo alude às relações dos redactores das Farpas com o segundo império francês. Esclareçamos:

Um dos redactores das Farpas, achando-se em Paris, e almoçando em casa de

Véfour com o seu amigo II. James Mortimer, o mesmo que em Londres está redigindo hoje uma folha bonapartista, teve ocasião de oferecer ao imperador, por intermédio deste amigo comum, uma garrafa do mesmo vinho do Porto que o jornalista americano e o jornalista português tinham bebido juntos. O vinho foi achado delicioso nas

Tulherias: e, passados dias, aquele que devia ser depois o prisioneiro de Wilhelmshöe, fez entregar por M. de Conti, écuyer, um bilhete de visita ao que é agora redactor das

Farpas. Uma garrafa dada, um bilhete agradecendo. O redactor das Farpas julga-se quite com o segundo império.

O outro redactor desta crónica, estando no Egipto, teve ocasião de esperar a que era então S. M. a imperatriz dos Franceses, durante duas horas, no cais de Porto Said, sob um sol candente, até que S. M., desembarcando toda vestida de linho branco, com a sombra azulada da sua ombrelle chinesa ondeando-lhe sobre o colo, tomasse com aquele firme andar que fazia lembrar Diana, em Homero, a dianteira de um cortejo em que o redactor das Farpas se achava obscuramente incorporado.

Duas horas de sol, num areal do Egipto! Em redor, apertados no estreito cais de madeira, suavam e abanavam-se com os seus lenços de baptiste os Srs. de Beust, o duque de Aosta, o príncipe Frederico da Prússia, Abd-el-Kader, o príncipe da Holanda, e S. M. o imperador da Áustria.

Vinte dias depois, o mesmo redactor das Farpas passava no deserto do Sara sob um sol cruel. Era na areia fulva, a perder de vista. Pouca água, uma fadiga terrível.

Havia a distância um khan, espécie de casebre de pau, onde se podia ter abrigo e o repouso de um bom sono. O redactor das Farpas ia abrigar-se lá, quando teve de sair à pressa pela razão que estava chegando e se ia lá abrigar S. M. a imperatriz. O redactor das Farpas continuou sob o sol. Mas, confessa-o, nesse momento, lembrando-se também das duas horas de Porto Said, pediu mentalmente ao Deus justo que castigasse o segundo império - que lhe fazia apanhar tanto sol. A Prússia encarregou-se de vingar o redactor das Farpas. Ele julga-se igualmente quite com a família Bonaparte - e aproveita esta ocasião solene de agradecer publicamente à Prússia.


Dezembro 1871.

Respeitamos a câmara. Todavia parece-nos discutível esta maneira zoológica de pôr alguma ordem na confusão do município. Nem se nos afigura lógico que a 300 000 habitantes que pedem higiene, limpeza, polícia, iluminação, passeios, a câmara responda, no seu zeloso cuidado - com um bicho dentro de uma jaula!

A cidade, realmente, não oferece um aspecto próspero.

A iluminação é sepulcral. O gás mostra-se inferior em seus serviços à antiga candeia de lata. Nas principais ruas, parte dos candeeiros repousam, apagados; os que velam bocejam, num dormente bocejo de luzinha mortal; outros nunca se estrearam, e nem sabem que são candeeiros.

Monturos de caliça e de pedregulho tomam nas ruas um espaço abusivo. O entulho tem um certo direito a estar parado nos passeios, vendo as senhoras que passam, mas não deve pelo menos privar de igual regalia os habitantes que pagam décima.

As ruas, pela sua limpeza, mereceram de nós a designação que lhes ficou - canos do avesso. As que são calçadas tomam com a chuva o aspecto gentil de uma missanga de charcos. As macadamizadas, essas, depois de se terem desfeito no Verão numa atmosfera de pó fétido, apressam-se no Inverno a reabilitar-se mostrando que são, como outra qualquer vereda, capazes de saber exercer a profissão de lameiro.

A glória da capital, a maravilha, o Aterro, é ladeado em todo o seu comprimento por duas suaves circunstâncias - o cheiro da imundície dos canos, e o pó de carvão das fábricas; oferecendo assim o caso de uma sociedade rica e dândi que passeia no brilho da riqueza e nos vagares do luxo - com a palma da mão sobre a boca e o lenço sobre o nariz!

As obras que a câmara constrói são talvez excelentes: mas ela vai-as erguendo tanto em segredo, tão longe das curiosidades imprudentes, que muita gente supõe que a câmara abre as suas ruas, planta as suas árvores, alarga os seus passeios - na sala do conselho, debaixo da mesa, em sessão secreta!

A canalização merece da parte da câmara o respeito - de relíquia. Não se lhe toca, nem de leve. A ilustre câmara pratica com os canos a mesma delicada reserva que os escravos dos haréns com os perfumes preciosos e evaporáveis. A cidade por baixo está podre: aí habitam na sentina as epidemias, os tifos, a cólera, a anemia, a deterioração da raça: através da delgada película das calçadas, Lisboa sua a morte. Nós vivemos sobre um furúnculo: onde quer que se pique, isto é, que se escave, sai uma vaporização torpe, que perturba. Há dias assim foi, ao pé da Casa Havanesa. E, no entanto, a câmara mantém ao domicílio da imundície a inviolabilidade que a Carta só garante ao cidadão.

Os bairros pobres são por si uma acusação cruel. As vielas negras e sujas; os casebres imundos e caducos; os destroços de vitualhas e de farrapagens; a vadiagem dos cais; a exalação das sarjetas; a humidade infecta, tudo faz daqueles lugares - uma espécie de depósito da miséria pública. Como para o vão da escada se atiram nas casas os restos de trapos, de louças, de chinelos velhos - para aqueles bairros se atira

A Câmara Municipal de Lisboa, segundo se afirma, compenetrada da necessidade iniludível de melhorar as condições da cidade, trata com toda a solicitude de fazer a aquisição de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar, para completar a obra da regeneração municipal, araras do Brasil. desapiedadamente com os restos da plebe!

Lisboa é a cidade mais suja da Europa. A própria Constantinopla, com o torpe desleixo turco, a própria Atenas, com a indolente miséria grega - são mais limpas. E se não fosse o Tejo que lhe faz uma certa toilette, e este sol maravilhoso que tudo alegra e doura - Lisboa, aqui ao canto, junto do mar, como um cano, seria a sentina da Europa.

E perante esta situação, o município, penetrado da sua responsabilidade, e resolvido a dotar a cidade de condições habitáveis - o que lhe dá?

Um leopardo.

É talvez interessante, mas não excessivamente prático, este facto: a fera em substituição da obra pública.

Porque a verdade é que, quando se expuser convincentemente à câmara que a cidade de noite está escura, a câmara não pode em sua honra -em vez de mais gás, adquirir mais leões.

Não queremos mal às feras: e quanto mais conhecemos os homens mansos, mais estimamos os bichos bravos... Mas entendemos que as feras se portam mal, entram no domínio do ilícito, mostram uma ambição indesculpável, excedem as suas atribuições de fera - querendo acumular a qualidade de melhoramentos municipais. Um crocodilo é decerto estimável: mas ver-se-ia superiormente embaraçado quando a câmara, no seu zelo febril, o encarregasse de substituir um passeio público. E por seu lado o habitante não se daria por extremamente satisfeito, no dia em que nos passeios, para fazer as vezes de árvores, se enfileirassem lobos!

A câmara, na sua inteligência, deve compreender que o bicho não é inteiramente o equivalente do edifício.

Nunca a câmara viu, por exemplo, S. M. El-Rei passear as ruas a cavalo no

Arsenal. Portanto não é justo que nas praças, em lugar de dar ao habitante fatigado um banco de madeira - ela lhe ofereça o dorso de um rinoceronte.

Deste modo toda a cidade corria o risco de ser em breve mordida pelos melhoramentos municipais. E seria desagradável que os jornais noticiassem: «Ontem, a última obra em construção devorou na Rua Nova da Palma uma criança de cinco anos, ficando depois a lamber os beiços, de regalada...

Que a câmara medite (porque a sua inteligência é para muito), que se ela der o exemplo funesto de substituir as construções pelos animais - pode levar o habitante a substituir os animais pelas instituições. E no dia seguinte àquele em que a câmara, para mandar abrir um chafariz, comprar, em substituição, um elefante - qualquer sujeito, em vez de dizer ao criado: - «O António, põe o selim no ruço... - pode esquecer-se a ponto de gritar:

— O António, aparelha a câmara!

O que prejudicaria fortemente os interesses constitucionais!


Dezembro 1871.

S. M. a Rainha passeava no Aterro. Um mendigo vem junto dela e pede-lhe esmola. Um polícia corre e prende o mendigo. O desgraçado, retido todo o dia na esquadra policial, com frio e com fome, tem unia dor. Foi necessário mandá-lo numa maca para o hospital. Não se sabe ainda se o fuzilarão. O dia estava nublado, mas seco.

S. M., cujo vestido de veludo orlado de peles era perfeito, continuou serenamente na serenidade da tarde.

Sempre que um pobre se aproxima com a mão estendida de S. M. o Rei, de S. M. a Rainha, de SS. AA. os Infantes-é preso.

Aprovamos. E como este mendigo vai para a cadeia, iremos a seu lado para exprobrar a esse homem pervertido os fundos abismos da sua negra acção! Dir-lhe-emos:

— «É bem feito! Bem te conhecemos, desgraçado... Vós sois muitos, e a cidade está cheia da vossa multidão, que erra por essas esquinas, esfomeada e amarela, de caridade em caridade! Bem vos conhecemos: os velhos com os seus chapéus altos, o peito sumido para dentro, apoiados tremulamente a uma bengala, pedindo com uma voz exausta e meio morta; as mulheres, de rostos macilentos, com uma saia curta, umas velhas botas esfarrapadas, aconchegando no xale traçado uma pobre criancinha que se encolhe entre os farrapos, coçando as chagas da cabeça com a sua pobre mãozinha regela da; os desgraçados pequenitos, que gemem, enrolados numa velha e larga jaqueta de cotim, no degrau de uma porta fechada; os que não têm trabalho, e que à noite, sem camisa, com a gola do casaco remendado erguida para cima, fazendo bater na laje da rua as solas despegadas, pedem, explicando a sua fome; os que suplicam baixo, timi-damente, com o terror da recusa; os que são insistentes, e apelam com o desespero de um náufrago que se agarra a uma última tábua; os que querem beijar a mão de agradecimento; os que ficam a rezar, sufocados, com as lágrimas nos olhos... Vivem em buracos ignorados, dormem pelos bancos, escondidos nas sombras dos entulhos, acolhidos pelos cocheiros na palha das cavalariças; comem de vez em quando; têm todas as dores que dá o frio, todas as agonias que dá a fome; andam sob o terror da polícia; desejam o hospital como um refúgio, e um dia, embrulhados numa serapilheira, são deitados à vala!...

«Miserável, tu foste impudente! Viste aquela senhora, descendo de uma caleche, com batedores; julgaste que ela, rainha, rica, bem agasalhada, podia dar-te a ti, pobre diabo, uma moeda de vintém, o custo de um caldo quente numa taberna!... Porque enfim, velhaco, bem se vê que vais precisando de comer por este frio áspero...

Imaginaste que a tua audácia te podia render um vintém! Bem vês, rendeu-te a cadeia.

Aprende! Um mendigo como tu, esfarrapado e nojento, não se aproxima assim de uma princesa nova, na frescura aveludada da sua toilette! Pois ousaste ir pedir uma esmola sem levares uma farda de moço fidalgo? O teu hálito de fome podia incomodar aquela gentil senhora. Imagina que ela manchava a ponta da sua luva gris pene, se te tocasse na mão, nessa mão sempre estendida e cortada do leste... Que desgraça! a sua luva perfumada com «marechala»! Pois a policia podia lá consentir tal desastre! Tu és um animal! Vejam lá! Sob pretexto de que o Inverno é terrível, de que não tens pão, nem lume, nem uma manta, que tiritas, que sentes dores, que és velho, vais assim pôr-te diante de uma princesa, em toda a crua realidade dos teus andrajos, e pedes-lhe 10 réis!

10 réis! Assim se pedem 10 réis! Ah! imbecil, tu cuidas que os vestidos de cetim e de veludo, as peles, as jóias, as caxemiras, os perfumes, vêm do ar e de graça, como esse frio que te traspassa? Que desplante! «dê cá 10 réis!» E onde os havia ela de ir buscar, os 10 réis? Tu imaginas que todo o mundo é rico como o bom Deus que atira tudo às mãos cheias, estrelas, sóis, nuvens, maravilhas, e aquele pavilhão azul do Céu que lhe devia ter custado milhões? És tonto! Supões que uma rainha desce assim, como uma burguesa, a ter pena de um pobre? Tu não lês os jornais, bem se vê! Ouviste talvez dizer que um, que se chamava Napoleão III, parava nos passeios a cada momento o seu breack para encher de sous os chapéus dos pobres? Talvez te contassem que uma, a quem chamam a imperatriz da Alemanha, distribui por sua mão, de manhã, com os cabelos caídos sobre um penteador, dinheiro aos mendigos! Mas essa gente - é gente exagerada! Talvez também ouvisses dizer de um chamado Jesus, que abraçava os pobres e lhes enxugava o sangue das feridas! Esse era um poeta! Tu és ignorante, velho!

Decerto não lês o Figaro. Tens ouvido que a mais bela, a única missão das rainhas é a caridade... Ora aprende! Medita na Cadeia a caridade das rainhas! Bem feito. Ah! tens frio? tens fome? Pois a enxovia te dará o pago de teres fome e teres frio. Pede outra vez, anda! pede! Muito feliz foste ainda em não te correrem a chicote!»

Assim falaríamos a este indigno mendigo vil e torpe, e pediríamos a S. M. a

Rainha que insistisse em que esse grande criminoso fosse rapidamente enforcado - se na realidade S. M. a Rainha tivesse culpa ou responsabilidade deste facto intolerável e grotesco.

Não foi S. M. que prendeu o pobre - foi a polícia. E estamos certos que, se alguém se afligiu seriamente, não foi o pobre - foi S. M.

Ora pedimos, para honra e sossego de todos, que não seja permitido a qualquer sr. polícia chegar-se ao pé de S. M. a Rainha, e fazer-lhe insulto mais brutal e mais vil - que é prender os desgraçados que lhe pedem esmola!


XLVI

Dezembro 1871.

É curioso! Que tendes vós, o patriotas, com a casa de Saboia? Desde que possuimos entre nós uma pessoa da casa de Saboia, todo o partido des. peitado, todo o ministro demittido, todo o regedor cahido, carrega o chapéo para a testa e vae para um canto amaldiçoar a casa de Saboia!

Mas que vos fez a casa de Sabóia? Viveis vós em Florença? Viveis vós em

Madrid? Sois vós o povo metralhado na galeria do café de Nápoles? Sois vós o infeliz escritor Roque Barcia preso nas enxovias de Madrid? Sois vós, ó habitantes da Rua dos

Fanqueiros, N. S. P. o Papa Pio IX?

Que possuís vós, na vossa bela cidade de Lisboa, da casa de Sabóia?

Uma senhora.

Uma única senhora! e confessai que, conhecendo da casa de Sabóia só uma senhora — a única acusação que podeis fazer à casa de Sabóia, é qu e ela se veste sem distinção ou se penteia sem gosto! Ora vós, bárbaros, podeis, revolvendo a história, acusar a casa de Sabóia de avara, de ingrata, de invejosa, de sanguinária, de mercenária

— mas certamente não podeis deixar de dizer que a parte da casa de Sabóia que possuís, e vedes de perto, tem uma soberba elegância, um dandismo impecável, e guia melhor os seus póneis que a mitológica Diana!

A casa de Sabóia entre nós é uma questão de toilette e de graça feminina: e melhores toilettes e mais distinta graça — sabei-o, ó bárbaros, não o encontrais na casa de Hohenzollern, onde as mulheres são pesadas e burguesas; na casa de Habsburgo, onde as mulheres ostentam uma majestade de teatro já desusada e caturra; na casa de

Borbom, onde as mulheres parecem intrigantes viragos; e na casa do Hanôver, onde as mulheres têm a frieza da alma e rosto que se sente nas libras! Orgulhai-vos,

Portugueses! Nunca tivestes no trono coisa assim! Conheceis a história? Cuidais por acaso que D. Mafalda, esposa do tão célebre Afonso Henriques, se oferecia ao seu povo incipiente em toilettes mais distintas? Pensais que D. Urraca, consorte do interessante

Afonso II o Gordo, expunha à aragem do Tejo coiffures de um vaporoso tão gentil?

Estais porventura na ideia que D. Mécia Lopes, digníssima metade de Sancho II o

Capelo, se movia com tão airosa debilidade?

Bárbaros! Vós não imaginais que feias rainhas se agrupam no fundo da vossa história! Só os heróicos feitos dos maridos conseguem fazer esquecer os horríveis narizes das esposas. Indagai nas crónicas! E considerai que os valentes que venceram em Silves, no Salado e em Ourique, ao voltarem com as suas armaduras amolgadas dos recontros maravilhosos, só tinham para os acolher e encantar os chatos seios das des-dentadas

Urracas, ou as cuias odiosas das obesas Mécias Lopes!

Ingratos! Ingratos! Vós não merecíeis uma senhora da casa de Sabóia, não — merecíeis uma fêmea da casa de Tuen-Fuem, tirano da Patagónia — nua, disforme, e preta!

É curioso! Que tendes vós, ó patriotas, com a casa de Sabóia? Desde que possuímos entre nós uma pessoa da casa de Sabóia, todo o partido despeitado, todo o ministro demitido, todo o regedor caído, carrega o chapéu para a testa e vai para um canto amaldiçoar a casa de Sabóia!


XLVII

Dezembro 1871.

Lisboa é talvez, em todo o vasto universo, a cidade, onde a opinião exerce menos influencia. Receiase um pouco a policia correccional, despreza-se em absoluto a opinião publica. E como a policia correc. cional se assemelha ao ceo de Molière-com o qual succede que no fim a gente sempre se chega a en. tender —---acontece que em definitivo nada se receia, nem a opinião que se desdenha, nem a policia que se evita. Assim, desde que se soube a colligação das fabricas de tabaco, a opinião unanime, cerrada, incondescendente tem accusado, tem quasi infamado aquelle monopolio inesperado. E no emtanto a colligação continua serena, impassivel, a espoliar o vicio e a arrecadar o ganho. E todavia se todos os srs. capitalistas, que entraram n’aquella conspiração tenebrosa, ouvissem nos cafés, nas esquinas, e nos estancos, o que diz a immensa opinião anonyma — sentiriam, se ainda existe nas suas ex. mas pessoas algum brio viril, a necessidade indeclinavel de se bater em duello, de dez em dez minutos, com dez cava. lheiros de cada vez! O que lhes daria no fim do seu dia a bagatella gentil de sessenta duellos por hora! O que prefaz, desde a primeira alvorada até o primeiro lume de gaz.-qualquer cousa como seiscentos e oitenta duellos!


O facto na verdade é estranho. Uma troca só se considera justa quando há reciprocidade de valores; e toda a venda de mercadoria cujo valor é arbitrariamente, caprichosamente aumentado, é desonesta. Se eu dou 10 em moeda, é necessário que me dêem 10 em mercadoria (contando-se, está claro, nestes 10 de mercadoria, as despesas de produção, etc.). Ora se eu dou 10 em moeda, mas me dão 5 em mercadoria, torna-se evidente que realmente os 5 a mais que eu dou — me foram levados, por bons modos sim, com brandos sorrisos é certo, mas enfim com o mesmo direito com que numa estrada nocturna e solitária um cavalheiro de barbas celeradas me diz galhardamente:

«Ou a bolsa ou um tiro!» Até agora, e desde há muito, um operário dava 10 réis e davam-lhe 6 cigarros; e as fábricas entendiam que este contrato era vantajoso porque o mantiveram, prosperaram, entesouraram. Porém uma fresca manhã, as fábricas, ao entregarem os costumados 6 cigarros, disseram ao consumidor: — «Perdão, de ora em diante dois cigarros são para os meus vícios particulares: aí tem o cavalheiro os 4 restantes». Foi simplesmente este roubo.

Se por acaso qualquer de nós entrasse num luveiro, e pondo os seus 750 réis sobre o balcão pedisse umas luvas gris perle, e o luveiro lhe dissesse, arrecadando a prata: —

«Aqui tem o cavalheiro a luva da mão direita, a da esquerda permita que a retenha por certos motivos» — era natural que nós saíssemos fora, chamássemos o polícia mais desocupado da esquina, e deixássemos o luveiro em conversa particular com a lei. Ora a pobre gente, que vê os seus dois cigarros sumirem-se nos cofres da coligação, não pode chamar o polícia! De onde se conclui que, para extorquir cigarros, relógios, luvas ou outros objectos miúdos, é imprudente ser-se só e isolado — mas é de todo o ponto proveitoso e impune ser-se uma companhia com uma escritura num tabelião! Erro, grande erro, que um cidadão desacompanhado nos venha delicadamente pedir o relógio numa viela escura: ordinariamente este cidadão imprudente vai fazer parte da sociedade de Angola. Mas não há nada para estes feitos como vir apoiado numa associação! A associação inocenta tudo, e tudo purifica! Que se há-de objectar a um celerado que nos diz respeitosamente: — «Meu senhor, eu e alguns bandidos das minhas relações fizemos num tabelião uma escritura pela qual combinámos recolher a nossa casa todos os paletós

Lisboa é talvez, em todo o vasto Universo, a cidade onde a opinião exerce menos influência. Receia-se um pouco a polícia correccional, despreza-se em absoluto a opinião pública. E como a polícia correccional se assemelha ao céu de Molière — com o qual sucede que no fim a gente sempre se chega a entender — acontece que em definitivo nada se receia, nem a opinião que se desdenha, nem a polícia que se evita. Assim, desde que se soube a coligação das fábricas de tabaco, a opinião unânime, cerrada, incondescendente, tem acusado, tem quase infamado aquele monopólio inesperado. E no entanto a coligação continua serena, impassível, a espoliar o vício e a arrecadar o ganho. E todavia se todos os srs. capitalistas, que entraram naquela conspiração tenebrosa, ouvissem nos cafés, nas esquinas, e nos estancos, o que diz a imensa opinião anónima — sentiriam, se ainda existe nas suas exmas pessoas algum brio viril, a necessidade indeclinável de se bater em duelo, de dez em dez minutos, com dez cavalheiros de cada vez! O que lhes daria no fim do seu dia a bagatela gentil de sessenta duelos por hora! O que perfaz, desde a primeira alvorada até ao primeiro lume de gás — qualquer coisa como seiscentos e oitenta duelos! que passeiam impudentemente as ruas nas costas egoístas de seus donos; aqui está o contrato, a escritura e outros papéis que V. Sª terá a bondade de examinar àquele candeeiro; tenha a bondade de me passar o seu paletó!» O caso das fábricas guardarem para si, sem motivo, parte dos cigarros que dantes davam por certas quantias, tem toda a analogia com as espécies citadas. E portanto a verdadeira maneira de afrontar esta coligação não é pelos meios legais. Que cada cidadão que fuma cigarro ponha os seus

10 réis sobre o balcão, e declare apontando um revólver ao peito do estanqueiro:

— «Aí estão 10 réis. Agora quero os meus cigarros, mas todos os meus cigarros!

Senão desfecho!»

Abrindo o nosso Código Penal, encontramos no Capítulo XL, secção 1ª, art. 276º, estes dizeres simpáticos:

«Qualquer pessoa que, usando de algum meio fraudulento, conseguir alterar os preços nas mercadorias que forem objecto de comércio, será punida com multa conforme a sua renda, e prisão de um a três anos.

§ único. Se o meio fraudulento empregado para cometer este crime for a coligação com outros indivíduos, terá lugar a pena logo que haja começo de execução.»

Que vos parece, cidadãos, desta honrada simplicidade do Código Penal?

Os preços foram alterados;

E numa mercadoria que faz objecto de comércio...

Somente o artigo acrescenta — quando se usar de algum meio fraudulento. Houve este meio fraudulento? O § único responde:

«Se o meio fraudulento empregado para cometer este crime for a coligação...»

É o nosso caso! A coligação é patente; logo houve o meio fraudulento especificado pelo Código. E declara mais este amável Código:

«...terá lugar a pena logo que haja começo de execução.»

A execução é também patente em todos os estancos. Onde está pois a pena? Isto é claro, positivo, explícito, simples.

O crime é evidente. Haverá alguma circunstância que desculpe os coligados do crime, e portanto os exima da pena? O artigo 23º do Capítulo III do título 1º, diz:

«Não podem ser criminosos os loucos de qualquer espécie;

Os menores de sete anos;

Os maiores de sete, e menores de catorze, quando não têm discernimento;

Os ébrios;

Os que praticam o acto em virtude de obediência devida.»

Por consequência, os srs. fabricantes só estão isentos da multa e prisão de um a três anos, se provarem:

Que habitam Rilhafoles, ou que se babam de idiotismo;

Ou que andam de bibe, e pela mão da criada, atirando a péla;

Ou que não têm discernimento, a ponto de serem tatibitates;

Ou que estavam no momento do crime, num tal estado de ebriedade, que se tinham deitado no enxurro;

Ou que praticaram o acto contra vontade, cheios de repulsão, mas obrigados por algumas pessoas que lhes diziam com o punhal sobre a garganta: «ou a coligação ou a morte!

Se não provarem que se acham em algum destes casos — são criminosos, e nada os pode desprender das mãos do polícia que lhes tome a gola do fraque, e os leve, de rastos e ganindo, aos bancos luzidios e lúgubres da polícia correccional.

E notem que o Código diz cometem este crime. E um crime: não é a honesta contravenção nem a modesta infracção! É o crime.

E o crime com as circunstâncias agravantes que marca o Código no Capítulo LI, art. 19º:

Premeditação: quem negará que os ilustres fabricantes meditaram longamente, ruminaram longamente o seu caso?

A sedução de outros indivíduos para cometer o crime: não contaram os jornais que tinham sido convidados pelos autores do crime, para tomar parte nele, as fábricas do

Porto?

Ter manifesta vantagem sobre o ofendido: não são eles ricos, e pobre a população humilde que fuma cigarro? Não é o facto uma exploração do vício?

Cometer o crime por dinheiro: não foi decerto para ganhar bênçãos, nem reumatismos!

Cometer o crime tendo recebido benefícios do ofendido: há uns poucos de anos que os nossos vícios enriquecem os seus cofres!

Cometer o crime de noite: é justamente quando os estancos mais vivem, mais ganham, e portanto mais delinqúem!

Que fazem no entretanto os srs. delegados do procurador-régio? Fulminam com a sua eloquência reles algum desgraçado que não tem casa, algum miserável que não tem tr abalho!

Os jornais dizem: «O Governo já que não pode fazer nada, consinta que se estabeleçam mais fábricas, ou diminua o direito sobre o tabaco em folha». E curioso. E como se diante de um desgraçado, espancado e ensanguentado, e diante do seu espancador, já descoberto e já preso, os jornais exclamassem:

— Uma vez que a justiça não pode fazer nada ao criminoso, ao menos não impeça que se cure o ferido!

Não pode fazer nada? Pois já não existe na Boa Hora um banco para um réu, na casa do depósito um cofre para uma multa, no velho Limoeiro um quarto para um preso?...

Porque não queremos suspeitar que o que não existe — seja a igualdade perante a

Lei!

O que impede que se proceda contra eles?

O facto de se terem coligado? — Então por este modo só é culpado o salteador isolado, mas perfeitamente inocentes os salteadores associados. Se amanhã, (o que tal não suceda) S. M. El-Rei for assassinado, só haverá crime e só poderemos castigar o assassino se ele for um só: mas se forem seis, teremos de lhes deixar os nossos bilhetes de visita!

O ter havido uma escritura? — Mas então declaremo-lo por uma lei, para que os srs. ladroes, assassinos e incendiá rios, se previnam com contratos no tabelião antes de partirem para as suas façanhas!

O serem capitalistas? — Aqui é que a porca e a lei torcem o rabo! Sim, desgraçadamente, é por serem capitalistas...

Ah! o tirânico segundo império não permitia estas coisas! Na guerra da Crimeia, os vendedores de toucinho coligaram-se para imporem um preço superior. Foram delicadamente empurrados pelas costas à polícia correccional. Havia entre eles ricos negociantes, ricos capitalistas. Uma terrível multa e a prisão foram a paga das suas proezas gorduráceas. Tão vilmente lhes pagou o carinho que tinham tido por ele — o impudente toucinho!

Quem impede que amanhã os nossos charutos custem cada um 7$000 réis, e cada cigarro nos saia a 1$800 réis? Estão na lógica os srs. fabricantes. E têm a suprema garantia do consumo — a garantia do vício! E isto virá talvez a acontecer se não tivermos a previdência de nunca comprarmos tabaco — sem irmos acompanhados por uru polícia, e um escrivão que lavre o auto!

E é sobre o operário, sobre o trabalhador, sobre o soldado, sobre o pobre que pesa a espoliação! Os srs. capitalistas tiveram o cuidado delicado de não fazer pagar nem mais 5 réis diários a quem ganha ou tem por mês de l00$000 réis para cima: e por isso fazem pagar mais 10 réis diários a quem tem por dia de 240 réis para baixo! Isto alegra-nos profundamente. E tanto que, fundados na nossa argumentação, não deixaremos de pedir que a cidadãos tão prestantes como os ilustres fabricantes, se dê a honra de se lhes oferecer um banco na Boa Hora, com o modo mais risonho! Com o que temos o prazer de desejar as maiores prosperidades a SS. S.as , senhores do nosso respeito e espoliadores do nosso tabaco!

XLVIII

Novembro 1871.

Em Abrantes — segundo informações de um amigo nosso, jurisconsulto ilustre — sucede este estranho caso:

Pela lei de 10 de Julho de 1843 só são obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercem a sua indústria em água salgada — e naquela parte dos rios somente até onde cheguem as marés vivas do ano.

Ora em Abrantes entende-se de um modo largamente torpe esta acção do fisco sobre a pesca. Vinte homens, extremamente miseráveis, que pescavam no rio — onde não podiam chegar marés vivas — e alguns mesmos que de todo não pescavam, foram obrigados a pagar o imposto do pescado! Uns não se defenderam desta extorsão por pobríssimos: outros não se defenderam em virtude da ideia popular na província — deque, com o fisco, paga-se sempre e nunca se questiona, porque naturalmente depois é-se obrigado a pagar mais.

Isto constitui puramente, numa linguagem talvez plebeia, mas exacta, um roubo.

Obrigar um pescador do rio a pagar o imposto do pescador do mar, é (além de uma confusão deplorável do velho e respeitável Oceano com qualquer fio de água que murmura e foge), um sistema extremamente parecido com o que empregam as pessoas estimáveis que nos metem a mão na algibeira e levam para casa o nosso lenço. Nós não desejamos embaraçar os negócios fiscais. Somente nos parece que impor a qualquer cidadão, mesmo quando não pesque, o imposto do pescado, é um expediente sumamente complicado. E o fisco, que deve ser parcimonioso do seu tempo e dos seus recursos, tem um meio mais singelo e mais expedito, que consiste em se aproximar de qualquer, e gritar-lhe pondo-lhe uma carabina ao peito:

— Passe para cá o que leva na algibeira!

Estes processos do fisco, que se repetem arbitrariamente em toda a província e que são sem dúvida um dos recursos do Estado, parecem-nos imprudentes — porque estabelecem confusão. Há por essas estradas isoladas, em certas vielas de cidades mal policiadas, nos pinheirais, nos sítios ermos e amados da sombra, uma espécie de cida-dãos, de resto singularmente diligentes, que se deram por missão suspender por um momento as pessoas que passam, e pela maneira mais delicada tirar-lhes o dinheiro, os relógios e outras insignificâncias. Por seu lado o fisco costuma deter os cidadãos, e sob qualquer pretexto (como por exemplo no caso de Abrantes, por serem pescadores de

água salgada) exigir-lhes uma quantia e entregar-lhes um recibo. Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, oferecem uma tal similitude que pedimos ao Governo que distinga por qualquer sinal (um uniforme por exemplo), estas duas estimáveis profissões; para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social, confundindo o facínora e o funcionário — apitando contra o fisco e pedindo humildemente recibo ao salteador!

XLIX

Novembro 1871.

Este mês a opinião preocupou-se com o que se chamou a greve de Oeiras.

Parecia realmente indecoroso que Lisboa, já civilizada, com teatro lírico e outros regalos de capital eminente, não tivesse esse chique social — a greve! Oeiras, com uma dedicação amável, forneceu-lhe esta elegância. Oeiras deu a greve. Alguns estadistas puderam ter ocasião de comentar a nossa última greve, e de falar no terrível proletariado.

Somente esta greve de Oeiras apresenta uma novidade excêntrica.

O fabricante diz:

— Eu dou a esses operários indignos, que abandonaram a minha fábrica e se puseram em greve, 4$000 réis por semana. Vinde!

E os operários respondem:

— Não, não, isso não! Só voltamos ao trabalho se nos garantirem por semana

3$600!

Confessem que é para empalidecer de confusão. Não se protesta aqui contra a avareza do fabricante, protesta-se contra a sua generosidade: o operário resiste a ganhar: só trabalha se lhe diminuírem o salário: tem avidez de sacrifício, e deseja antes de tudo sofrer fome! Que mistério é este? Ei-lo desvendado:

Como sabem, há dois trabalhos essenciais no fabrico do lanifício: preparar a teia, o que leva uma semana, e produzir o tecido, o que gasta outra semana. Ora o fabricante descontava na semana do tecido uns tantos por cento do salário; e na semana do preparo levava a sua habilidade a descontar o salário todo.

De sorte que havia semanas gratuitas. E justamente os operários pedem agora que lhes paguem menos cada semana, mas que lhes paguem as semanas todas.

O fabricante exclama:

— 4$000 réis cada semana que tecerdes!

E os operários replicam:

— 3$600 réis cada semana que trabalharmos. Porque preparar a teia é tanto trabalho como tecê-la.

Tal é esta greve original, que não descrevemos com a sua precisão técnica, para não dar a estas páginas o aspecto de um tratado sobre lanifícios.

O que temos pois aqui, na realidade, é um fabricante que diminui arbitrariamente o salário dos seus operários. Estamos em frente de uma greve do capital! Ora abrindo o nosso admirável Código Penal, encontramos estes dizeres no Capítulo XI, secção 1ª, artigo 277º:

«Será punida com a prisão de um a seis meses, e com a multa de 5$000 a 200$000 réis, toda a coligação entre aqueles que empregam quaisquer trabalhadores, e que tiver por fim produzir abusivamente a diminuição do salário, se for seguida do começo de execução.»

O código fala em coligação. Aqui houve só um fabricante; mas o que é crime para muitos indivíduos coligados, é decerto crime para o indivíduo isolado. O número não faz a culpa. O crime recai sobre o facto, não sobre o ajuntamento. O código define crime «o facto declarado punível pela lei penal» — e não acrescenta «segundo o maior ou menor número de pessoas».

De modo que a famosa greve de Oeiras se reduz simplesmente a isto:

Um fabricante que diminuiu abusivamente o salário dos seus operários — e que cai portanto sob os rigores do artigo 277º do Código Penal.

Até a greve de Oeiras! Ah! não podemos possuir uma glória, um heroísmo, um chique, sem que não se descubra, daí a dias, que chique, heroísmo, ou glória, são casos burgueses que pertencem à Boa Hora! Vergamos sob o destino de ser medíocres! Todo o País tem uma revolta — nós temos a índia! Todos têm uma expedição — nós temos o

Bonga! Todos têm um poeta — nós temos o Sr. Vidal! Fazíamos tanto empenho nesta greve que nos nobilitava, nos revestia de uma atitude civilizada, nos dava a esperança de abrigarmos enfim no nosso seio, autêntica, legítima, essa grande elegância revolucionária, a Internacional! — e vê-se que nos achamos apenas com um caso de polícia correccional! Um a seis meses de prisão, que miséria! Ah! evidentemente só gozamos duas glórias incontestáveis, garantidas, à mão, nossas, só nossas — o Sr.

Lisboa, e o Sr.... Suspendamos, por Deus!... e aquele, de quem um juramento terrível e sacrossanto nos veda pronunciar o nome!

L

O teatro em Portugal vai acabando. Por dois motivos. Primeiramente pelo abaixamento geral do espírito e da inteligência entre nós: e depois pelas condições industriais e económicas dos teatros.

Esta verdade ressalta dos próprios cartazes. O Ginásio, o Príncipe Real, a Rua dos Condes, dão comédias traduzidas dos velhos repertórios estrangeiros, ou dramalhões alinhavados exclusivamente para a estulta plebe (como diziam nossos avós), complicados de incêndios, naufrágios, desabamentos, maravilhas baratas de velho cartão, entre cenários desbotados. — Somente acontece que as comédias estrangeiras, concebidas para a fina interpretação de actores educados, encontram aqui uma interpretação grosseira e falta de ofício — e não podem interessar: e os dramalhões, que vivem apenas dos esplendores da decoração, encontrando aqui telas roíd as da humidade, fatos de paninho remendado, um papelão apodrecido, uma miséria que os apaga e os apelintra — não podem atrair. Portanto estes teatros arrastam uma vida difícil.

A Trindade encetou a ópera cómica. Mas naturalmente, com a legítima urgência do ganho, começou pelos melhores autores da escola francesa — Offenbach, Hervé,Lecoq, etc. Fatigou este repertório galante, espremeu a quantidade de libras que ele continha — e, como as óperas cómicas não se parecem com as ostras, que quanto mais se procuram mais abundam, sucede que a Trindade está nas condições de um preso que devorou a sua ração. A Trindade não tem que dar a um público enfastiado que pede música acessível, e facilmente gorjeada. Precisa recorrer a zarzuelas que não oferecem a cintilação alegre da verve francesa, se apresentam com ambições de arte italiana, e descontentam. Além disso o repertório estrangeiro é feito pelas boas vozes, educadas, criadas nos conservatórios, formadas pelo gosto e pela tradição dos teatros especiais. De sorte que a Trindade necessita escolher operetas que possam facilmente atravessar as estreitas gargantas nacionais; e no vasto repertório estrangeiro tem de preferir as operetas fáceis, as «de meia garganta)), as operetas constipadas. Fica assim reduzido o número a cinco ou seis imbróglios espanhóis, debilmente instrumentados, a que a Trindade se vai amparando como a muletas provisórias. Opera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a criação musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos. Ora a Trindade não poderia fazer facilmente representar o hino da Carta. A Carta, bem basta que a suportemos em código, não devemos sofrê-la em couplet. Seria tão impudico como sapateá-la em danças. E verdade que não pareceria estranhável que a Carta passasse a ser uma ópera cómica, num país em que as instituições são tiradas do Barba Azul e da Grã-Duquesa.

D. Maria é a jangada da Medusa da arte nacional. Aí sobrenadam, num esforço heróico, os restos da velha geração artista. Actores de vontade e de talento, um director excelente — lutam com a escassez da literatura, com a inércia do público, com as dificuldades económicas. E verdadeiramente uma jangada — admirável pelo esforço, incompleta pela organização: boa para lutar, imperfeita para navegar.

S. Carlos, esse, chilreia.


Esta decadência deplorável tem causas diferentes:

A primeira é a própria literatura dramática. Os escritores retraíram-se inteiramente do teatro. Não por o ganho ser diminuto, como se diz, porque no jornal e no livro o ganho não seduz com cintilações de montes de ouro. A principal razão está no feitio da nossa inteligência. O Português não tem génio dramático, nunca o teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reproduzem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que unia personagem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos — e a acção torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas: o drama de efeito, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:

— Ah! Céus! E ele! Matei meu filho! Oh!»

Acresce a isto a farsa com os velhos motivos de pilhéria lusitana, o empurrão, o tombo, a matrona bulhenta, o general de barrete de dormir, etc. E é tudo! Sentimentos, caracteres solidamente desenhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos sociais concretizados numa acção, a natureza, a realidade, a observação da vida — isso encontra-se ainda menos num drama do que numa corrida de touros.

Outra causa de decadência: o público. O público vai ao teatro passar a noite. O teatro entre nós não é uma curiosidade de espírito, é um ócio de sociedade. O lisboeta, em lugar de salões, que não há — toma uma cadeira de plateia, que se vende. Põe a melhor gravata, as senhoras penteiam-se, e é uma sala, uma soirée, um raout, ou mais nacionalmente uma assembleia. Com esta grande vantagem sobre um salão: — não se conversa. Conversar para o Português constitui unia dificuldade, um transe: é o Cabo das Tormentas dos modernos Lusíadas. Conversar, entreter, mover o alado e fino batalhão das ideias, todo o português imagina que esta maravilha só se pode dar nos romances de franco. Daí vem para o português elegante o hábito de se encostar nas salas, à ombreira da porta, com aspecto fatal. Conversar! os homens tremem e as senhoras empalidecem. No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toilette, namorar, passar a noite — e não se conversa. Em Portugal ninguém recebe e ninguém é recebido, porque não há dinheiro, não há sociabilidade, e antes de tudo preferimos o doce egoísmo aferrolhado e trancado do cada um em sua casa. O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado — e comprado no bilheteiro. De resto o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna-se secundário. Requer-se apenas uma certa moralidade física: — que se não dêem beliscões nas ingénuas. A moral do drama, da acção, dos sentimentos não se percebe ou não se exige. Um beijo que estala sobressalta, um adultério que se idealiza encanta. Uma das condições é que as actrizes se vistam bem, com modas novas, para que nos camarotes as senhoras observem, discutam as rendas, as sedas, as jóias e as toilettes. Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre — é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial e burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama — é o tédio da casa que o repele.

Outro motivo de decadência: os actores. Os actores em geral são maus, com excepção de 4 ou 5 individualidades inteligentes e estudiosas que progridem. São maus — não tanto por incapacidade própria, como pelas condições do seu destino. Eles desgraçadamente em Portugal não pertencem a uma arte, pertencem a um ofício. Que hão-de fazer? — Não têm estudos, nem escola, nem incentivo, nem ordenados, nem público. São actores como outros são empregados públicos; recitam prosa à luz do gás, num palco, como outros expedem ofícios numa sala abafada. Questão de ganhar um ordenado, de se sustentar, de se vestir! A arte, o estudo entram aqui numa proporção ínfima. O artista que, pelo precário estado da sua arte, tem de pensar em comer (quando não é extraordinariamente dotado, porque então a necessidade retempera-lhe a habilidade), torna-se fatalmente um homem de ofício que necessita ganhar; em tal caso o pintor ilustra almanaques, o escultor faz jarras de porcelana, o poeta redige notícias, o actor atabalhoa papéis. Os nossos grandes actores, Santos, Rosa, além da sua organização artística, formaram-se quando o teatro normal (pelo seu regulamento) os punha ao abrigo da luta da vida, e lhes dava os grandes vagares do estudo. No meio da oscilação das empresas, das quebras de companhias, da dispersão dos centros dramáticos — o artista não pode ter os nobres vagares necessários à cultura artística. As dificuldades da vida embaraçam as preocupações da inteligência.

Outro motivo da decadência dos teatros: a pobreza geral. Não há dinheiro. Lisboa é uma terra de empregados públicos. A carestia da vida, os altos alugueres, o preço do fato, uma certa necessidade de representação que domina a gente de Lisboa, tudo isto deixa a bolsa cansada, incapaz de teatros. O teatro é caro. Uma noite de teatro pode levar a uma família 3$000 réis de camarote, 1$500 de luvas, 1$500 de carruagem no Inverno — ao todo 6$000 réis. 6$000 é a quinta parte de muitos rendimentos mensais — da pluralidade dos rendimentos. Por consequência a afluência aos teatros é pequena. Naturalmente, com a sala deserta, o cofre do teatro não se enche. Daí dívidas, complicações, e falências.

Tal é o perfil do estado geral dos nossos teatros, a largos traços.

Perante esta situação ocorre naturalmente esta pergunta: qual é a atitude do Estado, respectivamente aos teatros?

É esta:

O Governo não dá nada aos teatros nacionais;

E dá 25 contos a S. Carlos!

Ora que o Governo nos responda: — «É o Governo obrigado a auxiliar e a subsidiar a arte teatral?»

— Não. — Então para que dá subsídio a S. Carlos?

— É. — Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional?

Se o Governo entende que deve abandonar à indústria, à iniciativa particular, à concorrência, à espontânea acção das vocações, a arte dramática — para que faz uma excepção ao teatro italiano, protegendo-o?

Se o Governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civilização e de cultura moral — então para que faz uma excepção ao teatro português, desamparando-o?

Que o Governo pois se decida:

Ou se declara indiferente e desinteressado em questões de teatro — e então fecha igualmente os seus cofres aos galãs e aos tenores;

Ou se declara responsável pelo desenvolvimento deste progresso intelectual — e então dá um subsídio ao teatro nacional.

Nós não temos opinião. Compreendemos igualmente o Governo protegendo o teatro com subsídios, ou o Governo deixando o teatro à iniciativa industrial e literária.

O que condenamos, e toda a pessoa sensata o condenará connosco, é que, com uma lógica torpemente offenbáquica, o Governo diga:

— Eu nada tenho com a arte teatral, e por consequência dou 25 contos ao teatro italiano.

Ou diga:

— Eu sou o protector da arte teatral, e por consequência pretendo que o teatro nacional se feche de penúria.


Ora a verdade é esta:

O teatro nacional é uma necessidade inteligente e moral — e o teatro italiano é uma inutilidade sentimental e luxuosa.

Quais seriam as vantagens de um teatro normal?

O teatro normal seria a criação de uma literatura dramática, isto é, o enriquecimento do nosso património intelectual — educação permanente no presente, elemento histórico para o futuro. Porque o drama hoje, como toda a obra de arte, tem dois alcances: pelos sentimentos, ideias, costumes, instituições contemporâneas que estuda e critica, é no seu tempo uma lição para o critério — e no futuro um documento para a história.

O teatro normal seria a fundação de uma escola de actores, como a Comédia Francesa, fortemente educada, conservando uma tradição, formando discípulos, centro vital das artes teatrais.

O teatro normal seria o deperecimento providencial das pequenas comédias eróticas, que constituem a aguardente moral das pessoas que não vão à taberna; das mágicas que não passam de um mau acompanhamento da digestão e de uma escola de embrutecimento; dos dramas sentimentais que servem para excitar os sentidos da bur-guesia casada, e formam uma espécie de comunicação cómoda com o vício sem se descer de um camarote! Seria um constante apelo da atenção às coisas do espírito; a subtracção de uma população ociosa e enfastiada às casas de jogo e aos lupanares clássicos; uma influência perdurável, penetrante e subtil nos costumes; uma forte educação pela imaginação; enfim um elemento sadio na nossa vida, insubstituível e indispensável, porque prende com o que uma cidade tem de mais definitivo e de mais determinante — a sua inteligência e a sua moral.

O teatro normal não seria um regalo exclusivo de Lisboa; faria participar todo o

País no desenvolvimento da sua arte. Os actores formados aqui iriam constituir pequenos e bons conjuntos teatrais na província; e em certos meses a companhia-modelo visitaria Porto, Braga, Coimbra, Viseu, as principais cidades, levando ao público o encanto do seu repertório superior e aos artistas os exemplos da sua arte perfeita.

Isto seria, a largos traços, o teatro normal.


O teatro de S. Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvá-la?

O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário! É uma fábrica de reputações para os artistas estrangeiros. Gastamos dinheiro, nós! para que o Sr. Fulanini vá ganhar mais dinheiro para Sampetersburgo ou para Covent Garden, ele!

O teatro de S. Carlos não constitui um elemento de civilização, mas de decadência. Se alguma coisa debilita o carácter e enfraquece o espírito — é a influência da música italiana, sentimental, amorosa, langorosa, mórbida. Uma ópera é um lupanar. Cada dueto, cada alegro, uma excitação erótica. Imagine-se uma menina ouvindo durante um ano aquela ladainha de sensualidades que se chama — Lúcia, Norma, Traviata, Maria de Rohan, Favorita, Baile de Máscaras, etc.? O adultério idealizado, o amor como a coisa superior e única da existência, o dever considerado burguês, a honestidade mal portée; e toda aquela moral suspirada, gemida, arrastada na dilacerante agonia da rabeca, assobiada irritantemente na flauta, modulada aereamente na harpa, soluçada de um soluço inteiro pelo demónio invisível que habita o violoncelo, tornada acre e triunfante nos instrumentos de metal, roncada no rabecão; e sobre esta massa de voluptuosidade instrumentada, as adúlteras, os galãs, os amorosos, todo um mundo melodioso e devasso, que geme, arqueia os braços, se torce nos êxtases da paixão, entra pelas portas das alcovas, semeia tudo de beijos, e morre de amor, romanescamente, numa ária dolente! Ah! nós não somos bárbaros. Estimamos a música. Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir e a fingir. De resto Donizetti, Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles, respeitamo-los como ideias que cantam — estes detestamo-los como erotismos que arrulham.

O teatro de S. Carlos não dá participação a todo o País da sua arte. Bem ao contrário, é um teatro exclusivo, de um público limitado, escolhido, sempre igual. O

País paga para que este público goze. Para que nós tenhamos árias, comem os lavradores sardinhas!

Enfim, nem criação de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem interesse geral do País.

Para que serve S. Carlos? É um luxo, dirão. Sim, compreendemos... Mas é ao menos, realmente, S. Carlos um teatro elegante, um centro belo e fino de vida rica?

Ah! por Deus, não! Começa logo pela mise-en-scène. Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que mise-en-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente, bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia... Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços nus mal lavados, eles com as botas enlameadas, soltam, num gesto dormente, uma voz por onde têm passado todas as pateadas desde 1836 — o que lhe fez perder a frescura. Nos camarotes, o veludo dos parapeitos, aos farrapos, deixa sair uma clina fétida: o papel está esgaçado, as fechaduras quebradas. Uma iluminação funerária entenebrece a sala; os velhos dourados sujos têm o aspecto melancólico de adornos de capelas antigas; os brancos rivalizam com rostos de carvoeiros. Os corredores, com os tapetes comidos dos ratos, fofos de pó, uma luz soturna e abafada, lembram o cárcere, o portal de casa de jogo. Na superior, cadeiras de palhinha áspera raspam como uma navalha de barba o pano das casacas; e o chão tem tanto asseio que os frequentadores, antes de saírem para a rua, limpam os pés nos capachos por compaixão com os varredores. Na geral bancos estreitos, como de réus, ouriçam a sua palhinha quase podre. No peristilo escuro há lama. As senhoras esperam, ao pé dos municipais formados, o chegar dos trens, expostas a um vento frio que toma aquelas paragens piores que a serra da Estrela!

Tudo aquilo é pequeno, provinciano, plebeu, e pelintra!

Não queremos acusar a empresa, não! Companhia comercial, está na lógica da sua acção. E ao mesmo tempo esforça-se, é evidente, por mostrar aqui as belas vozes, as ricas organizações musicais. Além disso ela não é culpada de que o teatro nacional pereça de penúria; nem é culpada de que a música seja, na civilização de um País, uma inutilidade sentimental. Também não construiu o teatro: recebeu-o assim do Governo; não tem obrigação de o pintar, nem de o forrar, nem de o dourar, nem de o tapetar. Como companhia comercial o seu único dever imprescritível, perante o júri comercial — é não falir.

Outro tanto não sucede ao Governo. Esse, no seu saco, não reúne uma única razão para subsidiar S. Carlos. Nem há ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola de artistas, nem um aproveitamento geral do País!

Não é também um centro de luxo, um orgulho de capital rica, uma maravilha da vida amplamente gozada. É um velho chique pelintra. E o Governo dá-lhe vinte e cinco contos — para o continuar a ser.


Diz-se que o Governo tem uma razão suprema para sustentar S. Carlos: — é que S.

Carlos Constitui uma distracção para a corte e para a diplomacia.

Quanto à corte... A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente! Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não, corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas, como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossas placas de 500 réis. A preocupação do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco contos anuais é prodigioso — para que a corte tenha onde passar a noite! Que a corte se distraia a si mesma. E o que faz cada um. A corte pode muito bem entreter a sua noite jogando as damas, ou lendo o Panorama. A corte ainda não leu o Panorama? Ah! pois aí está. Não imagina que fonte de distracções! A corte quer teatro? Que vá ao Salitre! Passa-se muito bem, a 1$500 cada camarote. A corte pode ali gozar a sua soirée regaladinha, e ir depois tomar sossegadamente o seu chá. De resto se a corte se distrai à nossa custa — então devemos intervir nos seus divertimentos. Se temos de pagar a iluminação, os cantores, as rabecas — que nos seja dado o direito de dispor e regularizar os seus prazeres. O poder moderador não poderá mais ir a S. Carlos sem pedir licença à opinião pública. E a opinião pública ficará no seu legítimo direito de responder: «Não senhor, o poderzinho moderador fica hoje em casa: ontem o poder foi ao teatro, hoje vai estudar a sua política: e nada de choramigar, senão ferramo-lo no quarto escuro!»

E quanto à diplomacia, não nos parece que o País tenha obrigação de a distrair. Os seus governos e os seus reis que a distraiam! Os srs. diplomatas que comprem soldadinhos de chumbo, ou que frequentem o Martinho! De resto a diplomacia é bem audaciosa em pretender divertir-se! Intenta ela estabelecer uma excepção insultuosa aos costumes nacionais? Aqui ninguém se diverte! Suas Ex.as estão extremamente enganados; vieram talvez para Portugal por equívoco! Tudo, entre nós, é grave. Quem vem para aqui é para a bela melancolia! Nós não gostamos de nos rir. Somos, de profissão, tétricos! Havíamos de nos rir, não era mau, e tanta tristeza por essa história atrás, e o pobre D. Sebastião nas areias de África, e o infame domínio de Castela, e outros lutos tão amargurados!... Nós trazemos na alma os crepes da nossa história. Dia e noite soluçamos, à beira do Tejo. A Lusitânia não é lugar de troça. Se VV. Exª’ se querem divertir e rir, tenham a bondade de ir para Mabille — ou pelo menos para Badajoz!


Perdoem estas longas páginas. A questão dos teatros tem uma importância pública. O Governo comete o contra-senso de subsidiar um teatro estrangeiro que é de luxo, e deixa ao abandono o teatro nacional que é de necessidade. O luxo que se sustente pelo luxo. S. Carlos sem subsídio que eleve os seus preços. Camarotes a três ou quatro libras, cadeiras a libra. Se ninguém quiser, que se feche S. Carlos. São algumas

árias de menos num palco, e alguma economia mais nas famílias. O teatro nacional que tenha um subsídio, se torne uma escola, um centro de arte, um elemento de cultura. Só isto é o senso, a verdade e a dignidade.

LI

Janeiro 1872.

Agitou-se, agita-se ainda, a questão da emigração. Há um homem, Mr. Charles

Nathan, que leva para Nova Orleães, com bons salários, todas as actividades que se ofereçam.

A emigração, entre nós, é decerto um mal.

Em Portugal quem emigra são os mais enérgicos e os mais rijamente decididos; e um país de fracos e de indolentes padece um prejuízo incalculável, perdendo as raras vontades firmes e os poucos braços viris.

Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a trasbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre. Não é o espírito de actividade e de expansão que leva para longe os nossos colonos, como leva os ingleses à

Austrália e à índia; mas a miséria que instiga a procurar em outras terras o pão que falta na nossa.

Em Portugal a emigração, tomando o rumo dos países estranh os, contraria a necessidade urgente de regularizar interiormente uma emigração de província a província.

Em Portugal a emigração não significa ausência — significa abandono. O inglês, por exemplo, vai à Austrália e à América fazer um começo de fortuna — para voltar a

Inglaterra, casar, trabalhar, servir o seu País, a sua comuna, trazendo-lhe o auxílio da vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho: para Portugal, o emigrante que volta, provido de boa fortuna, vem ser um burguês improdutivo, uma inutilidade a engordar.

Enfim a emigração é má, o Sr. Nathan funesto. Somente o nosso pesar é que o Sr.

Nathan, em lugar de alguns centenares dos nossos — não nos queira levar a nós todos.

Porque partimos já, sem hesitação, em massa. Fugimos das cebolas do Egipto. E, mais felizes que os israelitas, temos em lugar do incerto milagre do mar Vermelho — os excelentes vapores da Liverpool and Mississipi Steam Ship Company.

Vamos todos!

E estranho — que haja quem estranhe a emigração. Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa — citam-se, a par, a Grécia e Portugal. Nós, porém, não possuímos como a Grécia, além de uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal, e o museu humano da beleza da Arte. Apenas nos ufanamos do Sr. Lisboa, barítono, e do Sr. Vidal, lírico.

El-Rei D. Pedro V tinha lido o livro de E. About A Grécia contemporânea: e aquele rei que era um grave e fino espírito, e por vezes um subtil humorista — entretera-se anotando à margem o precioso livro de About. Onde estavam nomes dos estadistas da

Grécia, o rei punha os nomes correspondentes dos homens públicos de Portugal; onde vinham as narrações das indignidades políticas de Atenas, ele lançava à margem as correlativas indignidades políticas de Lisboa; onde About desenhava com a sua pena maliciosa, cáustica e tão profundamente francesa, um certo ministro da Fazenda que era ladrão — D. Pedro V escrevera ao lado: «Cá chama-se o senhor...». Figura no livro, como torpe, segundo o julgamento do excelente rei, muito homem hoje célebre na vida pública, com bons ordenados e autoridade. O livro assim anotado, mudados os nomes —

é a descrição mais exacta do estado de Portugal. Como deve ser infeliz um rei inteligente, quando, caído em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma pocilga política, não pode todavia entregar a Nação à experiência republicana, nem chamar a si o poder absoluto! Um tal rei, se não se converte por fastio num bom rei de Yvetot — termina sempre por morrer cedo.

Ora, na Grécia, o facto permanente é a emigração. E nós emigramos, pelo mesmo motivo que o Grego emigra — a necessidade de procurar longe o pão que a Pátria não dá.

O Grego que não tem indústria, nem agricultura, nem comércio, encontra-se ao entrar na vida sem colocação: — toma então a sua carabina e vai para as montanhas que Teócrito cantou, roubar viajantes ingleses, ou embarca no Pireu e emigra para Alexandria, para

Trípolis, para as escalas do Levante, para os estados barbarescos, para Marselha, para qualquer ponto onde haja algum pão a roer ou alguma piastra a ganhar.

Nós, que (bem a nosso pesar) não podemos ir roubar para as montanhas porque não temos a quem roubar — vamos procurar o Sr. Nathan.

E o Governo, a opinião, admiram-se! Mas onde pode a plebe ganhar o pão? A grande indústria, a dos tabacos, dá 250 réis de salário a um operário com família. As indústrias fabris são poucas, periclitantes, com interrupções constantes de trabalho. A indústria mineira está abandonada à exploração de companhias estrangeiras. A agricultura vive de rotina — empobrecendo a terra e empobrecendo o homem. Não temos piscicultura, nem silvicultura, nem indústria pecuária. O trabalhador dos campos vive na miséria, come sardinhas e ervas do campo: a maior parte anda à malta, trabalhando aos dias, errante de fazenda em fazenda, por 80 réis diários, nos tempos de salário. A usura e a agiotagem, unidas, exploram a gente do campo: os tributos são fortes, as vexações do fisco incessantes. Na província, por um imposto de 20 e 30 réis, atrasado e relaxado, vimos nós pagar 5 e 6 mil-réis, com custas, etc. Os pobres não tinham a quantia? penhora no casebre! Nas cidades o operário é vítima do monopólio — monopólio no pão, no bacalhau, no azeite. Não há entre nós uma escola teórica de aprendizagem! Que querem os senhores que se faça num país destes? Sair, fugir, abandoná-lo! O País é belo, sim, de deliciosa paisagem. Mas a política, a administração, tornaram aqui a vida intolerável. Seria doce gozá-la, não tendo a honra de lhe pertencer. Só se pode ser português — sendo-se inglês!

E no entanto, perante a emigração crescente, que faz o Estado, a imprensa, a opinião?

Interrompe-se um momento, e volta-se para os colonos, aplica-lhes a luneta — e diz àquela plebe esfaimada:

— O quê! quereis ir embora? Oh imprudentes. Tendes acolá os terrenos do

Alentejo!

Ora os terrenos, os eternos terrenos do Alentejo, são simplesmente um gracejo torpe.

Os terrenos do Alentejo, tais como estão, não produzem na generalidade senão bolota. E justamente o Governo, a imprensa e a opinião oferecem esses terrenos tais como estão. Conheceis brincadeira mais abjecta?

Uma população de trabalhadores, operários, proletários, pede trabalho — senão emigra. E o País exclama:

— Não emigreis, tendes acolá os terrenos do Alentejo — isto é, tomai vós, ó proletários, ó gente do campo, á pés descalços, os quatro ou cinco mil contos que tendes aí no bolso roto da jaqueta, associai-vos em grandes companhias, comprai máquinas e instrumentos, lavrai tantas léguas quadradas, arroteai, regai, abri poços, fazei aquedutos, estabelecei lezírias, levantai grandes fundos com o vosso grande crédito, tu Manuel da

Horta, tu José da Cancela, tu ferrador, tu jornaleiro — e e nriquecei!

O Estado, a imprensa, a opinião têm razão; — somente como o trabalhador não traz ali os quatro ou cinco mil contos na algibeira e não está para os ir buscar a casa, por causa da chuva — embarca para Nova Orleães.

Dizer a um homem: — Você quer ganhar dezoito vinténs por dia? Escusa de sair do País, gaste aí uns mil contos a arrotear terrenos incultos, e vem a ter de salário, não direi os dezoito vinténs justos, mas dezassete e meio com certeza...». Dizer isto é uma facécia impudica!

Tem sido de um alto grotesco este conselho que se dá de arrotear os terrenos do

Alentejo! Todo o mundo o dá, os jornais, os frequentadores da Casa Havanesa, os moços de café, e os poetas líricos. Arroteie-se o Alentejo! exclama cada um esfregando as mãos, e puxando o fumo do cigarro.

— Pois bem, meus senhores, sim, arroteemos! Mas então aproveitemos este grande impulso nacional, esta energia das forças vivas! E de passagem — conquistemos o Santo

Sepulcro, e mandemos varrer o Largo do Loreto!

Mas a melhor facécia tem vindo do sentimentalismo:

— O quê, colonos! ides deixar a terra do vosso berço, a verde alfombra, o escondido casal na encosta do monte, o grato rouxinol que...

Mágoas diz do seu penar?

Este argumento tão económico, tão positivo, tão firmado em cifras, abala extremamente os emigrantes — os quais provam a sua comoção, remando a toda a força para o paquete da Nova Orleães.

E no entanto, na praia, a imprensa suspira!

Um facto curioso é que a opinião que mais tem enrouquecido a bradar contra a emigração, tenta sobretudo provar que a emigração para Nova Orleães não dá as vantagens prometidas pelo engajador.

Por consequência o que se condena não é o facto da emigração, que se julga irremediavelmente necessário — mas o lugar para onde se emigra. A guerra é feita à

Nova Orleães, não ao abandono da Pátria. A Nova Orleães fez o que quer que fosse à opinião pública. O caso é que a opinião não traga a Nova Orleães. Talvez questões de mulheres, como se dizia na Grã-Duquesa de Gerolstein.

Que fazem com isto a imprensa e a opinião? Incitam à emigração. Como?

Acusando o pouco que os colonos vão ganhar na Nova Orleães, e fazendo cotejos que implicitamente lhes lembram o muito que ganhariam em São Paulo ou na Califórnia.

Não detêm a corrente — mudam-lhe a direcção. Isto é — dirigem a emigração, o que é uma maneira de a desenvolver, ainda que tomando para isso o caminho mais laborioso.

Mas, enfim, temos a opinião e a imprensa confessando que a vida é extremamente difícil em Portugal, e que a acção natural que todo o cidadão português deve ao seu País

— é abandoná-lo.

Entretanto que faz o Governo? Diz-se que o Governo recomendara às autoridades do País que impedissem a emigração. Se assim é, gostamos. Um Governo impedindo a acção de uma lei económica por um ofício — tinha-se visto nas anedotas do Tintamarre.

É-nos dado, a nós Portugueses, possuir o facto real, autêntico, referendado. Somente que processo emprega o Governo? Coloca-se entre o bote e o emigrante, gritando alti-vamente:

— «Não passarás!» Agarra-o pela gola da jaqueta, ganindo: «Faz favor de não se safar?» Que o Governo nos esclareça! Bom e querido Governo!... Diante deste grave problema, a emigração, tendo de examinar as condições do País agrícola, de estudar o meio de organizar o trabalho, de regularizar uma emigração interior, de empregar os braços ociosos, de converter em vantagem nacional a energia nativa da população, de obstar ao enfraquecimento do País pela perda da sua riqueza viva, diante destes problemas — o Governo volta-se para o regedor e, por toda a ideia, por toda a ciência, lança esta ordem:

«A respeito dos colonos, o melhor é fechá-los à chave!»

Como solução a um problema económico — o Governo acha uma fechadura. A governação do Estado torna-se questão de serralharia! Um trinco é um princípio: um parafuso uma instituição! Como vós sois grandes! Deixai-vos ver bem de frente... Ah! sois imensos! Mas Sancho Pança — era maior.

LII

Dezembro 1872.

O primeiro destes artigos, tão rudemente desmantelado pelo estimável Bem

Público — censurava o clero do Funchal «por ter impedido que um negociante fosse enterrado no cemitério público, sob pretexto de deveres religiosos mal cumpridos».

O Bem Público cora no seu rosto indignado e exclama: — «A censura tem o mesmo valor que se a dirigisse ao sr. duque de Palmela, por não consentir que no jazigo da sua família sejam sepultados os cadáveres das pessoas que falecem!»

Esta argumentação é vitoriosa, aniquiladora. Som ente nos parece que não há absoluta semelhança entre o cemitério público e o jazigo de família do sr. duque de

Palmela. Quando dizemos, ao estudar a nossa geografia, «Lisboa é capital de Portugal»

— não queremos inteiramente dar a entender que a capital de Portugal seja o Hotel dos dois irmãos unidos. E acrescenta o Bem: — «Se um negociante, enquanto vivo, não quer ter nada com as orações, com as assembleias religiosas, como pois condená-lo depois de morto a essas orações e assembleias que detestava em vivo?» O que equivale a dizer: —

Se esse negociante não queria ouvir missa, nem assistir ao lausperene, nem jejuar enquanto vivo — como condená-lo, depois de morto, a estar de joelhos ao lausperene e a comer bacalhau à sexta-feira?

Sim, Bem Público, estamos absolutamente de acordo! Um homem que gosta de comer à sexta-feira rosbife não pode, sem tirânica vileza, ser obrigado a ir para debaixo da terra, amortalhado, dentro do seu esquife, comer à sexta-feira o detestado rodovalho!

Sim, Bem Público! sim, amigo! sim, honrado colega! A verdade é essa! disseste-la com boca melíflua e sábia! Deve-se excluir do cemitério todo o homem que não ouviu missa em vivo... E lá o explicas, com profundidade no dizer e alto critério no pensar: — Porque não se pode obrigar esse homem a ouvir missa depois de morto! — Sim, amigo, tu o disseste, tu, de juvenil fé e de discreto lábio.

Depois o Bem, num outro período austero, pretende combater a afirmação das

Farpas — «que o cemitério não pertence aos padres, pertence aos cidadãos». Para aniquilar esta ideia o Bem afirma que poderia dar uma longa razão, e explica qual é essa razão. Mas acrescenta: «Não a daremos, porque seria insensata» (Bem Público, pág.

188, linha 25). Não, Bem, não, tu não és insensato! não te calunies, amigo, não te humilhes, Bem! Não rojes assim uma cabeça penitente no pó igualitário do macadame!

Não, tu até tens boa ortografia! Até tens bem boa forma de letra! Se quisesses, até eras subtil! É que não queres! Se tu quisesses!

E continua o estimável Bem argumentando. As Farpas disseram: — «Os cemitérios têm a sua origem na higiene, na polícia, na moral, na vida municipal: não têm a sua razão de ser na teologia». E o Bem exclama: — «Pois dizendo tal caem num erro histórico: os cemitérios têm a sua razão de ser na teologia: basta o nome e a história para prová-lo». Mas então uma consideração pavorosa acode: a teologia é pelo menos — deve sabê-lo o Bem — posterior aos primeiros séculos do cristianismo. Começa com as escolas, e com os doutores. Ora se os cemitérios datam apenas deste tempo, segundo afirma o Bem Público, se só têm a sua razão de ser desde que a teologia teve a sua razão

O excelente jornal, o Bem Público, num artigo amargo e piedoso, trabalhado com doçuras de sacristia e repelões de sala de armas, de resto subtil e curioso — dá-nos a honra de sacudir, com a sua pesada mão católica e romana, três pobres artigos das

Farpas. de dominar — o que acontece? É que todos os mortos, desde Nemrod, estiveram aos milhares e aos milhares, enfastiados, de braços cruzados, esperando que a teologia lhes permitisse deitarem-se nos seus sepulcros. Horrorosa antecâmara! Esperaram séculos! E vinham mais, e mais, e mais! Em que se entretiveram tanto tempo, envoltos nos seus sudários, impacientes pelo seu enterro? Oh! sábio Bem Público, diz-no-lo, tu que o sabes! Se os homens só foram enterrados desde que a teologia se fixou em grossos tornos — em que lugar tenebroso aguardaram o seu dia de sepultura os primitivos árias, os luminosos índios, o persa trabalhador, o grego erudito e subtil, os milhares de habitantes do império romano, as raças que viveram junto ao Nilo, e os povos bárbaros que habitavam o norte da Europa, e todos os habitantes de todos os continentes, de todos os séculos? Di-lo, sábio Bem! Será verdade que eles passeavam pelo éter, fumando o seu cigarro — à espera que Santo Agostinho nascesse? Como tu és instrutivo, oh Bem! Só há cemitérios onde há teologia católica. E corno explicas então os cemitérios modernos de Constantinopla e do Cairo, e os de todos os países maometanos, e os de todos os outros países onde floresce alguma das 1 religiões que florescem na Terra, além da católica? Explica isto bem, Bem!

Mas o piedoso jornal exclama ainda: «Os católicos não impedem que os que têm pouca religião ou nenhuma, sejam enterrados: porque não estabelecem as câmaras municipais, para esses, cemitérios especiais?» Parece-nos prudente este alvitre do Bem: estabelecer cemitérios para quem tem muita religião: outros para quem tem bastante: outros para os que possuem alguma: outros para os que alardeiam pouquíssima: outros para os que não apresentam nenhuma. Enfim, um cemitério para cada medida! Um cemitério aos gramas! Ah Bem, como tu vais mal!

O segundo artigo das Farpas censurava que «os missionários vendessem cartas da Virgem Maria a diversos devotos».

O Bem Público diz que nós agitamos argumentos bicórneos. Mas não combate, nem aprecia, nem sequer indica — esses argumentos. É timidez? É desdém? É pudor?

Somente acrescenta: — «A história é falsa: 1º porque os jornais de Braga não falaram em tal...»

Mas, querido Bem, os jornais de Coimbra, os jornais do Porto, e os jornais de

Lisboa, que são liberais, contaram-no. Vale alguma coisa que o não referissem os jornais de Braga, que são ultramontanos? E esses mesmos não estão anunciando a cada momento livros que se vendem para evitar o fim do mundo, cartas vindas do Céu, relíquias achadas, etc.?

Diz mais o Bem: «2º porque em Braga não há missionários!» Como assim!

Tresloucas, Bem! Não há missionários em Braga? Diz antes, amigo, que não há turcos em Constantinopla! que não há água nos rios! que não há estrelas no céu! que não há sons na música! Ah querido! Não há missionários em Braga? Onde os há então, em

Berlim?

No terceiro artigo, as Farpas tinham censurado o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, por ter proibido que as mães levem os filhos à Igreja! O Bem Público escandaliza-se e grita: — «O que iam as crianças fazer aí? Se as mães queriam ir à missa, e não podiam deixar as crianças em casa — que não fossem à missa, que estão em primeiro lugar os deveres da lactação, que os desejos da devoção

Esplendidamente bem dito! Mas quem o disse? Foi Michelet decerto, o iniciador naturalista da educação anticatólica? Foi Proudhon talvez, o rude inimigo da Igreja?

Não, meus bons senhores! não, Nação! não, Braga! Foi o Bem Público, jornal católico, romano, devoto, piedoso, ungido em água benta! Os deveres da lactação primeiro que os desejos da devoção! Mas é perfeitamente revolucionário! A lactação antes da devoção — isto é, a natureza antes do misticismo, a razão antes da fé, o dever humano e consciente antes do dever divino e transcendente, o raciocínio antes do dogma, a higiene antes do Evangelho, a mãe antes da devota, o preceito naturalista antes da regra da

Igreja, o homem antes de Deus! Bravo, Bem Público! Segundo tu, o preceito, a missa, a

Igreja, são coisas secundárias, indiferentes, para quando houver vagar. Objecto de luxo, para os dias de ócio, uma forma do teatro aos domingos! «Que farei hoje, irei à igreja ou

à Rua dos Condes?» De modo que só quando a mulher tiver amamentado seu filho, arranjado a sua casa, cozinhado o seu jantar, cumprido todos os seus deveres humanos, e se achar numa hora desocupada e vaga — é que deverá ir à missa? Dizes excelentemente! Mas então repara bem, ó Bem. Se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico — rachas de alto a baixo o catolicismo: se a mãe deve amamentar antes de rezar, o homem deve obedecer à sua razão consciente antes de obedecer ao preceito religioso: tens a análise, a liberdade religiosa, a reforma, a revolução. Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo! O Bem

Público, estás pois assim naturalista e ateu? És então um falso devoto? Por cima da tua sotaina de sacristão pões uma faixa escarlate de membro da comuna? O Bem! Espalhas tu água benta ou petróleo? Treme, desgraçado! enquanto a Nação tua irmã, enquanto o

Diário Nacional, a Crença, estarão muito contentes no Paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança por teres renegado a fé, errarás, como uma sombra aflita, na vastidão do céu negro, através de interminável dor, aos encontrões com as sombras condenadas de Sardanápalo, o pagão, e do aborrecido Pilatos!

Ah! Bem Público, excêntrico maganão, conserva-te quieto na tua doce sombra!

Reza, jejua, canta no coro, usa cilício — mas deixa-nos em paz.

Contenta-te em ser um jornal boa pessoa, pesadote e pacatote — e a ter o inteiro aplauso de antigos egressos. Mas não venhas interpor-te no nosso caminho. Toma ao teu canto o teu rapé, e usa em silêncio a tua flanela. E serás grande, ó Bem! ó bom Bem! á

Bem bom! Bum!


Novembro 1871.

Em Abrantes - segundo informações de um amigo nosso, jurisconsulto ilustre - sucede este estranho caso:

Pela lei de 10 de Julho de 1843 só são obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercem a sua indústria em água salgada - e naquela parte dos rios somente até onde cheguem as marés vivas do ano.

Ora em Abrantes entende-se de um modo largamente torpe esta acção do fisco sobre a pesca. Vinte homens, extremamente miseráveis, que pescavam no rio - onde não podiam chegar marés vivas - e alguns mesmos que de todo não pescavam, foram obrigados a pagar o imposto do pescado! Uns não se defenderam desta extorsão por pobríssimos: outros não se defenderam em virtude da ideia popular na província-deque, com o fisco, paga-se sempre e nunca se questiona, porque naturalmente depois é-se obrigado a pagar mais.

Isto constitui puramente, numa linguagem talvez plebeia, mas exacta, um roubo.

Obrigar um pescador do rio a pagar o imposto do pescador do mar, é (além de uma confusão deplorável do velho e respeitável Oceano com qualquer fio de água que murmura e foge), um sistema extremamente parecido com o que empregam as pessoas estimáveis que nos metem a mão na algibeira e levam para casa o nosso lenço. Nós não desejamos embaraçar os negócios fiscais. Somente nos parece que impor a qualquer cidadão, mesmo quando não pesque, o imposto do pescado, é um expediente sumamente complicado. E o fisco, que deve ser parcimonioso do seu tempo e dos seus recursos, tem um meio mais singelo e mais expedito, que consiste em se aproximar de qualquer, e gritar-lhe pondo-lhe uma carabina ao peito:

— Passe para cá o que leva na algibeira!

Estes processos do fisco, que se repetem arbitrariamente em toda a província e que são sem dúvida um dos recursos do Estado, parecem-nos imprudentes - porque estabelecem confusão. Há por essas estradas isoladas, em certas vielas de cidades mal policiadas, nos pinheirais, nos sítios ermos e amados da sombra, uma espécie de cida-dãos, de resto singularmente diligentes, que se deram por missão suspender por um momento as pessoas que passam, e pela maneira mais delicada tirar-lhes o dinheiro, os relógios e outras insignificâncias. Por seu lado o fisco costuma deter os cidadãos, e sob qualquer pretexto (como por exemplo no caso de Abrantes, por serem pescadores de água salgada) exigir-lhes uma quantia e entregar-lhes um recibo. Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, oferecem uma tal similitude que pedimos ao Governo que distinga por qualquer sinal (um uniforme por exemplo), estas duas estimáveis profissões; para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social, confundindo o facínora e o funcionário - apitando contra o fisco e pedindo humildemente recibo ao salteador!


Novembro 1871.

Este mês a opinião preocupou-se com o que se chamou a greve de Oeiras.

Parecia realmente indecoroso que Lisboa, já civilizada, com teatro lírico e outros regalos de capital eminente, não tivesse esse chique social - a greve! Oeiras, com uma dedicação amável, forneceu-lhe esta elegância. Oeiras deu a greve. Alguns estadistas puderam ter ocasião de comentar a nossa última greve, e de falar no terrível proletariado.

Somente esta greve de Oeiras apresenta uma novidade excêntrica.

O fabricante diz:

— Eu dou a esses operários indignos, que abandonaram a minha fábrica e se puseram em greve, 4$000 réis por semana. Vinde!

E os operários respondem:

— Não, não, isso não! Só voltamos ao trabalho se nos garantirem por semana 3$600!

Confessem que é para empalidecer de confusão. Não se protesta aqui contra a avareza do fabricante, protesta-se contra a sua generosidade: o operário resiste a ganhar: só trabalha se lhe diminuírem o salário: tem avidez de sacrifício, e deseja antes de tudo sofrer fome! Que mistério é este? Ei-lo desvendado:

Como sabem, há dois trabalhos essenciais no fabrico do lanifício: preparar a teia, o que leva uma semana, e produzir o tecido, o que gasta outra semana. Ora o fabricante descontava na semana do tecido uns tantos por cento do salário; e na semana do preparo levava a sua habilidade a descontar o salário todo.

De sorte que havia semanas gratuitas. E justamente os operários pedem agora que lhes paguem menos cada semana, mas que lhes paguem as semanas todas.

O fabricante exclama:

— 4$000 réis cada semana que tecerdes!

E os operários replicam:

— 3$600 réis cada semana que trabalharmos. Porque preparar a teia é tanto trabalho como tecê-la.

Tal é esta greve original, que não descrevemos com a sua precisão técnica, para não dar a estas páginas o aspecto de um tratado sobre lanifícios.

O que temos pois aqui, na realidade, é um fabricante que diminui arbitrariamente o salário dos seus operários. Estamos em frente de uma greve do capital! Ora abrindo o nosso admirável Código Penal, encontramos estes dizeres no Capítulo XI, secção 1ª, artigo 277º:

«Será punida com a prisão de um a seis meses, e com a multa de 5$000 a 200$000 réis, toda a coligação entre aqueles que empregam quaisquer trabalhadores, e que tiver por fim produzir abusivamente a diminuição do salário, se for seguida do começo de execução.»

O código fala em coligação. Aqui houve só um fabricante; mas o que é crime para muitos indivíduos coligados, é decerto crime para o indivíduo isolado. O número não faz a culpa. O crime recai sobre o facto, não sobre o ajuntamento. O código define crime «o facto declarado punível pela lei penal» - e não acrescenta «segundo o maior ou menor número de pessoas».

De modo que a famosa greve de Oeiras se reduz simplesmente a isto:

Um fabricante que diminuiu abusivamente o salário dos seus operários - e que cai portanto sob os rigores do artigo 277º do Código Penal.

Até a greve de Oeiras! Ah! não podemos possuir uma glória, um heroísmo, um chique, sem que não se descubra, daí a dias, que chique, heroísmo, ou glória, são casos burgueses que pertencem à Boa Hora! Vergamos sob o destino de ser medíocres! Todo o País tem uma revolta -nós temos a índia! Todos têm uma expedição - nós temos o

Bonga! Todos têm um poeta -nós temos o Sr. Vidal! Fazíamos tanto empenho nesta greve que nos nobilitava, nos revestia de uma atitude civilizada, nos dava a esperança de abrigarmos enfim no nosso seio, autêntica, legítima, essa grande elegância revolucionária, a Internacional! - e vê-se que nos achamos apenas com um caso de polícia correccional! Um a seis meses de prisão, que miséria! Ah! evidentemente só gozamos duas glórias incontestáveis, garantidas, à mão, nossas, só nossas - o Sr.

Lisboa, e o Sr.... Suspendamos, por Deus!... e aquele, de quem um juramento terrível e sacrossanto nos veda pronunciar o nome!


O teatro em Portugal vai acabando. Por dois motivos. Primeiramente pelo abaixamento geral do espírito e da inteligência entre nós: e depois pelas condições industriais e económicas dos teatros.

Esta verdade ressalta dos próprios cartazes. O Ginásio, o Príncipe Real, a Rua dos Condes, dão comédias traduzidas dos velhos repertórios estrangeiros, ou dramalhões alinhavados exclusivamente para a estulta plebe (como diziam nossos avós), complicados de incêndios, naufrágios, desabamentos, maravilhas baratas de velho cartão, entre cenários desbotados. - Somente acontece que as comédias estrangeiras, concebidas para a fina interpretação de actores educados, encontram aqui uma interpretação grosseira e falta de ofício - e não podem interessar: e os dramalhões, que vivem apenas dos esplendores da decoração, encontrando aqui telas roídas da humidade, fatos de paninho remendado, um papelão apodrecido, uma miséria que os apaga e os apelintra - não podem atrair. Portanto estes teatros arrastam uma vida difícil.

A Trindade encetou a ópera cómica. Mas naturalmente, com a legítima urgência do ganho, começou pelos melhores autores da escola francesa - Offenbach, Hervé,Lecoq, etc. Fatigou este repertório galante, espremeu a quantidade de libras que ele continha - e, como as óperas cómicas não se parecem com as ostras, que quanto mais se procuram mais abundam, sucede que a Trindade está nas condições de um preso que devorou a sua ração. A Trindade não tem que dar a um público enfastiado que pede música acessível, e facilmente gorjeada. Precisa recorrer a zarzuelas que não oferecem a cintilação alegre da verve francesa, se apresentam com ambições de arte italiana, e descontentam. Além disso o repertório estrangeiro é feito pelas boas vozes, educadas, criadas nos conservatórios, formadas pelo gosto e pela tradição dos teatros especiais. De sorte que a Trindade necessita escolher operetas que possam facilmente atravessar as estreitas gargantas nacionais; e no vasto repertório estrangeiro tem de preferir as operetas fáceis, as «de meia garganta)), as operetas constipadas. Fica assim reduzido o número a cinco ou seis imbróglios espanhóis, debilmente instrumentados, a que a Trindade se vai amparando como a muletas provisórias. Opera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a criação musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos. Ora a Trindade não poderia fazer facilmente representar o hino da Carta. A Carta, bem basta que a suportemos em código, não devemos sofrê-la em couplet. Seria tão impudico como sapateá-la em danças. E verdade que não pareceria estranhável que a Carta passasse a ser uma ópera cómica, num país em que as instituições são tiradas do Barba Azul e da Grã-Duquesa.

D. Maria é a jangada da Medusa da arte nacional. Aí sobrenadam, num esforço heróico, os restos da velha geração artista. Actores de vontade e de talento, um director excelente - lutam com a escassez da literatura, com a inércia do público, com as dificuldades económicas. E verdadeiramente uma jangada - admirável pelo esforço, incompleta pela organização: boa para lutar, imperfeita para navegar.

S. Carlos, esse, chilreia.

Esta decadência deplorável tem causas diferentes:

A primeira é a própria literatura dramática. Os escritores retraíram-se inteiramente do teatro. Não por o ganho ser diminuto, como se diz, porque no jornal e no livro o ganho não seduz com cintilações de montes de ouro. A principal razão está no feitio da nossa inteligência. O Português não tem génio dramático, nunca o teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reproduzem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que unia personagem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos - e a acção torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas: o drama de efeito, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:

— Ah! Céus! E ele! Matei meu filho! Oh!»

Acresce a isto a farsa com os velhos motivos de pilhéria lusitana, o empurrão, o tombo, a matrona bulhenta, o general de barrete de dormir, etc. E é tudo! Sentimentos, caracteres solidamente desenhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos sociais concretizados numa acção, a natureza, a realidade, a observação da vida - isso encontra-se ainda menos num drama do que numa corrida de touros.

Outra causa de decadência: o público. O público vai ao teatro passar a noite. O teatro entre nós não é uma curiosidade de espírito, é um ócio de sociedade. O lisboeta, em lugar de salões, que não há - toma uma cadeira de plateia, que se vende. Põe a melhor gravata, as senhoras penteiam-se, e é uma sala, uma soirée, um raout, ou mais nacionalmente uma assembleia. Com esta grande vantagem sobre um salão: - não se conversa. Conversar para o Português constitui unia dificuldade, um transe: é o Cabo das Tormentas dos modernos Lusíadas. Conversar, entreter, mover o alado e fino batalhão das ideias, todo o português imagina que esta maravilha só se pode dar nos romances de franco. Daí vem para o português elegante o hábito de se encostar nas salas, à ombreira da porta, com aspecto fatal. Conversar! os homens tremem e as senhoras empalidecem. No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toilette, namorar, passar a noite - e não se conversa. Em Portugal ninguém recebe e ninguém é recebido, porque não há dinheiro, não há sociabilidade, e antes de tudo preferimos o doce egoísmo aferrolhado e trancado do cada um em sua casa. O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado - e comprado no bilheteiro. De resto o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna-se secundário. Requer-se apenas uma certa moralidade física: - que se não dêem beliscões nas ingénuas. A moral do drama, da acção, dos sentimentos não se percebe ou não se exige. Um beijo que estala sobressalta, um adultério que se idealiza encanta. Uma das condições é que as actrizes se vistam bem, com modas novas, para que nos camarotes as senhoras observem, discutam as rendas, as sedas, as jóias e as toilettes. Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre - é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial e burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama - é o tédio da casa que o repele.

Outro motivo de decadência: os actores. Os actores em geral são maus, com excepção de 4 ou 5 individualidades inteligentes e estudiosas que progridem. São maus - não tanto por incapacidade própria, como pelas condições do seu destino. Eles desgraçadamente em Portugal não pertencem a uma arte, pertencem a um ofício. Que hão-de fazer? - Não têm estudos, nem escola, nem incentivo, nem ordenados, nem público. São actores como outros são empregados públicos; recitam prosa à luz do gás, num palco, como outros expedem ofícios numa sala abafada. Questão de ganhar um ordenado, de se sustentar, de se vestir! A arte, o estudo entram aqui numa proporção ínfima. O artista que, pelo precário estado da sua arte, tem de pensar em comer (quando não é extraordinariamente dotado, porque então a necessidade retempera-lhe a habilidade), torna-se fatalmente um homem de ofício que necessita ganhar; em tal caso o pintor ilustra almanaques, o escultor faz jarras de porcelana, o poeta redige notícias, o actor atabalhoa papéis. Os nossos grandes actores, Santos, Rosa, além da sua organização artística, formaram-se quando o teatro normal (pelo seu regulamento) os punha ao abrigo da luta da vida, e lhes dava os grandes vagares do estudo. No meio da oscilação das empresas, das quebras de companhias, da dispersão dos centros dramáticos - o artista não pode ter os nobres vagares necessários à cultura artística. As dificuldades da vida embaraçam as preocupações da inteligência.

Outro motivo da decadência dos teatros: a pobreza geral. Não há dinheiro. Lisboa é uma terra de empregados públicos. A carestia da vida, os altos alugueres, o preço do fato, uma certa necessidade de representação que domina a gente de Lisboa, tudo isto deixa a bolsa cansada, incapaz de teatros. O teatro é caro. Uma noite de teatro pode levar a uma família 3$000 réis de camarote, 1$500 de luvas, 1$500 de carruagem no Inverno - ao todo 6$000 réis. 6$000 é a quinta parte de muitos rendimentos mensais - da pluralidade dos rendimentos. Por consequência a afluência aos teatros é pequena. Naturalmente, com a sala deserta, o cofre do teatro não se enche. Daí dívidas, complicações, e falências.

Tal é o perfil do estado geral dos nossos teatros, a largos traços.

Perante esta situação ocorre naturalmente esta pergunta: qual é a atitude do Estado, respectivamente aos teatros?

É esta:

O Governo não dá nada aos teatros nacionais;

E dá 25 contos a S. Carlos!

Ora que o Governo nos responda: - «É o Governo obrigado a auxiliar e a subsidiar a arte teatral?»

— Não. - Então para que dá subsídio a S. Carlos?

— É. - Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional?

Se o Governo entende que deve abandonar à indústria, à iniciativa particular, à concorrência, à espontânea acção das vocações, a arte dramática - para que faz uma excepção ao teatro italiano, protegendo-o?

Se o Governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civilização e de cultura moral - então para que faz uma excepção ao teatro português, desamparando-o?

Que o Governo pois se decida:

Ou se declara indiferente e desinteressado em questões de teatro - e então fecha igualmente os seus cofres aos galãs e aos tenores;

Ou se declara responsável pelo desenvolvimento deste progresso intelectual - e então dá um subsídio ao teatro nacional.

Nós não temos opinião. Compreendemos igualmente o Governo protegendo o teatro com subsídios, ou o Governo deixando o teatro à iniciativa industrial e literária.

O que condenamos, e toda a pessoa sensata o condenará connosco, é que, com uma lógica torpemente offenbáquica, o Governo diga:

— Eu nada tenho com a arte teatral, e por consequência dou 25 contos ao teatro italiano.

Ou diga:

— Eu sou o protector da arte teatral, e por consequência pretendo que o teatro nacional se feche de penúria.

Ora a verdade é esta:

O teatro nacional é uma necessidade inteligente e moral - e o teatro italiano é uma inutilidade sentimental e luxuosa.

Quais seriam as vantagens de um teatro normal?

O teatro normal seria a criação de uma literatura dramática, isto é, o enriquecimento do nosso património intelectual - educação permanente no presente, elemento histórico para o futuro. Porque o drama hoje, como toda a obra de arte, tem dois alcances: pelos sentimentos, ideias, costumes, instituições contemporâneas que estuda e critica, é no seu tempo uma lição para o critério - e no futuro um documento para a história.

O teatro normal seria a fundação de uma escola de actores, como a Comédia Francesa, fortemente educada, conservando uma tradição, formando discípulos, centro vital das artes teatrais.

O teatro normal seria o deperecimento providencial das pequenas comédias eróticas, que constituem a aguardente moral das pessoas que não vão à taberna; das mágicas que não passam de um mau acompanhamento da digestão e de uma escola de embrutecimento; dos dramas sentimentais que servem para excitar os sentidos da bur-guesia casada, e formam uma espécie de comunicação cómoda com o vício sem se descer de um camarote! Seria um constante apelo da atenção às coisas do espírito; a subtracção de uma população ociosa e enfastiada às casas de jogo e aos lupanares clássicos; uma influência perdurável, penetrante e subtil nos costumes; uma forte educação pela imaginação; enfim um elemento sadio na nossa vida, insubstituível e indispensável, porque prende com o que uma cidade tem de mais definitivo e de mais determinante - a sua inteligência e a sua moral.

O teatro normal não seria um regalo exclusivo de Lisboa; faria participar todo o

País no desenvolvimento da sua arte. Os actores formados aqui iriam constituir pequenos e bons conjuntos teatrais na província; e em certos meses a companhia-modelo visitaria Porto, Braga, Coimbra, Viseu, as principais cidades, levando ao público o encanto do seu repertório superior e aos artistas os exemplos da sua arte perfeita.

Isto seria, a largos traços, o teatro normal.

O teatro de S. Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvá-la?

O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário! É uma fábrica de reputações para os artistas estrangeiros. Gastamos dinheiro, nós! para que o Sr. Fulanini vá ganhar mais dinheiro para Sampetersburgo ou para Covent Garden, ele!

O teatro de S. Carlos não constitui um elemento de civilização, mas de decadência. Se alguma coisa debilita o carácter e enfraquece o espírito - é a influência da música italiana, sentimental, amorosa, langorosa, mórbida. Uma ópera é um lupanar. Cada dueto, cada alegro, uma excitação erótica. Imagine-se uma menina ouvindo durante um ano aquela ladainha de sensualidades que se chama - Lúcia, Norma, Traviata, Maria de Rohan, Favorita, Baile de Máscaras, etc.? O adultério idealizado, o amor como a coisa superior e única da existência, o dever considerado burguês, a honestidade mal portée; e toda aquela moral suspirada, gemida, arrastada na dilacerante agonia da rabeca, assobiada irritantemente na flauta, modulada aereamente na harpa, soluçada de um soluço inteiro pelo demónio invisível que habita o violoncelo, tornada acre e triunfante nos instrumentos de metal, roncada no rabecão; e sobre esta massa de voluptuosidade instrumentada, as adúlteras, os galãs, os amorosos, todo um mundo melodioso e devasso, que geme, arqueia os braços, se torce nos êxtases da paixão, entra pelas portas das alcovas, semeia tudo de beijos, e morre de amor, romanescamente, numa ária dolente! Ah! nós não somos bárbaros. Estimamos a música. Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir e a fingir. De resto Donizetti, Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles, respeitamo-los como ideias que cantam - estes detestamo-los como erotismos que arrulham.

O teatro de S. Carlos não dá participação a todo o País da sua arte. Bem ao contrário, é um teatro exclusivo, de um público limitado, escolhido, sempre igual. O

País paga para que este público goze. Para que nós tenhamos árias, comem os lavradores sardinhas!

Enfim, nem criação de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem interesse geral do País.

Para que serve S. Carlos? É um luxo, dirão. Sim, compreendemos... Mas é ao menos, realmente, S. Carlos um teatro elegante, um centro belo e fino de vida rica?

Ah! por Deus, não! Começa logo pela mise-en-scène. Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que mise-en-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente, bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia... Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços nus mal lavados, eles com as botas enlameadas, soltam, num gesto dormente, uma voz por onde têm passado todas as pateadas desde 1836 - o que lhe fez perder a frescura. Nos camarotes, o veludo dos parapeitos, aos farrapos, deixa sair uma clina fétida: o papel está esgaçado, as fechaduras quebradas. Uma iluminação funerária entenebrece a sala; os velhos dourados sujos têm o aspecto melancólico de adornos de capelas antigas; os brancos rivalizam com rostos de carvoeiros. Os corredores, com os tapetes comidos dos ratos, fofos de pó, uma luz soturna e abafada, lembram o cárcere, o portal de casa de jogo. Na superior, cadeiras de palhinha áspera raspam como uma navalha de barba o pano das casacas; e o chão tem tanto asseio que os frequentadores, antes de saírem para a rua, limpam os pés nos capachos por compaixão com os varredores. Na geral bancos estreitos, como de réus, ouriçam a sua palhinha quase podre. No peristilo escuro há lama. As senhoras esperam, ao pé dos municipais formados, o chegar dos trens, expostas a um vento frio que toma aquelas paragens piores que a serra da Estrela!

Tudo aquilo é pequeno, provinciano, plebeu, e pelintra!

Não queremos acusar a empresa, não! Companhia comercial, está na lógica da sua acção. E ao mesmo tempo esforça-se, é evidente, por mostrar aqui as belas vozes, as ricas organizações musicais. Além disso ela não é culpada de que o teatro nacional pereça de penúria; nem é culpada de que a música seja, na civilização de um País, uma inutilidade sentimental. Também não construiu o teatro: recebeu-o assim do Governo; não tem obrigação de o pintar, nem de o forrar, nem de o dourar, nem de o tapetar. Como companhia comercial o seu único dever imprescritível, perante o júri comercial - é não falir.

Outro tanto não sucede ao Governo. Esse, no seu saco, não reúne uma única razão para subsidiar S. Carlos. Nem há ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola de artistas, nem um aproveitamento geral do País!

Não é também um centro de luxo, um orgulho de capital rica, uma maravilha da vida amplamente gozada. É um velho chique pelintra. E o Governo dá-lhe vinte e cinco contos - para o continuar a ser.

Diz-se que o Governo tem uma razão suprema para sustentar S. Carlos: - é que S.

Carlos Constitui uma distracção para a corte e para a diplomacia.

Quanto à corte... A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente! Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não, corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas, como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossas placas de 500 réis. A preocupação do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco contos anuais é prodigioso - para que a corte tenha onde passar a noite! Que a corte se distraia a si mesma. E o que faz cada um. A corte pode muito bem entreter a sua noite jogando as damas, ou lendo o Panorama. A corte ainda não leu o Panorama? Ah! pois aí está. Não imagina que fonte de distracções! A corte quer teatro? Que vá ao Salitre! Passa-se muito bem, a 1$500 cada camarote. A corte pode ali gozar a sua soirée regaladinha, e ir depois tomar sossegadamente o seu chá. De resto se a corte se distrai à nossa custa - então devemos intervir nos seus divertimentos. Se temos de pagar a iluminação, os cantores, as rabecas - que nos seja dado o direito de dispor e regularizar os seus prazeres. O poder moderador não poderá mais ir a S. Carlos sem pedir licença à opinião pública. E a opinião pública ficará no seu legítimo direito de responder: «Não senhor, o poderzinho moderador fica hoje em casa: ontem o poder foi ao teatro, hoje vai estudar a sua política: e nada de choramigar, senão ferramo-lo no quarto escuro!»

E quanto à diplomacia, não nos parece que o País tenha obrigação de a distrair. Os seus governos e os seus reis que a distraiam! Os srs. diplomatas que comprem soldadinhos de chumbo, ou que frequentem o Martinho! De resto a diplomacia é bem audaciosa em pretender divertir-se! Intenta ela estabelecer uma excepção insultuosa aos costumes nacionais? Aqui ninguém se diverte! Suas Ex.as estão extremamente enganados; vieram talvez para Portugal por equívoco! Tudo, entre nós, é grave. Quem vem para aqui é para a bela melancolia! Nós não gostamos de nos rir. Somos, de profissão, tétricos! Havíamos de nos rir, não era mau, e tanta tristeza por essa história atrás, e o pobre D. Sebastião nas areias de África, e o infame domínio de Castela, e outros lutos tão amargurados!... Nós trazemos na alma os crepes da nossa história. Dia e noite soluçamos, à beira do Tejo. A Lusitânia não é lugar de troça. Se VV. Exª’ se querem divertir e rir, tenham a bondade de ir para Mabille - ou pelo menos para Badajoz!

Perdoem estas longas páginas. A questão dos teatros tem uma importância pública. O Governo comete o contra-senso de subsidiar um teatro estrangeiro que é de luxo, e deixa ao abandono o teatro nacional que é de necessidade. O luxo que se sustente pelo luxo. S. Carlos sem subsídio que eleve os seus preços. Camarotes a três ou quatro libras, cadeiras a libra. Se ninguém quiser, que se feche S. Carlos. São algumas árias de menos num palco, e alguma economia mais nas famílias. O teatro nacional que tenha um subsídio, se torne uma escola, um centro de arte, um elemento de cultura. Só isto é o senso, a verdade e a dignidade.


Janeiro 1872.

Agitou-se, agita-se ainda, a questão da emigração. Há um homem, Mr. Charles

Nathan, que leva para Nova Orleães, com bons salários, todas as actividades que se ofereçam.

A emigração, entre nós, é decerto um mal.

Em Portugal quem emigra são os mais enérgicos e os mais rijamente decididos; e um país de fracos e de indolentes padece um prejuízo incalculável, perdendo as raras vontades firmes e os poucos braços viris.

Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a trasbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre. Não é o espírito de actividade e de expansão que leva para longe os nossos colonos, como leva os ingleses à

Austrália e à índia; mas a miséria que instiga a procurar em outras terras o pão que falta na nossa.

Em Portugal a emigração, tomando o rumo dos países estranhos, contraria a necessidade urgente de regularizar interiormente uma emigração de província a província.

Em Portugal a emigração não significa ausência - significa abandono. O inglês, por exemplo, vai à Austrália e à América fazer um começo de fortuna - para voltar a

Inglaterra, casar, trabalhar, servir o seu País, a sua comuna, trazendo-lhe o auxílio da vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho: para Portugal, o emigrante que volta, provido de boa fortuna, vem ser um burguês improdutivo, uma inutilidade a engordar.

Enfim a emigração é má, o Sr. Nathan funesto. Somente o nosso pesar é que o Sr.

Nathan, em lugar de alguns centenares dos nossos -não nos queira levar a nós todos.

Porque partimos já, sem hesitação, em massa. Fugimos das cebolas do Egipto. E, mais felizes que os israelitas, temos em lugar do incerto milagre do mar Vermelho - os excelentes vapores da Liverpool and Mississipi Steam Ship Company.

Vamos todos!

E estranho - que haja quem estranhe a emigração. Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa - citam-se, a par, a Grécia e Portugal. Nós, porém, não possuímos como a Grécia, além de uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal, e o museu humano da beleza da Arte. Apenas nos ufanamos do Sr. Lisboa, barítono, e do Sr. Vidal, lírico.

El-Rei D. Pedro V tinha lido o livro de E. About A Grécia contemporânea: e aquele rei que era um grave e fino espírito, e por vezes um subtil humorista - entretera-se anotando à margem o precioso livro de About. Onde estavam nomes dos estadistas da

Grécia, o rei punha os nomes correspondentes dos homens públicos de Portugal; onde vinham as narrações das indignidades políticas de Atenas, ele lançava à margem as correlativas indignidades políticas de Lisboa; onde About desenhava com a sua pena maliciosa, cáustica e tão profundamente francesa, um certo ministro da Fazenda que era ladrão - D. Pedro V escrevera ao lado: «Cá chama-se o senhor...». Figura no livro, como torpe, segundo o julgamento do excelente rei, muito homem hoje célebre na vida pública, com bons ordenados e autoridade. O livro assim anotado, mudados os nomes -é a descrição mais exacta do estado de Portugal. Como deve ser infeliz um rei inteligente, quando, caído em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma pocilga política, não pode todavia entregar a Nação à experiência republicana, nem chamar a si o poder absoluto! Um tal rei, se não se converte por fastio num bom rei de Yvetot - termina sempre por morrer cedo.

Ora, na Grécia, o facto permanente é a emigração. E nós emigramos, pelo mesmo motivo que o Grego emigra - a necessidade de procurar longe o pão que a Pátria não dá.

O Grego que não tem indústria, nem agricultura, nem comércio, encontra-se ao entrar na vida sem colocação: - toma então a sua carabina e vai para as montanhas que Teócrito cantou, roubar viajantes ingleses, ou embarca no Pireu e emigra para Alexandria, para

Trípolis, para as escalas do Levante, para os estados barbarescos, para Marselha, para qualquer ponto onde haja algum pão a roer ou alguma piastra a ganhar.

Nós, que (bem a nosso pesar) não podemos ir roubar para as montanhas porque não temos a quem roubar - vamos procurar o Sr. Nathan.

E o Governo, a opinião, admiram-se! Mas onde pode a plebe ganhar o pão? A grande indústria, a dos tabacos, dá 250 réis de salário a um operário com família. As indústrias fabris são poucas, periclitantes, com interrupções constantes de trabalho. A indústria mineira está abandonada à exploração de companhias estrangeiras. A agri-cultura vive de rotina - empobrecendo a terra e empobrecendo o homem. Não temos piscicultura, nem silvicultura, nem indústria pecuária. O trabalhador dos campos vive na miséria, come sardinhas e ervas do campo: a maior parte anda à malta, trabalhando aos dias, errante de fazenda em fazenda, por 80 réis diários, nos tempos de salário. A usura e a agiotagem, unidas, exploram a gente do campo: os tributos são fortes, as vexações do fisco incessantes. Na província, por um imposto de 20 e 30 réis, atrasado e relaxado, vimos nós pagar 5 e 6 mil-réis, com custas, etc. Os pobres não tinham a quantia? penhora no casebre! Nas cidades o operário é vítima do monopólio - monopólio no pão, no bacalhau, no azeite. Não há entre nós uma escola teórica de aprendizagem! Que querem os senhores que se faça num país destes? Sair, fugir, abandoná-lo! O País é belo, sim, de deliciosa paisagem. Mas a política, a administração, tornaram aqui a vida intolerável. Seria doce gozá-la, não tendo a honra de lhe pertencer. Só se pode ser português - sendo-se inglês!

E no entanto, perante a emigração crescente, que faz o Estado, a imprensa, a opinião?

Interrompe-se um momento, e volta-se para os colonos, aplica-lhes a luneta - e diz àquela plebe esfaimada:

— O quê! quereis ir embora? Oh imprudentes. Tendes acolá os terrenos do

Alentejo!

Ora os terrenos, os eternos terrenos do Alentejo, são simplesmente um gracejo torpe.

Os terrenos do Alentejo, tais como estão, não produzem na generalidade senão bolota. E justamente o Governo, a imprensa e a opinião oferecem esses terrenos tais como estão. Conheceis brincadeira mais abjecta?

Uma população de trabalhadores, operários, proletários, pede trabalho - senão emigra. E o País exclama:

— Não emigreis, tendes acolá os terrenos do Alentejo - isto é, tomai vós, ó proletários, ó gente do campo, á pés descalços, os quatro ou cinco mil contos que tendes aí no bolso roto da jaqueta, associai-vos em grandes companhias, comprai máquinas e instrumentos, lavrai tantas léguas quadradas, arroteai, regai, abri poços, fazei aquedutos, estabelecei lezírias, levantai grandes fundos com o vosso grande crédito, tu Manuel da

Horta, tu José da Cancela, tu ferrador, tu jornaleiro - e enriquecei!

O Estado, a imprensa, a opinião têm razão; - somente como o trabalhador não traz ali os quatro ou cinco mil contos na algibeira e não está para os ir buscar a casa, por causa da chuva -embarca para Nova Orleães.

Dizer a um homem: - Você quer ganhar dezoito vinténs por dia? Escusa de sair do País, gaste aí uns mil contos a arrotear terrenos incultos, e vem a ter de salário, não direi os dezoito vinténs justos, mas dezassete e meio com certeza...». Dizer isto é uma facécia impudica!

Tem sido de um alto grotesco este conselho que se dá de arrotear os terrenos do

Alentejo! Todo o mundo o dá, os jornais, os frequentadores da Casa Havanesa, os moços de café, e os poetas líricos. Arroteie-se o Alentejo! exclama cada um esfregando as mãos, e puxando o fumo do cigarro.

— Pois bem, meus senhores, sim, arroteemos! Mas então aproveitemos este grande impulso nacional, esta energia das forças vivas! E de passagem - conquistemos o Santo

Sepulcro, e mandemos varrer o Largo do Loreto!

Mas a melhor facécia tem vindo do sentimentalismo:

— O quê, colonos! ides deixar a terra do vosso berço, a verde alfombra, o escondido casal na encosta do monte, o grato rouxinol que...

Mágoas diz do seu penar?

Este argumento tão económico, tão positivo, tão firmado em cifras, abala extremamente os emigrantes-os quais provam a sua comoção, remando a toda a força para o paquete da Nova Orleães.

E no entanto, na praia, a imprensa suspira!

Um facto curioso é que a opinião que mais tem enrouquecido a bradar contra a emigração, tenta sobretudo provar que a emigração para Nova Orleães não dá as vantagens prometidas pelo engajador.

Por consequência o que se condena não é o facto da emigração, que se julga irremediavelmente necessário - mas o lugar para onde se emigra. A guerra é feita à

Nova Orleães, não ao abandono da Pátria. A Nova Orleães fez o que quer que fosse à opinião pública. O caso é que a opinião não traga a Nova Orleães. Talvez questões de mulheres, como se dizia na Grã-Duquesa de Gerolstein.

Que fazem com isto a imprensa e a opinião? Incitam à emigração. Como?

Acusando o pouco que os colonos vão ganhar na Nova Orleães, e fazendo cotejos que implicitamente lhes lembram o muito que ganhariam em São Paulo ou na Califórnia.

Não detêm a corrente - mudam-lhe a direcção. Isto é - dirigem a emigração, o que é uma maneira de a desenvolver, ainda que tomando para isso o caminho mais laborioso.

Mas, enfim, temos a opinião e a imprensa confessando que a vida é extremamente difícil em Portugal, e que a acção natural que todo o cidadão português deve ao seu País

— é abandoná-lo.

Entretanto que faz o Governo? Diz-se que o Governo recomendara às autoridades do País que impedissem a emigração. Se assim é, gostamos. Um Governo impedindo a acção de uma lei económica por um ofício - tinha-se visto nas anedotas do Tintamarre.

É-nos dado, a nós Portugueses, possuir o facto real, autêntico, referendado. Somente que processo emprega o Governo? Coloca-se entre o bote e o emigrante, gritando alti-vamente:

— «Não passarás!» Agarra-o pela gola da jaqueta, ganindo: «Faz favor de não se safar?» Que o Governo nos esclareça! Bom e querido Governo!... Diante deste grave problema, a emigração, tendo de examinar as condições do País agrícola, de estudar o meio de organizar o trabalho, de regularizar uma emigração interior, de empregar os braços ociosos, de converter em vantagem nacional a energia nativa da população, de obstar ao enfraquecimento do País pela perda da sua riqueza viva, diante destes problemas - o Governo volta-se para o regedor e, por toda a ideia, por toda a ciência, lança esta ordem:

«A respeito dos colonos, o melhor é fechá-los à chave!»

Como solução a um problema económico - o Governo acha uma fechadura. A governação do Estado torna-se questão de serralharia! Um trinco é um princípio: um parafuso uma instituição! Como vós sois grandes! Deixai-vos ver bem de frente... Ah! sois imensos! Mas Sancho Pança - era maior.


Dezembro 1872.

O primeiro destes artigos, tão rudemente desmantelado pelo estimável Bem

Público - censurava o clero do Funchal «por ter impedido que um negociante fosse enterrado no cemitério público, sob pretexto de deveres religiosos mal cumpridos».

O Bem Público cora no seu rosto indignado e exclama: - «A censura tem o mesmo valor que se a dirigisse ao sr. duque de Palmela, por não consentir que no jazigo da sua família sejam sepultados os cadáveres das pessoas que falecem!»

Esta argumentação é vitoriosa, aniquiladora. Somente nos parece que não há absoluta semelhança entre o cemitério público e o jazigo de família do sr. duque de

Palmela. Quando dizemos, ao estudar a nossa geografia, «Lisboa é capital de Portugal»

— não queremos inteiramente dar a entender que a capital de Portugal seja o Hotel dos dois irmãos unidos. E acrescenta o Bem: - «Se um negociante, enquanto vivo, não quer ter nada com as orações, com as assembleias religiosas, como pois condená-lo depois de morto a essas orações e assembleias que detestava em vivo?» O que equivale a dizer: -

Se esse negociante não queria ouvir missa, nem assistir ao lausperene, nem jejuar enquanto vivo - como condená-lo, depois de morto, a estar de joelhos ao lausperene e a comer bacalhau à sexta-feira?

Sim, Bem Público, estamos absolutamente de acordo! Um homem que gosta de comer à sexta-feira rosbife não pode, sem tirânica vileza, ser obrigado a ir para debaixo da terra, amortalhado, dentro do seu esquife, comer à sexta-feira o detestado rodovalho!

Sim, Bem Público! sim, amigo! sim, honrado colega! A verdade é essa! disseste-la com boca melíflua e sábia! Deve-se excluir do cemitério todo o homem que não ouviu missa em vivo... E lá o explicas, com profundidade no dizer e alto critério no pensar: - Porque não se pode obrigar esse homem a ouvir missa depois de morto! - Sim, amigo, tu o disseste, tu, de juvenil fé e de discreto lábio.

Depois o Bem, num outro período austero, pretende combater a afirmação das

Farpas - «que o cemitério não pertence aos padres, pertence aos cidadãos». Para aniquilar esta ideia o Bem afirma que poderia dar uma longa razão, e explica qual é essa razão. Mas acrescenta: «Não a daremos, porque seria insensata» (Bem Público, pág.

188, linha 25). Não, Bem, não, tu não és insensato! não te calunies, amigo, não te humilhes, Bem! Não rojes assim uma cabeça penitente no pó igualitário do macadame!

Não, tu até tens boa ortografia! Até tens bem boa forma de letra! Se quisesses, até eras subtil! É que não queres! Se tu quisesses!

E continua o estimável Bem argumentando. As Farpas disseram: - «Os cemitérios têm a sua origem na higiene, na polícia, na moral, na vida municipal: não têm a sua razão de ser na teologia». E o Bem exclama: - «Pois dizendo tal caem num erro histórico: os cemitérios têm a sua razão de ser na teologia: basta o nome e a história para prová-lo». Mas então uma consideração pavorosa acode: a teologia é pelo menos - deve sabê-lo o Bem - posterior aos primeiros séculos do cristianismo. Começa com as escolas, e com os doutores. Ora se os cemitérios datam apenas deste tempo, segundo afirma o Bem Público, se só têm a sua razão de ser desde que a teologia teve a sua razão

O excelente jornal, o Bem Público, num artigo amargo e piedoso, trabalhado com doçuras de sacristia e repelões de sala de armas, de resto subtil e curioso - dá-nos a honra de sacudir, com a sua pesada mão católica e romana, três pobres artigos das

Farpas. de dominar - o que acontece? É que todos os mortos, desde Nemrod, estiveram aos milhares e aos milhares, enfastiados, de braços cruzados, esperando que a teologia lhes permitisse deitarem-se nos seus sepulcros. Horrorosa antecâmara! Esperaram séculos! E vinham mais, e mais, e mais! Em que se entretiveram tanto tempo, envoltos nos seus sudários, impacientes pelo seu enterro? Oh! sábio Bem Público, diz-no-lo, tu que o sabes! Se os homens só foram enterrados desde que a teologia se fixou em grossos tornos - em que lugar tenebroso aguardaram o seu dia de sepultura os primitivos árias, os luminosos índios, o persa trabalhador, o grego erudito e subtil, os milhares de habitantes do império romano, as raças que viveram junto ao Nilo, e os povos bárbaros que habitavam o norte da Europa, e todos os habitantes de todos os continentes, de todos os séculos? Di-lo, sábio Bem! Será verdade que eles passeavam pelo éter, fumando o seu cigarro - à espera que Santo Agostinho nascesse? Como tu és instrutivo, oh Bem! Só há cemitérios onde há teologia católica. E corno explicas então os cemitérios modernos de Constantinopla e do Cairo, e os de todos os países maometanos, e os de todos os outros países onde floresce alguma das 1 religiões que florescem na Terra, além da católica? Explica isto bem, Bem!

Mas o piedoso jornal exclama ainda: «Os católicos não impedem que os que têm pouca religião ou nenhuma, sejam enterrados: porque não estabelecem as câmaras municipais, para esses, cemitérios especiais?» Parece-nos prudente este alvitre do Bem: estabelecer cemitérios para quem tem muita religião: outros para quem tem bastante: outros para os que possuem alguma: outros para os que alardeiam pouquíssima: outros para os que não apresentam nenhuma. Enfim, um cemitério para cada medida! Um cemitério aos gramas! Ah Bem, como tu vais mal!

O segundo artigo das Farpas censurava que «os missionários vendessem cartas da Virgem Maria a diversos devotos».

O Bem Público diz que nós agitamos argumentos bicórneos. Mas não combate, nem aprecia, nem sequer indica - esses argumentos. É timidez? É desdém? É pudor?

Somente acrescenta: - «A história é falsa: 1º porque os jornais de Braga não falaram em tal...»

Mas, querido Bem, os jornais de Coimbra, os jornais do Porto, e os jornais de

Lisboa, que são liberais, contaram-no. Vale alguma coisa que o não referissem os jornais de Braga, que são ultramontanos? E esses mesmos não estão anunciando a cada momento livros que se vendem para evitar o fim do mundo, cartas vindas do Céu, relíquias achadas, etc.?

Diz mais o Bem: «2º porque em Braga não há missionários!» Como assim!

Tresloucas, Bem! Não há missionários em Braga? Diz antes, amigo, que não há turcos em Constantinopla! que não há água nos rios! que não há estrelas no céu! que não há sons na música! Ah querido! Não há missionários em Braga? Onde os há então, em

Berlim?

No terceiro artigo, as Farpas tinham censurado o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, por ter proibido que as mães levem os filhos à Igreja! O Bem Público escandaliza-se e grita: - «O que iam as crianças fazer aí? Se as mães queriam ir à missa, e não podiam deixar as crianças em casa - que não fossem à missa, que estão em primeiro lugar os deveres da lactação, que os desejos da devoção!»

Esplendidamente bem dito! Mas quem o disse? Foi Michelet decerto, o iniciador naturalista da educação anticatólica? Foi Proudhon talvez, o rude inimigo da Igreja?

Não, meus bons senhores! não, Nação! não, Braga! Foi o Bem Público, jornal católico, romano, devoto, piedoso, ungido em água benta! Os deveres da lactação primeiro que os desejos da devoção! Mas é perfeitamente revolucionário! A lactação antes da devoção - isto é, a natureza antes do misticismo, a razão antes da fé, o dever humano e consciente antes do dever divino e transcendente, o raciocínio antes do dogma, a higiene antes do Evangelho, a mãe antes da devota, o preceito naturalista antes da regra da

Igreja, o homem antes de Deus! Bravo, Bem Público! Segundo tu, o preceito, a missa, a

Igreja, são coisas secundárias, indiferentes, para quando houver vagar. Objecto de luxo, para os dias de ócio, uma forma do teatro aos domingos! «Que farei hoje, irei à igreja ou à Rua dos Condes?» De modo que só quando a mulher tiver amamentado seu filho, arranjado a sua casa, cozinhado o seu jantar, cumprido todos os seus deveres humanos, e se achar numa hora desocupada e vaga - é que deverá ir à missa? Dizes excelentemente! Mas então repara bem, ó Bem. Se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico - rachas de alto a baixo o catolicismo: se a mãe deve amamentar antes de rezar, o homem deve obedecer à sua razão consciente antes de obedecer ao preceito religioso: tens a análise, a liberdade religiosa, a reforma, a revolução. Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo! O Bem

Público, estás pois assim naturalista e ateu? És então um falso devoto? Por cima da tua sotaina de sacristão pões uma faixa escarlate de membro da comuna? O Bem! Espalhas tu água benta ou petróleo? Treme, desgraçado! enquanto a Nação tua irmã, enquanto o

Diário Nacional, a Crença, estarão muito contentes no Paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança por teres renegado a fé, errarás, como uma sombra aflita, na vastidão do céu negro, através de interminável dor, aos encontrões com as sombras condenadas de Sardanápalo, o pagão, e do aborrecido Pilatos!

Ah! Bem Público, excêntrico maganão, conserva-te quieto na tua doce sombra!

Reza, jejua, canta no coro, usa cilício - mas deixa-nos em paz.

Contenta-te em ser um jornal boa pessoa, pesadote e pacatote - e a ter o inteiro aplauso de antigos egressos. Mas não venhas interpor-te no nosso caminho. Toma ao teu canto o teu rapé, e usa em silêncio a tua flanela. E serás grande, ó Bem! ó bom Bem! á

Bem bom! Bum!


I

Janeiro 1872

Querido publico, eis-te deante de um anno novo — o anno de 1872.

Aí o tens defronte de ti, mudo, impenetrável, com o seu largo chapéu de feltro escondendo a face, a capa cor de mistério traçada à Lindor, e altas botas de pregas reluzentes. A ponta da sua espada ergue de leve, por trás, uma prega subtil, a orla do manto escuro. O traidor! — vem armado!

Como será o seu rosto — claro e pacífico ou sombrio e batalhador? E os seus cabelos — grisalhos e acamados como os de um musgoso conservador, ou negros e revoltos como os de um revolucionário impaciente? E a palma da sua mão — macia e fácil como a do que espalha dinheiro, ou adunca e áspera como a do avaro ganchoso?

«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda.

Que te trará ele a ti, fiel camarada das Farpas e da sua campanha irónica? Um acesso no teu emprego? A herança de um velho tio? Uma noiva de cinta airosa? Uma bela viagem por conta do Estado? Um pequerrucho guloso de leite?

«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda. Que ele, o Ano Novo amável, te conserve a cabeça serena, o estômago são, o bolso sonoro, e a mão decidida.

Eis o bom e o positivo na vida. E também que faça penetrar em ti como um calor reconfortante a estima das Farpas — ou, pelo seu nome genérico, a estima do Bom senso.

E que trará ele à Pátria? É justo que pensemos um pouco na Pátria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos — um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é — uma língua de terra onde construímos as nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal. Não é propriamente uma nação, é um sítio. Já não achamos mau! A Lapónia nem um sítio é: apenas unia dispersão de cabanas na vaga extensão da neve. Podemos pelo menos desdenhar a Lapónia. A miserável Lapónia!

Como a nossa organização é mais rica, a nossa raça mais digna! Nós ao menos temos um sítio!

O que vai trazer à nossa terra, debaixo da sua capa, o digno Ano de 1872?

Trar-lhe-á a paz, como um folhetim monótono continuado da véspera?

Trar-lhe-á a guerra, como uma aventura emovente a marche-marche?

Trar-lhe-á, embrulhada num cartucho, a revolução?

Trar-lhe-á, no meio de um espantado oh! universal — uma ideia?

Trar-lhe-á entre os braços, para lhe depositar no colo, uma nova dinastia — de mama?

Trar-lhe-á, como um noivo para a fecundar, o exímio prelado de Viseu que recua e cora de pudor?

Atirar-lhe-á aos pés, como um mimo de Céu, Melício, melhor que os favos?

«Quem o sabe, quem o saberá?» diz o cuco da lenda.

Nem ele mesmo o sabe talvez, o Ano Novo! Os anos chegam desprevenidos, sem plano, e começam por tomar informações com os anos que saem. E então, pelas notas colhidas, como um dramaturgo, preparam os seus episódios! Ah! que diria o Ano

Velho, ao partir com as suas malas e as suas rugas, a este Novo Ano que chegava, inex-periente e curioso? Que confidências trocaram, ao encontrar-se nessa misteriosa estrada por onde caminham os dias e os anos, pacientes transeuntes da Eternidade?... Pois nós,

Querido público, eis-te diante de um Ano Novo — o ano de 1872. os feiticeiros das Farpas, por grande maravilha o sabemos! Ano Velho e Ano Novo cruzaram-se na fronteira, em Badajoz. O Ano Velho estivera trezentos e sessenta e cinco dias em Portugal; recolhia enfastiado e embrutecido; tinha os dedos queimados do cigarro; levava o estômago estragado da mesa do hotel; ia ressequido da falta de banhos; palitava os dentes com as unhas; sabia ajudar à missa; assoava-se a um lenço vermelho; perguntava a todo o propósito que há de novo? — e era reformista. Estava aportuguesado. Ano Novo, esse, saía da frescura do Céu.

Cumprimentaram-se, risonhamente.

E no silêncio da noite, à sombra dos muros de Elvas, de onde nós escutávamos, palpitou entre os dois, vivo e rápido, este diálogo:

Ano Novo (preparando a carteira e o lápis):

— Este país em que vou entrar é uma monarquia ou uma república?

Ano Velho (gravemente):

— As geografias dizem que é uma monarquia... Pelo que vi pareceu-me que nem era uma monarquia, nem uma república — e que era apenas um chinfrim.

— Mas, Ano Velho, pelo menos há um rei?

— Há um, Ano Novo. Os jornais revelam de vez em quando a sua existência — contando que fora fotografar-se! É quanto se sabe da sua vida pública.

— Mas, esse rei reina?

— Reina — como quando se diz na descrição de uma sala: «no alto, ao pé da cornija, reina um friso dourado...

— E por onde se governa esse país?

— Este país tem a Carta, que se manifesta todos os meses nas músicas regimentais

— em hinos; e actua nas repartições de ano a ano — em suetos... É tudo o que o país sabe dela.

— E de que vive o país? Tem rendimentos, tem orçamento?

— Tem de menos, todos os anos, para pagar as despesas da casa — uns cinco ou seis mil contos. É a isto que eles chamam — as finanças. Cada ministério...

— Um momento! Eu sou um simples, um ingénuo, chego... O que é um ministério?

— É uma colecção de doze homens que se encarregam (seis trotando a cavalo atrás dos outros seis) de governar o País — isto é, de ter a mão na chave da despensa. Quando se pertence a um partido...

— Pertencer a um partido, caro colega, vem a ser?...

— É meter-se a gente num ónibus que leva aos empregos — e a que puxa o chefe do partido, sempre com o freio nos dentes!

— Mas a questão da fazenda, dizia...

— É uma espécie de nó que todos, um por um, são chamados a desatar — e que cada um aperta mais.

— Sem nunca entalar os dedos?

— Bem ao contrário! A alguns fica-lhes na mão o pó da corda. Ora é com esse pó que se compram os melões.

— E o País, em que se emprega?...

— Nas secretarias. São salas onde homens tristes escrevem em papel almaço «Il.mo e Ex. mo Sr.» — para poderem jantar, e ter este acesso: aos 20 anos semi-inúteis, aos 30 inúteis, e aos 45 inúteis e semi.

— E de onde saem esses homens?

— Do liceu, que é um lugar com bancos, onde em rapaz se decoram bocados de livros — para ter o direito de não se tornar a ler um livro inteiro depois de homem.

— Perdão, mas há uma Universidade, parece...

— Há. Mas é apenas um edifício histórico para se provar que existiu D. Dinis, seu fundador.

— Mas aí, Santo Deus, não se estuda?

— Sim, estudam-se ciências que levam cinco anos a estudar — e que estão atrasadas vinte anos; — com excepção de uma, a teologia, que acabou há um século.

— E como é a organização dos estudos?

— O aluno, ao entrar, faz uma cortesia profunda ao lente; lê lá dentro um romance que traz na algibeira; e sai fazendo ao lente outra cortesia profunda. Se não fizer isto é reprovado.

— E tudo isso para quê?

— Para se ser bacharel — unia qualidade que se exige para tudo, e que se não respeita para coisa nenhuma.

— E a que chama a política, meu amigo? Tenho-lhe ouvido...

— A política é a ocupação dos ociosos, a ciência dos ignorantes, e a riqueza dos pobres.

— Reside em S. Bento...

— Um santo do calendário?

— Uma sala que a Carta instituiu para perpetuamente se discutir quem há-de organizar o País definitivamente.

— E qual é a posição dos deputados?...

— Na aparência sentados, por dentro de cócoras.

— Perdão...

— Ah sim! a posição para com o Governo? Empregados de confiança do Governo, nomeados pelo Governo; — consentindo-se ao povo, para o contentar, que assine o decreto!

— Explique-me uma palavra dos meus apontamentos: — «eloquência parlamentar?»

— É a série de palavras sabidas que vai de Barros e Cunha a Osório de

Vasconcelos — passando por Santos e Silva.

— Quem são esses homens?

— São eles mesmos — e têm um trabalho imenso para serem tanto.

— Há ainda, ao que parece, outra câmara

— A dos pares. É um forno apagado onde cada Governo mete lenha nova — para poder cozer o seu pão.

— Estranhos casos! E há um partido antidinástico?...

— Perfeitamente: há um partido que se ri do rei por ter tão pouco poder sobre o seu povo — e lastima o povo por sofrer tanto poder do seu rei.

— Fale-me da aristocracia...

— É uma colecção de capacetes, vazios das velhas cabeças, as quais iam cair ao chão, e onde se metem, para os sustentar, cabeças novas de merceeiros, que pagam para isso ao Governo.

— Ainda bem! fale-me agora do povo...

— É um boi que em Portugal se julga um animal muito livre, porque lhe não montam na anca;

— e o desgraçado não se lembra da canga!

— E a burguesia?

— Chuta! Mais baixo! Esse é o nome de desprezo com que os tendeiros enriquecidos que já descansam, fulminam os tendeiros pobres que ainda trabalham.

— E este País, que crédito tem entre os outros, para além dos Pirenéus?

— Portugal, lá fora, é estimado pela laranja.

— E a diplomacia?...

— Cada Governo, meu amigo, costuma mandar como embaixadores para fora, aqueles que não quer ver dentro como chefes da oposição. Na realidade os diplomatas são como os criados que os companheiros mandam espreitar para a sala — para eles comerem mais à vontade na cozinha.

— Tem viajado decerto, amigo. Fale-me das cidades... Há boas estradas?

— Há: mas estão todas na secretaria das obras públicas, para não se deteriorarem.

— E o caminho de ferro?

— É novo em Portugal, gatinha ainda.

— Mas... E o Porto o que é?

— Uma terra onde se é negociante para ter os meios de fingir que se é aristocrata.

— E Coimbra?

— Uma cidade onde o município não varre as ruas para não perturbar os que estudam — enquanto os que estudam, com o barulho que fazem na rua, não deixam dormir o município.

— E Lisboa, enfim?

— Lisboa é a cidade onde Melício habita. De resto uma burguesa que desejaria parecer-se com uma cocotte — se pudesse costumar-se a lavar os dentes.

— Mas então os Portugueses não são escrupulosos no asseio?

— Outrora, colega, quando os criados inexperientes dos hotéis viam chegar o viajante português, traziam-lhe, como a todos, uma tina cheia e fresca. E o Português respondia invariavelmente: «obrigado, não tenho sede!»

— Mas a vida elegante de Lisboa?

— É não ser cigarreiro da fábrica de Xabregas. Tudo o mais é elegante.

— E os Portugueses são inteligentes ao menos?

— Foi o ABC que espalhou isso — vaidoso de que o tivessem compreendido!

— E a família?...

— É um grupo de egoísmos — que janta de chinelas.

— Mas as mulheres?

— Pessoas excelentes, que têm a doçura de fingir que não têm espírito — só para não humilharem os maridos!

— E são bonitas?

— São bonitas — nos intervalos da cuja.

— E honestas?

— Muito mais do que os maridos dão a entender.

— E ternas?

— Aprenderam a ternura de cor — mas recitam-na mal.

— Que tal conversam?

— Não se sabe. Nunca tiveram com quem.

— E amorosas?...

— Diz o Sr. Vidal que sim.

— E femininas?

— Meu amigo, são utilitárias. Acham em tudo o que acharam na própria valsa — uma utilidade.

— Na valsa? qual é?

— O meio de suar com elegância em sociedade.

— Oh! bom Deus, voltemos às generalidades! O País é rico?

— Portugal é um país que todos dizem que é rico, povoado por gente que todos sabem que é pobre.

— Mas a agricultura?

— A agricultura aqui é a arte de assistir impassível ao trabalho da Natureza.

— E as colónias?

— Velhas salvas de família, que se enferrujam ao seu canto.

— Mas este País tem um exército...

— Pode-se permitir essa formalidade — porque tem segura a paz.

— E polícia?

— A polícia é uma instituição que passeia aparatosamente em certas ruas — para prevenir os malfeitores que vão para outras.

— Falou de malfeitores. Como são as cadeias?...

— São latrinas — onde também se guardam presos.

— Mas a Câmara Municipal, ao menos vela pela cidade?

— Zelosamente. Por uma das suas posturas, por exemplo, é proibido a qualquer cidadão, sob pena de uma grave multa, ter em sua casa, mais de seis meses — um lobo danado!

— É extraordinário! E o bom senso, não o há?

— Evita-se: porque tê-lo chama-se pedantismo, e publicá-lo chama-se insulto.

— Mas esse povo nunca se revolta?

— O povo às vezes tem-se revoltado por conta alheia. Por conta própria — nunca.

— Em resumo, qual é a sua opinião sobre Portugal?

— Um país geralmente corrompido — em que aqueles mesmos que sofrem não se indignam por sofrer. De resto a Pátria do grande Afonso de Albuquerque e de outros.

— E não há um protesto? Agora me lembro! As Farpas? fale-me delas...

— Um jornal que tem um só merecimento — sentir-se com bom senso e não aspirar

à ditadura.

Mas tendo percebido que os escutavam (éramos nós) o Ano Novo e o Velho Ano separaram-se, com grandes shake-hands. E o Novo Ano, senhor de uma série de definições que o habilitavam a conhecer o País, entrou a fronteira, ao repicar dos sinos.

Bem-vindo! E Boas-Festas!


II

Janeiro 1872.

Anda às vezes uma lancha quarenta e oito horas sob a chuva, o vendaval e a neblina, na inclemência da água. Os homens estão perdidos e trabalhados, como dizia

Camões. É necessário passar a noite no mar. Deitam a âncora e as redes, acendem uma lanterna, persignam-se, e, sob a escuridão e a tormenta, embuçados nos gabões, encharcados, ali ficam no vasto mar escuro. Tudo isto para erguer as redes vazias, quantas vezes rotas! Vão homens e vão crianças. Um homem de companha ganha 80 réis por cada pesca, dois dias de trabalho áspero. Uma criança ganha um vintém. E necessário ver como habitam. Em Espinho — e é uma das costas mais populosas e mais ricas — vivem em casebres de pau, onde a chuva, o vento, a névoa, entram livremente; dormem sobre farrapos de velhas jaquetas e de antigas velas inúteis; comem numa grande tigela, promiscuamente, a caldeirada escassa de sardinha e côdeas de broa. Isto no tempo feliz e abundante. No Inverno internam-se e pedem esmola. Tal é aquela vida a traços largos. Escusamos falar-lhe, sr. ministro, dos temporais, dos naufrágios, de barcos partidos, de redes inutilizadas, do fim deles sobre a terra, que é o hospital, do seu fim debaixo da terra, que é a vala. Vir sobre estes homens o fisco, e tirar-lhes, por meio de unia conta de dividir, parte daquilo que eles ganham por meio de um risco de morrer, era excessivamente torpe, mesmo para portugueses! Os pescadores têm, sr. ministro, um verdadeiro imposto: as grandes ondas que viram as lanchas.

Agradecemos, sr. ministro, a sua simpática iniciativa.

Ao Ex.mo Sr. Fontes Pereira de Melo. — Vimos agradecer-lhe, sr. ministro, a proposta pela qual é extinto o imposto do pescado. As Farpas tinham apresentado, com um relevo doloroso, toda a cruel indignidade desse imposto. Não sabemos se V. Exª já viveu algum tempo nas costas de Portugal. Devia-o ter feito. Nada mais duramente instrutivo. Um interior de cabana ensina mais que um livro de Maurício Block. (Mesmo os livros do dito Maurício não ensinam nada).

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A pesca não constitui uma indústria regular, mas um ganho de surpresa. O mar, sr. ministro, não tem a calma tranquilidade da terra. Essa estende-se ao sol, como a ninfa antiga, e deixa serenamente na sua impassibilidade santa que a violem, a dilacerem, lhe tirem o vinho, o pão, as frutas, até o carvão, e aos que a rasgam e roubam dá tudo o que é necessário para que o corpo viva, e ainda a mais as verduras e as flores para que a alma se alegre. O mar, sr. ministro, esse, defende-se. Olha o homem como um inimigo; cerca-se de rochas, embuça-se traidoramente na névoa, apavora com o seu ladrar monótono. É necessário espreitá-lo, ver quando dorme: então o pescador, rema em silêncio, deita as redes, e rouba-o. Já vê, sr. ministro, que não temos aqui uma indústria disciplinada — mas a pirataria da fome.


III

Janeiro 1872.

Louvemos a Providência em humilde atitude: o Índia podia não ter fundo!

Mas não, o Índia é o nosso glorioso vaso, conhece o brasão heróico que usa, compreende a responsabilidade que arvora, vê que lhe cumpre sustentar o nome da

Lusitânia, e portanto o Índia, com uma moderação que nos comove até às lágrimas, o

índia — mete apenas cinco polegadas de água por dia!

E todavia o Índia podia — quem lho impediria? quem ousaria coibir-lhe a nobre vontade? — o Índia poderia não ter casco! O Índia poderia não ter costado!

Mas não! o Índia sabe os deveres de todo o honrado transporte de guerra para com a Pátria que o emprega. O índia — limita-se a meter apenas cinco polegadas de água por dia!

O Índia, o melhor navio que temos, o navio novo, expressamente feito para uso do

País, comprado com madura reflexão, examinado com escrupulosa ciência, glória da nossa marinha, defesa das nossas colónias, garantia da nossa honra, o índia, que sábias comissões aprovaram, que uma recta imprensa exaltou, que professores da escola normal celebraram, que custou muitas mil libras, que é novo, perfeito, impecável, o

Índia — mete apenas cinco polegadas de água por dia!


IV

Janeiro 1872.

Ao Sr. D. Américo, Bispo do Porto. — Deve Reverendíssima saber que o Diário da

Tarde, jornal dessa diocese, tem publicado cartas trocadas entre o Sr. Camilo Castelo

Branco, que no mundo profano é um romancista excelente, e Rocha, que é no mundo eclesiástico — qualquer coisa. Trata-se, parece, de decidir se existem as famosas labaredas do Inferno. A discussão tomou unia feição teológica. O Sr. Camilo Castelo

Branco traz a ela toda a originalidade fogosa da sua veia peninsular; o chamado Rocha divaga, requenta sediços argumentos teológicos, defende os missionários, e aconselha a prática das suas doutrinas. Ora numa das cartas do dito Rocha encontra-se, reverendíssimo prelado, esta frase, para a qual chamamos a atenção inteligente de V.

Exª e a sua autoridade hierárquica:

«Diz o Sr. Camilo que a presença dos missionários aume nta a faina da roda dos expostos. Pois bem, eu digo que melhor, porque aumenta a «população.»

O que significa, digníssimo prelado:

«É um bem que os missionários seduzam as suas ouvintes — porque aumentam a população.»

Foi escrita esta frase, excelentíssimo prelado, na cidade do Porto, no ano de 1871,

Dezembro, por um chamado Rocha, eclesiástico.

Excelentíssimo prelado! Isto é simplesmente o missionarismo que ameaça a virgindade. Temos aqui o missionarismo, que — ferido, irritado da contradição, torcendo-se sob a mordedura da verdade, levado, violentamente contra o muro — faz como os gatos longo tempo perseguidos e espicaçados, assanha-se, encrespa-se, sopra, desenrosca-se. ataca — e grita:

— «Ah! eu estou convencido de ser impudico? Melhor! Confesse o meu impudor, sustento-o! E um bem, porque aumento a população.»

E prepara-se! Pedimos, excelentíssimo prelado, a interferência da sua mitra.

Se, entre nós os profanos, nos tribunais civis, um assassino declarasse que matar; fulano, para diminuir a população; se um ladrão se gabasse de que roubara sicrano, para fazer girar os capitais — nós mandaríamos estes dois reformadores beneméritos, que se haviam sacrificado pela justiça, britar pedra com a argola da grilheta!

Não sabemos o que as leis eclesiásticas cominam àqueles senhores missionários que entendem do seu dever desflorar as mulheres — para aumentar os homens!

Se nada estatuem, então, excelentíssimo prelado, dê-nos V. Ex na sua capela um lugar para irmos aí agradecer a Providência maternal, de rojo nas lajes — pois que é tão benévola com a terra de Frei Bartolomeu dos Mártires que, no meio das nossas desgraças e da nossa pobreza, nos dá ao menos o moedeiro falso que aumenta o capital e o missionário que aumenta a população!

Como, porém, a justiça e conhecida dignidade de V. Exª, não deixarão passar em impunidade a palavra do chamado Rocha, vimos humildemente pedir, a V. Exª

Reverendíssima, que atenda a que a frase do chamado Rocha é a expressão sintética de uma teoria de missionário; — que os missionários são muitos; — que os maus sacerdotes fazem desertos os melhores altares; — que Cristo, o supremo Mestre, desfaria o seu azorrague nestes vendilhões de bentinhos; — e que uma vez que os seus padres, excelentíssimo prelado, ameaçam aumentar a população, não será injusto que nós supliquemos a V. Exª que açame os seus padres!

Beijamos o anel pastoral de V. Exª Reverendíssima — sendo, como somos, 0

Admiradores da ciência e crentes da virtude de V. Exª Reverendíssima.


V

Janeiro 1872.

Revela-o ele, muito finamente, no seu folhetim de 5, no Diário de Notícias. Aí, acusando com gentil espírito, os que «fustigam a Pátria», desenha o País como superiormente perfeito, tão perfeito que na sua superfície social e morai não é possível encontrar nem uma fenda nem uma mancha: e aí declara que todo aquele que achar na

Lusitânia defeitos e no cisne farruscas — é burlesco.

Parece que, segundo o feliz Pinheiro Chagas, nós possuímos toda a perfeição de administração, toda a abundância de riqueza, toda a virtude de alma, toda a elevação de carácter, toda a beleza de forma — como aquela cidade ideal onde o jovem Telémaco e o calvo Mentor passeavam, coroados de louro s, trocando os períodos sonoros que o puro

Fénelon lhes colava alternadamente aos lábios.

E sabem quais são as provas que o nosso admirável amigo dá deste estado de perfeição a que chegou Portugal, desta superioridade inteiramente inacessível às raças inferiores?

Duas provas:

Termos descoberto o caminho da índia!

Termos, com a nossa energia, domado o Indostão!

Assim, segundo esta teoria de impecabilidade — sabem porque razão é o Sr.

Braamcamp um grande filósofo? — Porque nós descobrimos o caminho da índia. E todo aquele que, ou sobre a filosofia do Sr. Braamcamp ou sobre a grandeza de qualquer instituição nossa, puser restrições ou dúvidas — é burlesco. Assim as Farpas seriam burlescas — se ousassem duvidar da superioridade filosófica do Sr. Braamcamp; e sê-lo-iam se se atrevessem a negar, sorrindo, a excelência da nossa instrução pública. E isto porque nem o Sr. Braamcamp pode eximir-se a ser um filósofo tão profundo como

Kant, nem a instrução se pode esquivar a ser tão derramada como na Prússia — desde o momento em que nós outrora domámos o Indostão!

É este um sistema de progresso social fácil e cómodo: domar o Indostão. Quem doma o Indostão, está desde esse momento, na plenitude da verdade e na posse da abundância. Foi por não o ter domado que a França se acha nos embaraços da inconstituição. Foi por o não ter domado que Babilónia caiu! É um erro que uma nação comece a viver — sem se ter prevenido com alguns Indostões domados. Doma o

Indostão e deita-te a dormir. Doma o Indostão e fecha a escola — a população saberá ler. Doma o Indostão e não faças estradas a circulação aumentará.

As Farpas acusam a desorganização dos estudos. Mentira, os estudos são perfeitos, veja-se a energia com que domámos o Indostão!...

As Farpas censuram a ineficácia da direcção económica. Como esqueceis o

Indostão domado?

As Farpas acusam o enfraquecimento dos caracteres. E o Indostão, o soberbo

Indostão domado, desgraçadas?...

As Farpas condenam o procedimento tumultuoso da Câmara dos Deputados. Que ousais dizer, pois não domámos nós o Indostão?...

As Farpas revelam a decadência literária. Que novo agravo — pois nem a recordação do Indostão que domámos?...

Querem conhecer um cidadão absolutamente optimista, rara avis, nesta terra? — É o nosso amigo Pinheiro Chagas.

O País pode e deve dizer, em verso:

«Zoilos, tremei, que o Indostão foi meu!»


VI

Janeiro 1872.

Ainda há pouco Mgr. Dupanloup, bispo de Orleães e antigo académico, pedia à

Academia a sua demissão por incompatibilidade com Littré, positivista e académico recente. Isto, bem entendido, obrigaria Mgr. Dupanloup (se nos não trans-via uma errónea lógica) a pedir a sua demissão de deputado à assembleia, porque onde está a fé-dupanloup não pode estar a impiedade-littré — e o positivista Littré é deputado à assembleia. Mas sendo Littré cidadão francês — deve Mgr. Dupanloup, pela lógica da incompatibilidade, demitir-se de cidadão francês. Resta porem alguma coisa. Littré é homem, e o princípio de Mgr. Dupanloup obriga-o desde já, se é consequente, a demitir-se da sua qualidade de homem. E não é tudo ainda. Littré é animal vertebrado, e portanto o lógico e incompatível Mgr. Dupanl oup deve correr perante a autoridade competente e demitir-se nobremente de animal vertebrado. Mais ainda! Littré é ser —

(parte do Universo, etc.) e Mgr. Dupanloup, que é incompatível com tudo o que é Littré, segundo as suas palavras, deve trabalhar até conseguir — a sua demissão de ser. E enfim demitido de académico, de deputado, de francês, de homem, de matéria, e de ser — o que fica, deste bispo de Orleães, sábio latinista e panfletário ilustre?

Em Portugal, agora, o clero descobre incompatibilidade entre a qualidade de católico e a qualidade de mação.

Ora, como sabem, hoje as associações maçónicas (que perderam há muito a sua feição carbonária, jacobina, etc.) são em Portugal associações públicas com os seguintes fins:

Eleições;

Socorros mútuos;

Beneficência;

Auxílio e protecção recíproca aos irmãos no País e no estrangeiro.

De sorte que, segundo a opinião recente do clero, um católico — não pode tratar de eleições.

Nem socorrer, proteger e auxiliar os seus amigos.

Enquanto a eleições, os srs. eclesiásticos são os mais lesados em que haja incompatibilidade entre a qualidade de católico e de agente de eleições, porque a carreira sacerdotal de SS. Sª depende essencialmente da sua habilidade eleitoral: e SS.

S.as não foram subtis apresentando a caça ao voto incompatível com a devoção a Roma.

Querem os srs. párocos definitivamente abandonar a urna? Então SS. S.as arriscam-se a criarem bolor nas suas pobres paróquias de aldeia. Pretendem continuar a proteger candidatos? Em tal caso perdem a sua natureza católica e não podem ganhar pelo altar.

Quererão SS. S.as dizer-nos que não trabalham em eleições? É a sua missão mais clara e efectiva. Na última eleição, numa diocese próxima de Lisboa, a autoridade eclesiástica superior oficiou aos párocos de todas as suas freguesias para que desenvolvessem o maior zelo, influenciassem, por todos os modos patentes e ocultos, na luta política. E por esta estrada de votos que se chega às boas paróquias.

Enquanto a socorros e protecção — não nos parece que os srs. sacerdotes sejam muito mais hábeis, declarando que ser católico é incompatível com ser beneficente.

O clero começa a reconhecer entre a Igreja e a vida incompatibilidades inesperadas.

Devem lembrar-se que a Igreja vive de esmolas! que o Papa vive de esmolas! E essa teoria nova leva a suprimir o dinheiro de S. Pedro, a côngrua, todos os haveres ecle-siásticos.

Por outro lado se o sacerdote começa a esmiuçar à beira do leito de morte a vida do moribundo, para achar nela incompatibilidades com o Céu, podem dar-se casos terrivelmente burlescos. Porque se é um pecado irresgatável o ter trabalhado em eleições (o que constitui uma das ocupações da maçonaria), sê-lo-á igualmente ter pertencido a unia filarmónica — outro emprego fortuito da maçonaria. Em algumas terras do reino as sociedades maçónicas filiais — não tendo trabalhos, nem fins mais altos — reúnem-se usualmente como bandas de música! E assim chegaremos ainda a tempos amargos em que os jornais publiquem esta retractação:

«Declaro que renego e me arrependo do facto culpado e terrível de ter, em companhia criminosa, esquecido todos os deveres cristãos, e sob a influência do espírito mau — tocado o «Barba Azul» no clarinete!»

Não se vê menos embaraçado o próprio Governo, ele!

A Igreja condena a maçonaria; mas a maçonaria é hoje simplesmente uma sociedade constituída para fazer eleições; — a Igreja portanto condena completamente o tráfego eleitoral.

Tem pois o Governo a escolher entre fazer eleições, o que lhe atrai a reprovação da Igreja, ou contentar a Igreja, o que lhe traz a perda do poder! Porque ter depois de morto a glória do Céu, e em vivo a delícia de gozar como deputado o Sr. Melício — não pode ser!

Tem de escolher entre Melício para a câmara e o Céu para a bem-aventurança. Se, para ganhar o Céu, repele Melício com pudico e místico meneio — perde um formoso apoio: e se, para ter esse voto considerável, acolhe Melício com amoroso braço, rasgam-se- lhe sob os pés as fendas do abismo teológico.

Tem de decidir — entre o Céu e a maioria. Devoto, perde as eleições; eleitoral, perde o Paraíso. Ou S. Pedro ou Melício.

Melício está-lhe de frente, com todas as apetitosas atracções da maçã proibida, nas manhãs do Paraíso. Se estende mão ávida para colher Melício, Satã, o terrível comissário civil do abismo, deita-lhe a mão à gola do casaco: se se afasta, e deixa, sem o colher, Melício baloiçando-se na ponta do ramo verde, perde um voto imenso. E enfim o Céu é o Céu, mas um Melício é um Melício. Que fazer? colher Melício? — é o ranger de dentes. Deixar Melício nas árvores para que os pardais o comam? — é a queda do poder. Porque aqui Melício é mais que homem, aqui Melício é pomo, o pomo de onde depende o Bem e o Mal! (E não falamos do Sr. Melício, inteligente e laborioso rapaz, que amamos: falamos do grande símbolo constitucional, d’Ele, de Melício!)

Que fará o Governo nesta questão espinhosa? Renunciará às eleições ou renunciará ao Céu? ==__MACH__:Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/43== VII

Janeiro 1872.

«Sei — diz o Sr. Sampaio — que muitos concelhos mortos para a administração vão ressuscitar para a resistência.»

É a verdade. Há concelhos cm que nem câmara, nem administração, nem regedoria se manifestam mais do que em atravessar pomposamente a praça, no dia da procissão dos Passos, fazendo reluzir ao sol o óleo espesso do penteado. A vila está entregue aos acasos naturais. Nenhumas obras; as vielas descalçam-se, os muros aba-tem, os enxurros empoçam. Nenhuma higiene: a imundície apodrenta em sossego, os maus cheiros fazem atmosfera, os porcos fossam às portas, a praça é uma capoeira pública. Nenhuma polícia; no mercado a desordem, na taberna o jogo, nas esquinas os bêbedos. A administração namora as moças, a regedoria barbeia os fregueses. Não se cria nada, nem se conserva coisa alguma. O que há serve tranquilamente para se estragar: desde a escola que vai perdendo os discípulos, até à cadeia que vai perdendo as grades. É uma vila que apodrece. Há aí o silêncio dos sítios em que cresce o bolor. Um marchante que passa, uma égua que trota, surpreendem: as crianças escancaram a boca, as autoridades espreitam do canto. Ninguém é rico, ninguém é vivo. Dizem-se apenas meias palavras e aperta-se apenas meio botão. Não se vive inteiramente, como não se vestem inteiramente os casacos: a vida e os casacos — trazem-se às costas.

Pois bem, um dia uma portaria diz: «Este concelho está extinto — e fica anexado a tal outro...

Indignação! Clamor! «O quê! quer o Governo impedir que nós mesmos construamos as nossas estradas, dotemos as nossas escolas? quer amarrar a vontades alheias a força dos nossos braços? É assim que recompensa o nosso zelo provado?...

Nós que há tanto tempo curamos desveladamente, etc...»

Ora se, em atenção a estas reclamações ansiosas, fosse concedido a este concelho o continuar a administrar — ele continuaria a apodrecer.

Estranha inconsequência provinciana! Escandalizar-se uma excelente vila — por a lei lhe tirar um trabalho que ela espontaneamente já tirara de si! Arrufar-se porque a lei lhe estabelece como preceito — o que até aí era nela desleixo! Amuar-se — porque a lei lhe legitima o erro! Reclamar — porque o que fora o vício da sua imbecilidade se torna a virtude da sua obediência! Singular, singular!

Há no relatório da Reforma de Administração, uma frase de poderosa realidade.


VIII

Janeiro 1872.

Tínhamos já coordenado uma página, tendente a mostrar que a portaria que impunha ao Sr. Alves Branco um silêncio, tão anti-higiénico, sobre o hospital de S.

José, era uma portaria que de longe se parecia com uma torpeza, mas que, vista de perto e mais à luz, positivamente se reconhecia que era um crime!

Os jornais oficiais acodem, porém, a declarar que o sr. ministro assinou a portaria sem a ler! E exaltam a sua dedicação em aceitar a responsabilidade pública daquela distracção burocrática!

É realmente louvável que o sr. ministro sustente, por dignidade, o que assinou por surpresa. Mas seria mais louvável que castigasse a surpresa para desafrontar a dignidade! Porque o introduzir sub-repticiamente, sob a pena ministerial que vai correndo, papéis obscenos, é uma acção cuja índole se parece singularmente com aquela outra tão conh ecida dos tribunais — que consiste em meter sub-repticiamente a mão na algibeira de um semelhante e privá-lo dos seus valores. Roubar uma assinatura oficial para legalizar uma acção particular — não difere inteiramente de roubar uma bolsa alheia para saciar um vício próprio.

Mas houve realmente distracção ministerial? Antes queremos acreditar que o sr. ministro ordenou que se redigisse uma portaria no sentido inteiramente justo de fazer uma inspecção ao hospital, e que os senhores empregados se equivocaram a ponto de a redigir — no sentido de proibir toda a crítica e exame do hospital. Tal se nos afigura este caso imundo.

No entanto parece-nos que, se não der alguma atenção mais aos papéis escritos que lhe passam sob a pena, o sr. ministro se arrisca a empalidecer de surpresa diante de todos os números do Diário do Governo. Estando as secretarias, como é notório, povoadas de vates líricos e outras espécies sentimentais não menos torpes, é possível, oh Deus, que se leiam ainda estas linhas, para sempre infamantes:

«Pela presente portaria fica determinado:

Que não fujam, não findem os dias

Que eu ditoso prelibo a teu lado,

Nunca sói o momento fadado,

Em que eu deva deixar-te e partir...

«Secretaria dos negócios do reino. — O ministro, António Rodrigues Sampaio.»

Enquanto à portaria em si própria, todo o seu castigo está neste facto : declara-se oficialmente que ela foi introduzida enganosamente à assinatura do ministro! O que as Farpas pudessem considerar sobre esse documento — seria apenas a beliscadura débil de uma unha irónica. Aquela declaração é para ela a mordedura fumegante do ferro em brasa.


IX

Janeiro 1872.

Não queremos privar os nossos amigos da história de um concurso, cintilante de jovialidade, que estala de riso por todos os poros, espuma paradoxalmente de pilhéria.

Havia um lugar de cirurgião do banco no Hospital de S. José. O concurso era documental. Dois médicos aparecem, concorrendo. Um o Sr. Boaventura Martins, apresenta como documentos os certificados de onze cadeiras do curso médico, tendo dez aprovações plenas com louvor, e seis diplomas de prémios. O outro concorrente não tem nos seus documentos nem louvor, nem prémio; e tem apenas um R. A administração do hospital classificou o Sr. Boaventura em primeiro lugar, como lhe impunha a lógica e a força inatacável dos documentos. O Governo também o considerou digno dessa classificação. Somente sucedia que o ministro não que ria despachar o Sr.

Boaventura e ansiava por despachar o cavalheiro do R. Mas (supremo embaraço!) os documentos, os louvores, os prémios, tinham uma evidência iniludível. «Que fazer?» como se diz nas óperas cómicas. O Governo ruminou nas profundas do seu peito, e tirou dele esta sentença: «O Sr. Boaventura não pode ser despachado por não ter sido recenseado». Surpresa! Assombro!...

Eis o que sucedera:

A lei diz: — «Não pode exercer lugar público o indivíduo que não tenha sido recenseado...». Ora acontecera que o Sr. Boaventura não fora recenseado em tempo competente por descuido da câmara. Quando reconheceu esta omissão, requereu precipitadamente à câmara para ser incluído no recenseamento. A câmara respondeu com bom senso que, tendo passado os 21 anos da lei, o Sr. Boaventura não devia ser recenseado, e que seria inútil que o fosse, porque o contingente do seu ano estava plenamente preenchido.

O Sr. Boaventura juntou aos seus papéis este atestado da câmara. Pois foi justamente fundado nele que o Governo o excluiu do lugar! Não podendo negar-lhe a superioridade de classificação — negou-lhe a validade do concurso!

De sorte que, tacitamente, o Governo confessa:

Que dez louvores e seis prémios num curso habilitam, com superior razão, o Sr.

Boaventura a exercer o lugar de médico do banco do hospital: somente que de nada lhe valem louvores e prémios, porque a câmara municipal se esqueceu de o recensear!

Debalde a câmara exclama pela voz dos seus documentos: «Não, por causa de mim, não! esse cavalheiro requereu para ser recenseado! somente é agora inútil que o seja porque o seu contingente está preenchido!»

O Governo insiste: — «Não! desde o momento em que a câmara se esqueceu de o recensear, esse médico pode ser um hábil carpinteiro, um fino miniaturista, mas é-lhe vedada a clínica! E imediatamente se aproveita desta interdição do Sr. Boaventura — para despachar um cavalheiro protegido e querido!

Portanto, o que se colige é que o concurso não tinha esta interrogativa racional: —

«qual é o melhor médico?» Tinha esta estranha interrogativa: — «qual é o mais bem recenseado?»

O mais bem recenseado seria o mais apto, segundo o Governo, para curar, operar, tratar doentes.

Logo o recenseamento substitui o curso. Ora ninguém negará que qualquer soldado do 5 ou do 18 está mais bem recenseado, e prova melhor a eficácia do seu recenseamento, do que o sábio professor Tomás de Carvalho. Portanto quem, segundo a doutrina do Governo, deveria reger a cadeira de anatomia, seria um soldado do 18 com a autoridade da sua fardeta suja, e não o Sr. Tomás de Carvalho com a autoridade do seu largo saber.

Tal é a história jovial e imunda deste concurso!


X

Janeiro 1872.

Fazer recolher ao cemitério cadáveres que o clero quereria afastar para as estrumeiras, é já um progresso de bom senso, uma aquisição para a dignidade civil, um lucro para a higiene.

A câmara municipal não vê almas, vê corpos Ora depois da morte nem todas as almas se salvam, m as o que sabemos de positivo, é que todos os corpos apodrecem; e os cemitérios são a supressão administrativa desta infecção fatal. Portanto cumpre à câmara vigiar que o transeunte, o eleitor, o contribuinte não seja prejudicado pelos miasmas — nem do ateu nem do devoto. E a sua obrigação civil é enterrar a putrefacção

— sem indagar quais sejam as suas crenças religiosas ou as suas opiniões filosóficas. A

Deus o que é de Deus, à câmara o que é da câmara. Deus escolherá e distinguirá as almas: a câmara deve dar igualmente aos corpos ateus e aos corpos beatos uma cova higiénica. Isto é o legítimo bom senso.

A portaria no entanto não é completa, porque, por uma concessão espiritualista, faz colocar num sítio separado, longe dos túmulos católicos, o jazigo dos irreligiosos ou dos dissidentes. E não podendo a portaria referir-se nem aos protestantes nem aos israelitas que têm o seu cemitério privativo — é decerto para os ímpios que reserva, a um canto, aquele lugar de desdém.

Mas quem decidirá que o cidadão morto foi um ateu? A autoridade eclesiástica? É entregar ao clero a polícia do cemitério, que é toda civil. — A autoridade administrativa?

É entregar ao Estado uma averiguação que é toda da filosofia.

A portaria teria evitado este embaraço decidindo, com uma simplicidade antiga, que todo o cidadão morto será sepultado no cemitério público.

No entanto, pelo progresso que estabelece, a portaria é excelente. Aos racionalistas não deve importar que o seu cadáver seja enterrado na parte do cemitério onde só há cruzes negras, ou naquela parte onde só há árvores verdes. (Têm mesmo a perspectiva de gozarem neste caso um fresco tecto de folhagens, que o vento e os pássaros encherão de doces murmúrios).

E à higiene, à polícia, à dignidade civil, o que importa é que os corpos sejam enterrados nos cemitérios, e não atirados para os cantos dos quintais — o que era uma degradação para o morto e uma infecção para o vivo!

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Agradecemos ao sr. ministro do Reino a sua portaria, resolvendo o enterro dos

ímpios nos cemitérios públicos. E — agradecemos — porque foram as Farpas que se insurgiram contra os escrúpulos e as resistências dos srs. eclesiásticos, perante o cadáver dos inbeatos e dos indevotos. A portaria estatui que haja no cemitério público, jazigo civil dos cidadãos mortos, um lugar para os corpos daqueles que, ou por dissidência de igreja como os protestantes, ou por diferença de religião como os israelitas, ou por princípios filosóficos como os racionalistas — sejam não-católicos. 0


XI

Janeiro 1872.

Registemos esta preciosa declaração do chefe da oposição. Vamos guardá-la, como uma jóia — em algodão.

O Sr. Sampaio, ministro do Reino, no relatório do seu projecto de Reforma

Administrativa, decl ara que a administração, como está, é uma confusão vergonhosa, uma desorganização funesta, um abandono mortal... Enfim — que o País chegou à última decadência administrativa.

Registemos esta confissão sincera do sr. ministro do Reino. Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho.

Resultado: o ministro do Reino e o chefe da oposição declaram oficialmente o

País num estado deplorável de administração.

Ora nem a reforma do Sr. Luciano se efectuará, nem a reforma do Sr. Sampaio se realizará.

De tal sorte, que resta? Que estamos num abominável estado de administração — segundo confessa o Governo e segundo confessa a oposição: e que ficamos nesse estado!

É risonho.

O Sr. Luciano de Castro, chefe da oposição, fez no relatório, que precede o seu projecto de Reforma Administrativa, uma exposição sombria da administração do País.

Aí confessa que acabou

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a fé política e a dignidade política; que não existem partidos com ideias, ruas facções com invejas; que o País está desorganizado e entregue ao abandono; que cada reforma cai sucessivamente com cada Governo; que as leis são um aparato de eloquência parlamentar e não uma eficácia de organização civil... Enfim — que o País chegou à última decadência administrativa.


XII

Janeiro 1872.

Alguns jornais acusam-nos, com toda a gravidade, de sermos violentamente hostis

à realeza e à família real: e obliquamente insinuam que estamos comprados pela demagogia para atacar a Coroa.

Outros jornais acusam-nos, com toda a severidade, de sermos benevolamente cortesãos com a realeza e a família real: e perfidamente sugerem que estamos comprados pela Coroa para vergastar a demagogia.

Fundam-se os primeiros em que fomos menos amoráveis com Sua Majestade a

Rainha — revelando a história indecorosa do mendigo preso.

Fundam-se os segundos em que fomos vassalamente aduladores com Sua

Majestade El-Rei — revelando que ele espalhava, no Bairro da Ajuda, seis contos de réis de esmolas.

As pessoas imparciais compreendem decerto o nosso embar aço:

Por um lado quereríamos desde já atirar palavras pungentes à Coroa, para eficazmente provar que não estamos comprados pelo seu oiro: — mas então patentemente se perceberia que o que nos inspira a prosa amarga, são as bolsas de dinheiro com que nos cobre a pálida demagogia.

Por outro lado quereríamos desde já devotar períodos amorosos à Coroa, para mostrar que não nos acorrenta a força dos tesouros demagógicos: — mas então abertamente se veria que, se falamos com um som tão meigo, é sob a influência dissolvente dos cofres da Coroa! Lívida colisão!

De tal sorte que resolvemos imprimir estas duas cartas, pedindo a rápida justificação da nossa integridade à Monarquia e à Revolução:

AO REI DE PORTUGAL

Senhor. — Alguns malévolos, nossos comuns inimigos, espalham subtilmente que

Vossa Majestade nos sacia de oiro, para que as Farpas conservem perante Vossa

Majestade uma atitude curvada e risonha. Rogamos a Vossa Majestade se digne declarar se já deixou cair na nossa mão estendida — o seu corruptor metal! Vossa Majestade, com mal disfarçado despeito o dizemos, nem sequer é assinante das Farpas! Procedimento este que prova não ser inteiramente erróneo o que a história conta dos crimes da realeza.

Aproveitamos a ocasião de lembrar a Vossa Majestade que são esses actos que tornam odiosos os tiranos — e que, mais tarde ou mais cedo, erguem o desagradável cadafalso de

Carlos I. Um rei que não assina as Farpas vai por um declive, ao fundo do qual tem de encontrar a chorosa vereda do exílio ou o gotejante corredor da masmorra. A recusa da assinatura merece a desforra da revolução! Cuidado! Em todo o caso, por hoje o que pedimos a Vossa Majestade é que declare, como é a intransigível verdade, que nunca

Vossa Majestade passou para a nossa mão uma parte dos seus valiosos tesouros. —

Humildes vassalos.

À HIDRA DA ANARQUIA

Tendo alguns jornais dado a entender que nós atacávamos a realeza porque estávamos para isso pagos pela Hidra da anarquia — pedimos ao dito bicho que declare, publicamente, a falsidade desta asserção imunda.

Aceite, Sr.a Hidra, os protestos da maior consideração. — Os redactores das

«Farpas».


XIII

Janeiro 1872.

A reforma da instrução pública:

A reforma da administração:

A reforma das comarcas...

Estas formidáveis iniciativas parece que deviam ser acompanhadas pelas Farpas com comentários condignos.

Mas, para quê? Todas estas imensas reformas, lançadas triunfantemente a grande ruído de tambor e retórica, durarão, como a rosa de Malherbes — o espaço de uma manhã! Que necessidade há pois de encaixilhar na nossa crítica uma folha que vai secar? Para que entremear de notas o fumo efémero de um cachimbo? para que erguer pedestal à estátua de neve que em breve se derreterá?

Reforma da administração, reforma da instrução, reforma da Carta, reforma da judicatura! P arece que é toda uma regeneração do País! Pois são apenas folhas de papel que palpitam um momento ao vento da contradição, e que daqui a pouco cairão miseravelmente e para sempre, a um canto escuro das repartições. Uma luva cor de palha serve para entrar num baile, apertar finas cintas na valsa, anediar o bigode ovante — e eis que ao outro dia vai no cisco, enodoada e perdida, ser o lixo da esquina! Assim as reformas políticas servem um ou dois meses para um ministério fingir que administra, iludir a Nação ingénua, imitar a iniciativa fecunda dos reformadores «lá de fora», aparentar zelo pelo bem da Pátria, justificar a sua permanência no «poder», fornecer alimento à oratória constitucional: e depois tendo feito o seu serviço, eis que as reformas vão, como todos os papéis velhos e inúteis, ser desfeitos e enrodilhados sob as vassouras justiceiras dos srs. varredores públicos!

As reformas dos srs. ministros são como as fardas dos srs. ministros. As fardas servem para ir ao paço, às galas, ao beija-mão. São o distintivo oficial e bordado dos que governam. Enquanto se tem correio, são escovadas, lavadas com chá, enrodilhadas em papel de seda, estendidas em lençóis de linho, cercadas da atenção zelosa da criada e do pasmo do aguadeiro. Quando o sr. ministro é despedido, a farda é vendida, reduzida a jaqueta de toureiro para se aproveitarem os bordados, dependurada no prego miserável de uma loja de adelo; e depois de ter chegado às costas suadas de um máscara do Casino ou de um comparsa do Salitre, perde-se enfim, miserável e amarfanhada, na dispersão melancólica dos trapos inúteis! Assim as reformas. Com elas o ministro governa, ilude, caracola sobre a eloquência de aluguer, e despacha: e no fim, quando S. Exª é empurrado de novo para a vida particular, as pobres reformas, com que ele tanto se empertigou e tanto se assoalhou, vão, esquecidas e inúteis, jazer na confusão amarelada dos arquivos estéreis! As reformas em Portugal são um adorno externo de ministério — como o correio, e os bordados da gola!

Todo o ministério que entra — deita reforma e cupé. O ministro cai — o cupé recolhe à cocheira e a reforma à gaveta.

Senão vejam:

Reformas Fontes: inúteis.

Reformas Reformistas: inúteis.

Reformas Braamcamp: inúteis.

Reformas Saldanha: inúteis.

Os grandes factos políticos do mês foram as reformas da Carta (plural melancólico!):

Reformas Ávila: inúteis.

Reformas Bispo: inúteis.

Reformas Regeneradoras: inúteis.

Cada ministro tem o dever tradicional de apresentar, como uma justificação da sua nomeação — uma reforma. Os jornais falam dela um momento, a oposição arranja representações na província contra ela, as comissões metem os pés nos capachos e discursam sobre ela... Mas o ministério, por uma intriga, por uma bambocha, ou por um enredo, cai: e a reforma segue-o na sua saída e logo se some como um sulco atrás da quilha!

Quantas reformas de administração, de instrução, de finanças, não tem o País visto aparecerem no horizonte parlamentar, como sombras que vão chegar à vida, e logo esvaírem-se sem terem provado da vida mais que a doçura de um reclamo nas gazetas subsidiadas!

Tem havido, nos últimos três anos, seis reformas de administração — todas irrealizadas, todas mortas ainda de mama! — E depois destas seis tentativas de reformas, o ministro do reino actual confessa que a administração é um caos vergonhoso — e o chefe da oposição actual brada que a administração é um vergonhoso caos!

Haveria um livro a fazer, intitulado: Da fisiologia das reformas em Portugal. Há pelo menos esta definição a dar: — A reforma é uma formalidade que tem a preencher perante o País todo o ministro — menos essencial que o cupé de aluguer, mais necessária que a farda de empréstimo!

Pedimos portanto, urgentemente, que o ministério seja dispensado dessa formalidade!

Que ele tenha cupé de aluguer — bem! Pede-o a civilização, a honra do País, a comodidade dos seus calos oficiais, e os srs. correios que querem trotar!

Que ele tenha farda — melhor! Pede-o a Carta, a corte, e a necessidade de evitar que SS. Ex.as se apresentem a el-Rei de quinzena e gabão.

Mas para que se há-de exigir a um português, ainda que ministro, que reforme?

Quem lucra com isso? Ele não — que não pode alugar essa formalidade na companhia lisbonense de carruagens, nem pedi-la emprestada ao adelo da esquina. O País também não — como sabem.

Para que se há-de exigir pois esse trabalho de inteligência, esse esforço de saber, a um pobre e débil lusitano?

Não, não, não! Que os srs. ministros, em nome da dignidade pública, sejam eximidos a essa formalidade ridícula, anacrónica, caturra — de reformar a Pátria.

Antes se tome este alvitre:

Nas suas carruagens de aluguer os srs. ministros trazem apenas na almofada o cocheiro. Pois em vez de se lhe exigir uma reforma mais sobre qualquer instituição — exija-se-lhe um criado mais sobre a almofada.

Nas insígnias ministeriais, nos símbolos do poder, seja a reforma do País substituída — pelo aparato do trintanário! E o desgraçado Portugal lucrará!


XIV

Fevereiro 1872.

Logo que as recepções, os hinos, os banquetes se produziam para glorificar D.

Pedro II — ele apressava-se a declarar que era apenas Pedro de Alcântara. Quando os horários dos caminhos de ferro, os regulamentos de bibliotecas, ou a familiaridade dos cidadãos o pretendiam tratar como Pedro de Alcântara — ele passava a mostrar que era

D. Pedro II.

De tal sorte que se dizemos que se hospedou entre nós Pedro de Alcântara, erramos — porque ele asseverou que era D. Pedro II. Se nos lisonjeamos por ter hospedado D. Pedro II, desacertamos — porque ele afirmou ser Pedro de Alcântara.

Que farão os historiadores futuros? Dirão que vi ajou em Portugal D. Pedro II?

Mas se ele o negou! Contarão que Portugal foi viajado por Pedro de Alcântara? Mas se ele o contradisse!

Qual é o nome desse homem venerável que passou? A história não tem nome a dar-lhe!

É por isso indispensável, para segurança das crónicas, que se lhe imponha um nome, que, não recordando especialmente Pedro de Alcântara nem D. Pedro II — seja bastante genérico para os abranger ambos; e que ao mesmo tempo seja suficientemente sério para se poder dar a um príncipe, se ele o fosse! e suficientemente simples para se poder dar a um plebeu, se ele o era!

Proporemos portanto aos presentes e aos futuros que Ele — que não pode ser chamado Pedro de Alcântara porque o recusou, nem D. Pedro II porque o vedou — seja simplesmente chamado PSIU!

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Um instante de atenção! O Imperador do Brasil, quando esteve entre nós (e mesmo fora de nós), era alternadamente e contraditoriamente — Pedro de Alcântara e D.

Pedro II.


XV

Fevereiro 18 72.

Confusas opiniões se erguem em torno dessa mala fechada. Que continha ela? —

Uns querem que ela tivesse no seu seio os tesouros imperiais: outros afirmam que ela encerrava os imperiais manuscritos. Alguns, mais profundos, sustentam que dentro havia peúgas: outros, mais discretos, afiançam que dentro não havia nada!

Tal se nos afigura a verdade — a mala não guardava nada!

A mala era uma insígnia — a insígnia do seu incógnito. S. M. trazia em vagão a mala, pela mesma razão que usa no trono o ceptro. Como a coroa é o sinal da sua realeza no Brasil, a mala era o sinal da sua democracia na Europa. A mala formava o seu ceptro de viagem — como o perpétuo chapéu baixo constitui a sua coroa de caminho de ferro. Se S. M. trouxesse as mãos vazias, isso indicaria apenas que Sua Majestade não trouxera o ceptro, porque o incomodava para dormir no beliche do paquete: mas não daria a ninguém o direito de afirmar que ele não era o Príncipe, o Imperante! Com a mala, não! A mala significa que não só não tem na mão o ceptro, mas traz na mão a bagagem; que não só deixou a realeza no Brasil, mas tomou-a sem cerimónia na

Europa! A mala é a tabuleta do seu incógnito! A mala diz: — «apertem-me a mão, tratem-me por Pedro, e não me toquem o hino!» A Europa olhava-lhe para as mãos, via-lhe a mala, e dizia logo: — «Ó aquele, que tal te dás por cá?» O Senhor Pedro trazia a mala para que o não confundissem com Sua Majestade. Aquilo significava: — «reparem que não sou Ele». À entrada das cidades, aproximavam-se deste Príncipe ilustre os cortejos oficiais; mas Sua Majestade mostrava a mala — e imediatamente as autoridades desabotoavam os coletes! Os camaristas dos outros reis iam beijar-lhe a mão; mas Sua

Majestade descobria a mala — e os cortesãos davam-lhe logo, alegremente, palmadas doces no ventre.

Se Sua Majestade percebesse que uma só mala não bastava para mostrar o seu desejo de sem-cerimónia, Sua Majestade era homem para tomar — duas malas! Se a etiqueta insistisse, Sua Majestade deitaria ao ombro — um baú! Em Portugal, como receasse recepções aparatosas à entrada — Sua Majestade acrescentou à sua mala um guarda-sol, e ao seu guarda-sol um embrulho! Foi assim que o viram descer do vagão os povos perplexos! E se não tivesse havido a precaução de retirar apressadamente todo o cerimonial, sabe-se que Sua Majestade estava disposto a mostrar — as suas chinelas de mouro! Mas as autoridades, em toda a parte, mal viam Sua Majestade começar a

Falemos da mala deste príncipe ilustre! Todos a conhecem. Ela deixa na Europa uma lenda soberba. Durante meses, viu-o o Velho Mundo absorto sulcar os mares, atravessar as capitais, medir os monumentos, costear os montes, visitar os reis, ensinar os sábios — com a sua mala na mão! É uma mala pequena, de couro escuro, com duas asas que se unem. É por ali que ele a segura. Ma outra mão trazia às vezes o guarda-sol, debaixo do braço entalava a espaços um embrulho de papel. Muitas vezes depôs o guarda-sol, outras alheou de si o embrulho; — a mala nunca! Paris, Londres, Berlim,

Viena, Florença, Roma, Madrid, o Cairo — conhecem-na. Ela ficou popular na Europa — como o pequeno chapéu de Napoleão o Grande, ou a grande cobardia de Napoleão o

Pequeno! Mesmo a celebridade da mala, encobre um pouco a glória do príncipe. Como disse o bom Beranger da batalha de Austerlitz — «muito tempo se falará dela sob os lustres dos palácios e sob o tecto das cabanas». Dele — menos! demonstrar, por meio de objectos familiares, que não era o príncipe — apressavam-se a recolher toda a gala, receosas que Sua Majestade levasse a sua demonstração até ao excesso de despir as calças.

Foi graças a estas precauções que Sua Majestade conseguiu atravessar a Europa — disfarçado na sua mala. Por isso ela vinha vazia. Sua Majestade não a usava como bagagem — punha-a como disfarce. Sua Majestade trazia a mala — como outros trazem um nariz postiço.

No entanto — disfarce ou bagagem — a mala é profundamente simpática. Dá a esta corte em viagem uma nota nobre de simplicidade e de sinceridade. Uma mala pequena não pode chegar para tudo: tapa por um lado o Imperador do Brasil — descobre por outro o homem de bem.


XVI

Fevereiro 1872.

É verdade que os jornais parisienses contaram que no banquete que o Sr. Adolfo

Thiers, (presidente certo de uma república incerta) deu ao Imperador do Brasil — Sua

Majestade a cada momento cortava a conversação literária e céptica que faiscava em redor da mesa, para gritar com a sua imperial boca cheia: «que precioso peixe! que sublime galinhola!»

No entanto, esta circunstância de estupefacta gula, narrada com ironia pelos jornais de Paris — não oferece autenticidade: é um reclamo, uma adulação política à cozinha do dito Adolfo! As gazetas republicanas como não encontram nada a exa ltar nas ideias políticas de Adolfo — querem ao menos glorificar-lhe as iniciativas culinárias.

E já que não podem dizer: «que organização ele dá à França!» gritam: «que jantares ele dá aos Reis!» A verdade incontestável é que Sua Majestade o Imperador é um sóbrio.

Há, porém, um só petisco, acerca do qual Sua Majestade revela uma gula excepcional. Sua Majestade desdenha demagogicamente, desde a trufa até ao

Johannisberg, todos os delicados mimos da fornalha ou da adega. Uma só coisa neste planeta lhe aguça a língua. Para uma só coisa tem uma sofreguidão incansável e sorvedoura: — para o idioma hebraico!

Sua Majestade é um guloso de hebraico. No hebraico — rapa os pratos e lambe os dedos. E, por uma inexplicável imprevidência, Sua Majestade não traz consigo nem um homem de raça hebreia, nem sequer um cristão hebraizante, nem mesmo um professor de hebraico! De tal sorte que nos longos dias preguiçosos de paquete, nas horas fastidiosas de vagão — Sua Majestade passa cruéis privações de hebraico. Por isso chega sempre esfaimado de hebraico: e mal entra as portas festivas dos hotéis, ainda com a mala na mão, rompe logo a pedir nos corredores, com ganidos de gula, quase com assomos de cólera — o seu hebraico!

Quando Sua Majestade Imperial chegou a Londres, o Príncipe de Gales enviou-lhe um dos seus ajudantes de campo — um daqueles belos capitães de Horse-gards, que põem à noite um jasmim do Cabo na jaqueta escarlate e oiro. Este dândi marcial perguntou a Sua Majestade o que desejava, naquele momento em que punha o seu pé de além-mar nas plagas verdes de Álbion. Esperavam todos que Sua Majestade pedisse chá

— ou um banho.

Sua Majestade respondeu avidamente: — «hebraico!»

Os oficiais olharam-se consternados. E o Imperador, com os lábios secos, as mãos nervosas, o apetite enristado, repetia famintamente: — «hebraico! só hebraico!» — Então, por um rasgo genial, os ajudantes do Príncipe de Gales levaram, a toda a brida fogosa de um landau, o Imperador do Brasil — à Sinagoga! Sua Majestade precipitou-se entre os hebreus. Os sábios rabis, que são doutores da lei, cercaram o homem augusto, e, vorazmente, a grandes bocados, com guinchos de gozo, o Imperador do Brasil consumiu incalculáveis porções de hebraico. Depois de se fartar, olhou em redor — e pediu mais!

Certos donos de hotéis, em cidades da Europa, ficavam apavorados e confusos quando Sua Majestade assomava aos limiares das portas, pedindo hebraico a fortes brados. Alguns arriscavam timidamente:

— Se Vossa Majestade quisesse antes um caldo...

Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vasto império. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da corte nos paços da Tijuca.

— Hebraico!...

— Se Vossa Majestade quisesse antes um monumento...

— Hebraico!

Foi assim em Lisboa, no Lazareto. Sua Majestade, já ao descer as escadas do paquete, vinha resmungando: «salta o meu hebraicozinho!» E daí a minutos expedia gritos famintos. Que consternação! Tudo estava preparado: a canja, a orelheira, a broa, o capilé, o caldo de unto, todos os artifícios do génio português. Mas ninguém se lembrara do hebraico! E Sua Majestade estrebuchava!

Partiram então exploradores em todas as direcções — e por fim voltaram trazendo, estonteado e surpreendido, o Sr. Salomão Saragga, que lê e fala o hebraico.

Sua Majestade esperava ansiosamente, debruçado na janela. Não houve cumprimentos, nem se pôs toalha. Serviram-lhe o Sr. Saragga, assim mesmo — cru! Sua

Majestade deixou-lhe uns restos!


XVII

Fevereiro 1872.

Não nos parece justificável o despeito da Universi dade.

É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei — sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminhos e a rabona — há gradações. Um rei por não ir ao passeio com o seu ceptro de oiro — não se segue que vá com as suas chinelas de ourelo: e por não receber as autoridades revestido do seu uniforme — não é honesto que as receba vestido apenas com a sua pele. Mas também não nos parece que uma quinzena e um chapéu desabado seja toilette que escandalize a douta Universidade!

É necessário que os srs. doutores saibam que a toilette só é realmente exigida — quando a toilette é um fim. Num baile, numa soirée, numa gala, na Ópera — a gravata branca, a luva cor de pérola, a gardénia ou a grã-cruz são essenciais, porque estas festas constituem unicamente uma reunião de elementos elegantes, entre decorações elegantes, para um fim elegante. Tudo aí deve convergir para a harmonia geral — desde as toilettes até às flores. Trata-se de um fino prazer dos sentidos — e a toilette, com o seu brilho exterior, é requerida para o tornar completo e perfeito.

Mas quando se trata apenas de doutorar o Sr. Fulano, bacharel — não nos parece que tenham cabimento as exigências de elegância. Se a veneranda cerimónia do capelo é uma festa que reclama os requintes de toilette — onde estão as rosas, os gelados, as jóias nos colos nus, o rumor dos flirts, as caudas de seda ondeando na valsa? Se o capelo é um sarau galante, porque é que o Sr. Dr. Brito, de direito, nos priva do maravilhoso contorno do seu seio, trazendo batina — afogada?

Porque não vemos os srs. lentes jubilados moverem os leques com a mão calçada em luva de 16 botões? E porque é que o Sr. Forjaz não dirige os arrebatamentos do cotillon? Ah, quereis toilette? Valsai! — Quereis gravatas brancas? — Oferecei gelados! —

Quereis luvas cor de palha? — Amai, venerandos doutores!

Mas para aturar uma enfiada de carões sorumbáticos e de batinas caturras, imóveis num estrado; para ouvir uma charanga torpe dilacerando a grandes golpes de figle um minuete da Srª D. Maria I; para admirar quatro archeiros sebáceos perfilados entre ramos de louro murcho — quereis vós que a gente ponha gravata branca e um jasmim do

Cabo na lapela? Pois não vemos aí os senhores de Teologia, antigos egressos espapados de gordura, com as suas velhas lobas enodoadas? Não vemos os senhores de Direito, antigos comentadores do Pegas, com os seus sapatos achinelados? — Quando foi que a

Universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da toilette? Ela que ainda há pouco levava ao cárcere os estudantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de

A Universidade e os seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e de cerimónia. Dizem que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada — com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez. E a Universidade quis ver no jaquetão de Sua Majestade e no seu chapéu braguês, a mesma significação desatenciosa que o

Parlamento de Paris viu, em outras eras, nas altas botas moles e no chicote de estalo do defunto Luís XIV. banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo — sujá-las!

E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo, ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta — de jaquetão e chapéu braguês! E onde então? Na sala dos capelos — que

é a Igreja onde se professa para doutor, onde se troca a graça mundana pela sensaboria catedrática, onde o sujeito deixa de ser um homem para ser um lente, onde faz o voto de melancolia e de carranca perpétua, e onde se substitui a alma por um compêndio.

E é neste lugar funerário que os srs. Doutores emergem da sonolência sepulcral para murmurarem (talvez em latim!) — olha aquele de jaquetão!

A Universidade dando-se ares de saber que existe o alfaiate Poole! Irrisória vaidade conimbricense!

É célebre! Vimos sempre a Universidade, quando se tratava de pôr gravata branca

— desculpar-se com as suas preocupações científicas. E, agora que se tratava de uma consagração doutoral, a Universidade revolta-se porque um dos assistentes não está de gravata branca!

Pois quê! Recebe a Universidade um sábio, e em lugar de se perder com ele nos retiros difíceis das mais sérias questões do saber — recua, e exclama com uma exigência mundana de cocotte para trás! que horror! vós não estais de casaca! E não compreendo o que havia de intencional, de amável, na toilette de Pedro! Ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum sr. doutor — pelo asseio da sua roupa branca! Vestiu-se com o rigor científico. Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água-de-colónia (sabe-se isto! ) ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária — que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar — não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!


XVIII

Fevereiro 1872.

Ora o concerto não era uma recepção oficial dos corpos do Estado — mas uma festa!

Uma festa com luzes, aromas, orquestras, mulheres decotadas, flores e danças.

Perguntamos se os srs. eclesiásticos, com os seus votos, podem participar destes gozos mundanos.

Ou conhecemos muito pouco a essência do catolicismo — ou não nos parece que os srs. eclesiásticos possam estar legitimamente e segundo a lei da. Igreja, num lugar onde um homem toma nos braços uma mulher, e a arrebata através da sala, roçando-lhe as pontas dos bigodes no calor do colo nu.

Da tradição dos Padres e dos Santos não consta que as piedosas e místicas figuras, desses

Homens do Espírito, fossem vistas jamais por entre o rumor lânguido dos violoncelos e o palpitar amoroso dos leques... De S. Bernardo sabemos que vivia em

Clairvaux para fugir à riqueza de Cister, e aí, sob um alpendre de folhagem, comendo pão duro e bebendo no fio dos regatos, preparava-se para Deus: se se correspondia com o rei de Inglaterra e com o imperador da Alemanha, era em dez linhas apressadas: mas era em dez páginas que escrevia a pobres monges aflitos de alma, para os encher da

Graça. De S. Domingos sabemos que, descalço e esfarrapado, na santa ferocidade da sua fé, pregava e impelia uma cruzada contra os hereges do Languedoc: que vendia os seus livros para comprar lenha aos mendigos: e que um dia, para socorrer uma mulher pobre, como já não tinha dinheiro — se quis vender a si como escravo. Do poético S.

Francisco de Assis sabemos que renegou as suas riquezas, viveu muito tempo num buraco, e partiu a peregrinar as terras, beijando as árvores dos caminhos, falando aos pássaros que lhe voavam em roda — e espalhando sobre todos os seres, flores, rochas, feras, o amor divino que o enchia! Está assim a lenda dos santos cheia de renunciamentos místicos e de uma intratável hostilidade aos regalos. E de nenhum se conta — que fosse espairecer do serviço de Deus para um bufete resplandecente de baixelas, entre champanhe e perdizes trufadas.

A teologia nos ensina, que nunca o sacerdote deve arredar um só momento o seu espírito da contemplação de Deus e da meditação da Graça. Ora não é natural que SS.

S.as estivessem possuídos destas preocupações espirituais, no galante sarau de el-Rei.

Que tínheis em torno de vós, srs. eclesiásticos? Os moles sofás que inclinam às preguiças românticas; os aromas perturbadores de pó de arroz e de femina; as caudas de seda ondulantes e lânguidas; os cabelos Lustrosos, constelados de jóias; os pescoços brancos de um polido de mármore... Entre estas seduções sataníferas que pensavam VV.

S.as , srs. eclesiásticos?

Mais longe, no bufete, estava a trufa e o champanhe... Um sarau dá sede. Como a saciastes, srs. sacerdotes?

A nós outros, homens pecadores e perdidos, não causa já grandes estremecimentos a presença da beleza mortal: estamos acostumados, pela educação, às glórias do decote. Também nos não perturba o demónio cor de opala que faísca no champanhe. Conhecemos Satanás em todas as edições. Para nós um colo decotado não é

Deu-se um facto equivoco no sarau do Paço, oferecido ao Imperador : — e foi que, segundo as mais verídicas informações, numerosos srs. eclesiásticos assistiram ao concerto do Paço. a misteriosa fatalidade do mal — é o pescoço da srª fulana, casada com o conselheiro sicrano: e o champanhe, sobretudo o do Paço, é uma triaga feita com aguapé de Bucelas.

Mas para VV. S.as , educados no isolamento e no regime do seminário, amarrados pelos votos tirânicos, emergidos da frieza da sacristia, fatigados do breviário... Ah, para VV.

S.as !

E, srs. eclesiásticos, os tempos vão de molde que o povo já se afasta dos simples virtuosos — reclama santos! Ora os santos não se supõem entre o frufru dos cetins e o suspirar das rabecas. Ninguém crê que uma rosa saia intacta de um forno, e um sr. eclesiástico puro de um baile. E um povo que não crê na pureza dos seus padres — termina por se esquecer dos martírios do seu Deus!

A verdade — aqui entre nós — é que VV. S.as podem, ao subir para as festas, dar ao criado os seus paletós a guardar; mas não lhe podem dar a guardar — os seus votos. Ora votos, por mais fortes que sejam, se os passearem entre ombros nus, se os fizerem encostar ao bufete sobre os aromas do Madeira, se os deixarem cismar aos compassos de Strauss, terminam sempre por lhes acontecer o que acontece às casas comerciais que abusam das festas — quebrar!

Se, porém, sucedeu que VV. S.as foram ao concerto porque por que Sua Majestade Imperial, assim como quiz lá vêr os folhetinistas, desejou vêr lá os sacerdotes — então lamentemos todos o singular temperamento d’este principe que vae para o vagar dos saraus passar revista ás profissões! Apressado, curio. so, espicaçado pelo tempo escasso, este Imperante pretendia ter nas salas do Paço o indice dos nossos costumes e Portugal em resumo? Sendo assim ainda bem que esse principe, assim como exigiu que na salla do concerto estivessem as profissões —-— não pretendeu que lá se achassem tambem os estabelecimentos! Ainda bem que, para poupar passadas elle não reclamou que além dos folhetinistas e dos sacerdotes comparecessem tambem no sarau — as typographias e as egrejas! — Que embaraço para El-Rei nosso Senhor!


XIX

Fevereiro 1872.

Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O facto em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História tranquila.

No que, porém, as opiniões radicalmente divergem — é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português.

O Diário de Notícias diz que o Imperador foi à mansão do Sr. Herculano.

O Diário Popular, ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente que...

O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao Tugúrio de Herculano;

(ainda que linhas depois se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na

Tebaida do ilustre historiador que...

Uma correspondência para um jornal do Porto afiança que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc.

Outra vem todavia que sustenta que o Imperador foi ao abrigo desse que...

Alguns jornais de Lisboa, por seu turno, ensinam que Sua Majestade foi ao albergue daquele que...

Outros, contudo, sustentam que Sua Majestade foi à solidão do eminente vulto que...

E um último mantém que o imperante foi ao exílio do venerando cidadão que...

Ora, no meio disto, uma coisa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente a casa do Sr. Alexandre Herculano!


XX

Fevereiro 18 72.

Ora fazendo estas iluminações (secretas), eles tinham, Imperial Senhor, um fim supremo, e docemente esperado. Eles, Senhor, são todos homens de bem e de boas famílias, manejam regularmente as quatro espécies, não comem com a mão, e usam boa roupa branca; — mas são acanhados. São acanhados como araras. Deram amplamente o seu dinheiro, mas não dão facilmente o seu segredo. Tremem, recuam. Nós, por isso, compadecidos e generosos, tornamo-nos o verbo destes silenciosos!

Senhor! Ei-los, esses homens prestantes!

Aqui os tem Vossa Majestade a seus pés. Vossa Majestade pode verificar que estão todos bem barbeados. Eles pedem, Senhor, uma coisa bem insignificante. Não é que Vossa Majestade os visite a Vale de Lobos. Nem que Vossa Majestade lhes pergunte pela família, como aquele de quem falam os telegramas de Santarém. Nem que

Vossa Majestade lhes faça a eles a honra que fez à orelheira de porco — prová-los. Nem que Vossa Majestade lhes compre os mimos de Pomona, que a plebe ignorante chama maçãs. Não! Estes cavalheiros, pedem simplesmente que Vossa Majestade os condecore com a comenda da Rosa! Ora aí está!

Ah, Imperial Senhor! é que eles foram incansáveis! Vigiavam alta noite os trabalhos dos obeliscos! Reanimavam com faias exaltadas o cansaço dos operários!

Chegaram a estar de cócoras, revolvendo a terra! Quando a iluminação não ardeu, eles sopraram com desvairada fúria pelos canos! Alguns ficaram calvos! E se não puseram mais iluminações é que, como Vossa Majestade compreende — a cidade não podia ficar inteiramente às escuras!

Ousamos dizê-lo. Vossa Majestade deve-lhes a comenda! Eles não ergueram os dois obeliscos para regalar os príncipes nem para alumiar a plebe. Para isso acendiam fósforos! foi no interesse superior das suas casacas pretas! Senhor, foi para a comenda.

E gastaram o seu rico dinheiro! gastaram contos de réis, Imperial Senhor!

Carta a S. M. o Imperador do Brasil. — Ousamos dirigir-nos a Vossa Majestade Imperial, por um motivo de indeclinável justiça. Veio Vossa Majestade a estes remos, e apesar de termos a obrigação de acreditar (segundo as ordens de Vossa Majestade) que não era Vossa Majestade que estava entre nós, sucedeu que alguns imprudentes, em risco de cair no imperial desagrado, ousaram afirmar por factos públicos que Vossa

Majestade era Vossa Majestade. Igualmente aconteceu que, se por um lado Vossa

Majestade negava ser o Imperador do Brasil, dava bastantemente a entender, por outro, que não era inteiramente nem o defunto Pilatos, nem o actual varredor da Travessa das

Gáveas. Enfim, alguns indiscretos, vendo um homem alto, forte, encanecido, venerando, académico, irmão dos terceiros da Lapa e com uma mala na mão — não esperaram mais, e no seu impulso febril e ávido de glorificar o Imperador do Brasil, festejaram Vossa

Majestade. Deliberaram então estes sujeitos acender, em honra daquele que Vossa

Majestade diz não ser, uma iluminação no Rossio ao pé da estátua do Pai de Vossa

Majestade — a quem nós, por abreviatura, neste País apressado e preguiçoso, chamamos familiarmente «o Dador!» Estes indivíduos ergueram dois obeliscos de madeira e envolveram-nos de tubos de gás: o gás não ardeu. Mas Vossa Majestade não era Vossa

Majestade: — e a iluminação pelo mesmo motivo não foi a iluminação, querendo também passar incógnita. No entanto, se a iluminação se recusou obstinadamente a resplandecer, ficou inteira e pura a intenção dos iluminantes. Eles não tinham lumes em seus obeliscos — mas sua alma estava cheia de lamparinas.

Vossa Majestade é generoso, claro em sabedoria, inesgotável de alma! Esperamos com os joelhos no chão, aos pés do Imperador...

Mas Vossa Majestade sorri! uma benevolência radiosa sobe ao seu rosto! Já o sim desejado lhe baila nos lábios!... Oh, obrigado, Senhor! A generosidade desta graça será recordada nas glorificações da história. (E vós, maganões da Comissão dos Festejos — esfregai as manápulas. Abichastes a comenda!)

Nós, Senhor, penhorados até à profundidade da nossa essência — aqui ficamos nestes países, para o seu serviço bem-amado, ou como historiadores dos seus feitos ou como fornecedores de mais orelheira de porco. — Deus tenha Vossa Majestade sob o seu olhar paternal.


XXI

Fevereiro 1872.

Há longos anos o Brasileiro (não o brasileiro brasílico, nascido no Brasil — mas o português que emigrou para o Brasil e que voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais francamente popular. Cada nação possui assim um tipo criado para o riso público. As comédias, os romances, os desenhos, as cançonetas espalham-no, popularizam-no, desenvolvem-no, aperfeiçoam-no, e ele torna-se o grotesco clássico — que chega a ser motivo de ornato industrial, cinzelado em castiçais, aguarelado em caixas de fósforos, torneado em castões de bengala. A França tem o inglês de coco diminuto na nuca, de larga e aguda suíça em forma de costeleta alourada, dentuça taluda, colarinho alto como um muro de quintal, rabona de xadrezinho, pé largo como uma esplanada, e ar lorpa: ultimamente tem a mais o prussiano, de imenso bigode na focinheira, cabelo em bandós, capacete em bico , um sabre prodigiosamente insolente e um relógio de sala roubado debaixo do braço!

Nós temos o Brasileiro: grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça, joanetes nos pés, colete e grilhão de oiro, chapéu sobre a nuca, guarda-sol verde, a vozinha adocicada, olho desconfiado, e um vício secreto. É o brasileiro: ele é o pai achinelado e ciumento dos romances românticos: o gordalhufo amoroso das comédias salgadas: o figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos: o mandão de tamancos, sempre traído, de toda a boa anedota.

Nenhuma qualidade forte ou fina se supõe no brasileiro: não se lhe imagina inteligência, como não se imaginam negros com cabelos louros; não se lhe concede coragem, e ele é, na tradição popular, como aquelas abóboras de Agosto que sofreram todas as soalheiras da eira: não se lhe admite distinção, e ele permanece, na persuasão pública, o eterno tosco da Rua do Ouvidor.

O Povo supõe-no o autor de todos os ditos celebremente sandeus, o herói de todas as histórias universalmente risíveis, o senhor de todos os prédios grotescamente sarapintados, o frequentador de todos os hotéis sujamente lúgubres, o namorado de todas as mulheres gordalhufamente ridículas.

Tudo o que se respeita no homem é escarnecido aqui no brasileiro. O trabalho, tão santamente justo, lembra nele, com riso, a venda da mandioca numa baiuca de

Pernambuco; o dinheiro, tão humildemente servido, recorda nele, com gargalhadas, os botões de brilhantes nos coletes de pano amarelo; a pobreza, tão justamente respeitada, nele é quase cómica e faz lembrar os tamancos com que embarcou a bordo do patacho

Constância, e os fardos de café que carregou para as bandas de Tijuca; o amor, tão teimosamente idealizado, nele faz rir, e recorda a sua espessa pessoa, de joelhos, dizendo com uma ternura babosa — oh minina!

De facto, o pobre brasileiro, o rico torna-viagem, é hoje, para nós, o grande fornecedor do nosso riso.

Pois bem! É uma injustiça que assim seja. E nós os portugueses que ficámos, não temos o direito de nos rirmos dos brasileiros que de voltaram. — Porque, enfim, o que é o Brasileiro? É simplesmente a expansão do Português.

Existe uma lei de retracção e dilatação para os corpos, sob a influência da temperatura. (Aprende-se isto nos liceus, quando vem o buço). Os corpos ao calor dilatam, ao frio encolhem. A mesma lei para as plantas, que ao sol alargam e florescem, ao frio acanham e estiolam. A bananeira, nos nossos climas, é uma pequena árvore tímida, retraída, estéril: no calor do Brasil é a grande árvore triunfante, de folhas palmares e reluzentes, tronco possante, seiva insolente, toda sonora de sábiás e outros, escandalosa de bananas. Mesma lei para os homens. O espanhol das Astúrias, modesto, humano, discreto e grave — passando para o sol do Equador, nas Antilhas Espanholas, torna-se o sul-americano vaidoso, ruidoso, ardente, palreiro e feroz. Pois bem! O Bra-sileiro

é o Português — dilatado pelo calor.

O que eles são, expansivamente — nós somo-lo, retraidamente. As qualidades internadas em nós, estão neles florescentes. Onde nós somos à sorrelfa ridiculitos, eles são à larga ridiculões. Os nossos defeitos, aqui sob um clima frio, estão retraídos, não aparecem, ficam por dentro: lá, sob um sol fecundante, abrem-se em grandes evidências grotescas. Sob o céu do Brasil a bananeira abre-se em fruto e o português rebenta em brasileiro. Eis o formidável princípio! O Brasileiro é o Português desabrochado.

É o sol de lá que nos fecunda. O Chiado sob os trópicos dá inteiramente a Rua do

Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é como se a espiga se risse da semente. Pelo contrário! o brasileiro é bem mais respeitável, porque é completo, atingiu o seu pleno desenvolvimento: nós permanecemos rudimentares. Eles estão já acabados como a abóbora, nós embrionários como a pevide. O Português é pevide de Brasileiro!

Que somos nós? Brasileiros que o clima não deixa desabrochar. Sementes a que falta o sol. Em cada um de nós, no nosso fundo, existe, em germe, um brasileiro entaipado, afogado — que, para crescer, brotar em diamantes de peitilho, calos e prédios sarapintados de verde, só necessita embarcar e ir receber o sol dos trópicos. Cada lis-boeta, sabei-o, traz em si a larva de um brasileiro. Nós aqui vestimos cores escuras, lemos Renan, repetimos Paris, e no entanto cá dentro, fatal e indestrutível, está aboborando — um brasileiro.

Quem o não tem sentido agitar-se, como o feto no seio da mãe? — Fitais às vezes uma gravata verde com pintas escarlates? É o Brasileiro a remexer por dentro. —

Desejais inesperadamente uma boa feijoada comida em mangas de camisa? E o

Brasileiro. — Apetece-vos ir visitar a Memória do Terreiro do Paço? É o Brasileiro, lá dentro. — Lembra-vos reler uma ode de Vidal ou uma fala de Melício? É o Brasileiro!

Ele está dentro de vós, lisboetas! Ah, sabei-o! vós estais sempre no vosso estado interessante — de um Brasileiro!

E quereis uma prova? É o Verão! É o cruel Verão! Então sob a temperatura germinadora — o Brasileiro interior tende a florir, a desabrochar, a alastrar em cachos.

Então começais a deitar o chapéu para a nuca, a usar quinzena de alpaca, a passear depois do jantar com o palito na boca, a exigir dos vendedores a água do Arsenal, a fre-quentar a Deusa dos Mares! Sabeis o que é? É o Brasileiro, que lá tendes dentro na entranha, atraído pelo sol, a querer romper!

Portanto quando nos rimos dele — intentamos a nós mesmos um processo amargo.

No Inverno a pevide contém a abóbora: mas quando a abóbora cresce no Verão, é ela que contém a pevide. Nós cá contemos o brasileiro; ele lá, chegado ao Brasil, germina, brota em fruto, e nós ficamos-lhe dentro. Ora se esmagarmos a abóbora a grandes golpes de chacota, é sobre a nossa própria e rica pessoa que descarregamos o riso feno.

Tenhamos juízo! Reconheçamo-nos neles como nós mesmos — ao sol!

Tais são as sábias verdades que soltamos de nossas mãos. Aproveitai-vos, compatriotas!

E sobretudo certificai-vos que vós outros, que não deixais a capital, não valeis mais que o minhoto que volta de Pernambuco.

O brasileiro não é belo como Apolo, nem como o mais recente Dom João: — mas tu, ó português, tu também não és belo, e se a tua bem-amada to diz, é que não tem mais nada que te dizer e mente por mero deleite.

O brasileiro não é espirituoso como Mery ou Rochefort: — mas tu, português, não

és certamente espirituoso! De cima dos embrulhos daquela tenda, quarenta folhetins to provam!

O brasileiro não é elegante como o conde de Orsay ou Brummel: — mas tu, português, dândi desventuroso do Chiado, ou contribuinte da Rua dos Bacalhoeiros, tens a tua elegância dependurada no bom Nunes algibebe!

O brasileiro não é extraordinário como Peabody que deu de esmolas cem milhões, nem como Delescluze que queimou Paris: — mas tu, português, és tão extraordinário como uma couve, e ainda tão extraordinário como um chinelo.

Ora o brasileiro não é formoso, nem espirituoso, nem elegante, nem extraordinário

— é um trabalhador. E tu português não és formoso, etc. — és um mandrião! De tal sorte que te ris do brasileiro — mas procuras viver à custa do brasileiro. Quando vês o brasileiro chegar dos Brasis, estalas em pilhérias: — e se ele nunca de lá voltasse com o seu bom dinheiro, morrerias de fome! Por isso tu — que em conversas, entre amigos, no café, és inesgotável a troçar o brasileiro — no jornal, no discurso ou no sermão, és inexaurível a glorificar o Brasileiro. Em cavaqueira é o macaco; na imprensa é o nosso irmão de além-mar.

Brasileiro amigo, queres tu por teu turno rir do lisboeta? A esse colete verde, que tanto te escarnecem, fecha bem as algibeiras; esse prédio sarapintado de amarelo, que tanto te caricaturam, tranca-lhe bem a porta; esses pés, aos quais tanto se acusam os joanetes e os tamancos primitivos, não os ponhas mais nos hotéis da capital — e poderás rir, rir do carão amarrotado com que então ficará o lisboeta, que tanto ria de ti!


XXII

Março 1872

Eis aqui, com algumas reflexões e algumas cifras, o estado da instrução pública em Portugal:

Em primeiro lugar a instrução entre nós está toda a cargo do Governo.

As câmaras municipais, que por uma velha tradição nunca se ocuparam das coisas da inteligência — não dão sequer esmola ao ABC. Uma Câmara tem antes de tudo, como objecto, macadamizar comodamente as ruas ou as vielas de SS. S.as os vereadores; depois tem de construir as estradas que levam às quintas, onde SS. S.as os vereadores, de tamancos e colete aberto, suam sob a folhagem da faia — sub tegmine fagi; depois tem de empregar, subsidiar, e em geral manter, todos os afilhados de SS. 5as os vereadores.

Quando chega a passar o ABC, SS. S.as têm a iniciativa cansada e a bolsa esvaz iada.

Por seu lado os particulares, com singularíssimas e simpáticas excepções, nunca levaram a mão à algibeira, para dar um pataco a uma escola. (E como estranhar esta abstenção pode parecer uma originalidade fantasista, devemos lembrar que em Inglaterra, França, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Itália, Rússia, Espanha, Estados

Unidos, os particulares sustentam com um ombro as paredes da escola que os municípios amparam com o outro).

A lei de 20 de Setembro de 1844 concedeu às câmaras municipais autorização para fundarem, com os seus rendimentos, escolas primárias. Quem atenta nestes termos, supõe muito racionalmente que as câmaras estavam ávidas de fundar escolas, e que o amor da instrução tinha verdadeiramente tomado o freio nos dentes: supõe ainda que leis anteriores teriam circunspectamente domado este ímpeto desabalado de educar : — e que a lei de 1844, alargando um pouco as rédeas, permitiu às câmaras palpitantes o criarem as apetecidas escolas, não numa carreira desordenada, mas num chouto mo-desto: e supõe enfim que, feita a concessão, as câmaras se atiraram aos pulos, aos corcovos, com a cima esguedelhada, a levantar os alicerces das escolas! Pois bem, sabem quantas escolas têm as câmaras fundado, inteiramente a expensas suas, desde

1844, há quase trinta anos? Uma, em Setúbal!

De resto, não sejamos injustos. Algumas câmaras tendo, com o curso dos anos, chegado a compreender que soletrar não é inteiramente tão criminoso como roubar, deram generosamente o auxílio dos seus cofres para a organização do ensino — e as 300 câmaras do Pais, juntas às 4000 paróquias, têm concorrido, neste espaço de 30 anos, com um subsidiozinho de tostões para a fundação de 41 escolas!

Tal é o desvelo, a inteligência, o patriotismo com que SS. S.as , as espessas câmaras municipais, se ocupam da instrução.

É uma situação paralela à dos cafres — de nossos irmãos os cafres.

O Estado, portanto, tem a instrução inteiramente a seu cargo, e sob sua responsabilidade.

Ora, tendo um país a educar, eis o que o Estado tem feito:

Sabeis, amigos, quantas escolas há, de Norte a Sul, neste País onde floresce a vinha e Melício pensa?

2300!

Existindo no País, segundo as últimas estatísticas, 700000 crianças, e não sendo justo que se apertem na estreiteza abafada de uma escola mais de 50 alu nos, (e já é fazer transpirar de mais tenros cidadãos imberbes) segue-se que deveríamos ter 14000 escolas...

Temos 2300!

Devendo, pois, fundar uma escola para cada 50 crianças, possuímos apenas uma escola para cada 300 crianças! Há uma escola para cada 2 00 habitantes!

Das 700000 crianças que existem em Portugal o Estado, nessas 2300 escolas — ensina 97000.

Isto é, de 700000 crianças, estão fora da escola mais de 600000!

Destas 97000 crianças que frequentam as escolas, sabeis, amigos, quantas se apuram prontas, por ano? Segundo as últimas inspecções — em cada 50 alunos apura-se 1 aluno!

Portanto Portugal, de 97000 crianças que traz nas suas escolas — tira por ano, sabendo os rudimentos, 1940!

Mordei-vos de ciúmes, ó cafres!

Para esta situação concorrem o aluno, o mestre, e a escola. E a culpa toda recai no

Estado. Porque o Estado impossibilita o aluno, inutiliza o mestre e abandona a escola.

Vai, como o general Boum, por três caminhos — contra o ABC!

Nos campos a família é hostil à escola, diz-se. Erro. A família não nega o filho à escola, requer o filho para o trabalho. A criança aí, de sete a dez anos, já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, colabora na cultura. Tem a altura de uma enxada e a utilidade de um homem. Sai de madrugada, recolhe às trindades, com o seu dia rudemente trabalhado. Mandá-lo à escola, de manhã e de tarde, umas poucas de horas, é diminuir a força produtora do casal. Um aluno de mais na escola é assim um braço de menos na lavoura. Ora uma família de lavradores não pode luxuosamente diminuir as suas forças vivas. Não é por o filho saber soletrar a cartilha que a terra lhe dará mais pão. Portanto tiram a criança à escola para a empregar na terra.

O remédio a isto seria a criação de cursos nocturnos. À noite, o campo restituiria a criança à escola. Os cursos nocturnos eram outrora exclusivamente para os adultos que tinham o seu dia tomado pela lavoura ou pelo ofício. No entanto num país pobre, como o nosso, de pequena cultura e de pequena indústria, a criança trabalha quase tanto como o homem. O filho tem o seu dia tomado pelo mesmo labor do pai. Os cursos nocturnos deveriam ser sobretudo para ele — senão para ambos.

Ora sabem quantos cursos nocturnos havia em Portugal em 1862? — 62!

Em Itália, país de população apenas quíntupla, e cuja instrução se arrasta vagarosamente, havia — 5000!

Sabem quanto todos os municípios juntos, os trezentos municípios do Pais, dão para os cursos nocturnos, suprema facilitação da instrução? 1200$000 réis!

Sabem quanto dá o Estado para esses 62 cursos? 240$000 réis para os cursos nocturnos! 3$890 réis a cada curso! Pouco mais de três quartinhos! É com estas despesas desvairadas que se fazem as bancarrotas desastrosas!

Mas não é tudo! Em 1867 o ministro do Reino promoveu energicamente a criação de cursos nocturnos. Fez-se um esforço arquejante, e conseguiu-se, depois de meses prolongados, criar 545 cursos! As câmaras, no primeiro entusiasmo, prometeram magnanimamente, para auxiliar estas criações — 12000$000 réis. Pois bem, sabem o que sucedeu? Meses depois, as câmaras negaram-se a continuar as dotações!

Algumas mesmo não chegaram nunca a pagá-las!

Outras não quiseram satisfazer ao professor os ordenados já vencidos!

Num distrito, no bestial distrito de Évora, dos 18 cursos nocturnos que se abriram, restavam apenas, meses depois, 3!

No distrito de Coimbra (oh lusa Atenas!) de todos os cursos que havia, não restava, passados meses — nenhum!

Ultimamente, em Peniche, os cursos nocturnos eram frequentados por 700 alunos.

A hedionda câmara fechou-os todos!

Dos 545 cursos que se conseguiram criar em 1867, restam menos de 100!

Que lhes parece, meus senhores, esta singular infâmia?

Oh, nossa Pátria! Deus na sua justiça te dê uma boa e feroz tirania, que te deite nas palhas das cadeias, te vergaste nos velhos pelourinhos que ainda existam, e te enforque nas traves apodrecidas das forcas de outrora!

Outra das vergonhas desta situação é o professor.

O professor de instrução primária é o homem no País mais humildemente desgraçado, e mais cruelmente desatendido.

Sabem quanto ganha um professor de instrução primária? 120$000 réis por ano,

260 réis por dia! Tem de se alimentar, vestir, pagar uma casa, comprar livros, e quase sempre comprar para a escola papel, lápis, lousas, etc. — com treze vinténs por dia.

Note-se que, para a alta moralidade da sua missão, o professor deve ser casado. Pois bem, para criar uma família — treze vinténs por dia!

Mas ouçam! Já em 1813 a junta directora dos estudos pedia ao Governo que, pelo menos, desse aos professores primários 200$000 réis. Pedia-se isto há 60 anos! A junta dizia, energicamente: «decidamo-nos; sem ordenados suficientes não há professores idóneos». Em 1813, 200$000 réis para um professor era considerado pelas repartições competentes um ordenado — apenas suficiente. E em 1872, com o extraordinário aumento dos preços, a triplicada carestia da vida — o professor tem ainda de ordenado os velhos 120$000!

Note-se mais! Há 35 anos, Rodrigo da Fonseca Magalhães, considerando que o professor não podia viver, nem educar-se, nem aproveitar, com o ordenado avaro do antigo regime — determinou que os professores de Lisboa tivessem 400$000 réis, e os das outras terras 250$000 réis. Pois bem: daí a três meses essas medidas racionais e inevitáveis foram abolidas! Determinou-se até que aos professores não fossem pagos os ordenados vencidos — e arremessou-se de novo, violentamente, o professor para a indigência!

Além disso o professor de instrução primária não tem carreira. Está fechado no seu destino como numa desgraça murada: crescer-lhe-ão os filhos, vir-lhe-ão os cabelos brancos, terá educado gerações, e continuará sem esperança de melhoria a sofrer dentro dos seus l20$000 réis! A falta de carreira é a extinção do estímulo, a petrificação da vontade, o abandono do ser à fatalidade, à rotina e à inércia. O homem assim não procura progredir: embrulha-se na sonolência do seu ofício como quem se acomoda para a eternidade.

Uma eternidade de 120$000 réis! E ainda deste estreito salário tem quase de sustentar a escola. O aluno pobre só aceita o ensino absolutamente gratuito. Se tem de comprar penas, lápis, lousa, pauta, papel — abandona a escola. O professor é forçado a pagar estes apetrechos, de outro modo desertam-lhe a aula, e o vazio da sua escola seria o fim do seu salário.

Acresce que o professorado é uma alta, difícil ciência que se necessita aprender. É esse o fim das escolas normais — aprender a ser mestre. 80 a Itália, tem hoje já 91 escolas normais. Sabem quantas havia em Portugal? Uma. E sabem o que fez o Governo para seguir esse movimento civilizador e fecundo, que por toda a parte multiplicava as

Escolas Normais? Correu sobre a única que tínhamos e — extinguiu-a! É verdade, meus senhores, extinguiua! Dera ela, no pouco tempo que viveu, 91 professores, todos aproveitados pelo Estado — porque 70 regiam ainda há pouco escolas públicas, e o resto ocupava-se no ensino livre!

Este professorado quase sem salário, de todo sem carreira, sem aprendizagem normal, cria a seguinte situação:

Na última inspecção — de entre 1687 professores, só foram encontrados com habilitações literárias 263! E só foram julgados zelosos — 172!

Que vos parece, patriotas?

A escola por si oferece igual desorganização. Os edifícios (a não ser os legados pelo conde de Ferreira, que ainda quase não funcionam) são na major parte uma variante torpe entre o celeiro e o curral. Nem espaço, nem asseio, nem arranjo, nem luz, nem ar. Nada torna o estudo tão penoso como a fealdade da aula. Não pedimos decerto para uso do ABC os clássicos jardins de Armida: mas está na mesma essência da organização dos estudos a boa disposição material do edifício escolar. Sobretudo nas aldeias é quase impossível atrair ao estudo, numa saleta tenebrosa e abafada, crianças inquietas que vêm do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola não deve ter a melancolia da cadeia. Pestallozi, Froebel, os grandes educadores, ensinavam em pátios, ao ar livre, entre árvores. Froebel fazia alterar o estudo do ABC e o trabalho manual; a criança soletrava e cavava. A educação deve ser dada com higiene. A escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória, e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino.

Além disso, de 1 687 (como viram), só 172 foram achados competentes!

É que há um outro mal terrível — a falta de inspecção. A inspecção é a consciência pública da escola. Sem inspecção — o professor que não tem ordenado suficiente, nem destino garantido, nem estímulo eficaz, desleixa-se por falta de interesse, e a escola desorganiza-se por falta de direcção. É o que se dá por todo o País. As escolas estão abandonadas à indolência do professor: e o professor está abandonado à desesperança da vida!

Sabem como é feita a inspecção?

Em cada distrito administrativo há um comissário dos estudos que tem por ano, para inspeccionar as escolas do seu distrito, a gratificação de — 120$000 réis.

Ordinariamente é um professor do liceu ou o reitor. Isto vigora desde 1844. Ora em 1854, o ministro do Reino dizia à Câmara dos Deputados. num relatório: — «os comissários dos estudos, ocupados na direcção dos liceus, e nas regências de cadeiras, não curam nem podem curar da visita e inspecção das escolas primárias!» E pois o

Estado que claramente condena o regime estabelecido em 1844. Pois bem, há perto de

20 anos que esta sentença condenatória, da inspecção dos comissários, foi lavrada pelo

Governo — e ainda existe hoje, em 1872, a inspecção pelos comissários à moda de 1844.

Eis, resumidamente, o estado da instrução.

2300 escolas num país de 4 milhões de habitantes!

De 700000 crianças a educar, apenas se encontram 97000 nas escolas! Destas

97000 apenas se apuram 1940. Portanto de 700 000 crianças a educar — educa o País 1940!

Sendo indispensáveis os cursos nocturnos — criaram-se 545. Hoje restam 100!

Os professores têm em 1872 o ordenado de réis 120$000 — que já em 1813 era julgado absolutamente insuficiente!

Só com boas escolas normais se podem criar bons professores. Havia 1 em 68. Foi extinta! (Tenta-se agora criar 5).

De 1867 professores, foram julgados com habilitações literárias 263 — e zelosos 172!

As escolas são currais de ensino!

Inspecção, não há. Já em 1854 se queixava disso o ministro do Reino! Estamos em 1872!

Eis aqui o estado da instrução pública em Portugal, nos fins do século XIX. 1

A instrução em Portugal é uma canalhice pública!

Que o actual Governo volte os seus olhos, um momento, para este grande desastre da civilização!

1 Desta indiferença profunda e bestial que há pela instrução, devemos exceptuar os excelentes trabalhos do Sr. D. António da Costa. Os seus livros. escritos com uma exacta ciência e com um altivo sentimento, são o protesto da civilização e a desforra do espírito.


XXIII

Março 1872.

A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é «profundamente filho da mulher, , disse Michelet. Sobre tudo pela educação. Na creança, como n’um marmore branco, a mãe grava; -mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras es· criptas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros annos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediencia, honestidade, bondade, é ellà que lh’os deposita na alma. O pae, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A creança está assim entre as mãos da mãe como uma materia transformavel de que se pode tazer — um heroe ou um pulha.

Diz-me a mãe que tiveste — dir-te-ei o destino que terás.

A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães. A geração burguesa e plebeia de 1789 a 93, em França, foi livre, sensível e humana — porque as mães que a conceberam tinham chorado e pensado sobre as páginas de

Rousseau.

A geração de 1830, gerada durante o primeiro império — foi nervosa, idealista, romântica, porque as mães tinham vivido nas emoções heróicas das guerras, na contemplação das fortunas maravilhosas.

Se a geração de 1851, em Portugal, foi mais forte e original do que a nossa — é porque as mães, de onde ela saiu, tinham sido as raparigas vivamente sacudidas pelos tempos dramáticos das lutas civis.

É, pois, superiormente interessante saber o que são hoje, em 1872, estas gentis raparigas de 15 a 20 anos de quem nascerá, para bem ou para mal, a geração portuguesa de 1893. Assim poderemos prever o que elas serão mais tarde como mães, como educadoras.

Que elas nos perdoem, essas gentis meninas, se a nossa pena nem sempre for glorificadora como um soneto de Petrarca: mas a tinta moderna s ai do poço da Verdade.

O madrigal ficou para sempre suspirando esterilmente sobre a lombada dos livros de

Curvo Semedo, o pastoril desembargador; não se atreve a pôr o seu pé florido nestes caminhos revoltos da vida presente. Está tão longe de nós como os pastores vestidos de seda, apoiados a bordões de cristal. Hoje os pastores são rudes miseráveis, cobertos de farrapos. Não suspiram, em versos sonoros, as meiguices a Clóris: pedem mais pão aos patrões!

O madrigal é triste como uma flor de laranjeira de papel, desbotada, atirada para o sótão. Não há nada como belas verdades, sadias e robustas, frescas e moças!

A menina solteira! Vejamos o tipo geral de Lisboa. E um ser magrito, pálido, metido dentro de um vestido de grande puff, com um penteado laborioso e espesso, e movendo os passinhos numa tal fadiga, que mal se compreende como poderá jamais chegar ao alto do Chiado e da vida.

O primeiro sinal saliente é a anemia. Taine diz, pintando o sólido vigor inglês — que o dever essencial de uma menina é ter saúde. A saúde é o esplendor físico da inocência. Mens sana in corpore sano. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam livremente, busto direito, beiços vermelhos — indicam juízo forte, consciência recta, um

A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é

«profundamente filho da mulher», disse Michelet. Sobretudo pela educação. Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; — mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer — um herói ou um pulha. sentir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho — revelam um ser devastado por apetites e sensibilidades mórbidas. Ora entre nós, as raparigas não têm saúde. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne, sem força vital — umas padecem de nervos, outras de estômago, outras do peito, e todas da clorose que ataca os seres privados do sol.

Em primeiro lugar não respiram. Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com as janelas fechadas; — ou percorrendo num passinho derreado a Baixa e a sua poeira. Portanto, falta de ar puro, são, restaurador. O ar da Baixa corrompe o sangue; e o ar das salas, resguardadas por cortinas ou alumiadas a gás, não tem oxigénio e portanto não alimenta.

Depois, não fazem exercício. Uma inglesa tem por dever moral, como a oração, o passeio — o largo passeio, bem marchado durante duas horas, sem preocupação «janota», todo de higiene. Aqui, as que andam a pé, depois de ir de uma loja na Rua do

Ouro a uma igreja no Loreto, arquejam e recolhem à pressa no ónibus. Algumas mesmo não sabem andar; escorregam, saltitam, oscilam. Nada dá tanta ideia da constância de carácter, como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa — direita e certa. As nossas raparigas, constantemente sentadas e aninhadas, quando têm de se pôr a pé e de marchar, gingam e rolam. Além disso, o hábito do sofá, do recosto e da almofada — acostuma às posições lânguidas; cabeça errante, braços amolecidos, corpo abandonado. Uma inglesa nunca toma, por pudor, estas atitudes. São atitudes de serralho ou de pomba amorosa. Uma menina está direita e firme. É como na pintura e na estatuária se representa sempre a Inocência.

Depois não comem: é raro ver uma menina alimentar-se racionalmente de peixe, carne e vinho. Comem doce e alface. Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição. Os antigos moralistas atribuíam-lhe mesmo uma influência deplorável nos costumes e no carácter. Nas casas de província, onde a moral existe guardada em decrépitos provérbios como em frascos, dizem os velhos, com ingénuo horror: mulher gulosa, bicha manhosa.

Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas. O Baltresqui, o Ferrari, a

Confeitaria Lisbonense arrasam o nosso organismo social.

Outra causa de doença é a toilette. Com estes penteados enormes, eriçados, insólitos, em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção inclemente — acumulam sobre a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio. A transudação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de inflamação.

Ouve-se dizer quase sempre às mulheres — Sinto hoje um peso na cabeça!... É o fardo! E o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que se não despe.

Lisboa é a cidade do Universo onde as meninas mais se apertam e se espartilham.

O espartilho que destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo tempo, a circulação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.

De modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este:

Músculos sem exercício;

Pulmões sem ar;

Circulação comprimida;

Digestão estrangulada.

A primeira consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e a graça. A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orelhas despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova — e na bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à virgindade das folhas.

Começam a precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz crua uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouco de pó de arroz, e muitos tules espalhados, tem encanto e pode seduzir. Mas que venha, ao outro dia, a sincera luz da manhã! Todas as mácula’destacam: os cabelos, chamuscados do ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco escuro, toda a pele parece a de uma galinha cozida!... Ah! o velho Páris não lhe daria a maçã.

É a moda, dizem. — Cruel razão! A moda começa por ter isto de absurdo: não é ela que é feita para o corpo — mas o corpo que tem de ser modificado para se ajeitar nela A moda vem de fora, do figurino, feita pela fantasia burguesa de um desenhador de armazém: e aqui, depois, a pobre mulher precisa de reformar o corpo, obra do seu bom

Deus — para o acomodar ao figurino, obra do seu mau jornal. De modo que para susten-tar o chapéu deforma-se a cabeça; para obedecer ao puff torce-se a espinha; para satisfazer às botinas Luís XV desconjunta-se o pé; para seguir o chique das cintas baixas destrói-se o busto. Nunca como hoje, sob o domínio da democracia, se des-prezou, se deteriorou tanto o corpo humano. Não é com a intenção mística daquela santa que cortou o nariz para aniquilar as glórias mortais da sua beleza! Não! Hoje mais que nunca se glorifica a beleza, e o corpo é o fim supremo. Somente não se aceita o corpo que a natureza dá — e procura-se aquele que se vende nas modistas. Ah! onde estão os tempos em que a beleza era como uma santidade! em que a vida toda era uma educação e idealização do corpo! em que se erguiam estátuas às nudezas maravilhosas! em que o desfigurar um homem era punido com as velhas leis bárbaras do sacrilégio! e em que o ateniense, nas conversas dos pórticos ou nos peristilos dos banhos — se ocupava menos da invasão de Xerxes do que do corpo de Lais! Veja-se então que racional, bela, harmónica toilette. Uma larga túnica de Linho, de amplas pregas, que deixava o corpo livre, inoprimido, em toda a bela originalidade das suas linhas... Mas mesmo nos tempos bárbaros se respeitava a perfeição da forma. E era em pleno ascetismo, quando a carne se tornara o crime da vida. Vejam-se nos tempos merovíngios e carlovíngios — os vestuários daquelas rainhas sanguinárias e magníficas que brilham nas iluminuras dos velhos códices. Um vestido inteiro, branco ou negro, modelando o corpo como uma luva, o pescoço livre, os cabelos em duas tranças, ao comprido das costas.

A moda destrói a beleza e destrói o espírito. Um caixeiro desenha a lápis, em

Paris, um certo chapéu, um certo corpete, umas certas mangas — e todas, magras e gordas, as loiras e as trigueiras, as altas e as pequeninas, se introduzem, se alojam, se enfiam naquele molde, sem se preocuparem se o seu corpo, a sua cor, o seu perfil, a sua altura, o seu peito, condizem, harmonizam, vão bem com o molde decretado e chegado pelo correio. Abandonando-se servilmente ao figurino, abdicam a sua originalidade, o seu gosto. Aceitam uma banalidade em seda — e um lugar comum com folhos. Uma senhora que não inventa e não cria os seus vestidos — é como um escritor que não acha e não inventa as suas ideias. Ter a toilette do figurino, é fazer como os merceeiros que têm a opinião da sua gazeta. Desabitua o espírito da invenção, da espontaneidade, da liberdade. É uma confissão tácita de que se não tem espírito, nem fantasia. Seguir um figurino é aprender a elegância de cor, para a ir recitar na rua; é ter o gosto que se recebeu de encomenda; é alugar o chique, ao mês; é mandar vir as ideias pelo correio; é o bom tom por assinatura. Que falta de espírito! e os maridos pagam-no!

Depois da anemia do corpo, o que nas nossas raparigas mais impressiona — é a fraqueza moral que revelam os modos e os hábitos. Nada mais significativo, já notámos, que o seu modo de andar. Veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito, sério: sente-se ali a saúde, a decisão, a coragem, a personalidade bem afirmada. Veja-se o andar de uma menina portuguesa, arrastado, incerto, hesitante, mórbido: sente-se aí logo a indecisão, a timidez, a incoerência.

A sua preguiça é um dos seus males. O dia de uma menina de dezoito anos é assim dissipado: almoça, vai-se pentear, corre o Diário de Noticias, cantarola um pouco pela casa, pega no croché ou na costura, atira-os para o lado, chega à janela, passa pelo espelho, dá duas pancadinhas no cabelo, adianta mais dois pontos no trabalho, deixa-o cair no regaço, come um bocadinho de doce, conversa vagamente, volta ao espelho, e assim vai puxando o tempo pelas orelhas, derreada com a sua ociosidade, e bocejando as horas.

Outro mal seu é o medo, um medo horrível de tudo; de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldados e das máscaras. Não são capazes de atravessar uma sala apagada à meia-noite; se um rato corre no soalho, saltam para cima dos móveis; gritam só com ver um revólver; têm os terrores que têm os canários.

Não há nelas nenhuma decisão, um quase nada as embaraça. É necessário que tudo em roda na vida seja muito fácil, muito claro, muito pronto; de outro modo, hesitam, estacam, sucumbem. Um não, uma carruagem que falta, o relógio que parou, o tempo que mudou — e aí estão inutilizadas. Basta vê-las no Inverno, num grande dia de chuva. A inglesa, se tem que fazer compras ou visitas, põe o seu water-proof, calça as suas galochas, toma o seu guarda-chuva, e aí vai chapinando a lama. A portuguesa em casa, encolhida, amuada, inclusa (segundo a pitoresca expressão do nosso grande desenhista Manuel de Macedo), cai, por causa de alguns pingos de água, numa desolação maior que a de Job sobre o seu monturo.

É vê-la nas jornadas! se tem de montar a cavalo, que sustos, que gritinhos, que padre-nossos murmurados! A bordo de um paquete, a inglesa, a francesa, gostam de subir à tolda, ver o mar, sentir a brisa húmida: a portuguesa em baixo, geme, reza, e toma caldos.

Daqui vem a sua falta de acção, a sua infeliz «passividade». Uma menina portuguesa, não tem iniciativa, nem determinação, nem vontade. Precisa ser mandada e governada; de outro modo, irresoluta e suspensa, fica no meio da vida, com os braços caídos. Perante um perigo, uma crise de família, uma situação difícil, rezam. Têm a fé abstracta que só Deus as pode inspirar, dar-lhes a decisão, a ideia precisa: mas terminam quase sempre por seguir o conselho da criada.

Veja-se que companheira para a vida do homem — e do homem moderno que não

é um trovador ou um contemplativo, nem um sultão para ter aninhadas, em fofas almofadas, huris perfumadas; mas um trabalhador, que precisa ganhar o seu pão, arcar com todas as durezas da vida. Como há-de ele lutar com os braços sobrecarregados por estas criaturinhas que desfalecem e gemem, cheias de puff. de pó de arroz, de rabuge, e de mimos de romance!

Que diferença de uma francesa, uma alemã, uma inglesa! Quantas destas encontrou um de nós, nos mais remotos países, nas ruínas e nos desertos, nas montanhas de Judeia, nos desfiladeiros do mar Morto! Sofriam longas horas de sol e caminho, dormiam sob a tenda, comiam entre duas pedras no leito seco das correntes, e sempre alegres, vivas, rosadas, como o shake-hand franco, o riso fácil. Nunca ele se esquecerá de duas nobres e belas inglesas, que viu em Jerusalém.

Dezanove a vinte e dois anos, solteiras. Iam partir para o Jordão, pelo abrasado caminho de Mar-Saba. Uma sobretudo era admirável com a sua alta figura de Diana, um vestido de amazona verde-escuro, justo como uma luva, grandes olhos verdes inocentes e fortes, o pescoço de uma brancura de camélia húmida. Tinham ambas os seus chicotes, luvas de camurça, e à cinta os seus revólveres. Isto é: lutariam, e desfechariam também, se a sua cavalgada fosse atacada por beduínos de rapina. E eram duas crianças quase: se as fitassem de certo modo, corariam, se lhes pedissem a bolsa fariam fogo: tal

é a delicadeza da miss, tal é a sua força. Raça incomparável — de coração doce e de carácter rijo.

Vejamos, um pouco, como as nossas raparigas portuguesas se formam, lentamente, sob a educação interior. As mães põem nas suas pequerruchas todo o interesse que uma artista põe na sua glória: e tratam de dar a essa glória um relevo magnífico. Começam por as vestir como pequeninas senhoras! A pequerrucha de seis, oito anos, uma baby, um bocadinho de criatura, um nadinha de mulher, ei-la já com gravidades de dama, direita, seriazita, coberta de fitas, de rendas, de folhos! Na idade em que precisam de toda a liberdade de corpo e de movimentos para crescer, já trazem a cinta apertada num anel tirânico, a cabeça oprimida por duros penteados em que o ferro lhes cresta o cabelo, os pezinhos devorados pelo verniz, e anquinhas e puffs, e um grande aparato, que é o cárcere do anjo.

Ora a toilette, como a nobreza — obriga. E assim a pequenina pouco a pouco se penetra da influência dos seus vestidos. Aos oito anos olha-se ao espelho, tem perrices por causa de uma fita, põe pó de arroz conscientemente, quer a meia esticada e elástica para dar relevo a uma perninha mimosa. Todos os lábios da família peregrinam no claro, rosado rosto da Bebé; e a criaturinha, que é ainda uma argila santa, vai-se impregnando de vaidade como uma esponja de água. Vivendo na certeza da sua beleza como uma santa no seu altar, toda preocupada de vestidos, afogada em mimo, aclamada e beijada — começa a ter certos sorrisos, a espreitar com um certo disfarce malicioso, a ter umas ternuras de andar, um modo de se retrair, de se recusar, que há-de fazer corar por vezes o seu anjo da guarda. Desabrocham então as pequeninas simpatias, cheias de mistério.

Uma deu um dia a um nosso amigo um amor-perfeito, em segredo, pedindo-lhe que o guardasse. Tinha nove anos. São graças, leves como fios. Mas a vaidade infiltra-se na alma, gota a gota, e cria no fundo aquele lago imóvel, negro e resplandecente, onde, segundo os Místicos, habita e se move o Pecado.

Ao mesmo tempo vai-se-lhe ensinando o catecismo e a doutrina. É a educação moral. A pequerrucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gravidade, a recitar o padre-nosso. Depois, seguidamente, decora todas as orações da cartilha. E termina por papaguear a Doutrina correntemente, de cor, e salteada, como a tabuada ou como as capitais da Europa — mas sem a menor compreensão, sem ligar uma ideia sua às palavras mortas, sentindo através delas um certo terror — porque se trata de Deus e segundo lhe ensinam é Deus quem manda as trovoadas, as doenças, a morte.

Ora para que se ensina a religião a um homem ou a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência e um guia para a sua inteligência; uma doutrina que lhe mostre o que deve pensar e que lhe aponte o que deve fazer: critério para bem-julgar e critério para bem-viver. O que se lhe ensina, porém, no Catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras combinadas, cujo sentido lhe é tão estranho como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente, à maneira de uma lição de escola que tem de 0 recitar a certas horas, depressa ou devagar, por obrigação, como se penteia e como trata as unhas.

De sorte que, tornada um exercício de recitação, uma fórmula trivial que se repete de joelhos, a Doutrina Evangélica fica na memória como uma toada que tem harmonia, mas não penetra o espírito como uma lei que tenha eficácia. A criança repete todos os dias que os pecados mortais são: 1º soberba, 2º avareza, 3º luxúria, 4º ira, 5º gula, 6º inveja e 7º preguiça, etc. Pois bem, qual foi a criança que, diante de um prato de bolos, hesitou jamais em lhe deitar a mão, por se lembrar que a gula é um pecado mortal? Qual foi a que deixou de adormecer sobre os seus livros, por temor de cometer o pecado da preguiça? Qual foi a que se coibiu de gritar para não cair em ira?

— E será porque contra a nossa natureza, fatalmente impregnada do mal, sejam impotentes, e se quebrem como bolas de sabão contra um muro as prescrições da religião? Não. É que para obedecer a um preceito é necessário compreende-lo — como é necessário que, para nos fazermos obedecer de um criado minhoto, não lhe falemos ale-mão.

Ora a criança, que recita maquinalmente, à flor dos lábios, o catecismo — não o percebeu. Declamava-se-lhe a vontade de Deus, sem lha explicar; de modo que às palavras que papagueia, ela não liga ideia que a prenda.

Desde que a criança sabe de cor o catecismo, supõe-se que ela tem religião. Mas se, chegando aos quinze anos, lhe perguntarem — «qual é o teu dever como esposa cristã? qual o teu dever de cristã como mãe? » ela ficará tão embaraçada, como se a interrogassem sobre cálculo diferencial. Da religião sabe a «reza», não sabe o dever: ou pelo menos o que ela supõe o dever é ouvir missa aos domingos, e não comer carne à sexta-feira. Princípios que lhe sirvam para se dirigir na vida, como filha, como esposa, como mãe, como mulher sociável — não sabe um. Sabe rezar o padre-nosso. Diante pois de qualquer circunstância da vida ela, religiosa, cristã e devota — como não se pode guiar pela religião que desconhece — guia-se pelo instinto ou pelo capricho. A religião de que tanto fala, e que tanto usa, aos domingos na Igreja, e à sexta-feira na cozinha, não lhe serve muito mais do que a um canário ou a uma rola. Porque no fim, o que a governa — é o instinto.

Contra as tentações da vida ela não terá no seu espírito conselho, força, resistência ou interesse superior. Uma ilusão, um momento de abandono podem-na perder: e toda a copiosa, aparatosa doutrina que lhe ensinaram e que não percebeu — não a pode salvar.

A pequerrucha Bebé, aos cinco anos, quando dispõe inteiramente da palavra e da frase — começa a mentir. Bebé mente. Uma senhora inglesa ou francesa ou alemã, se vê sua filha mentir, sente-se verdadeiramente ofendida. Uma só mentira contém duas culpas; deixamos de nos respeitar porque afirmamos o que é falso, e deixamos de respeitar os outros porque os induzimos voluntariamente em erro. Em Portugal a mentira da criança faz rir, é uma graça: prova o engenho, a faísca, a agudeza do pequenino cérebro. Bebé começa a mentir para ter triunfozinhos à mesa. No princípio nega o que faz — o que é o germe da covardia: depois conta o que os outros não fizeram

— o que é a semente da calúnia. De resto, entre nós, a mentira é um hábito público.

Mente o homem, a política, a ciência, o orçamento, a imprensa, os versos, os sermões, a arte, e o País é todo ele uma grande consciência falsa. Vem tudo da educação.

A criança cresce na mentira. — «E um cesto roto esta criança» — diz a família rindo. E não sabem que o «cesto roto» fará depois um intrigante, um falso, um caluniador, um intrujão. Às meninas sobretudo (como se supõe que elas não terão relações oficiais ou publicidade de vida em que a mentira possa prejudicar) consente-se a mentira, como uma vivacidade inofensiva! Inofensiva! como se não importasse menos que o homem minta na publicidade da rua — do que a mulher no recato da família. O caso é que Bebé, o loiro, o engraçado anjo — mente!

Além disso é curiosa. Não o diremos inteiramente como um defeito. A curiosidade tem sido muito caluniada: e este nobre impulso humano é quase sempre considerado como um simples vício de criado. No entanto da curiosidade proveio toda a civilização, a Ciência, a Filosofia, as invenções, as descobertas de continentes: toda a

História, toda a Crítica, é obra da curiosidade. Ela é a viagem perpétua que o homem faz através dos factos e das ideias. Grande instrumento de acção, decerto! Mas é necessário saber como a educação o dirige. Descobrir a América e escutar a uma porta — são dois factos de curiosidade. Toda a criança é curiosa; resta saber se os que a educam, pelos factos e pelas ideias que oferecem ao exercício da sua curiosidade, farão dela — uma descobridora ou uma mexeriqueira.

Em Portugal, as mulheres, excluídas da vida pública, da indústria, do comércio, da literatura, de quase tudo, pelos hábitos ou pelas leis, ficam apenas de posse de um pequeno mundo, seu elemento natural — a família e a toilette. Daqui provém que senhoras reunidas, conversando, giram — como borboletas em torno de um globo de candeeiro — em volta destes dois supremos assuntos: vestidos, e namoros. A criança — grande ouvido e grande curiosidade — absorve, como uma esponja chupa a água, tudo o que ouve dizer em redor, no conchego das saias juntas. Espírito nascente, ávido, trabalha principalmente sobre a ideia que contém mistério. Ver o que está dentro — e o ardor da criança, ou se trate de uma palavra que escutou, ou de um boneco que lhe deram. Ora quais são aqui os factos que oferecem à sua curiosidade as conversas da família, mãe, tias, amigas ou visitas? Que fulana casou, que aquela se separou do marido, que é inexplicável a riqueza de toilette de outra, que sicrano lhe faz a corte, mas que sicrano tem uma actriz. E sempre os namoros, os vestidos, os escândalos, os mexe-ricos, as histórias de paixões... O espírito da criança fita grandes olhos nestes mistérios pitorescos! E toda esta vida do mundo, de que lhe chega já nas conversas um sopro e uma vaga sensação, dá à sua pequenina alma uma palpitação ansiosa — alguma coisa do que produz o primeiro cheiro das madressilvas nas borboletas ainda afogadas na vida inerte do casulo.

Qual é depois o resultado? Que vemos aqui meninas, aos quinze anos, falando com grande autoridade sobre casamentos, dotes, adultérios, raptos, e afirmando que tal comédia é fresca ou que tal romance é imoral.

Uma das causas desta precocidade é a casa. Um grande agente na educação da criança é a casa. Em Lisboa as casas não têm quintais — e isto só explica muitos destinos. Num andar, com janela para a rua ou para o saguão, sem horizonte, sem

árvores, sem ar — a criança estiola. Estiolação lenta, que vai produzindo a sobreexcitação dos nervos, a propensão melancólica, a variabilidade de humor, a debilidade do carácter, etc.

Veja-se a criança educada numa quinta. Pela manhã já ela está solta, com um bibe, uns largos sapatos, um velho chapéu. Corre, visita os bois, luta com o carneiro, abraça o pacífico e grave jumento, preside à reunião das galinhas, conhece os ninhos, sabe de cor as árvores; cai, enlameia-se, arranha os joelhos, cura-se pulando, recebe os largos abraços do sol, penetra-se de ar, de vida, de viço; e inocente como um bicho, fresca como uma madressilva, com o bibe sujo, as mãos cheias de terra, o rosto vermelho como uma amora, as narinas palpitando de vida, sem sensibilidade e sem tristezas, com um cheiro de fenos e prados atravessados, espírito vivo da verde natureza, entra em casa aos pulos, berrando pela sua sopa. À noite, cheia de fadiga, dorme como um canário. —

E que educação superior, em verdade, não sai das árvores, das relvas, do pacífico mar-char dos regatos, das recolhidas sombras, das searas, dos milhos, de todos os tranquilos seres que cumprem nobremente, e sossegadamente, o seu dever de crescer!

Mas o melhor é o resultado físico: bom sangue vermelho, forte musculatura, ampla respiração, cabeça fresca, digestão de aço.

Em contraste veja-se uma menina de dez anos, aqui em Lisboa, nestas altas casas encarceradas: pálida, curvada, acanhada, com olheiras, lendo já o jornal, cheia de si, caprichosa, ardendo em vontades, em curiosidades — uma boneca de cera habitada por um bico de gás.

A pequerrucha na quinta habitua-se a estar sobre si, perde o medo, sabe defender-se, tem acção, decide-se. Na cidade são tímidas, gritam, encolhem-se, tremem, empalidecem, hesitam, rezam aos santos, e estão sempre prontas a refugiar-se nos primeiros braços que as acolhem. Mau hábito — dizia a ama de Julieta.

Além disso (grave consideração), no campo a criança está longe da sala, das suas conversações, e da sua malícia: — aqui, aconchegada nos mesmos quartos, penetra-se, aos oito anos, do espírito crescido, o que é deplorável. E por isso que elas aos quinze anos dizem, com um desdém que espanta e faz recuar — — que estão cheias de experiência!

Será necessário que penetremos nos colégios? — Espreitemos só pela porta. — Um dos grandes males do colégio é o tédio. O tédio enfraquece, anula o espírito, a vontade, e só deixa viva e exigente — a curiosidade. De quê? de tudo, do imprevisto, do que se não tem, do que está na rua quando nós estamos em casa, do que está no vício quando nós estamos no dever. Ora se alguém se aborrece é uma colegial. Presa, abafada, arregi-mentada, parece unia flor apertada entre as duas folhas de um livro. Nada a pode prender ao colégio: nem a serenidade de vida — porque não é o sangue buliçoso e sacudido dos catorze anos que aspira a repousar: nem o estudo — porque a mulher, pela simples constituição do seu cérebro, é adversa ao estudo e à ciência: nem a satisfação de cumprir o dever — porque a compreensão abstracta do dever não tem presa sobre o espírito feminino. A mulher, do dever, só compreende um lado, e esse admiravelmente

— o pudor. De sorte que, não a retendo a paz do colégio, nem o interesse da ciência, nem a influência do dever — tudo na sua natureza impaciente e curiosa a leva a desejar o mundo, o ruído, a vida exterior. E nesse estado de espírito que se encontra diante de horas regulamentadas, de lições, de costuras, o refeitório insípido, a uniformidade claustral. O refúgio são as conversas, as camaradagens, as grandes amizades, os segredos... Mas este mesmo regime mantém a imaginação perpetuamente excitada. O mundo aparece-lhes como alguma coisa de maravilhoso, de confuso e resplandecente que se balança indefinidamente, ao rumor das orquestras, e sob o esplendor dos lustres: concebem-se, com desproporções absurdas, os teatros, as salas, os bailes: mesmo as que são pobres, e sabem que na família estarão tão confinadas como no colégio, têm esperanças sobressaltadas, podem casar, ser ricas... E os grandes ímpetos dos sonhos partem em largos voos.

Tomam em desdém os livros e o estudo. Não há educação literária mais falsa, mais esterilizadora do que a dos colégios. Ensina-se à rapariga de oito a dez anos (além das línguas, francês e inglês, que só aprendem bem, depois nas famílias, pelo uso) — dois monótonos martírios de memória — a geografia e a história: a geografia com as suas listas de rios e montes, a história com a sua lista de batalhas e reis. Uma criança gasta meses numa luta áspera, a aprender de cor nomes geográficos e anedotas históricas — que dois dias depois de sair do colégio esquece voluntariamente, com gosto, como põe de parte o escuro vestido de merino do regime escolar. A geografia e a história ficam-lhe sendo assim duas recordações odiosamente colegiais, duas ciências caturras que lhe lembram os óculos da mestra e o seu dedo repreensivo e áspero.

Os colégios, pelos seus métodos fatigantes, repelem o espírito das mulheres dos livros e das coisas da ciência. E o que nos acontece a nós os homens, também, com o

Telémaco e com o Virgílio. Passamos sobre eles as compridas e sonolentas noites do estudo, tiramos-lhes, palavra a palavra, o significado duro, choramos sobre as suas páginas a dor das palmatoadas, de tal sorte que não voltamos mais nem às piedosas e moralistas ideias do puro Fénelon, nem ao grande Virgílio, à sua Geórgica, de profunda educação naturalista, nem à Eneida, primeira aurora do mundo moderno, poema genésico de uma transformação social.

Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras de ciência. Não da profunda ciência (o seu cérebro não a suportaria), mas mesmo dos lados pitorescos da ciência, curiosidades da botânica, história natural dos animais, maravilhas dos mares e dos céus.

Isso lembra-lhes a mestra, o dever, a monotonia do colégio. Depois acham vulgar, insípido. Querem ser impressionadas, abaladas — preferem o drama e o romance. As senhoras inglesas e francesas aos serões de família, lêem, ou para si, ou em voz alta aos irmãos mais pequenos ou aos filhos, livros de história natural, curiosas vidas de animais, viagens. Os livros de Michelet, tão profundamente sentidos, de uma tão grande harmonia moral, o Pássaro, o Insecto, o Mar, a Montanha, têm sido adoptados como livros de família, leituras de serão, doce ciência para espíritos delicados que amam a vida e os seres. Entre nós lêem Ponson du Terrail ou Dumas Filho e o seu bando de analistas lascivos. E, todavia, quanto a história e a vida das flores, a maravilhosa existência dos insectos, a narração de longas viagens, as regiões pitorescas da China, de

Sião, das Antilhas, dos povos bárbaros, contém mais drama e mais maravilhoso do que a descrição dos amores de Pedro e de Francisca, e como ele fitava uma estrela, e como ela arfava de voluptuosidade, e como ambos se perderam num caramanchão.

A imaginação que se desenvolve nos colégios tem outro mal — produz, entre as colegiais, uma vida sentimental precoce e falsa. Daí as mil pequeninas coisas que todos sabem, inocentes no momento, mas que influem mais tarde. As senhoras, mesmo depois de casadas, as contam rindo: são grandes paixões que têm umas pelas outras, com ciúmes, intrigas, vinganças, duelos: cartas que se escrevem em que uma assina João,

Pedro, ou conde de tal: o retrato de um primo que se obtém: o chapéu do mestre de música que se abraça às escondidas, etc., etc.

Depois, diante das mestras, é necessário que a rapariga esteja séria, correcta, fria — quando a imaginação palpita, arfa por voar e vencer. Para isto é necessário disfarçar. E nos colégios que se aprende a astúcia. As mulheres tornam-se aí hábeis em contradizer com o rosto a alma.

Tem dezasseis ou dezassete anos: ei-la entrando na vida. A educação vai-se completar agora por duas influências — uma interior, a família; outra exterior, a sociedade.

A impressão que nesta idade mais directamente lhe dá a família — é toda positiva: a necessidade de ter dinheiro para viver. A organização material da vida e o seu custo, dão-lhe logo a certeza de que sem dinheiro, sem um casamento rico, a vida moderna não

é mais que uma perpetua decadência e uma humilhação. Não falamos aqui nem das ricas, nem das santas — duas raras espécies. Na família a rapariga vê a constante influên-cia do dinheiro; começa a misturar-se no governo da casa, a entrar nas conversas económicas dos pais, a examinar contas, a comprar; — hoje o rol dos fornecedores, amanhã o da modista, depois o do estofador, e um chapéu, e um camarote de teatro, e as luvas. Tudo lhe mostra a vida aplicada, como uma bomba aspirante, à bolsa da casa. A ideia do dinheiro torna-se nela fixa. Além disso, embebe-se dela, nas conversas, nos jornais. Hoje, no fundo do pensamento ou do sonho, há sempre o dinheiro. A preocupação não é a religião, nem a Pátria, nem a Arte — é o dinheiro. O desinteresse é desprezado com uma ingenuidade bacoca. O mundo estende sofregamente a mão.

Primeira, profunda influência no espírito da mulher. — Daí o desejo de casar com dinheiro, casar rica; seja o marido velho, imbecil, rude ou trivial, contanto que traga o dinheiro, e o poder que ele dá.

Por outro lado a sociedade diz-lhe: goza! Ora na vida da mulher o que se entende por gozar? Ter um marido rico, grande luxo de casa, carruagem, camarote de ópera, toilettes magníficas. — É o que todo o pai em Portugal deseja para sua filha.

Casar rica para gozar: é em que se resolve a ambição de todo o destino feminino.

Dinheiro — e sensibilidade.

Courbet, o mais poderoso pintor crítico dos tempos modernos, fez um quadro: As duas meninas do segundo império. E uma paisagem magnífica: duas mulheres solteiras descansam ali, na frescura tépida das sombras. Uma, alta, loira, branca, está sentada; tem o perfil frio, seco, o olhar direito, e, com um dedo apoiado à face, calcula: — sente-se que pensa em dinheiro, juros, acções de companhia e jogo de fundos. A outra, deitada na relva, com os braços estendidos, como abraçando a terra, trigueira, de fisionomia nervosa e imaginativa, a testa curta, os lábios secos, cisma: sente-se que sonha festas, bailes, as grandes voluptuosidades, os encontros rápidos e perigosos no fundo de um parque, e todas as exaltações da sensibilidade. Hoje, pela educação moderna dos colégios, cidades, romances, teatros, música, moral contemporânea — as duas meninas do segundo império, estão em cada mulher: fria ambição de dinheiro, exaltado ardor de sentimentalismo.

Felizmente muitas há que — pela educação severa, ou pela simplicidade de espírito, ou pelo sentimento inteligente da religião, ou pela influência da existência recatada ao modo inglês — estão como numa redoma, não recebem o contágio do mundanismo, e perpetuam o tipo da mulher perfeita.

Julgamos inútil insistir nestes estudos de moral contemporânea.

Uma só consideração resumirá estas notas: a mulher na presença do mundo tentador — está hoje desarmada. Desarmada, inteiramente. A família, com a sua dignidade, enfraqueceu; a religião tornou-se um hábito incompreendido; a moral está-se transformando, e enquanto se transforma, não influencia nem dirige; a fé já não existe; a prática da justiça ainda não chegou: em que se apoiará a mulher? Isto poderá parecer vago. Um exemplo, pois, nítido e prático. Suponhamos uma mulher nova, educada em

Lisboa, com a educação contemporânea. Suponhamos que se lhe diz: «tu terás todas as elegâncias e triunfos da toilette; as tuas carruagens maravilharão a cidade; ninguém possuirá uma casa ornada com mais gosto e requinte; terás bailes, festas ruidosas e magníficas; amarás loucamente; serás doidamente amada por um homem, novo e belo; os vossos amores serão interessantes como uru drama; mas para isto serás forçada a enganar teu marido e descuidar teus filhos, e a tua existência será pecadora perante a religião, injusta perante a moral, indigna perante a família. — Aceitas? » Trata-se de saber se a moral contemporânea dá bastante força a uma alma, para que ela repila, sem mágoa, sem hesitação, com tédio — esta tentação cintilante.

Há muita gente ingénua que supõe que uma grande consideração para a mulher —

é o terror da catástrofe. Pueril ingenuidade. Nada tem um encanto tão profundamente atraente como a catástrofe. Ela satisfaz o desejo mais violento da alma — palpitar fortemente. O que se evita hoje, nesta excitação do mundo, é o terra a terra, o trivial, a chinela, a tranquilidade, o palito nos dentes, e a virtude plebeia. O que se pede é a comoção, a sensação, o sobressalto. Uns procuram-na na política, outros no deboche, outros nas conspirações, outros no amor, outros no dinheiro. Um negociante dizia um dia a Proudhon: Há um prazer horrível em um homem se sentir falir! Esta palavra monstruosa contém a explicação de um mundo. Toda a literatura, teatro, romance e ver-sos educam neste sentido: vibrar, sentir fortemente. Nós mesmos, que estamos aqui moralizando, escrevemos ambos um livro deplorável, que juntava à insignificância literária, a esterilidade moral — O Mistério da Estrada de Sintra. O que é esse livro? A idealização da catástrofe, o encanto terrível das desgraças de amor. Sobretudo do amor ilegítimo e culpado. Aí o perigo, o final trágico, atraem como um abismo delicioso. O marido que mata a mulher, pensando dar um castigo justo ao pecado, dá um relevo poético à paixão. O conde du Bourg, ultimamente, em Paris, mata sua mulher: ela não morre das feridas: e subitamente, torna-se uma espécie de anjo veemente dos amores ilegítimos, e a porta do hospital onde a recolheram à pressa para os primeiros socorros

(fora ferida em casa do amante) está apinhada de senhoras, de elegantes, de mundanos, que pedem notícias dela, deixam-lhe os seus bilhetes, e vão às igrejas pedir a Deus que a salve da morte.

Quem irá nunca orar às igrejas ou deixar o seu bilhete à mulher obscura e pacata, que no silêncio da sua casa cumpre prosaicamente, sublimemente o seu dever? E que a nós só nos excita, nos exalta, o drama! O drama, eis o nosso ideal. Fazer drama, eis a nossa perdição. Pelo drama desejamos a morte e cometemos o mal. Por ele nos lançamos nos destinos violentos. Ora o homem tem para fazer drama — a guerra, as revoluções, os duelos, os livros, e mesmo (infelizmente para muitos empresários) o próprio teatro. As mulheres, confinadas no mundo do sentimento — têm apenas o amor!


XXIV

Abril 1872.

E no dia seguinte, ao teu almoço, recebes um papel dobrado, onde está escrito:

«Deve o senhor fulano à patrulha nº tantos por socorros prestados na estrada de tal — 27$000 réis!»

Que dirias tu, concidadão amado?

Tal foi um caso recente. Uma pequena embarcação acha-se em perigo à barra. Era de noite, escuro mar e escuro céu. A torre de S. Julião dá tiros de «alarme», a pedir socorro. Mas a embarcação escapa-se à vaga e entra o rio, salva. Era uma bateira. No outro dia recebeu esta conta:

«Deve o barco tal, à torre de S. Julião, pelos tiros de ontem — 2$400 réis.»

Ora a Torre de S. Julião, avisando o porto, por meio de tiros, da iminência de um perigo, cumpre um dever estrito de polícia: e portanto apresentando ao barco protegido a conta somada dos seus serviços — cai na inexplicável singularidade daquela patrulha que te salva, concidadão. Esta patrulha argumenta assim: o senhor podia ser roubado e não foi, estava eu aqui, de capote de oleado, a rondar: o Estado paga-me por isso 360 réis diários: deve mais o senhor 4$800 réis!

Esta nova interpretação do preço da segurança vai transformar radicalmente os costumes: o bombeiro reclamará do incendiado a despesa de esforços e de trabalhos que adiantou: o salva-vidas apresenta, sorrindo, ao náufrago, uma conta em que somando as ondas e as forças de remo — exige 7$200 réis por afogado. O farol faz suspender a marcha dos navios e destaca o escaler com a conta: tanto de gás e tanto de boa vontade.

Animadas salutarmente por estes exemplos, a caridade e a filantropia abandonam o idealismo estéril do seu desinteresse — e reclamam salário. Um cidadão escorrega, outro ajuda-o a levantar, e atira-se logo para uma loja de papel a redigir a conta da sua acção piedosa. Um homem cai ao mar e o barqueiro decidido que o salva, apresenta-lhe, com grandes felicitações, este papel:

Por me ter molhado, 1 $000 réis.

Por ter nadado, 15200 réis.

Por ter de mudar de fato, 800 réis.

Por secar este, 350 réis.

Deve o senhor ex-afogado — 3$350 réis.

Uma coisa porém nos perturba, neste sistema judaico da torre de S. Julião. E é que sendo ela tão escrupulosa que não adianta, por caridade, de graça, um tiro de pólvora — é evidente que há-de por todos os modos pretender evitar que a sua despesa não seja

Supõe, querido concidadão, que no escuro isolamento de uma estrada, eras uma noite atacado por dois ladrões. Preparas-te para lhes deixar nas mãos, amigavelmente, o teu relógio e a tua bolsa de trama de prata. Mas os senhores ladrões pretendiam a mais um pequenino divertimento — que era crivar-te de facadas. Estás num momento deplorável... Sente-se de repente o trote de cavalos. E uma patrulha, uma ronda de segurança! Chega, dispersa à pranchada os senhores assassinos, e restitui-te à vida, aos teus negócios, aos beijos dos teus pequerruchos, ao Grémio e aos teus vícios.

Certamente entras em casa trasbordando em gratidão sentida. Que excelente patrulha!

Que bravura, que prontidão, que decisão! Que gente! integralmente paga. A ilustre torre não pode querer decerto que a caloteiem! E decerto só adia

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ntará os seus tiros com segurança de exacto pagamento! Mas como faz a ilustre torre para conhecer da honradez dos seus navios? E de noite com um céu negro, um mar bravio, um vento ululante, o barco é apenas uma forma indistinta na água inclemente. A ilustre torre não pode saber se ele é uma rica galera inglesa de largo crédito — se uma pobre muleta de pescadores, proletária das águas.

Como distingue a preclara torre? Ela não pode fiar os seus tiros, ao acaso.

Imagine-se que salvava apenas alguns miseráveis varinos de gabão esfarrapado! — Sua senhoria perdia a sua pólvora! Também perante um navio em perigo, ela não pode dizer ao vento que se retraia, à vaga que detenha o seu salto, à rocha que se afaste — para ter tempo de perguntar ao capitão: «quem dá vossemecê por fiador?»

Lúgubre embaraço!

Por outro lado é bem possível que nem todos os preços convenham ao navio. Um náufrago tem direito a ser salvo, por preços cómodos. Pode querer regatear. E a torre anda imprudentemente adiantando trabalho, morrão e pólvora por uma embarcação aferrada aos cobres, que depois se recusará e dirá: «Não, eu não pedi para ser salva por esse preço; tenho mulher e filhos, não o vou roubar à estrada; a senhora torre, se atirou, foi porque quis; quem lhe encomendou o tiro?»

E a venerável torre seria caurinada.

Parece-nos isto, pois, um negócio em que a torre pode perder muito. E com ela o

Estado! Porque evidentemente o Estado recebe avidamente o preço da pólvora gasta.

Nem podia deixar de ser. Não estamos numa situação de tal prosperidade que possamos, com a imprevidência de trovadores — gastar 2$400 réis para salvar vinte vidas. Nós damos frequentemente, nos castelos, nas torres do mar, nos navios, salvas de 21 tiros; mas para celebrar os dias de gala e honrar as esquadras ricas que nos visitam. Gastamos com esse luxo contos de réis de pólvora — mas para sermos uma nação janota. Para salvar uma tripulação não podemos gastar a mais 2$400 réis. Meia moeda por doze vidas! Dois tostões por vida, é muito.

Não podemos ter a caridade gratuita. E necessário que o náufrago largue a espórtula. «Tu, pobre barco, estás aí nessa demência da água impiedosa, torce-te o vento, ladra-te a onda, esperam-te os rochedos; vens cheio de água, é de noite, e estamos nós sós, tu, barco perdido, eu, torre salvadora; vais-te despedaçar, vais morrer.

Ora muito bem... Quereis viver, vós tripulantes, ir para vossas casas tranquilos, para os contentamentos da vida, para o bom sol do dia, tu que és novo, para a tua noiva, tu que

és velho, para a tua filha? Dai para cá três moedas. Se sois miseráveis, vendei a rede, o barco, as amarras, mas passai para cá a quantia!

Com tais falas, tão lógicas, é impossível que o barco — não largue os cobres. E o

Estado não perderá o seu tempo e a sua pólvora.

Tudo para maior grandeza deste País, onde as vinhas florescem, e Osório medita.


XXV

Abril 1872.

O dispensar o templo e o altar na prática dos sacramentos — eis uma nova doutrina teológica e católica, infinitamente original. É a radical inutilização do culto. Se um senhor missionário determina confessar na sua alcova — porque não há-de o senhor pároco dizer missa, na sua sala de jantar?

A Igreja e a sua santa decoração, as imagens consagradas e os vasos, as aras e os sacrários, tornam-se inúteis, e começam a ser como as árvores ou como os teat ros, um regalo da cidade, e um ornato do município. A religião abandona os templos — e hospeda-se na casa particular dos senhores padres. Suas senhorias tomam o culto uma ocupação doméstica. Pela manhã armam a mesa em altar para a missa, e à noite põem-lhe em cima, para a ceia, a caneca vidrada, com vinho. Penduram a toalha ao pescoço do devoto que vai comungar, e enrolam-na depois ao seu próprio cachaço para fazer a barba. Os utensílios da casa servem de alfaias do culto. Como a alcova é confessionário, o púcaro da água é cálice. Para os santos óleos emprega-se o azeite que se emprega para a pescada. Os cadáveres serão levados a casa de suas senhorias e responsados na capoeira ou na sentina. E a criança ao entrar na vida e no cristianismo, será baptizada na pia da cozinha do senhor abade!

Tal é a inovação dos senhores missionários. No Porto a opinião irritou-se porque viu, nesta ordem dos excelentes padres, um plano canónico para organizarem comodamente os seus prazeres.

O Porto equivocou-se. A recomendação inesperada, dos senhores missionários, é simplesmente a aplicação de um princípio que é hoje dominante no espírito do beatério.

O beato, a beata, na religião, não respeitam a divindade, respeitam o sacerdote.

Não prestam culto ao Deus, prestam culto ao padre. Para espíritos embrutecidos, tais como os forma a devoção fanática, Deus é alguma coisa de incompreensível, de vago, de perdido no fundo dos Céus: pelo contrário o padre é o sempre presente e o sempre visível. E o padre que os confessa, os comunga, os penitencia, os doutrina, os guia. De sorte que, lentamente, todo o poder, toda a sabedoria, toda a santidade a atribuem ao padre. Deus está num indefinido misterioso, na profundidade dos firmamentos: o padre está ali, na sua rua, ao pé da sua casa, sempre pronto, e torna-se assim um Deus ao alcance dos sentidos e ao contacto da mão. Veja-se uma beata ou um beato diante de um padre: beija-lhe a mão com temor, conserva os olhos baixos e aterrados, respeita-lhe a casa como um templo; se entra a porta faz mesura como diante do sacrário, não se atreve a contradizê-lo — como à mesma sabedoria; julga-o impecável, cândido e perfeito; e toda a filosofia, desta adoração profana, está no grito pavoroso daquela beata:

«ai! maldita seja eu, que sem saber, enxotei o gato do senhor abade!

Portanto os senhores missionários, costumados a serem tratados como Deus, fazem naturalmente das suas casas igrejas. Continuam logicamente a santidade que o beatério lhes atribuiu. O lugar que habitam julgam-no consagrado. E é com uma

No Porto os missionários têm ultimamente recomendado, às pessoas devotas que se vão confessar — a casa deles missionários! Sendo as mulheres as que mais beatamente se acolhem à direcção espiritual de suas senhorias, esta recomendação toma desde logo uma significação singular e diabólica. sinceridade ingénua que eles confessam nas suas alcovas — e dirão talvez missa na sua cozinha.

Somente, com todo o respeito, perguntaremos aos senhores bispos, se não têm, entre os direitos da sua autoridade, a interdição — e aos senhores governadores civis se não têm, entre os edifícios do seu distrito, a cadeia. E ficaremostranquilos. 0


XXVI

Abril 1872.

Como mudam os tempos! Ha cincocnta annos, na Peninsula, o Legitimismo governava triumphalmente, e apenas, pelos montes, nos despovoados, alguma guerrilha constitucional, mal armada e mal mantida, perseguida com mais rancor que um lobo, protestava, em nome da vaga e indefinida deusa que tem entre os homens o nome inintelligivel de Liberdade, a raros tiros de espingarda. Hoje, ai! o constitucionalismo de guerrilha fez-se exercito, apoderou-se do Estado, estabeleceu-se no Thesouro, e é o legitimismo que anda agora a monte na Navarra e na Biscaya.

Nós somos neutros — inteiramente neutros, entre Carlistas que pretendem a

Espanha, e Constitucionais que a possuem. Parece-nos que ambos têm razão, porque a

Espanha é um país rico e belo, e deve ser bom possuí-la. Nós dois, pela nossa parte, se tivéssemos armas, guerrilhas, munições, um empréstimo e um partido, também iríamos, ao ruído dos tambores, de bandeira ao vento, reclamar a Espanha. O mesmo Sr. Melício, se tivesse um exército e artilharia, também quereria a Espanha para si. Teríamos então o

Melicismo. O que coíbe o Sr. Melício é não ter artilharia.

Somente, apesar da nossa neutralidade, não podemos deixar de notar a atitude feroz dos padres nesta guerra carlista. São curas que comandam as guerrilhas. São eles que pregam, fanatizam, armam, guiam, atacam. E é singular como mãos imaculadas e costumadas à hóstia têm tanto vigor para a clavina.

Já um poderoso filósofo fez notar que o temperamento do padre é inclinado a fazer sofrer. Está na memória de todos os Cristãos, pela tradição do Evangelho, a subtil, a ferina crueldade dos fariseus, que eram sacerdotes. O padre impele à guerra. As matanças de mouros, turcos, albigenses, luteranos, judeus, cristãos-novos, que encheram a história de sangue, foram pregadas, dirigidas, executadas por padres. A inquisição é eclesiástica. A Igreja pôs ali, na invenção dos tormentos, toda a subtil habilidade que tinha posto na argumentação da casuística.

Os processos de feitiçaria deram aos padres ocasião de acender, durante dois séculos, uma fogueira por dia. Os cilícios, contas de pregos, disciplinas, são de origem devota. Depois do corpo a alma. Pela penitência, pelo confessionário, os padres gostam de fazer chorar, sofrer, amargurar, tremer de medo. Sobretudo às mulheres. Oprimir parece ser o instinto do sacerdote. Nas guerras civis são os primeiros a armar-se — e sem querer procurar nos seus hábitos, na sua educação, no seu temperamento, a secreta explicação destas tendências sanguinárias, não é talvez inteiramente inútil contar uma história verídica e lúgubre, que caracteriza, com poderoso e melancólico relevo, a ferocidade eclesiástica nas lutas civis.

Era no tempo das guerras de D. Miguel. Um homem, ainda hoje vivo, constitucional, tinha sido ferido. De miséria em miséria, conseguira recolher-se, esconder-se num povoado, em casa de umas pobres mulheres velhas. Boa gente, piedosa, assustada, consumida pelos terrores do tempo. O homem convalescia.

Começava a erguer-se, a vir à porta, ao sol, tiritar debilmente a sua fraqueza. Um dia as duas mulheres apareceram numa grande aflição. Tinha chegado ao povoado o Batalhão

Sagrado. O homem fora denunciado.

O Batalhão Sagrado era composto de padres armados de clavinas e foices. Era a guerrilha idiota do assassínio. Longe das suas igrejas, desembaraçados dos votos, na

Como mudam os tempos! Há cinquenta anos, na Península, o Legitimismo governava triunfalmente, e apenas, pelos montes, nos despovoados, alguma guerrilha constitucional, mal armada e mal mantida, perseguida com mais rancor que um lobo, protestava, em nome da vaga e indefinida deusa que tem entre os homens o nome ininteligível de Liberdade, a raros tiros de espingarda. Hoje, ai! o constitucionalismo de guerrilha fez-se exército, apoderou-se do Estado, estabeleceu-se no Tesouro, e é o legitimismo que anda agora a monte na Navarra e na Biscaia. liberdade da serra e dos caminhos, ávidos como animais soltos, de clavina ao ombro, iam estes sacerdotes levando através das povoações — uns a cólera bestial do seu fanatismo, outros a violência animal da sua sensualidade, todos uma lúgubre e temerosa opressão. Eram temidos mais que todos os flagelos. Matavam e prendiam. E a prisão era pior que a morte — porque era a tortura requintada e monstruosa. As duas mulheres tremiam ao pé do doente.

— Bem — disse ele — vossemecês em todo o caso não têm que temer. Se os padres vierem eu cá estou. Apresento-me, digo que estava aqui contra a vontade das senhoras.

Atiram-me para um canto e acabou-se. Estou fraco, não me há-de custar muito morrer.

Se dessem busca à casa e me achassem para aí escondido, davam cabo de mim da mesma maneira, e vossemecês padeciam. Assim é melhor. Eu cá estou.

As mulheres choravam, queriam escondê-lo; o homem recusou com a indiferença de um vencido. Daí a pouco o Batalhão Sagrado, com grande ruído de armas, aparecia ao pé da casa, de batina arregaçada, cruz na mão, foice ao ombro.

O homem saiu e disse tranquilamente:

— Aqui estou, sou eu. — Então dois padres, aproximaram-se: cada um o tomou por um lado do rosto, pelas barbas, rindo, e com um empuxão terrível arrancaram-lhas! O homem caiu no chão. Os padres amarraram-no com cordas em cima de um macho, e partiram com ele vitoriosamente, cantando o Bendito, para as prisões de Almeida. A jornada durou dias. Era no Verão. Os ásperos caminhos ardiam de sol. O homem levava o rosto em chaga, com um contínuo suor de sangue. A poeira, o sol, calcinavam-lhe as feridas. Levava as mãos amarradas, e as moscas picavam-lhe a carne viva. Quando chegavam às tabernas, os padres atiravam ao homem um pedaço de pão. De vez em quando, por desfastio, espancavam-no, picavam-no com as pontas das baionetas. A inflamação fazia-lhe nas feridas uma dor pungente, que o pobre homem, domando o orgulho, pedia que lhe mitigassem com água fresca. Os padres então, com grandes risadas... Não pode ninguém escrever o que faziam os padres do Batalhão Sagrado, para refrescar aquelas feridas! Ao chegar à cadeia, atiraram-no para cima de uma esteira.

Quando voltou a si, um homem estava debruçado sobre ele. Era um enfermeiro de acaso, um preso também, um compadecido daquela desgraça. Esse preso piedoso não era um vencido político. Era um assassino. — E foi ele que curou as chagas feitas pelos senhores padres do Batalhão Sagrado.


XXVII

Julho 1875.

O Minho tem, sim, uma paisagem original, murmurosa e profunda. Mas Sua

Majestade conhecia o Minho e o encanto das suas sombras, e não é conjecturável que para se refazer dos tédios emolientes da sua capital, fosse buscar a Laundos ou a Bouças a fina flor das sensações. Aquela viagem não era um suave regalo, era um fatigante dever; e Sua Majestade ia, pelas monótonas exigências do seu cargo, examinar o estado das províncias, ver a sua civilização, a sua ordem, a sua vida na agricultura, nos estabelecimentos, nos costumes, na feição das ruas. Não nos parece, pois, coerente, que cada localidade — em lugar de se mostrar em toda a sua realidade e verdade — se disfarçasse, se embuçasse em murtas, louros, verdes, festões, alfazemas, de modo que

Sua Majestade poderia, perante aqueles aspectos folhosos, supor-se — não reinando sobre um país — mas governando um caramanchão!

Para honrar a presença do Rei e glorificá-la, lá estavam as multidões, o seu aspecto festivo e amorável, e as vivas glórias das aclamações. As colchas eram inúteis.

Não se desejava saber a opinião das colchas. Sua Majestade preferiria sempre um bom grito alegre que saúda, à fileira dos ramos secos que pendiam mesquinhamente na amarelidão da poeira. Detrás daquelas galas de arcos e de colchas, melancólicas como esqueletos de triunfo, ocultavam-se como um muro velho por trás de uma trepadeira florida, as casas sujas e velhas, as ruas latrinárias, a infecção das cadeias, o escuro desleixo dos quartéis, a negrura das tabernas, a imundície das repartições, a acumulação dos enxurros, a pobreza estagnada das lojas — e se Sua Majestade afastasse o ornato administrativo — encontraria a miséria pública!

Em compensação a localidade, mal chegava el-Rei, punha a mesa. Não o deixaram examinar, respirar, estudar, escovar o pó. Jante! E os proprietários arrastavam-no, debaixo do pálio, para a pesada pompa das merendas minhotas. Não lhe mostraram uma quinta, um estabelecimento agrícola, uma fábrica, um edifício, uma paisagem, uma obra de arte, uma ideia — mostravam-lhe silenciosamente a perna de vitela. Faziam-no viajar, de mesa em mesa, por entre uma paisagem de colchas. Os srs. proprietários não supuseram que Sua Majestade fosse um espírito, uma curiosidade, uma observação — supunham só que era um estômago: ele vinha, dobravam os negócios, e desdobravam a toalha.

A província do Minho, de grande e gordo alimento, supõe que Lisboa amarelada e débil não come. Àquele que chega de Lisboa apressa-se a gente estimável — a fartá-lo.

Com Sua Majestade o cuidado foi tão exaltado que lhe deram bois vivos. Algumas câmaras desejariam substituir a cerimónia gótica da entrega das chaves — pela entrega dos bifes. Porque todos, naquelas pitorescas vilas de remotas e decrépitas ideias, supu-nham que Sua Majestade não fazia uma viagem política, mas uma excursão alimentícia:

Na viagem memoranda e vitoriosa que Sua Majestade El-Rei fez às províncias do

Norte, as cidades e vilas observaram uma singular táctica: disfarçaram-se. Mal Sua

Majestade se avizinhava, as localidades cobriam-se, como de um dominó administrativo, de arcos de murta, bandeiras, festões, ramos de louro, colchas de damasco, dosséis de paninho, lanternas, e fumo de foguetes. A senhora localidade ficava assim escondida, despercebida, agachada, mascarada, trasvestida, sob a decoração de verduras fatigadas e de damascos desbotados. Ora as cidades e vilas deviam saber que

Sua Majestade não foi às províncias do Norte para se divertir! e que Sua Majestade, a respeito dos povos — não lhes queria o amor, queria-lhes o lombo. Além disso, muitos ingénuos daqueles lugares frondosos, querem ser barões; e supuseram que a melhor maneira de atrair a boa vontade de el-Rei, não era à custa de acções valiosas, mas a doses de carne assada. E tanto fizeram nesta recepção suculenta — que Sua Majestade poderá muito bem trazer esta ideia das suas províncias do Norte — que elas não são nem florescentes, nem decadentes — que são apenas indigestas. E invejam-se os Reis!

Quantas singularidades, nesta viagem, da parte das câmaras! Um pouco antes de

Vila do Conde — na estrada, à passagem do Rei, erguia-se este ornato: um palanque — um palanque! — com um mestre-escola cercado dos seus discípulos, funcionando.

Decoração inesperada! As escolas até aqui tinham sido quase tudo, desde enxovia até curral: só não tinham sido duas coisas — escolas e arcos de buxo.

Mas ei-las agora substituindo galhardamente, nas estradas armadas em gala, a coluna de lona do tempo de D. João VI! A câmara escolheu delicadamente a escola para enfeite: podia pôr ali uma filarmónica ou um mastro: preferiu a escola. A instrução torna-se festão de luxo; o ensino arma-se em quadro vivo! Que dizem os livros e os espíritos sentimentais que a escola é civilização, é paz, é futuro, e tantas sonoras imaginações! A escola é ornato municipal, é arrebique de festa, para armar as ruas, enfeitar os largos em vésperas de S. João e nos aniversários da Carta. É uma revelação, isto. A câmara tinha ali aquela escola, não lhe servia de nada, extinguia-se mesquinhamente a um canto, sob c lento bolor. Pois bem. Tira-se a escola da sua inércia, escova-se, arma-se sobre um palanque, põem-se os meninos em Posições estudiosas, arranja-se o mestre com gravidade pedagógica, põe-se-lhe rapé novo no nariz, enverniza-se a palmatória, espera-se; ao longe, na estrada, a poeira enovela-se: — é

El-Rei, sentido! Os trens rodam surdamente no macadame, já se vêem os bordados das fardas, ei-los! E como se poderia erguer nos tambores e nas trompas o hino — ergue-se nas bocas estudiosas o B-a-ba. Eis o ABC hino municipal! No dia seguinte os festejos murcham, desfazem-se os arcos, despregam-se as luminárias, desarma-se a escola — e tudo, lamparinas, livros, ensino e ramos de louro, volta a apodrecer nos sótãos da casa da câmara!

Achou-se enfim, às escolas, um fim, um destino, uma utilidade: ornatos de gala. E esperemos que na próxima viagem de El-Rei ao Norte, seguindo-se o exemplo inteligente de Vila do Conde — os jornais digam:

«A estrada de Penafiel a Amarante estava brilhantemente adornada de escolas primárias: de espaço a espaço, sobressaíam, com lindo efeito, liceus: havia ideia de pôr no topo a Universidade — mas este notável estabelecimento científico — não chegou a tempo!

Oh, terra do nosso berço!

No entanto os jornais sérios comentavam a viagem de el-Rei: e nas suas colunas circunspectas puderam-se ler, com sobressalto, estas linhas textuais e extraordinárias:

«Foi uma providência mandar para (nome da localidade, vimos Penafiel, Vila do

Conde, Vila Real, etc.) um regimento — por ocasião da passagem de Suas Majestades, porque se não poderia prever onde chegaria, sem a enérgica interferência da força pública, o entusiasmo das populações ao avistar a real família.»

E em Lisboa, tremíamos, com apreensões pungentes. Aquela palavra, cheia de prudência, fazia-nos suspeitar nas povoações do Minho — pavorosas espécies de entusiasmo. Para o reter marchavam providencialmente os regimentos e mordiam-se os cartuchos. Lembrava-nos aquele legendário rei mouro que, possuído de um amor sobrenatural pelo seu serralho, o mandou retalhar ao fio de alfange. Lembrava-nos o amor do leopardo, que nos meses magnéticos em que o seu pêlo faísca no fulvo ardor dos juncais, rasga e dilacera a fêmea. — Para que escondê-lo? Temíamos, sim, que pelo dizer dos jornais inteligentes — onde Sua Majestade fosse recebido apenas com agrado — ficasse apenas contuso. — Mas que nas povoações, onde o recebesse um entusiasmo exaltado... ah! receávamos ler, em notícias daí:

«Na nobre povoação de tal, o entusiasmo e a ovação cresceram ao entrar el-Rei sob o pálio. Os membros de Sua Majestade, dilacerados e espalhados em poças de sangue, pela estrada, testemunhavam o amor dos habitantes pelo neto de D. Pedro IV! O senhor infante D. Augusto, compreendido no amor do povo, teve também a sua parte de ovação e lá está — partido ao meio!»

Tais são os jornais sérios! Tal tu foste, Comércio do Porto, excelente folha sonolenta!

Folha de tédio, folha grave e oca,

Quem tão soturna, te espalhou na rua?

Aconteceu, pelas estradas que Sua Majestade percorreu, que, às vezes, saía ao caminho um homem de casaca ou uma mulher de branco; pedia ao Rei um instante de demora, desembrulhava um papel — e lia uma ode ou uma fala. Este procedimento, inaugurado no Minho, agora inocente, gracioso, singelo, pode tornar-se, com o tempo, fatal. Se Sua Majestade não se recusar a estas leituras de estrada, pode ver um dia o seu caminho ladeado de autores impacientes, repletos de manuscritos. O furor da publicidade desvaira. Tendo possibilidade de fazer parar o Rei, o seu séquito, o povo, e formar assim um público, o pensador da província salta à estrada, desdobra a prosa e acomete. Quem tiver um livro manuscrito, mete-o na algibeira, senta-se numa pedra, e espera a família real.

Ora não é justo que quem nas províncias tiver composto, em noites trabalhosas, uma peça literária, se julgue obrigado a não privar dela o Rei. A viagem de Sua

Majestade não é a edição gratuita dos poemas da província. O proprietário imprudente que tiver nutrido no seu seio uma ode, que a afogue, mas não saia com ela à estrada.

Saia antes com a clavina. El-Rei partiu confiado no amor dos seus povos, desprevenido; não deve encontrar à esquina de cada muro a face pálida de um poeta inédito. El-Rei julgava as estradas seguras. Quando muito podia supor que encontraria lobos. Vates, não.

A condescendência de Sua Majestade pode ser-lhe fatal. Quando vir despontar o sujeito inspirado, faça romper a galope. Não são de mais todas as forças de uma parelha

— contra todas as ameaças de uma ode!

Se consentir em parar, perde-se. Sua Majestade não sabe do que é capaz a poesia de província. — Começam suavemente pela ode, e terminam pelo volume. Sua

Majestade vai num plano inclinado com a sua imprudente bondade. Consentiu em ouvir uma fala de júbilo — terminará por ouvir um tratado de aritmética.

E ainda poderá acontecer que um dia, indo Sua Majestade incautamente, por uma estrada, recostado na sua caleche, veja surgir de um recanto um homem pálido, que estenda a mão e diga, lendo: Por uma bela tarde de Verão dois cavaleiros embuçados em capas alvadias, subiam a encosta alpestre do monte, discreteando de coisas de amor... Isto, real senhor, é o meu romance Isaura ou a Vingança do Mouro, em 3 volumes. Eu continuo!

Quando Sua Majestade chegou a Vila do Conde esperava-o uma pompa singular.

Era uma delicadeza da câmara. Estavam na estrada, formados em alas, respeitáveis —

160 bois!

Não queremos escandalizar o boi. Muito menos o boi do Minho. Este animal enorme, gordo, luzidio, atlético e meigo, é o melhor boi das criações de Portugal; poderoso trabalhador, carne tenra, riqueza dos prados, maravilha dos mercados de

Londres. Mas se estimamos o boi nas calorosas fadigas do arado; se o apreciamos na placidez das paisagens planas; se o contemplamos amoravelmente — destacando, no silêncio das sestas, entre as altas verduras ou no descorar do ocaso, quando já se eleva a quente exalação do prado e se começa a ouvir o canto dos sapos, e voam as borboletas pardas — movendo-se para o curral na fila mugidora e lenta; — se o amamos mais tarde — com mostarda e bordéus — ai! apreciamo-lo muito limitadamente — em alas. Em alas só soldados num aparato militar, irmãos do Santíssimo com tochas, ou renques de árvores na terna tristeza das alamedas. Bois, não. Para quê?

Senão, digam-nos: — Para que estavam ali? Em que qualidade? com que intenção?

Como bois, não. O boi está nos campos, ou no prato. Em alas nunca. Em que qualidade se perfilavam, esperando, na poeira da estrada? — Representavam como polícias, para conter em alas a multidão impaciente? Estavam como curiosos? — Porque então, sendo assim, evidentemente se abre uma época inesperada nos destinos do boi! Se eles podem policiar, à orla das estradas, à chegada de um cortejo, então, é talvez económico, conve-niente e seguro — que Lisboa e Porto substituam a polícia civil — pelo gado bovino. O boi é mais sólido, mais sóbrio, mais duradouro e sério que o polícia. Não seria o boi que levaria a sua tarde vigilante, em atitude namorada, diante da criada da esquina; não seria o boi que entraria no fumacento ruído da taberna, a parceirar com os homens do fado.

Não. Mas tinha inconvenientes. Seria o boi respeitado? Ah! é bem certo que se poderia ler nas gazetas aterradas: Ontem um bando de facínoras agarrou o policia º6, todo preto com malhas, e assou-o no espeto. Providências, sr. comissário!» — Ou ainda: «O Café

Centrai acaba de fazer aquisição do polícia nº20, castanho, e tem-no à disposição dos seus fregueses para ceias e almoços. Informam-nos ser da mais tenra a carne deste agente da força pública».

Por outro lado, se o boi estava ali como curioso, para ver o cortejo real, que revolução nos seus hábitos! O boi começa a atender às coisas da civilização. Interessa-se, interroga, examina, aprende. Ei-lo observador, leitor, espectador. E o boi que vai ver passar o Rei, leva-nos logicamente ao boi que vai ouvir cantar a Lúcia. Ei-lo nos teatros, sentado, com uma camélia na papeira, luva gris na pata, correndo o binóculo pelas gazes enganadoras do corpo de baile. Ei-lo cheio de impressões, de desejos, de vida social. Ei-lo no Grémio, ei-lo conversando de perna dada, com o Sr. Melício, na augusta sombra da arcada. Ei-lo nas locais: «Ontem foi pedida em casamento a filha mais velha da Sr.a Viscondessa de... por um dos mais elegantes e conhecidos bois da nossa sociedade. Parabéns aos noivos». Ou também: «Vimos ontem, um dos bois nossos amigos, com a sua gentil noiva, a condessinha de... passeando em Sintra nos Setiais. A gentil noiva, graciosa como sempre, estava de cor-de-rosa. Seu esposo, aquele boi tão elegante e tão crevé que nós todos conhecemos, hoje dado todo à família, ia junto da sua interessante esposa — pastando!»

Oh! bois!

Ah! se por acaso Sua Majestade El-Rei viajasse pela aldeia, numa digressão agrícola, a pé, seria pitoresco, de uma bela e nobre simplicidade, fazê-lo entrar nos prados, entre as possantes juntas de bois suados do trabalho. Mas numa estrada, numa viagem política, numa recepção oficial, os bois misturados com as autoridades, a anca do Ruço roçando a farda do Sr. Administrador, a cauda do Ligeiro fustigando a suíça do

Sr. Recebedor da Fazenda!... Dir-se-ia que os bois faziam parte da deputação da vila, e que, quando o Sr. Presidente da Câmara, na sua alocução, disse nós, se referia — às autoridades e ao gado: e certificava ao Rei que era bem recebido e querido — dos cidadãos e dos bois.

Se por acaso, porém, os bois estavam ali como ornato, arrebique, com a mesma intenção com que estariam arcos de buxo, parece-nos imprudente da parte de Vila do

Conde substituir as grinaldas de verdura — por animais de carne. E inconveniente adornar uma estrada com carne crua. Pode ser um funesto exemplo. A vila seguinte, querendo rivalizar em galas, pode adornar as ruas com carne cozida. E encetando-se estes festejos de carne, pode suceder, desastradamente, que no futuro, numa povoação exaltada — em lugar de atirarem a Sua Majestade flores, lhe atirem almôndegas!

A ovação tão espontânea, tão bela, feita a Sua Majestade no teatro do Porto, teve um singular final. Os mancebos elegantes, dizem os jornais, que, numa grande aclamação, acompanharam o carro de Sua Majestade — ao chegar ao Paço despiram as suas casacas pretas e estenderam-nas no chão, para El-Rei passar por cima.

Srs. mancebos, achamos equívoca esta demonstração! Os srs. mancebos costumam, aí no Porto, fazer às vezes essa estrada de casacas pretas aos pés mimosos de uma dançarina ou de uma contralto famosa: não era lógico que a repetissem a El-Rei.

Os entusiasmos políticos pelos reis devem diferir na essência dos delírios nervosos pelas actrizes. Numa ovação a uma dançarina há fantasia, exaltação, boémia, aparências de orgia, bebeu-se nos entreactos, tem-se os nervos impacientes, vem-se da luz do gás e do pó de arroz dos camarins, ha uma ponta exigente de amor, ela sorri, atira beijos, os seus olhos, gulosos de ruído, cintilam sob o capuz de cetim, rasga a luva em relíquias; grita-se, está-se febril, estroina, absurdo, e quando ela desce do carro, atira-se com o paletó, com o lenço, com a vida, por violência, petulância de sangue, desordem de sensações, como se atira, na cascalhada de uma orgia, com as garrafas de champanhe aos espelhos melancólicos do restaurante! Não é assim com Sua Majestade.

Vitoriar o Rei é uma afirmação política — não é uma estroinice ruidosa.

Consciências de cidadãos que se afirmam, não são bambochas de estudantes que estalam. Não é o cidadão que está ali quando um homem despe a sua casaca, para que a dançarina tal pouse o seu pé subtil: é o rapaz, o estroina, o doido, o amante: não é o cidadão. Quando um homem aclama o Rei — é o cidadão que está ali; não é o namorado, nem o diletante, nem o estroina. Ora despir assim a casaca pode ser natural no estroina, não é digno no cidadão!

Ou Sua Majestade é recebido como um Rei — isto é, uma política, um princípio, uma ideia, e então deve ser aplaudido com dignidade, convicção, seriedade: ou é recebido como uma dançarina famosa e então não se lhe apresenta o pálio — dá-se-lhe uma ceia na Foz, na Mary, com champanhe por copos de água, lorettes encomendadas e o bacará da madrugada.

Sua Majestade foi ao Porto ter a adesão dos cidadãos, e vendo as suas aclamações cerradas, as suas generosas alegrias, pôde julgar-se entre cidadãos honrados, de consciência séria, de auxílio seguro e forte, sólidas amizades para a sua dinastia. Mas, de repente, os sujeitos despem as casacas, como numa orgia — e Sua Majestade, que se supunha entre cidadãos, acha-se apenas entre pândegos! Ora Sua Majestade não viaja para recolher nas províncias a adesão da patuscada!

Os srs. mancebos não se lembraram que ao lado do Rei ia uma Senhora — e que não é uso em tais casos mostrar as mangas da camisa. Para se cumprimentar a Rainha, não se toma a atitude familiar com que se faz a barba. Se entre os senhores é máxima — que quanto mais estima menos roupa — pedimos-lhes em nome do decoro que não estimem El-Rei de mais. Já o amam até ficar em mangas de camisa, não vão apreciá-lo até ficarem em peúgas! E o pudor que o pede, mancebos! Vós ides na amizade real e na toilette por um declive. A liberdade não vos pede tanto. Parai, temerários. Deixai-vos ficar de calças!

E sobretudo, meus senhores, não se mostra a um Rei que ele tem vassalos que julgam a sua casaca mais bem acomodada nas lajes da rua, do que no próprio corpo.

Por Deus! Os senhores não festejavam o 9 de Julho, que os senhores chamam o dia da liberdade? Pois bem; não é próprio festejar a liberdade, com as maneiras da escravidão!

E, depois, uma consideração que há-de ferir os vossos espíritos, é que o pano preto está pela hora da morte! E que há pó, lama, sujidade na rua. E que podíeis arriscar-vos a que o dia 9 de Julho, não vos ficasse gravado no espírito pelas lembranças da liberdade — mas pelas nódoas da casaca. E seria terrível que o comentário desse dia não fosse a glória — fosse a benzina!

Acautelai-vos, filhos do Porto e do País.


XXVIII

Julho 1872.

Assim, que murmuração hostil em torno do sermão político do senhor prior de

Belas! Realmente o caso é característico. — Tínhamos o sermão galante — e aparece-nos agora o sermão político — ou antes, tínhamos o sermão obsceno e estamos em presença do sermão inj urioso.

O sermão obsceno é uma particularidade minhota dos senhores missionários. Um de suas senhorias sobe devotamente ao púlpito, e depois das ave-marias murmuradas, olha pausadamente a multidão feminina, apertada e contrita, e com gestos sumptuosos, anuncia que vai tratar da castidade. Tratar da castidade significa contar a que se arriscam, nos futuros infernos de além-vida, os que cometem os ternos pecados do amor. E então o senhor padre, revolvendo o assunto com a sofreguidão com que um avaro revolve o dinheiro, dilata-se, explica, diz as palavras próprias cruamente, descreve, conta anedotas, especializa atitudes, faz certas proibições, marca dias, prescreve abstenções, divide as espécies, aprofunda, exalta-se, clama — e as mulheres coram. E a Correspondência de Portugal contava ultimamente que, num desses derradeiros sermões, o povo rompeu num grande tumulto indignado, e saiu do templo como de um lugar desonesto. Tal é o sermão galante.

Do sermão político deu-nos o senhor prior de Belas um exemplo acentuado e conciso. Sua senhoria debruçou-se levemente no púlpito, e a doutrina que ensinou foi que Vítor Manuel é um ladrão, e que é um ladrão o Sr. de Bismarck. De resto Pio IX é

Cristo. O que nos encanta neste sermão é a originalidade. E o sermão artigo de fundo.

Até aqui o sermão louvava o santo do dia ou comentava a festa sagrada; agora ataca a política e discute as dinastias. O padre é o jornalista de sobrepeliz. O púlpito alarga-se em tribuna. O sacerdote volta-se para o Cristo do altar e grita-lhe: peço a palavra sobre a ordem. O clero sai do Céu, e entra na Arcada. Põe-se de parte Deus, e enceta-se o Sr.

Braamcamp. — E leremos em breve nos jornais: «Tivemos ontem nos Mártires um belo sermão de oposição!

E ouviremos, na Quaresma, o Sr. Melício, o reverendo Melício, pregar em S.

Domingos sobre a questão do real de água!

Mas distingamos: o sermão do senhor prior de Belas não foi uma crítica política, foi uma difamação pessoal. O senhor prior não analisou historicamente, juridicamente, os actos de Vítor Manuel e as ideias de Bismarck; não: chamou-lhes simplesmente ladrões.

Isto significa que a nova espécie — o sermão político — é empregada não na crítica mas na injúria.

Quando se quiser comentar a política de um ministro lá está a imprensa, a tribuna, a conferência, o livro — isso é da competência profana: mas quando se quiser injuriar o

Eis aí, espetada na ponta da nossa pena, mais uma proeza eclesiástica. Os senhores padres prodigalizam-se, e os seus feitos despertam a cada momento, com um rumor irritado, o silêncio da opinião. O País está com o clero, como um homem débil e nervoso que sente umas unhas compridas raspar a cal da parede. Encolhe-se, dobra-se, geme. E termina por mostrar aos senhores eclesiásticos os seus dois poderosos punhos — fechados e impacientes. ministro, lá está o púlpito — isso entra na atribuição eclesiástica.

O sermão político, seguindo o exemplo discutido, nada tem com a crítica legal, parlamentar, científica; o sermão é sempre para o vitupério. Quem quiser uma apreciação sobre o Sr. Fontes, dirige-se à Gazeta do Povo: só no caso extremo de o querer injuriar, é que se dirige ao pregador: e este, revestido dos seus hábitos, sobe ao púlpito, e na presença das imagens, depois de se persignar e de tossir, com gesto devoto, fazendo ondear a estola — debruça-se e clama:

«Meus amados ouvintes, O Sr. Fontes é um ladrão. Peço um padre-nosso e duas ave-marias.»

Quando Monsenhor Oreglia, núncio apostólico de Sua Santidade, partiu para

Roma, levou consigo, como um documento vivo e actual, a colecção das Farpas, cheias de história eclesiástica: «Hei-de dar isto a ler no Vaticano, e há-de fazer seu barulho», disse Sua Eminência. — E assim a crítica inquieta teve a honra de ir depor diante da imutável tradição! Pedimos a Monsenhor que deponha estas páginas verídicas, perfil exacto dos sermões portugueses, aos pés do Santo Padre — com a unção dos nossos respeitos e o beijo de paz nas suas mãos apostólicas.


XXIX

Julho 1872.

Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens: 14 morreram.

A 10 passos do mar, repousava placidamente o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao mar. Fez como o Palácio da Torre da Marca, ou como a estátua de D. Pedro

IV — deixou tranquilamente os pescadores na agonia das vagas. Entendeu que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas, não. O salva-vidas só se moveria para algum caso espe cial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais — como, por exemplo, se tivesse desabado um muro.

Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel, aboborando.

O salva-vidas da Foz tem um fiscal remunerado e tem a Comissão do Salva-vidas.

Esta comissão, cujas atribuições ignoramos, revela às vezes a sua existência na prosa das gazetas. Lê-se: «Ontem reuniu-se a Comissão do Salva-vidas, em assembleia geral, para deliberar»; ou «Foi mandada louvar pelo governo civil a Comissão do Salva-vidas».

Destas deliberações e destes louvores resulta que, quando se volta uma lancha com 24 homens, morrem 14; resulta que tem de se aprestar, rapidamente, na aflição, um barco casual, com homens voluntários e compassivos, que às vezes se volta numa violência de mar, e complica o desastre; e resulta que o salva-vidas, nem sequer finge.

Podia descer, molhar-se, navegar um instante: não; conserva-se agasalhado na sua habitação onde, dizem rumores gloriosos, ele está embrulhado em algodão, num cofre.

No entanto a opinião interroga o senhor fiscal. O senhor fiscal explica:

— Não saiu o salva-vidas, porque não há tripulação.

Assim foi muito tempo.

O salva-vidas não tinha tripulação. O Porto confiou sempre que o salva-vidas se tripulasse a si mesmo. Porque, enfim, um barco que tinha a forma, a construção aparente, o tamanho dos outros a que se chamava salva-vidas, devia ter qualidades originais, exclusivas, de excepção — e que naturalmente possuía o poder de se dirigir e de se tripular. E esperou-se sempre que, se houvesse um naufrágio, o salva-vidas se desamarraria, se meteria cordas e cabos, se desceria ao mar, se remaria, se iria ao leme, e ele mesmo estenderia a proa, como mão salvadora e firme, aos náufragos desolados.

Esperava-se isto do brio do salva-vidas. Vem um naufrágio. Bom! Abrem-se-lhe as portas e a comissão fica esperando que ele se espreguiçasse e corresse febrilmente ao desastre.

O salva-vidas não se moveu. — Está a dormir, disseram entre si, e sacudiram-no robustamente. — Agora, agora! murmuravam. Mas com um espanto aterrado, viu-se que o barco estava imóvel, como num alicerce. Gritava-se na praia, e o grosso mar bramia.

A comissão suava, pedia-lhe, increpavao, cuspia-lhe: — o barco, inabalável, estendia a sua sombra bojuda sobre a quente amarelidão da areia. Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu — que para fazer navegar um barco é necessária uma

Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens. tripulação.

Quando a comissão, em assembleia geral, afirmou definitivamente esta ideia — foi que o governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho — os mandou louvar, em portaria. — E começou-se a procurar uma tripulação...

Mas aí foi a crise temida. Cada marinheiro, cada remador, convidado a comparecer, acercava-se do salva-vidas, apalpava-o, olhava-o, e recusava resolutamente. Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o barrete entre os dedos, e diziam secamente: — Menos eu!

A comissão tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O salva-vidas dormia.

Enfim um dia a comissão, exasperada, veio, em grupo, interrogar o segredo estranho. Aproximou-se do salva-vidas. Olhou e levou violentamente a mão ao nariz. O salva-vidas, o jovem salva-vidas estava podre!

Se descesse à água desfazia-se — foi a opinião dos peritos. E a comissão com o olfacto resguardado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se, e grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pontual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem.

E de vez em quando o senhor governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar acomissão.


XXX

Julho 1872.

Depois da dispersão de uma guerrilha carlista — que operava junto da raia portuguesa — um carlista, um sargento, entrou a fronteira e depôs as armas.

Este homem que, sob a garantia dos tratados, da dignidade civil e da piedade humana, se entrega, na confiança da sua miséria, às autoridades portuguesas, foi tratado deste modo singular:

Veio de Melgaço até Viana, de cadeia em cadeia, entre privações e rudezas. Em

Viana foi atirado para o aljube, e não lhe deram de comer. Teve fome. Requereu, então, que lhe abonassem, não já o soldo devido pelos tratados, mas a ração de preso devida pela compaixão.

De Viana foi, pelo Porto, para Peniche, com uma escolta de 20 soldados, comandada por um tenente, o Sr. M. Este oficial português levava o preso desarmado, e

20 homens, com as espingardas carregadas. Teve ainda receios do soldado espan hol.

Exigiu que o algemassem. É necessário ter visto o sofrimento das algemas. Os braços inertes incham, adormecem, os pulsos arroxeiam, a respiração dificulta-se, um entorpecimento febril enerva, e os mais duros, os mais fortes, os mais concentrados, não marcham a pé duas léguas, com os pulsos encadeados, sem que a dor lhes faça correr as lágrimas em fio.

Deu-se isto com o soldado espanhol.

Tomar um militar, um vencido, um hóspede, um homem que se entrega aos respeitos da lei e às protecções da piedade, fatigado, desarmado, inútil — levá-lo, fazê-lo atravessar as imundícies e as fomes das nossas cadeias, maltratá-lo, arremessá-lo para a negrura de um aljube, não lhe dar sequer o caldo da enxovia, impor-lhe a fome, fazê-lo esperar longas horas às grades a chegada do pão, impeli-lo à humilhação de pedir, esfo-meado, metê-lo numa escolta de 20 homens, algemar-lhe os pulsos, e impeli-lo para um destino escuro, como um boi que se encurrala — é bem digno deste País, que por isso que tem a inépcia, não podia deixar de ter a maldade. Alexandre Dumas tinha um abutre que era o camarada íntimo de um pato. E aquele espírito radioso dizia sobre este facto — que era a natural ligação da estupidez e da ferocidade.

Portugal tem em si o abutre — e o pato.

Há tanto tempo nos separamos da inteligência — que devíamos por fim encontrar-nos com a vileza.

O senhor tenente, comandante da escolta — esse é um sintoma. É a consciência do exército. Tendo de conduzir um soldado espanhol internado, vencido, pacífico, desarmado, pede 20 homens: mas receia — e manda carregar as espingardas: mas treme ainda — e manda algemar o preso! Dá portanto a entender — que 20 soldados portugueses

— corriam perigo nas estradas povoadas do Norte — diante de 1 soldado espanhol! Ó comissão do 1º de Dezembro! O foguetes altivos, soberbas filarmónicas do Largo do

Rossio! aí está com o que vos responde o exército, com o seco ruído do engatilhar de 20 espingardas e com o metálico estalido dos fechos de uma algema — contra um soldado espanhol vencido, e pacífico. De tal sorte, que se 1 000 soldados espanhóis, de um bairro de Badajoz, passassem o Caia, desarmados, os 20 mil soldados portugueses, de todo o Reino, armados, só teriam um meio de os conter — mandar os malsins algemá-los!


XXXI

Julho 1872.

O regulamento das cadeias é provisório. Conheceu-se, ao fazê-lo, quanto era incompleto, deficiente, anti-higiénico, mal seguro, bárbaro, antigo, sujo: fez-se provisório, por alguns meses. Sabem há quanto tempo dura este regulamento provisório? Há vinte e nove anos.

Mas hoje é uma curiosidade toda particular que queremos revelar. De entre tantas faltas das cadeias - — a falta de espaço, a falta de ar, a falta de pessoal, a falta de segurança, a falta de asseio, a falta de alimento, a falta de moral, a falta de higiene — queremos destacar, como um diamante de um colar, a falta de roupa.

Os presos — não têm roupa. Na última leva de degredados, os que partiram foram vistos sair do Limoeiro em farrapos a maior parte, e um ou dois quase nus.

O Limoeiro tem um lúgubre guarda-roupa: calças de linho, camisas de riscadinho, sapatos brancos e bonés de cotim. Daqui fornecem-se os faxinas, que são os presos encarregados de varrer e lavar os dormitórios e corredores — e, além dos faxinas, os presos pobres.

Ora quando se embarca uma corda de degredados, o carcereiro deve ter de véspera a relação dos que partem, para lhes preparar o enxoval, fatal e definitivo como a mortalha — uma camisa, uma calça, um boné e um par de sapatos!

Fiquemos a ver um pouco esta avareza imunda.

Um preso tem em Portugal, para o seu degredo de África — uma camisa e uma calça. A França, que não é exemplar na organização dos seus serviços penais, dá ao deportado seis camisas, três blusas, seis calças, seis lenços, dois pares de sapatos, etc., um enxoval cómodo, lógico, facilmente transportável na sua mochila, e novo. Ele mesmo tem obrigação de lavar, a bordo, de três em três dias a sua roupa, e a sua limpeza

é fiscalizada com o rigor de um dever. Em Portugal, país quente, para a África, terra afogueada — dá-se a um homem uma camisa e uma calça. É sujo.

Metido atulhadamente no negro porão de um navio, na acumulação bestial dos corpos, na promiscuidade dos suores, sem disciplina, sem água, com a indiferença pelo corpo que dá a miséria do destino, em que estado chega ao seu desgraçado fim aquela miserável criatura condenada, com a sua camisa única e a sua calça solitária?

Por isso os que têm visto um porão de degredados, nos nossos navios, o descrevem como a maior deformação da miséria. Corpos que se não lavam, cabelos que se não penteiam, confusão de enxergas, a quente exalação de todos os cheiros, ar coalhado e torpe, uns enjoados, outros doentes, o fervilhar dos vermes, a vil confusão dos farrapos, o abatimento do tédio, o chão escorregadio de imundícies, a abafada negrura daquele vão soturno; — e ali vão apodrecendo, em nome da lei, aqueles lúgubres restos de gente. É infame!

E é um castigo maior para além da sentença; porque se alguma coisa humilha, avilta, amolece a dignidade, coalha e petrifica a alegria, enodoa a esperança, debocha o carácter, amolece e amiasma o sentimento, dá um irremissível desprezo próprio — é a

Quando o Senhor D. Pedro V subiu um dia as escadas da Relação do Porto, disse com uma tristeza irritada: isto precisa de ser arrasado! A cadeia da Relação é das melhores deste Reino venturoso onde florescem de acordo — a papoila e Vidal. porcaria forçada.

E deve perder o pudor, a vontade, a consciência, cair numa desmoralização bestial, o homem que sente o seu corpo suar e verminar-se na sua única camisa.

Quem decretou esta infâmia? Se foi o regulamento das cadeias, reforme-se essa disposição como se lava uma nódoa. Esse regulamento não é inepto — é sujo. Não obriga só a reagir a consciência, obriga a pôr o lenço no nariz. Não precisa crítica — precisa benzina.

E porque o não reformam? As autoridades que o consentem dão uma ideia bastante escura da sua limpeza pessoal, tolerando para enxoval de um homem — uma camisa. Suas senhorias, essas autoridades, não podem exalar de si um aroma fino. Quem consente que um homem leve para um degredo — uma camisa — pode ser um jurisconsulto que se respeite, mas é um corpo que se evita. Tal autoridade não deve ser repreendida, deve ser lavada. Para ser reconhecida não precisa a toga — basta-lhe o cheiro. Não lhe façamos crítica, atiremos-lhe bacias de água. Que o sr. ministro da

Justiça lhes faça pagar os seus ordenados em sabão. E enquanto às suas cabeças, não pediremos à lei que as inspire — mas sim que as cate.

E sabem porque se dá ao degredado essa camisa? Não é asseio, nem higiene, nem dignidade, nem dó. E porque o preso, até ao cais, tem de passar na Baixa, e não se quer enojar os curiosos que param, com o aspecto devastador dos remendos da enxovia. E para que os srs. lojistas e ourives, imóveis em seus chinelos aos portais da loja, não se enojem, não se enjoem, com os farrapos pendentes daquele pobre corpo maquinal que vai para o seu porão! E uma atenção aos srs. lojistas. E só para atravessar a Baixa. Para isso, com efeito, basta uma camisa. Depois, na viagem, que apodreçam! Ah! como estas coisas põem ao claro sol do desdém, as baixas feições de um país! Uma camisa para um desterro, a camisa da lei. A autoridade é mais suja que o degredado, e a lei é mais suja que a autoridade. Terra de ruas infectas e de corpos imundos! Ao menos sejamos francos: em lugar das cinco quinas, ponhamos as cinco nódoas.

Pois bem. Essa mesma camisa — única — foi julgada excessiva. Tirou-se a camisa ao degredado. Nesta última leva, a 5 do mês passado, iam todos em trapos, alguns quase nus. As autoridades entenderam, e bem, que para um degredado, um zero, um farrapo humano, uma sombra pisada, uma vida em rodilha — uma camisa era de mais. Era. Para um degredado, em Portugal, uma camisa era afrontoso. Uma camisa tem um desembargador!

E por isso tirou-se a camisa ao preso.

Pela nossa parte achamos bem: e só pedimos a todos os nossos amigos que indaguem cuidadosamente quais foram as autoridades que, dando esta ordem suja — deram uma tão especial ideia do seu próprio asseio — para que não suceda aproximarmo-nos delas, desprevenidamente — sem desinfectantes!


XXXII

Agosto 1872.

Á ALMA DE D. PEDRO IV, NOS ELYSIOS

Senhor:

Esta carta, a exemplo das que os humoristas de 1830 escreviam a Voltaire, que Vossa Magestade deve ahi conhecer, com o seu adunco perfil cortante e subtil, — é escripta na supposição que ha uma região cheia de silencio e de immobilidade, como a dos paizes Cimmerios, onde as almas vivem n’uma abstracção transparente, possuindo a vitalidade do espirito, sentindo, interessando-se, conversando e recebendo o seu correio. Doce deve ser esse logar: lagos calados como a neve; alamedas de myrto tranquillas como as vegetações dos sonhos; regatos mudos, que vão com a tranquillidade rithmica de um verso de Virgilio; sombras profundas como tumulos; e em tudo um repouso augusto e ineffavel. Que Vossa Magestade nos perdõe o arremessarmos para ahi, irreverentemente, grosseiras noticias da vida, — mas nós queremos contar-lhe o que se passou n’esta cidade onde Vossa Magestade viveu, por oc. casião do dia 24 de julho de 1872.

Não sabemos se Vossa Magestade se lembra ainda do dia 24 de julho. Para as almas que palpi. tam ahi, na sombra inviolavel, os factos da vida terrestre devem ser como farrapos fuscos de sonhos extinctos, sem intenção e sem idéa. Mas Vossa Magestade pode perguntar ao seu velho amigo duque da Terceira; lembre lhe a batalha de 23 e os fogos accesos de noite no pontal de Cacilhas!

Ora deve saber Vossa Magestade que durante 36 annos o dia 24 de julho e as suas glorias estiveram sepultados insondavelmente no fundo das memorias veteranas. Nunca ninguem se lembrou que n’aquelle dia o duque da Terceira tivesse dado uma capital aos constitucionaes. Os velhos, senhor, teem a memoria fugitiva como a agua dos rios: e os novos, a quem a educação revolucionaria alterou a curiosidade, nunca voltam os olhos para traz, para a região calada onde jazem as suas batalhas e as suas leis. Todos os annos, senhor, passava por nós entre a sequencia dos dias, o 24 de julho, e ninguem o notava, como se não nota, na passagem de um regimento, um soldado sem nome.

Deve parecer-lhe pois singular, senhor, que pas. sados 36 annos de indifferença sobre o 24, o fossem desenterrar do passado, vestil-o de gala, e fazelo reinar —— como aquella monotona Ignez de Castro

«Misera e mesquinha "Que depois de morta foi rainha.

Eis, senhor, o que se tinha passado. Sua Magestade o Rei actual, neto de Vossa Magestade, tinha ido ao Porto. O Porto, senhor, está bem differente do que Vossa Magestade o conheceu, n’outras épocas de batalha e de necessidade.

O Porto já não é aquella secca e escura cidade, rude e plebea, de ruas estreitas e agitadas, imper. tinente e cheia de opposição, comendo alegremente arroz e bacalhau, dançando nos bailes improvisados, onde as mulheres iam com o pobre vestido de chita da rua das Flores, e donde os homens saíam, cançados da gavota, para o fogo das linhas — Porto, ainda com feições de burgo antigo, com as suas dynastias de commerciantes honrados, os seus ta. mancos estoicos, impassivel diante dos reductos, sensivel diante dos melodramas do theatro nacional, patriota, resmungão e rezando ao Senhor de Mattosinhos! O Porto hoje, é uma cidade larga, bem anafada, com ventre, brazileira, um pouco somno lenta, cheia de poetas lyricos, e avida de baronatos. O Porto, pois, imperial senhor, lembrou-se por occasião da presença de el-rei, de fazer uma festa constitucional. Uma festa constitucional, para fazer perrice aos jesuitas. Porque ha cinco ou seis mezes o Porto foi tomado d’esta doença singular: o tedio, o terror, o odio ao jesuita. Aquella boa cidade ficou dos tempos de Vossa Magestade com os habitos de se bater. Vossa Magestade acostumou-os tão bem que elles não podem dispensar-se de ter um inimigo a vencer. Mas o Porto hoje, pacato, pansudo e pesado, pretende um inimigo commodo, que não obrigue ao peso da espingarda e ao frio das alvoradas, que se combata com palavras, artigos de fundo, versos e meetings. Ora o jesuita é um born inimigo, que não desarranja os habitos da digestão, a quem se dá batalha, conversando á porta do Moré ou em volta de um bock na Aguia d’Oiro. De sorte que o Porto adoptou o jesuita — como inimigo figadal. E combate o padre Couto. Vossa Magestade não conhece o padre Couto? nem nós: o padre Couto é uma reproducção barata do jesuitismo — para uso do Porto, Ah! Vossa Magestade imperial conheceu padres bem differentes: o grandioso frade crusio, vasto e burro, que enchia a caleça ao lado da qual trotavam dois lacaios de cabelleira: o anafado frade domini. cano cheio dos favores da côrte, demandista e ra. bula, occupado na intriga e dirigindo occultamente as venerandas cabelleiras do desembargo do Paço: a multidão pittoresca dos frades eruditos, cheios de rapé e de textos, esquecidos nos silencios das altas livrarias: o padre plebeu, brutal e devasso, que tomava a monte a clavina: o padre fanatico, possuido de um Deus inquieto, avido de dominio, absolutista e sujo.

Hoje temos o padre Couto e o José Maria, genero constitucional. Aquillo intriga nas secretarias, aquillo negoceia uma missa de doze ou de cruzado, aquillo seduz as cosinheiras, aquillo faz negocio de bentinhos. É contra isto que o povo se revolta.

Portanto o Porto queria fazer alguma coisa solemne, estrondosa, festiva, contra estes sotainas, diz elle.

Fez a festa do dia 8 de junho. Outra data de que Vossa Magestade se não recorda, não é verdade? Tal é o ephemero da vida. Se Vossa Magestade encontrar ahi sob alguma placida ramada de myrtos, Napoleão, falle-lhe em Austerlitz, falle a Shakspeare em Hamlet abrirão olhos surprehendidos, calar-sehão. Não se lembram!

Ora pensando que o jesuita representa o absolu. tismo, o legitimismo, a forca, o convento, o dizimo, — a boa cidade do Porto, tratou de organisar a festa do dia 8, como uma desfeita, uma replica aos jesuitas — enchendo-a de elementos liberaes, apro. veitando a presença do rei, prodigalisando as bandeiras azul e branco, etc. — E então para caracterisar a intenção liberal e democratica do dia — o que fez? Fez representar no Baquet a Bocela de Pan. dora, comedia em tres actos; Vossa Magestade não sabe o que é? nem nós. Pode interrogar um velho risonho e subtil, que por ahi deve ter encontrado murmurando como memorias extinctas couplets de vaudeville, e que é o sr. Scribe.

Representou-se a Boceta, senhor. E assim ficou batida victoriosamente em brecha a propaganda jesuitica. Se Vossa Magestade ler esta carta alto, ás sombras curiosas e saudosas da terra ha de ver um velho corcovado, secco e ardente, ascetico, mas com grande doçura no olhar, rir-se com o seu es. treito triste riso de jacobino, vendo a maneira portuense de combater o jesuita — com vaudevilles. Esse homem, senhor, é Mazzini.

Ora quando em Lisboa se soube que o Porto dava esta grande festa —— Lisboa teve um estremecimento de colera. Lisboa teve a tradicional, a costumada inveja. O Porto tinha feito uma grande festa constitucional — Lisboa não tinha nenhuma!

É necessario que Vossa Magestade saiba que existe uma incuravel rivalidade moral, social, elegante, commercial, alimenticia, politica, entre Lisboa e Porto, Lisboa inveja ao Porto a sua riqueza, o seu commercio, as suas bellas ruas novas, o conforto das suas casas, a solidez das suas fortunas, a seriedade do seu bem estar. O Porto inveja a Lis. boa a Côrte, o Rei, as Camaras, S. Carlos e o Martinho. Detestam-se. As damas de Lisboa riem-se da pouca distincção, da pequena sciencia, da falta de chic, e de que das toilettes do Porto? O Porto, rubro de odio, cobre as suas senhoras da sumptuosi. dade dos estofos e das faiscas dos diamantes.

Lisboa tinha toiros. O Porto quiz ter este bom tom de leziria. Mas faltava-lhe o bom gado, os artistas, a faisca da troça, o estonteado especial, o sal das toiradas d’aqui. Ah sim! Em logar de uma praça o Porto ergue duas. Mas consegue apenas ser duas vezes peior. Bem! O Porto, sorri-se e para se des. forrar faz corridas de cavallos. Grande troça nos sportmen a pé do Chiado: vamos batel-os, diziam, vamos batel-os desalmadamente. Chegaram lá; fo. ram chatamente batidos.

O Porto tinha a Foz, praia de banhos, rica, de um grande pittoresco de paizagem. Lisboa, rancorosa, improvisa Cascaes, sitio enfesado entre pinheiros ethicos e rochedos de opera comica.

Os poetas do Porto fazem sorrir; no Chiado, os lyricos da côrte, descendentes dos vates parasitas do adro de S. Domingos: mas os da Aguia de oiro abrem sobre as mesas as odes de Vidal, e entornam-lhes em cima, como unico commentario digno, môlho de carne assada.

O Porto, por circumstancias, é reformista: eis que Lisboa, se veste de um grande desdem pelo sr. bispo de Vizeu, Antonio.

Em Lisboa houve ultimamente um certo movimento subterraneo, indistincto, informe, do espirito republicano: o Porto recebe El-Rei, com um delirio que só Vossa Magestade inspirou nos dias em que passeava a pé, com a sua estreita farda de coronel de caçadores, de cravo ao peito, e batia, com as pontas dos dedos, nas faces rechonchudas das mulheres do Candal.

Lisboa come com pretenções francezas e phantasistas: logo o Porto se afoga, cada vez mais, no chorume da velha cosinha portugueza, e abraça-se, como a um estandarte, à travessa do cosido. —-Mas em quantas coisas estamos fallando, que são para Vossa Magestade como as syllabas irritantes de um dialecto barbaro? Era-se mais conciso, não é verdade, nos tempos apressados de Vossa Magestade? Hoje, a gente põe-se a caminho, mas para a cada momento, como um anemico e um precioso, a fu. mar as cigarrilhas-azues da phantasia. — O facto é, Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/219 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/220 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/221 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/222 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/223 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/224 da etiqueta apresentar ahi os nossos respcitos de portuguezes e de vassallos, aos Sanchos e Affonsos, etc., que reinaram n’este canto da terra, — te. nha Vossa Magestade a condescendencia de dizer aos ditos Sanchos e Affonsos... sim, diga-lhes que aqui estamos as ordens.


XXXIII

Outubro 1872.

Quando, em Paris, Mr. Dubourg foi ultimamente condenado em cinco anos de prisão, por ter assassinado sua mulher às facadas — os srs. jornalistas, arrastando essa desgraça através da sua prosa, envolveram-se, por cima da memória da pobre senhora nervosa e infeliz, numa discussão vibrante acerca do amor, do adultério, do casamento e da morte. Mr. d’Ideville, um bom rapaz, que foi secretário de legação em Itália na missão de Tour d’Auvergne, escrevendo sobre este caso impertinente, teve a ingenuidade de pedir ao Sr. Alexandre Dumas filho — a sua opinião e a sua prosa.

Provocar a pena indiscreta e aparada em bisturi do Sr. Dumas, é acordar o escândalo que dorme. Sobretudo em questões femininas: porque aí o Sr. Dumas supõe-se uma espécie de Santo Padre do amor, julga possuir a plena compreensão da mulher, saber desde as leis até às pantoufles toda a fisiologia do casamento, e ser no tempo presente um S. Tomás de alcova. De sorte que sempre que se trata de um caso sentimental, o Sr. Dumas filho entorna sobre o boulevard, como um barril de lixo, o seu depósito de observações: porque o Sr. Dumas é observador como outros são trapeiros. E de noite, com uma lanterna e um gancho, cosido com os muros conjugais, apanhando e fisgando em segredo tudo o que cai da alcova, cravos, panos revolvidos, cuias velhas, farrapos reveladores — que ele vai coligindo a sua ciência. Sabe pelo que esgaravata no lixo. E doutor — em roupa suja.

Foi assim que o Sr. d’Ideville provocou L’homme femme. L’homme femme tornou-se então um rebate através das alcovas: jornalistas, lorettes, publicistas retirados, tudo correu pelo faro do escândalo. Ganiu-se um grande charivari filosófico — com panfletos, com Livros, com artigos e com vaudevilles. E o amor, o casamento, a virgindade, a maternidade, o pudor, o adultério, a mulher, saias e consciências, tudo foi sacudido, revolvido, remexido, voltado ao sol, e exposto à vil publicidade como um guarda-roupa na tristeza de um leilão.

Ora a conclusão da questão era estranha: tratavase de decidir, a sangue-frio, com argumentos e boa gramática — se os maridos deviam matar suas mulheres. O Sr. Dumas tinha dito com o charuto na boca, folheando a Bíblia — mata-a! Outros, fechando a navalha no bolso, diziam generosamente: não a mates. Alguns vaudevillistas ensinavam entre um bock e uma pilhéria — vai-a matando sempre! E outros acrescentavam, expondo que era necessário estudar mais a questão e consultar dicionários: por ora não a mates!

E no entanto, de faca na mão, os maridos esperam.

Antes de tudo, não os escandaliza esta questão? Laplace, o antigo, o astrónomo, era um homem sereno e recolhido, firme como a ciência e tranquilo como a verdade.

Uma só coisa o fazia irritar e sacudir como uma juba o seu comprido cabelo à

Convenção: era ouvir um peralvilho da mocidade dourada, algum Incrível dos que tinham feito fechar o clube dos jacobinos e traziam a reacção entalada na alta gola do seu fraque à Barrás — falar de astronomia. Então o sereno Laplace rugia. Ora se alguma coisa deve irritar e fazer rugir, é ver os Srs. Dumas, d’Ideville, e outros galantes, falar e decidir, como Evangelistas do macadame, sobre o casamento, esse ângulo tão perigoso da dificuldade social. Não a resolveu, esta questão esmagadora, a Bíblia; não a resolveu,

Uma questão singular tem, há tempos, sobressaltado legitimamente os maridos, as pessoas sensíveis e os fabricantes de armas proibidas. Referimo-nos, como compreendem, à questão do Adultério. com toda a sua grandeza, o velho espírito romano: perturbaram-na e lançaram-na em confusão a teologia e o cristianismo: apenas a revolução, pela ciência de Proudhon, começa a dar-lhe uma solução racional e positiva; — no entanto o Sr. Dumas filho, autor da Lorette e profeta do Ginásio, estende-se molemente à sombra dos castanheiros, ouvindo cantar os pássaros, e faz-nos o obséquio, num momento de bonomia, de resolver no direito e na moral esta dificuldade tenebrosa. Como? — com uma navalha de seis tostões.

Que, devemos confessá-lo, nós dois, nós ambos, julgando inoportuna a estação de banhos para esta leitura, que pede o recolhimento do Inverno e o silêncio do fogão, não lemos ainda nem L’homme femme do Sr. Dumas, nem nenhum dos folhetos que rolaram como um enxurro, através da opinião parisiense.

O que sabemos apenas é que todas estas prosas incitam a mulher, em períodos comoventes, à prática da virtude! Ora observa-se que, se uma mulher tem um amante, poderá suceder que ela leia, pela manhã ao almoço, um artigo magnífico e pomposo com interjeições, lágrimas e flores:

Sobre o adultério e as suas aflitas misérias;

Sobre a fidelidade e os seus claros esplendores.

Mas nem por isso deixará, em vindo a noite, de ir pé ante pé, com todos os ardores do susto e do mimo amoroso, abrir a porta do jardim à impaciência de Artur. E isto porquê?... Porque a retórica não anula o temperamento.

Porque um periódico bem escrito não abafa uma paixão bem movida;

Porque os adjectivos não dirigem os nervos;

E porque, á senhores prosadores, a verdade é esta: entre um folhetim, que condena o adultério, impresso a tinta preta num papel amarelado, e um amante vivo, sensível, forte e amado — nenhuma mulher deixará o amante, que é a realidade, para seguir o folhetim, que é a linguagem;

E não despedirá o homem que lhe dá a sensação — em atenção ao Sr. Bezerra, localista do Rei e Ordem, que lhe dá prosa.

E por isso que estas declamações soluçantes a que se entregam, com os braços erguidos, o jornal e o drama — são pelo menos inúteis. Não evitam o pecado. E também não inspiram o ideal — porque não há felizmente senhoras tão estranhamente desgraçadas — que vão aprender a virtude nas gazetas ou nas rampas dos teatros.

E depois, esta questão do adultério, é equívoca. Porque, ou é tratada num folheto pelo sr. fulano, bom rapaz e empregado público — e então torna-se tão monótona, tão banal, tão recalcada, que nem Robinson Crusoé na sua ilha deserta, com todo o seu tédio, e sendo esse folheto o único folheto e sendo essa distracção a única distracção — a quereria: ou então é tratada por espíritos subtis, analíticos, originais como Dumas, e sucede que, com os detalhes, as anedotas, os quadros, as revelações, o estudo, torna-se uma divulgação de alcova e uma pimenta amorosa! De modo que quando não é uma trivialidade estéril, é uma provocação irritante!

Ou o adultério é um facto fatal da natureza eterna, ou é um facto fatal da moral moderna. No primeiro caso, se ele é a antiga e primitiva lei da promiscuidade animal, que apesar do apuramento nervoso da humanidade, da civilização, do direito, da moral, permanece e impele pela sua fatalidade fisiológica — seria necessário, para o extinguir, mudar a própria constituição natural ou esperar mais vinte séculos.

No segundo, se ele provém da corrupção do matrimónio e da sua decadência e descrédito como instituição social, se nasce da extinção da fé conjugal nos esposos, se deriva da perversão lançada na dignidade matrimonial pelo idealismo amoroso, se tem a sua origem na moral, então é necessário fazer uma revolução nos costumes tão profunda como foi o cristianismo, que nos dê uma outra religião, outra moral, outra família e outro direito.

Ora qualquer destas coisas, tanto uma alteração de constituição fisiológica, como uma transformação na ordem social, acham-se os Srs. Dumas filhos — com forças de a empreender, no quintal, fumando brevas e cosendo prosa?

Mas mais absurdo que tudo é a palavra final da questão: o mata-a ou não a mates! a decisão do destino que o marido desvalido deve dar à esposa revoltada! Para todo o homem, o mais linfático ou o mais endurecido, Sgnarello ou Marneffe, o momento em que sabe o seu desastre é fatalmente um momento de excitação, de ofensa, de vergonha, de despeito, e ele não pode subtrair-se a palpitar com uma pulsação de febre. Ora aconselhar um procedimento fixo para este momento alucinado, é querer impor ao que há de mais desvairado — a paixão, o que há de mais raciocinado — a regra. E dizer de antemão ao pulso — tu baterás deste modo, e aconselhar previamente à cólera — tu rugirás desta forma. Quem vai estudar de antemão ao espelho as atitudes que deve tomar na dor? quem decora no seu quarto a palavra que deve dizer na cólera? A febre não calcula — improvisa.

Depende sobretudo dos temperamentos. Segundo se é sanguíneo, linfático, bilioso, melodramático, bonacheirão ou egoísta — assim se faz sangue, se faz sermão ou se faz negócio. Basta ver quantas soluções diferentes a verdade e a arte têm achado para este momento agudo, para se perceber a inutilidade pedagógica e retórica de marcar de antemão um procedimento. Otelo, que é negro, sanguíneo, batalhador, bárbaro e justo, toma o travesseiro, e mata por asfixia. O general de Campvallon que é gotoso, cheio de achaques, encosta-se, ao surpreender sua mulher, à ombreira da porta e morre de apoplexia. Um negociante holandês fleumático, prático e frio, toma sua mulher pelo braço, põe-na à porta da rua com uma mala e uma nota do banco, aferrolha a porta e volta tranquilamente para o seu escritório. Um fidalgo de Burges, cheio de opiniões feudais, desfecha a carga de um revólver no peito de Artur. Um outro encontra sua mulher anediando uns cabelos de homem que não são os seus, vai ao seu quarto, toma a sua roupa branca e parte para sempre para o Egipto. Um outro, infelizmente bem conhecido, vai ao seu quarto, toma um revólver e parte para a Eternidade. Outro surpreende, fecha-se no quarto com a mulher e quando os criados, assombrados, imaginam que ele a matou, vêem-no sair risonho, trazendo-a pelo braço, rendido e mais amoroso. O general Pallavicini, seguindo a velha tradição dantesca da casa de Rimini, degola com a espada os dois sobre o sofá. Outro espera Artur no fundo da escada, e obriga-o a assinar uma letra. E um outro, tranquilo e risonho, diz durante dois anos a sua mulher, todos os dias de manhã, passeando com ela no jardim, a mesma palavra vil.

Tal temperamento, tal solução. Todos estes infelizes se desesperaram: — mas com a lógica do seu carácter — o bárbaro generoso mata, o civilizado infame faz assinar a letra. Mas a raiva é a mesma. E no entanto o Sr. Dumas entende que o procedimento colérico se pode ensinar como um passo de contradança, e sem querer saber dos temperamentos, dos caracteres, das condições, faz para a infinita diversidade dos desesperos — um catecismo uniforme.

E — riamos! — esse catecismo que conclui pela morte — quando quer o Sr. Dumas filho que os maridos, curiosos dessa matéria, o estudem e tomem apontamentos? Se o

Sr. Dumas faz um tratado e uma lei de morte, com argumentos e exemplos, é para que os maridos o leiam, aprendam a lei, se convençam, se apropriem daquela ideia e decorem aquele procedimento. Mas quando, em que momento preciso do seu casa-mento?

— Não pode ser logo que casem: qual é o marido bastante torpe para ir no dia seguinte ao do noivado, vendo sua mulher apenas saída da virgindade, noiva e pela

Graça quase sagrada, estudar muito tranquilamente no Sr. Dumas o que lhe deve fazer — quando ela for adúltera? — Não pode ser também no momento da revelação, porque seria estranho que um marido surpreendendo sua mulher e Artur — lhe dissesse:

— Srª esposa e sr. amante, eu vou para a minha biblioteca consultar os autores e amanhã lhes darei parte do destino que lhes reservo: tenham a bondade de me passar daí os documentos da infâmia e um dicionário!

Enquanto ao adultério, essência da questão, não queremos privar as curiosidades inteligentes de algumas pequenas notas que não resolvem, mas explicam.

A maior parte da gente imagina que para uma mulher esta ideia e mesmo esta palavra — ter um amante, significa muito simplesmente — ter um homem que amam.

De modo nenhum: só muito raras, as descendentes de Fedra, pensam no homem.

Para a generalidade das mulheres — ter um amante significa — ter uma quantidade de ocupações, de factos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefável. Ter um amante — não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres — escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto; fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando como uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o penteado: é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideais amorosos, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos! etc.

Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de- rosa, que a idealizam — são a sua grande atracção. E o que amam. O homem, amam-no pela quantidade de mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ele dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.

Por aqui se explica uma coisa que surpreendeu Taine. E foi que na sua última viagem a Inglaterra, contava-se então, nas crónicas íntimas, que em toda a vasta aristocracia inglesa que faz a season em Londres, havia apenas um adultério! E todavia que luxo, que idealismo, que vagares, que requintamentos de sensação, que excitações do chique! Taine explica isto por muito finas razões, subtis e profundas temperamento, publicidade, boas saúdes, rectidão de ideias, etc.: esqueceu-lhe uma razão, a mais inglesa. E que a lady romanesca, sensível e fria — o que pretende sobretudo e exclusivamente no amor, são as suas ocupações, é a sua melancolia. A inglesa, com a sua carnação saudável, as suas risadas francas, os seus cabelos espalhados e impertinentes, a sua higiene, as suas corridas a cavalo, a sua virilidade de pensamentos

— conserva todavia, sob o seu movimento excêntrico e resoluto, no fundo do seu peito, como a recolhida flor do segredo, uma ponta, uma semente de melancolia. Alguma coisa de vago, de saído de Ofélia, de ossianesco, de exalado da harpa de Erin, ficou no fundo daquelas naturezas femininas dos países louros. A inglesa não se pode dispensar de ter aquela melancolia de certas horas, azulada e terna — a que ela chama com certos requintes finos — ter o coração sentido. — De sorte que de mil senhoras da aristocracia inglesa, das que têm a mocidade e o espírito do sentimento, uma poderá ter um amante e os seus pecados — mas as outras restantes contentam-se em ter o coração sentido.

De tudo isto uma consequência lógica: — procurando dar uma ocupação ao espírito disponível da mulher, impedir que ela procure as ocupações do amor.

Hoje, justamente, faz-se o contrário.

Hoje a mulher é educada exclusivamente para o amor — ou para o casamento, como realização do amor. E claro que, como Dumas, falamos das classes ricas e improdutivas.

É fácil de ver. Que se lhe ensina desde o momento em que a pequenina mulher de

7 anos, nos bicos dos pés, diante do espelho, com a sua sainha tufada e o seu puff pueril, se enfarinha de pó de arroz, rindo com os seus brancos dentinhos de rato?

Educa-se-lhe primeiro o corpo para a sedução. Não pela ginástica — isso agora apenas começa vagamente, como uma imitação inglesa — mas pela toilette: ensina-se-lhe a vestir, estar, andar, sentar-se, encostar-se com todas as graças para sensibilizar, dominar as atenções, ser espectáculo, vencer o noivo. Ensina-se-lhe a arte sentimental e inútil de bordar flores e pássaros; o bordado é a mais perniciosa excitação da fantasia: sentada, imóvel, curvada, picando delicadamente a talagarça, o voo inquieto das imaginações e dos desejos palpita-lhe em roda, como um enxame de abelhas: e é isto o que perde as rosas, como diz um velho poeta ascético: é porque a rosa não pode fugir, andar, sacudir o enxame, que é ela sempre ferida no cálice.

Depois ensina-se-lhe a música, o piano, o canto, Bellini, Donizetti, todos os amorosos. A música clássica, os velhos minuetes, os motetes, as fugas, as árias simples

— eram uma serenidade para o espírito, um correr de água fresca. Os românticos são como uma chama impaciente. Prepara-se-lhe assim um meio de encantar, de sensibi-lizar, de, adormecer, e dá-se-lhe alguma coisa da habilidade das sereias. — Depois, o seu espírito, como é educado? Pelo romance, que lhe descreve o amor, pelo teatro que lho dialoga, pela ópera que lho suspira, pela opereta que lho assobia.

No mundo, nas soirées, ao gás dos bailes, na intimidade das mulheres, que interesses vai encontrar? os da política? os da ciência? os da arte? os da economia doméstica? os da guerra? Decerto que não: — os do amor.

Que lhe diz o luxo, por meio das sedas sonoras, das caxemiras, das pedrarias, da vitrina das lojas, das rendas loucas, dos saltos à Luís XV, da fofa penumbra dos cupés?

Amor.

Que ideia lhe dá a família, a maternidade? O encanto de um amor legítimo.

Que lhe ensina a mesma religião? o amor. Duvidam? — aqui estão os trechos de um livro de orações aprovado pelo sr. arcebispo de Ruão — traduzido por toda a parte:

«Actos de desejo. — Oh! vem, meu bem-amado, carne adorável, minhas delícias, meu amor, meu tudo, meu alento! Minha alma impaciente enlouquece por ti!

«Acto de amor. — Tenho pois enfim a felicidade de te possuir! Abrasa-me, queima-me, consome-me com o teu amor. Jesus é meu, o bem-amado é meu.»

Que lhes parece? Aprovado por Monsenhor de Ruão, o cardeal Bonnechose, príncipe da Igreja. E um catecismo francês, quase um catecismo universal. Trata-se do amor de Jesus — dirão: pois também seria excessivo que se tratasse de Artur! A Igreja não o faz expressamente — dirão ainda: quem o duvida? Nem um momento desconfiamos da austera intenção da Igreja. Mas é inocentemente e sem intenção, que as mães deixam as crianças ao pé do lume, e quantas vezes a casa arde!

Querem saber agora como falam e pensam as mulheres educadas neste elemento abrasado? Vejam a última peça de Octávio Feuillet, o casto, o pudico, o católico, o que escreve para as virgens aristocráticas e louras do faubourg Saint-Germain. Feuillet põe na boca de uma menina de 15 anos, educada num convento, açucena coberta de rendas,

Pomba, Arminho, Neve, estas palavras:

Adoro os rapazes para valsistas, mas para maridos não! — E na plateia velhos sargentos de cavalaria coram até às dragonas!

Bom Deus! Não somos caturras! Dizemos a verdade. De resto como não temos a responsabilidade da corrupção humana, também não fugimos para o deserto. Quem é que disse que o Inferno era um lugar bem interessante? Foi Brantôme. Pois era um sábio.

Nesta educação da mulher uma só coisa é profundamente boa — a valsa. E é justamente o que mais lhe regateia uma moralidade banal. A valsa é higiénica, moral, depurativa, educadora e positiva.

Um higienista célebre recomendava, a todas as mulheres de 14 anos, para cima duas horas de valsa por dia. Os movimentos rápidos, galopados, fortemente sacudidos, a transpiração igual, outras circunstâncias, tornam a valsa um exercício radicalmente salutar, quase igual à ginástica: desenvolve a firmeza do andar, a solidez das articulações, faz girar abundante e igualmente o sangue, robustece o peito, exercita e excita a facilidade da respiração. E um doce medicamento contra a anemia, a palidez, os suores. E sobretudo uma fadiga. Toda a mulher que se não cansa, idealiza. Dá os bons sonos saudáveis e frescos, o apetite inglês. Dá às raparigas uma boa alegria de ave que voa. E têm-se visto doenças inexplicáveis de mulheres curarem-se com uma valsa. As boas valsas são as de Strauss, ágeis, alegres, radiosas, impelidas, firmemente resvaladas

— que têm alguma coisa de ataque e muito de triunfo.

A valsa é moral e educadora: porque acostuma as mulheres a ter dos homens uma ideia positiva e burguesa. E por isso que os românticos, os netos de Byron e de Dom

João não valsavam: pálidos, encostados à ombreira, com a gravata de cetim negro em nó, o olhar triste e dominante, os dedos errantes em longos bigodes sentimentais, estavam imóveis em todo o encanto do seu mistério, exalando romance. O homem na frescura da sua toilette, a pele macia e seca, a claque debaixo do braço, sereno, fresco, perfeito, intacto, conversa e ri num baile, pode excitar o sentimento: quem nunca o excitará é o valsista — com a pele oleosa, a testa cheia de gotas, a respiração ofegante, um arquejar pesado, o nariz luzidio, a aba da casaca esvoaçando, as pernas pulantes como as de um gafanhoto que vai para os seus negócios, o ar embezerrado, vermelho, soprando, feliz e grotesco. A mulher olha e sorri. Porque ela é que não perde a graça, se a tem, e o arfar dá-lhe a delicadeza, todos os abandonos mimosos da ave que cansa.

Além disso os vestidos compridos, rojados, leves, foram feitos para a valsa e acentuam-na como um palpitar de asa. De sorte que se pode rir, legitimamente, de cima de seu encanto, do pobre homem que a seu lado resfolga, escarlate e esfalfado. E depois, o homem que valsa, como pode ter espírito? O que naturalmente lhe sairia pela boca fora se a abrisse, não seriam as graças — seriam os bofes: é por isso que ele, duro, cerrado, espesso, alagado, guarda dentro em si para seu uso, cuidadosamente — a pilhéria e a víscera.

Na valsa a mulher faz a poesia do movimento — o homem faz-lhe a farsa. O homem, de resto, nunca deve dançar: o seu movimento são as armas, a luta, a marcha, o salto, a ginástica: já Napoleão o dizia. O Oriente, tão profundo e tão subtil, compreendeu isto admiravelmente: aí as mulheres dançam sós entre si; o homem, encostado no divã, contempla e fuma o chibouk.

Valsem! valsem! — e creiam que esta glorificação e desinteressada: o que escreve estas linhas não valsa. Valsou. Valsou um dia. Era de madrugada, ao fim de um baile, dado muito longe daqui, ao Oriente e ao Ocidente. Valsou com um preto. Na sala deserta, luminosa e cintilante como uma visão do sultão Achmed, quatro pessoas assistiam gravemente àquela valsa solitária: um chefe de tribo dos confins da Núbia, imóvel na sua túnica de linho e fio de oiro, lorde C... que morreu agora em Florença, um sábio doutor prussiano, mademoiselle J... des Bouffes e um capitão de artilharia inglesa, que olhava gravemente, a cavalo num criado. E tantas saudades lhe ficaram ao que isto conta, daquela valsa — que assim como o rei de Tule nunca mais bebeu, ele nunca mais valsou.

Ora o que se faz a esta mulher inteiramente, exclusivamente educada para o amor?

Esta mulher, assim formada, casa. O marido vai, decerto, dar a esta natureza, que vem curiosa, impressionável e agitável, uma ocupação que a absorva e que a preencha? —

Não. E nas classes ricas: o marido trata de lhe tirar todo o trabalho, todo o movimento, toda a dificuldade, alarga-lhe a vida em redor, e deixa-a no meio, isolada, fraca e tenra, abandonada à fantasia, ao sonho e à chama interior: a cabeleireira penteia-a, as criadas vestem-na, a governanta trata-lhe da casa, a ama cuida-lhe dos filhos, as moças arrumam-lhe os quartos, o marido ganha-lhe dinheiro, a modista faz-lhe os vestidos — um cupé macio caminha por ela, um jornal de modas pensa por ela. — O que resta a esta infeliz criatura, encolhida no tédio da sua causeuse? Resta-lhe a sua genuína ocupação, a que lhe ensinaram e em que é perfeita — o amor.

Se o marido se conserva um amante — bem. Mas se o marido, naturalmente, como deve ser, se ocupa dos seus negócios, do seu escritório, da sua política, dos seus fundos, do seu clube, dos seus amigos — mal. Ela naturalmente faz como um amanuense que, tendo por profissão escrever, quando tem escrita e cheia a primeira folha de papel, toma outra — para continuar a escrever.

Tal é a verdade.

E querem uma prova? E que as mulheres mais ocupadas são as mais virtuosas. E isto evidente na pequena burguesia, no mundo proletário, nas classes agrícolas. Os adultérios aí, a não ser as excepções de temperamentos, são quase todos originados na necessidade e na pobreza. Outra prova é que Lisboa é uma terra de mulheres virtuosas.

Podem rir-se os incrédulos da cidade, les rieurs de la ville, como dizia Tallemant des

Reaux. A verdade é essa, e a razão é que Lisboa é uma terra pobre; a maior parte das famílias são de empregados públicos, e portanto as mulheres, sem criadas, sem aias, e sem carruagens, têm, de manhã à noite, o rude trabalho de uma casa a dirigir: têm de se vestir, de lavar os filhos, de alinhavar vestidos, de tomar róis, de fazer as suas compras; e fica-lhes um dia cheio e trabalhado.

Uma mulher assim fatigada, cheia de pequenas preocupações, de atenções caseiras, de economias, de chaves, não tem vagares para o sentimento. A sua natureza torna-se excessivamente prática, positiva, doméstica, hostil à fantasia e aos seus cortejos. Além disso, vendo o marido sobrecarregado e sustentando pela firmeza do trabalho aquela nau — toma-se por ele de um grande respeito. O casamento torna-se assim uma associação de trabalho. A mulher adquire uma alta ideia da sua missão.

Vendo-se centro de actividade na casa, e que é necessária a todos, e que a sua presença consola, e que a sua coragem fortifica, e que pelo seu trabalho e pela sua ordem a família está confortada, asseada, farta, alegre — julga-se e tem o orgulho de Providência, reina verdadeiramente, e nem por todos os encantos quereria descer na estima do seu pequeno mundo honrado.

Além disso, mesmo que fosse sentimental, o que é extremamente raro, as condições de existência burguesa defendiam-na como muralhas. As casas são pequenas, o contacto da família é permanente, a todas as horas, nas mesmas salas; torna-se impossível toda a inteligência secreta com o exterior. Não poderia sequer ter por muito tempo um segredo do coração: a família adivinhar-lho-ia na preocupação do rosto, na voz e no silêncio.

Dê-se à mulher um alto interesse doméstico, e dá-se-lhe uma virtude invencível.

Dê-se-lhe uma casa a governar, uma família a dirigir, e ela encontrará no seu coração mais valor para ser virtuosa, do que nós encontramos razões no nosso espírito para sermos honrados. — Ora agora se o marido faz da sua mulher uma amante mignonne e luxuosa, se a torna um pequenino mimo e um gozo de voluptuosidade, se faz dela um ornato de teatro e quase um embelezamento público, se a quer como uma sultana da

Geórgia, que se transporta nos braços — nesse caso esta mal, e então o risonho

Offenbach adianta-se com a sua batuta e o seu couplet garoto, e aconselha-o a que nunca entre em casa — sem prevenir.

Proudhon disse que a mulher só tem um destino — menagère ou courtisane — dona da casa ou mulher de prazer.

Seria longo explicar a alta moral que esta palavra encerra; mas se aos maridos basta um resumo concludente e firme, diremos que cada um — encarregue sua mulher de fazer casa, e a dispense de fazer moda. Quando falamos assim de moda, com irreverência, não queremos dizer que a mulher não cuide da sua beleza. Bem ao contrário. Para a mulher a beleza é o mais alto dos seus direitos e o mais grave dos seus deveres!

Colocar a mulher nas ocupações da família, eis o que achamos de mais genérico para evitar a dissolução do casamento. Se, porém, nos interrogam directamente sobre o adultério e os seus motivos, pedimos que observem o que se passa nos costumes.

O espectáculo é curioso, O adultério é um facto aprovado pela opinião. Querem a prova? No adultério entram — o sedutor, para que lhe dêmos este nome clássico, a mulher e o marido. Vejamos como eles mesmos se consideram a si: consciência própria e consciência pública.

Vejamos o sedutor:

Dizia Napoleão: o adultério que é um tão grande facto no código e na moral, não é na vida real mais que um entretenimento de baile ou uma distracção de teatro. Palavra profunda. O celibatário sentado na sua cadeira, num entreacto, enfastiado, fita uma certa mulher, que o fere pela cor dos cabelos ou pelo feitio da toilette: daí às vezes uma tragédia. No entanto o celibatário, o dândi, o leão, está na sua ocupação habitual. Não é para dissolver a família, provocar os desastres — que ele ali está de luvas gris — é para cumprir a sua elegância. Está nos costumes. Ninguém lho estranha.

O celibatário não é o carrasco oficial da felicidade conjugal. É uru bom rapaz, é um diletante, é um ocioso, é um voluptuoso. A sua distinção honra a civilização e o luxo; a cidade por vezes tem orgulho nele; Alcibíades, crévé, foi uma glória de Atenas, e Plutarco narrou-o. Não é por mal que o celibatário olha: é por obrigação da sua profissão, é por dever de ofício. Não é com intenção fatal que ele faz a sua corte a uma mulher; é porque, se conhece uma mulher, se é recebido em sua casa, tem obrigação de lhe fazer a sua corte. Fazer a sua corte — é necessário que saibam — é uma coisa muito diferente de fazer a corte.

Fazer a corte é olhar de longe, seguir, adivinhar a mulher, procurar falar-lhe, ter a atitude sentimental. Se o celibatário faz a corte é porque não é da intimidade da casa, ou está posto em suspeição pela desconfiança marital. Opera de longe, com largos voos.

Não é perigoso.

Outra coisa, porém, é o celibatário que faz a sua corte. Fazer a sua corte é sentar-se ao pé de uma mulher, fazer-lhe uma conversa interessante, provocar-lhe o espírito, dar-lhe o braço à saída, pôr-lhe o seu burnous com as pontas dos dedos. Diz-se muito legitimamente a um marido: Vou fazer a minha corte à tua mulher. Por coisa alguma se lhe diria, sob pena de bengaladas, vou fazer a corte a tua mulher. O que faz a sua corte

é sempre íntimo de casa: tem o seu talher, ri em segredo com madama, traz-lhe ramos de que tira um botão de rosa para o marido pôr na boutonnière — entra no camarote e diz-lhe: Se queres vai fumar, eu fico a fazer a minha corte a tua mulher.Onde está fulano? perguntam no corredor ao marido que fuma. — Ficou a fazer a sua corte a minha mulher.

O que faz a sua corte vai com ela às lojas, traz-lhe a valsa da véspera e o escândalo do dia, conta-lhe ao ouvido o enredo da ópera, e é ele que — quando o marido o encontra saindo da sala de sua mulher, lhe diz:

— Tenho estado a fazer a minha corte a tua mulher.

— Não queres ficar para jantar?

— Não. Vou fazer ainda a minha corte a fulana.

O celerado! o bom rapaz!

Ora bem: este homem que — para que o digamos desde já — é o amante, como é considerado pelo mundo e pela opinião? Optimamente. Bem recebido, rodeado de braços abertos, tomado como tipo e mestre pelos solteiros, invejado pelos maridos maniatados ao casamento, como uma ave que voa, pode ser invejada por uma couve que está, olhado curiosamente, intencionalmente e medrosamente pelas mulheres — torna-se centro e toma no seu mundo uma atitude vitoriosa.

Assim o ter tido um certo número de amantes, isto é, ter desorganizado um certo número de famílias, é na moral contemporânea um chique. Na moral antiga teria as penas infamantes da mutilação. Hoje é um chique. É mais: é um complemento de educação. Na Princesse Georges, a mãe, a marquesa, diz do príncipe de Birac: — um homem de bem que viajou e teve aquele número de aventuras que fazem parte da educação, mas teve-as no seu mundo.

Esta palavra é um traço fotográfico da opinião moderna. E quem o diz é uma mulher honesta, atenta à devoção. E aí temos pois que ter seduzido algumas mulheres casadas, é, na mocidade de um homem e para garantia do seu destino, tão indispensável como ter aprendido a gramática; e pode dizer-se das perfeições de um gentleman:

Deitou a perder uma mãe de família e sabe os verbos.

O homem que nunca teve uma amante casada e, segundo a apreciação mundana, ligeiramente ridículo, filósofo, caturra; nega-se-lhe a experiência feminina, e passa à situação hirsuta e florestal de bicho do mato: é a opinião dos cafés. E a opinião das salas não lhe é mais favorável: é considerado um inábil e um colegial sem valor; se ele não interessou nem fez palpitar ninguém é porque é sem espírito, sem originalidade, sem beleza, sem toilette e sem descrição, é um inútil, é um seminarista extraviado; atribui-se- lhe falta de coragem e de domínio; dá-se-lhe aquela indiferença que se dá às coisas sem dono. Mas se teve uma amante com publicidade e relevo, ah! é um homem. A sua fisionomia interessa e exala mistério. Se teve três, é leão, torna-se celebridade, tem o sorriso escravo das mulheres e um lugar no Estado. Se tem tido mais, e um marido morto em duelo, é o caso de Cade Rousse, fica numa civilização como tipo perfeito da fina flor dos bravos. E assim a glória cresce, com o número de seduções, até Dom João, que por ter tido três mil, é cantado pelos poetas, escolhido pelos pintores como a expressão do ideal, posto em música pelos maestros divinos, tornado Símbolo, e depois de 400 anos ainda a sua legenda faz suspirar de amor.

E se o leão envelhece, não é abandonado como o de Lafontaine. A protecção feminina segue-o como um amparo providencial. É colocado numa embaixada ou num senado: o Estado encarrega-se dele, como de uma glória pública: e, como Romieu, depois de governar as alcovas, vai governar as províncias — ou, como o duque de

Morny, vai descansar das almofadas de boudoir na cadeira de primeiro-ministro.

E enfim, pormenor fatal, não há mãe que não deseje para sua filha, não há filha que não deseje para si — um homem que tenha já passado as primeiras verduras: isto é, deseja que, para dar garantia de felicidade à sua família, tenha já de antemão gasto a chama impaciente: por onde? Pelas famílias dos outros!

Sendo assim uma alta glória a sedução — é evidente que todos desejam a auréola perfumada e que todo o moço de vinte anos, livre do recrutamento, que se sente um pouco de espírito e de roupa branca, arremessa-se de badine em riste, ao movimento amoroso — o que faz, diria Marivaux — um voo de milhafres sobre as tenras pombas.

Perigo que não temos em Portugal — e que mais acentua a nossa virtude. Aqui há o celibatário, mas não há o leão. E não é difícil à mulher mais fraca resistir ao encanto do

Lovelace nacional: porque o celibatário está nas secretarias ou está nas cavalariças. Os das secretarias são excelentes rapazes, com boa letra, espírito de ordem, boa mão de bilhar, muito entendidos em espanholas, mas estão realmente longe de ter em espírito, em distinção, em petulância, em réplica, em sentimento, em valor, aquela alta superioridade que fazia com que madama Recamier se erguesse, ao cumprimentar, duas linhas acima do seu eterno sofá de damasco amarelo.

Enquanto aos que estão nas cavalariças — são também excelentes, dignos, perfeitos, mas inteiramente dados ao gado.

De modo que por este lado, ó filhas de Maria

Satanás anda longe.


XXXIV

Outubro 1872.

Pouco temos a dizer-lhes, mas não queremos deixar de os felicitar pelo bom resultado das suas greves. Nem apreciamos menos a atitude que tiveram, cheia de um espírito fraternal, de uma moderação resoluta e daquela tranquilidade que é a melhor garantia de que se possui o direito.

Os senhores estão no seu momento histórico.

Nós outros, os que pertencemos ao terceiro estado, nós que ainda não há cem anos deixámos pela primeira vez de ajoelhar, quando falávamos na sala dos Estados gerais, diante do rei imutável e sagrado sob o seu dossel de arminhos; nós que ainda há pouco, na noite de 4 de Agosto, repelíamos para a arqueologia o privilégio aristocrático; nós que há apenas noventa anos estávamos ruminando tranquilamente a nossa autoridade no alto da cidade — ai está que nos pomos a descer lentamente — porque os senhores se aproximam!

O terceiro estado vai-se, o quarto estado vem!

E ainda há pouco em Espanha, o Sr. Martos, mi nistro dos estrangeiros, anunciava no congresso a sua chegada oficial, dizendo: a revolução de Setembro é o advento do quarto estado!

Mas os senhores foram mais felizes que nos. Nós levámos a alcançar a roupa branca independente, que hoje temos, alguns séculos de trabalho consciente! E os senhores, caloiros que sois. Ainda há trinta anos, em 1848, a presença do operário

Albert no Governo provisório era a primeira aparição muda e instintiva do vosso temeroso mundo. — Parece incrível! e estamos em 72, e já vamos descendo para a penumbra histórica, nós, os filhos de Robespierre!

Paciência. Vamos-lhes abandonando a terra. Resignemo-nos. Desçamos. Dá cá o braço, Melício!

Mas, senhores operários, não se regozijem excessivamente; que os senhores têm o seu dia, mas terão o seu fim; e já por trás dos senhores, que são o povo, nós vemos uma temerosa sombra que murmura e rosna — a populaça.

Enfim, senhores operários, no meio dos seus triunfos, algumas considerações queremos submeter à sua atenção. E a primeira é que não se devem os senhores julgar os mais oprimidos da cidade. Porque onde existe o empregado público, ninguém tem o alto da desgraça. E se a sua Fraternidade Operária os pode conter a eles, lamentáveis como o pó e como o pó abandonados, não terão os senhores reunido a si o verdadeiro proletário — o proletário burguês. — Os senhores falam do seu direito, reclamam-no com greves, conseguem-no com cotizações; mas a verdade é que muitos dos senhores não são desgraçados. Em Portugal as indústrias são quase todas privilegiadas, a importação

é grandemente limitada pela taxa das alfândegas, de tal sorte que a média dos senhores ganham 800 réis diários, e alguns 1$000 réis. E com isto os senhores vivem em casas baratíssimas, andam perfeitamente com a sua jaqueta, suas esposas trazem com muita graça as chitas simpáticas dos tempos simples, seus filhos vão aprender um ofício e ganham logo; — os senhores não têm visitas, nem teatros, nem convites, porque têm a vantagem da vida pobre; talvez não comam carne todos os dias, o que e um grande mal, mas muitos empregados públicos a não comem também. Agora acresce que eles, por exemplo, a classe infinita dos amanuenses, com os seus ordenados de 600 a 800 réis, têm de viver num andar da Baixa, de andarem eles, os filhos e as mulheres, vestidos com certa decência, de pano e de seda, têm de mandar os filhos aos colégios, e suportam

Srs. Operários: todas as desvantagens da sua posição oficial. Isto, em breves palavras, sem fazer o quadro mais minucioso e realista da vida de um empregado público — lhes fará compreender — que a pequena burguesia já está mais pobre que o proletariado: que ela, vivendo sob a pressão feroz da carestia dos alugueres, do alto preço dos géneros, da agiotagem — não pode todavia fazer greves — e que, por exemplo, um primeiro oficial de secretaria é mais pobre e bem mais proletário do que um operário pintor de carruagens, cujo salário pode elevar-se a 2$000 réis por dia.

É verdade que um pintor de carruagens é a excepção — mas o director-geral não é a regra.

Se além dos empregados públicos — o que lhes pode parecer uma aproximação humorística — os senhores se lembrarem das classes agrícolas e da miséria dos trabalhadores do campo, que são, como os senhores, proletários — e não sei se diremos que eles, criados na salutar educação da terra e da cultura, nos merecem mais simpatias que o proletário da cidade, que tem uma polidez de mau agoiro — verão que no fim de tudo, para além dos senhores, muita miséria existe calada — que deveria falar.

Outra coisa porém lhes pedimos com todo o empenho — é que estudem melhor as suas greves. Porque, tendo os patrões o meio de se desforrar do aumento do salário que os senhores lhes exigem, aumentando o preço por que vendem aos que consomem, não vão os senhores por excessivas greves causar um encarecimento geral; de tal sorte que suceda este facto impertinente: os senhores terem um vintém mais por dia no que ganham, e gastarem por dia um pataco mais no que consomem. Vejam que uma parte dos homens eminentes da Internacional, porventura os mais científicos, se estão opondo

às greves, as quais já deram em Inglaterra para os operários o resultado igual ao que tira um homem que lança ao ar uma pedra e ela lhe vem rachar a cabeça. Assim, por exemplo, os senhores chamam-se a Fraternidade Operária. Se são irmãos, não devem deixar na sua miséria atroz os seus irmãos que trabalham nos campos; mas se houver uma greve agrícola, os senhores, da cidade, têm imediatamente uma tal alta nos géneros de primeira necessidade, que não cobrirão com todas as greves industriais o desastre que lhes causou a greve agrícola. E esta, todavia, é de uma justiça irrecusável: somente arruína-os. Estudem, portanto, esta questão temerosa. Mas estudem-na. Não cantem um pouco de mais o fado. O fado é bom e bonito. Mas não é inteiramente à guitarra que os senhores hão-de conhecer a questão do salário; e olhem que essa questão envolve uma coisa positiva e nítida — a fome. Estudem, consultem os experientes, que residindo nos grandes centros industriais, têm a plena inteligência da lei económica das greves. Os senhores têm de chegar e de vencer. É uma lei histórica. Ninguém lho nega. A questão está toda no meio. Estudem-no bem — e pacificamente.

Outra coisa lhes pedimos, senhores operários: é que contenham certas tendências que os senhores vão mostrando para a literatura. Aparecem aqui e acolá, nos anúncios, prosas de operários que em termos poéticos e com muita retórica agradecem aos patrões, exprimem o seu direito, ou suscitam a sua opinião Os senhores não têm que fazer prosa. Prosa fazemo-la nós — e é mesmo essa uma das causas por que teremos de responder amargamente no dia do juízo social. Os senhores o que fazem é — produção e indústria. Se porém os senhores, sob a sua dignidade de operários, escondem apenas organizações de localistas — tenham a bondade de esperar aí um momento, que vamos buscar as bengalas.

Somos, srs. operários, fraternais amigos e antigos admiradores.


XXXV

Outubro 1872.

Deu-se ultimamente um facto singular: o soldado Barnabé mata o seu alferes com um tiro, e é, pelo consello de guerra, condemnado a ser passado pelas armas. Immediatamente a imprensa apossa-sc vorazmente d’este facto e, durante um mez, travase entre sanguineos e lymphaticos esta discussão: Deve o soldado Barnabé ser fusilado? deve o soldado Barnabé conservar-se vivo? E no entanto, na sua prisão, o soldado Barnabé, espera que os srs. jornalistas e curiosos decidam, — se elle póde continuar a aquecer-se ao sol, ou se deve ser encostado a um poste e atravessado de balas.

Podia supor-se ainda que o soldado Barnabé, na reclusão mortuária da sua casamata, não conheceria esta discussão, que é para ele alternadamente — bandeira da misericórdia e dobre de finados. Mas qual! O soldado Barnabé conhece os jornais. O soldado Barnabé lê os jornais, e, o que é pior, tendo um correspondente improvisado, sobre ele, uma anedota excessiva, o soldado Barnabé escreveu para os jornais. O soldado Barnabé rectificou. De modo que devemos crer que ele todas as manhãs abre a gazeta e vai procurar no artigo de fundo, soletrando a prosa florida — a probabilidade de viver ou a probabilidade de morrer!

Ora os que pedem a comutação da pena, compreendem-se, têm por si a beleza do sentimento: é a piedade, o respeito da vida, o ódio das penas irreparáveis — que vivem e suplicam na sua prosa. São simpáticos, são sensíveis.

Mas os srs. sanguinários que pedem a morte, em que se fundam?

Na Disciplina militar.

E é a primeira vez em Portugal que a Disciplina se estreia como razão. Nunca fora invocado este personagem: desde a deserção do soldado até à insurreição do general — tudo se tem passado tranquilamente, sem que a disciplina se adiante a reclamar os seus direitos ; — estava há tanto tempo calada, tácita, inactiva, indiferente, desinteressada, que todos supunham que ela pedira a sua reforma e gemia, nos subúrbios, um reumatismo antigo. Mas trata-se de uma vida — e vemos de repente, surpreendidos, a disciplina aparecer entre as colunas dos jornais, e pedir essa vida em seu nome e para sua garantia.

Sem o que a Disciplina não responde por si. Ou lhe dão o soldado Barnabé crivado de balas, ou a Disciplina se rebaixa inteiramente, e publicamente, nas ruas, se desabotoa.

Esta aparição da Disciplina, que nunca ninguém vira, é tão singular que o movimento instintivo é olhar para ela. E que desilusão! Vindo pedir sangue — podia supor-se que ela vinha forte, musculosa, asseada, correcta, intacta, pudica e grave. Qual!

Vem trôpega, caturra, esfarrapada, ensebada, esmoucada, babando-se e pedindo sangue para se reconfortar, como um mendigo escavacado pede um caldo. Um copo de sangue para a Disciplina! E todo o mundo se admira que ela não prefira meio de Lavradio!

Entendamo-nos com a Disciplina. Ela tem em nós dois respeitadores imutáveis.

Ela é a honra activa do exército, a sua consciência, a sua dignidade. Para ela se manter intacta e perfeita, se forem necessários cadáveres, encostem-se homens ao muro e forme-se o piquete de execução; nós não temos o respeito sentimental e lírico da vida humana, ou antes temos o respeito excessivo da vida pública e social, para hesitarmos em lhe sacrificar Barnabé ou João. Mas o que é necessário é que a Disciplina militar, que vem pedir essa vida para garantia da sua conservação, seja verdadeiramente e legitimamente a disciplina militar: isto é — a disciplina perfeita, sem nódoa, virgem de deserções e de revoltas, sem defecções e sem traições, tendo a religião da lei até à

Deu-se ultimamente um facto singular: o soldado Barnabé mata o seu alferes com um tiro, e é, pelo conselho de guerra, condenado a ser passado pelas armas.

Imediatamente a imprensa apossa-se vorazmente deste facto, e, durante um mês, trava-se entre sanguíneos e linfáticos esta discussão: Deve o soldado Barnabé ser fuzilado? deve o soldado Barnabé conservar-se vivo? E, no entanto, na sua prisão, o soldado

Barnabé, espera que os srs. jornalistas e curiosos decidam — se ele pode continuar a aquecer-se ao sol, ou se deve ser encostado a um poste e atravessado de balas. superstição, a obediência do dever até à minuciosidade, rigorosa, exemplar, intacta, rígida e prussiana. Se esta disciplina, para se conservar assim, pede sangue, atirem-se-lhe baldes de sangue!

Mas se é uma disciplina exautorada e desmoralizada, desfigurada e poluída por todas as revoltas e todas as desobediências, a que nos vem pedir, para se desafrontar, a execução de um homem — encolhem-se os ombros. É como se uma prostituta se viesse queixar de que lhe deram mais um beijo! Pois tudo a disciplina tem sofrido sem se queixar! Corpos desorganizados, regimentos insubordinados, desordens nos quartéis, dissolução nos costumes, traições nas fileiras, roubos nos armamentos, desfalques nos ranchos — está ferida, está extinta, está perdida — e de repente ergue-se e grita que a quiseram violar e que matem o violador! E há quantos anos te estás tu deixando violar, de semana em semana?

És tu que fazes os Barnabés. Quando um exército se sente desorganizar, sem reagir, alimenta a desobediência; e como perde o brio militar, o espírito de camaradagem, a atenção pelos inferiores e o respeito pelos superiores — termina-se pelo tiro; à anarquia da disciplina segue-se a tirania da brutalidade. Um general que leva os seus soldados à revolta, termina na última escala pelo soldado que dá tiros nos seus oficiais. É a quem tem melhor pontaria.

Quando uma mulher se queixa, à uma hora da noite, que a insultaram, não tem andado desde as sete da tarde a oferecer-se aos tumultos. Se à primeira falta contra ti, ó

Disciplina, tivesses reclamado, tinhas agora o teu cadáver. Assim, não. Se queres carne com sangue, come rosbife.

E diz-se que sem este exemplo o exército em Portugal não pode ter seriedade.

Escreve-se isto.

Não é mau. De modo que temos o exército sem espírito militar, sem instrução, sem manobras, sem hábitos de marcha e de acampamento, sem vigor físico, sem fé patriótica, os arsenais sem armas, a artilharia sem peças, os quartéis sem condições, as escriturações sem regularidade, os quadros sem gente, os estados-maiores sem talento, os coronéis sem fidelidade, os soldados sem disciplina — e qual o remédio para tudo isto?

— Matar o soldado Barnabé!

Nós bem sabemos que são os novos oficiais saídos das escolas e cheios de um espírito vivo — que querem este exemplo, para impedir o fim de tudo; e se há classe com que simpatizemos é a destes moços oficiais, homens positivos, instruídos, educados pela ciência, tendo alguma coisa no espírito da rectidão matemática, novos inteiramente no vigor e nas tendências sociais; mas estes bons rapazes estão na ilusão. Eles não concorreram para a desorganização militar — acharam-na assim e são como filhos, tardiamente nascidos, que encontram arruinada a casa de seus pais, desmoronando-se ao

Inverno.

Ora se eles são enérgicos e sentem em si a força das criações proveitosas, devem estar consertando a casa, vidro por vidro, e sustentando a disciplina caduca, cadáver por cadáver? — Não. Arrasem a casa e façam-na de novo. Depois se algum soldado resmungar, então sim: encostem-no ao muro e crivem-no de balas.

Até lá, sejamos mais benévolos — e não seja o pobre Barnabé que vá estrear — o novo sistema de armas!